FRAGMENTOS DA DOUTRINA CATÓLICA SOBRE A PREDESTINAÇÃO

10-12-2013 17:29

Fragmentos do Concílio Ecumênico de Trento

 

Concílio de Trento, Sessão VI (13-1-1547)

Cap. 12 - Presunção temerária de ser predestinado

805. Ninguém, enquanto peregrina por esta vida mortal, deve querer penetrar tanto no mistério oculta da predestinação divina, que possa afirmar com segurança ser ele, sem dúvida alguma, do número de predestinados [cân. 15], como se o justo não pudesse mais pecar [cân. 23] ou, que se tiver pecado, poderá com certeza prometer-se a si mesmo uma nova conversão. Pois, sem uma revelação toda especial de Deus, não se pode saber quais os que Deus escolheu para si [cân. 16].

(...)

814. Cân. 4. Se alguém disser que o livre arbítrio do homem, movido e excitado por Deus, em nada coopera para se preparar e se dispor a receber a graça da justificação - posto que ele consinta em que Deus o excite e o chame - e que ele não pode discordar, mesmo se quiser, mas se porta como uma coisa inanimada, perfeitamente inativa e meramente passiva - seja excomungado [cfr. n° 797].

815. Cân. 5. Se alguém disser que o livre arbítrio do homem, depois do pecado de Adão, se perdeu, ou se extinguiu, ou que é coisa só de título, ou antes, titulo sem realidade, e enfim, uma ficção introduzida na Igreja por Satanás - seja excomungado [cfr. n° 793 e 797].

816. Cân. 6. Se alguém disser que não está no poder do homem tornar os seus caminhos maus, mas que Deus faz tanto as obras más como as boas, não só enquanto Deus as permite, mas [as faz] em sentido próprio e pleno, de sorte que não é menos obra sua a própria traição de Judas do que a vocação de Paulo - seja excomungado.

817. Cân. 7. Se alguém disser que todas as obras que são feitas antes da justificação, de qualquer modo que se façam, são verdadeiramente pecados ou merecem o ódio de Deus; ou que, com quanto maior veemência alguém se esforça em se dispor para a graça, tanto mais gravemente peca - seja excomungado [cfr. n° 797].

(...)

825. Cân. 15. Se alguém disser que o homem renascido e justificado está obrigado pela fé a crer que certamente é do número dos predestinados - seja excomungado [cfr. n° 805].

(...)

827. Cân. 17. Se alguém disser que a graça da justificação só se dá aos predestinados para a vida, e que todos os outros que são chamados, são-no, sim, mas não recebem a graça, visto estarem pelo poder divino predestinados para o mal - seja excomungado."

 

Fragmentos da Summa Theologica

 

SANTO TOMÁS DE AQUINO

Suma Teológica, I, q. 23, a. 1:

Os homens são ou não são predestinados por Deus?

Objeções pelas quais parece que os homens não são predestinados por Deus:

1. Diz o Damasceno no II livro [1]: "deve-se ter em mente que Deus tudo conhece de antemão, mas que não predetermina tudo. Pois de antemão conhece o que existe em nós e não o predetermina. Mas os méritos e deméritos humanos estão em nós enquanto, por livre arbítrio, somos donos de nossos atos. Portanto, o que pertence ao mérito ou demérito não está predestinado por Deus. Assim, desaparece a predestinação dos homens.

2. Além disso, como foi dito (q. 22 a. 1 e 2), todas as criaturas estão ordenadas a seus fins pela providência divina. Mas das outras criaturas não se diz que estão predestinadas por Deus. Logo tampouco deve-se dizê-lo dos homens.

3. Mais ainda. Os anjos, como os homens, são capazes de ser felizes. Mas aos anjos, aparentemente, não corresponde o serem predestinados, pois neles nunca houve miséria. E Agostinho afirmou [2] que a predestinação é o propósito de ter misericórdia. Logo os homens não são predestinados.

4. Por último. Os benefícios que Deus dá aos homens são dados a conhecer aos santos pelo Espírito Santo, como nos diz o Apóstolo em 1 Cor 2,12: Não recebemos o espírito deste mundo, mas o Espírito que vem de Deus para que saibamos aquilo que Deus nos concede. Portanto, se os homens fossem predestinados por Deus, como a predestinação é um dom, a predestinação seria conhecida pelos predestinados. E isto é falso. Pelo contrário, está escrito em Rm 8,30: Aos que predestinou, a estes chamou.

Solução. É necessário afirmar: É apropriado Deus predestinar os homens. Pois, como foi demonstrado (q. 22, a. 2), tudo está submetido à providência divina. E como também foi dito (q. 22, a. 1), corresponde à providência ordenar as coisas ao seu fim. E o fim para o qual são ordenadas as coisas por Deus é duplo. Um, que ultrapassa a capacidade e proporção da natureza criada, e este fim é a vida eterna, que consiste em ver a Deus, algo que ultrapassa a natureza de qualquer criatura, como foi provado (q. 12, a. 4). O outro fim é proporcional à natureza criada, o qual pode ser alcançado com a capacidade de sua própria natureza. E aquilo ao qual não pode chegar com a capacidade de sua própria natureza, é necessário que lhe seja outorgado por outro, como a flecha necessita do arqueiro para chegar ao alvo. Por isso, e falando com propriedade, a criatura racional, capaz de chegar à vida eterna, chega a ela como se esta lhe fosse comunicada por Deus. A razão de tal comunicação preexiste em Deus, como também nele preexiste a razão da ordem do todo ao fim, que é a providência, como já afirmamos (q. 22, a. 1). A razão de algo que se vai fazer existe na mente do que vai fazer, é uma determinada preexistência do que se vai fazer que existe nele. Por isto, a razão da mencionada transmissão à criatura racional do fim da vida eterna se chama predestinação; pois destinar é enviar. Fica claro que a predestinação, com respeito ao seu objetivo, faz parte da providência.

Respostas às objeções:

1. À primeira deve-se dizer: O Damasceno chama predeterminação à imposição de necessidade; como sucede com as coisas naturais, que estão predeterminadas a algo fixo. Este sentido se apóia no que disse: Pois não quer a malícia e nem força a virtude. Desta forma, não nega a predestinação.

2. À segunda deve-se dizer: As criaturas irracionais não possuem capacidade para aquele fim que ultrapassa a capacidade da natureza humana. Por isso não se diz propriamente que estão predestinadas, embora se abuse às vezes da palavra predestinação para falar de qualquer outro tipo de fim.

3. À terceira deve-se dizer: Aos anjos corresponde serem predestinados como os homens, embora nunca tenha havido miséria entre eles. Pois o movimento não se especifica pelo ponto de partida, mas pelo de chegada. Exemplo: Não importa que algo branco, antes de ser branco, tenha sido preto, amarelo ou vermelho. De modo semelhante, para ser predestinado não importa que alguém seja predestinado à vida eterna saindo de um estado de miséria ou não. Também pode-se dizer que conceder um bem superior ao merecido é algo que pertence à misericórdia, como já afirmamos (q. 21, a. 3 ad 2; a. 4).

4. À quarta deve-se dizer: Mesmo que por um privilégio especial seja revelada a alguns a sua predestinação, não é conveniente que a predestinação seja revelada a todos, porque os não predestinados se desesperariam, e a segurança de ser predestinado poderia suscitar negligência nos predestinados.

[1] De Fide Orth. c.30: MG 94,972.

[2]. Cf. De diversis quaest. ad Simplic. 1.1 q.2: ML 40,115; Contra duas epist. Pelag. l.2 c.9: ML 44,586; De Praedest. Sanct. c.3: ML 44,965; c.6: ML 44,969; c.17: ML 44,985.

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Suma Teológica, I, q. 23, a. 3:

Deus condena ou não condena algum homem?

Objeções pelas quais parece que Deus não condena nenhum homem:

1. Ninguém condena aquele que ama. Mas Deus ama todos os homens, como é afirmado em Sb 11,25: Amas tudo o que existe, e não odeias nada do que fizeste. Logo Deus não condena nenhum homem.

2. Além disso, se Deus condena algum homem é necessário que a condenação seja para os condenados o que a predestinação é para os predestinados. Mas a predestinação é causa de salvação para os predestinados. Logo a condenação será a causa da perdição dos condenados. E isto é falso, pois se diz em Os 13,9: Israel, tu mesmo te perdes; de mim vem o teu auxílio. Logo Deus não condena ninguém.

3. Além disso, não se pode imputar o que não pode ser evitado. Mas se Deus condena a alguém, não pode evitar que pereça, pois se diz em Ecl 7,10: Contempla as obras de Deus, porque ninguém pode corrigir o que Ele desprezou. Logo não há como imputar aos homens que pereçam. Portanto, Deus não condena ninguém. Pelo contrário, é dito em Mal 1,2s: Amei Jacó; odiei Esaú.

Solução. É necessário dizer: Deus condena alguns. Já se disse anteriormente (a. 1) que a predestinação é parte da providência, e à providência, como também foi dito (q. 22, a. 2 ad 2), pertence permitir a existência de algum defeito nas coisas que lhe estão submetidas. Por isso, como pela providência divina os homens estão ordenados à vida eterna, também pertence à providência divina permitir que alguns não alcancem este fim. E a isto se chama condenar. Portanto, assim como a predestinação é parte da providência com respeito àqueles que, divinamente, estão ordenados à salvação eterna, assim também a condenação eterna é parte da providência com respeito àqueles que não alcançam o dito fim. Daí que a condenação inclua, além da presciência, a providência segundo nosso modo de entender, como já se disse (q. 22, a. 1 ad 3). Assim como a predestinação inclui a vontade de conceder a graça e a glória, assim também a condenação inclui a vontade de permitir a alguém cair em culpa e receber a pena pela culpa.

 

Resposta às objeções:

1. À primeira deve-se dizer: Deus ama a todos os homens e também a todas as criaturas enquanto lhes deseja algum bem; e, contudo, não quer qualquer bem para todos. Quando não quer para alguns o bem da vida eterna, se diz que os odeia ou os condena.

2. À segunda deve-se dizer: enquanto causa, a condenação não é o mesmo que a predestinação. Pois a predestinação é causa do esperado na vida futura pelos predestinados, isto é, a glória; e é causa, também, do que se recebe na vida presente, isto é, a graça. Pelo contrário, a condenação não é causa do que acontece na vida presente, isto é, da culpa, na qual Deus não tem parte. Mas, mesmo assim, é causa de sua retribuição futura, isto é, a pena eterna. Mas a culpa provém do livre arbítrio pelo qual se condena e se separa da graça. Este é o sentido do que é dito pelo profeta: Israel, tu mesmo te perdes.

3. À terceira deve-se dizer: A condenação de Deus não tira a capacidade do condenado. Por isso, quando se diz que o condenado não pode alcançar a graça, não se deve entendê-lo como uma impossibilidade absoluta, mas condicionada, do mesmo modo que é necessário que o predestinado se salve, como já dissemos (q. 19, a. 8 ad 1), com necessidade condicionada, isto é, que não anule a sua liberdade de arbítrio. Pois isso, se bem que o condenado por Deus não possa alcançar a graça, porém, o que incorre neste ou naquele pecado o faz seguindo sua liberdade de arbítrio. Por isso, com razão se lhe imputa a culpa.

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Suma Teológica, I, q. 23, a. 4:

Os predestinados são ou não são eleitos por Deus?

Objeções pelas quais parece que os predestinados não são eleitos por Deus:

1. Dionísio, no cap. 4 De Div. Nom. [1] diz que assim como o sol sem acepção emite sua luz sobre todos os seres corpóreos, assim também Deus o faz com sua bondade. Mas a bondade divina se comunica a alguns sobretudo pela participação da graça e da glória. Logo Deus comunica sua graça e sua glória sem eleição. Isto pertence à predestinação.

2. Além disso, a eleição se faz entre os que existem, mas a predestinação desde a eternidade se estende também aos que não existem. Logo alguns predestinados o são sem eleição.

3. Mais ainda, a eleição implica certa seleção. Mas, tal como se diz em 1Tm 2,4: Deus quer salvar a todos os homens. Logo a predestinação, que predetermina os homens à salvação, se dá sem eleição. Pelo contrário, está o que se diz em Ef 1,4: Nos escolheu n'Ele antes da fundação do mundo.

Solução. É necessário dizer: Tal como a entendemos, a predestinação pressupõe eleição, e a eleição pressupõe amor. O porquê disto está em que a predestinação, como se disse (a. 1), é parte da providência, e a providência, como a prudência, é a razão presente no entendimento, dirigindo a ordenação das coisas a um fim, como já se afirmou (q. 22, a. 1). E nada se predetermina para um fim se não há vontade de tal fim. Por isso, a predestinação de alguns à salvação eterna pressupõe, tal como o entendemos, que Deus queira sua salvação. E a isto pertencem a eleição e o amor. O amor enquanto quer para eles o bem da salvação eterna. pois amar é querer o bem para alguém, como afirmamos (q. 20, a. 2 e 3). E a eleição, enquanto quer este bem para uns e não para outros aos quais condena, como também afirmamos (a. 3). Sem dúvida a eleição e o amor não indicam o mesmo para Deus e para nós. Em nós, a vontade de amor não causa o bem, mas somos incitados a amar pelo bem já existente, escolhendo a quem amar. Por isso em nós a eleição precede o amor. Mas em Deus acontece o contrário, pois sua vontade, pela qual amando quer o bem para alguém, causa que uns alcancem o bem e outros não. Assim, tal como o entendemos, o amor pressupõe a eleição, e a eleição, a predestinação. Por isso, todos os predestinados são eleitos e amados.

 

Resposta às objeções:

1. À primeira deve-se dizer: Se se considera em geral a comunicação da bondade divina, tal bondade se comunica sem eleição, quer dizer, nada há que não participe algo de sua bondade, segundo foi dito (q. 6, a. 4). Mas se se considera a comunicação deste ou daquele bem, não se concede sem eleição, porque há bens que são concedidos a uns e não a outros. Nisto consiste a eleição ao conceder a graça e a glória.

2. À segunda deve-se dizer: Quando a vontade de eleger é incitada a eleger pelo bem preexistente, então é necessário que a eleição seja do que existe. Assim sucede em nossa eleição. Mas, como já dissemos (q. 20, a. 2), em Deus não é assim. Por isso, como disse Agostinho [2]: Os que não existem são eleitos por Deus e, mesmo assim, quem elege não se equivoca.

3. À terceira deve-se dizer: Como já foi dito (q. 19, a. 6), Deus quer de forma antecedente que todos os homens se salvem. Esta forma de querer não consiste em querer algo absolutamente, mas de certo modo. Deus não o quer de forma conseqüente, que consiste em querer algo absolutamente.

[1] § 1: MG 3,693: S. Th. lect.1.

[2] Serm. ad Popul. n.26 c.4: ML 38,173.