MANUAL DE APOLOGÉTICA

09-12-2013 20:59
INTRODUÇÃO
 

 

I - APOLOGÉTICA: DEFINIÇÃO - OBJETO 

 

1. Definição  

Etimologicamente, a palavra apologética (do grego apologèticos, apologia) significa justificação, defesa. Apologética é, pois, a justificação e defesa da fé católica.

 

2. Objeto  

A apologética tem dois fins:

 

Justificação da fé católica. Considerando a religião no seu fundamento (isto é, no fato da revelação cristã, de que a Igreja Católica se diz a única depositária fiel), a apologética expõe os motivos de credibilidade, que provam a sua existência. Deve, portanto, resolver esse problema: havendo neste mundo tantas religiões, qual será a verdadeira? Ora, o apologista católico sustenta que só a sua fé é a verdadeira, e que o é na realidade; deve, pois, provar essa asserção. Este primeiro trabalho constitui a apologética demonstrativa ou construtiva.

 

Defesa da fé católica. A apologética não só apresenta os títulos que tornam a Igreja Católica credora da nossa adesão, mas também enfrenta os adversários, respondendo aos seus ataques. E como os ataques variam com as épocas segue-se que deve evolucionar e renovar-se incessantemente, pondo de parte as objeções antiquadas e apresentando-se no campo escolhido pelos adversários, para os combates da hora presente. Sob este segundo aspecto, a apologética tem um caráter negativo, e chama-se apologética defensiva.

 

3. Corolário: Apologética e apologia  

Não são termos sinônimos. "Apologética significa propriamente ciência da apologia, do mesmo modo que dogmática significa ciência do dogma.. A apologética é a defesa científica do Cristianismo pela exposição das razões em que se apóia. Uma apologia é uma defesa oposta a um ataque” (Hettinger, Théol. Fond. t. I.).

O objeto da apologética é, portanto, mais geral. A apologia limita-se a defender um ponto da doutrina católica no campo do dogma, da moral ou da disciplina. Prova, por exemplo, que o mistério da SSma. Trindade não é absurdo; que acusar de interesseira a moral cristã é injusto; que o celibato cristão não é instituição digna de censura, mas rica em vantagens inestimáveis; e chega até a reabilitar a memória de um santo. A apologia remonta às primeiras eras do Cristianismo; a ciência apologética aparece mais tarde, e está sempre em via de formação ou, pelo menos, de aperfeiçoamento.

 

II - FIM E IMPORTÂNCIA DA APOLOGÉTICA 

 

4. Fim  

Do objeto da Apologética (n.0 2) deduz-se claramente o fim que se propõe.

Enquanto demonstrativa, dirige-se não só ao crente, mas também ao indiferente e ao ateu:

Ao crente para o arraigar nas suas convicções, mostrando-lhe os sólidos fundamentos de sua fé, iluminando-lhe a inteligência e fortificando-lhe a vontade;

Ao indiferente ao ateu: ao primeiro, para o convencer da importância de questão religiosa e da sem-razão da indiferença acerca deste assunto; ao segundo, para o arrancar a incredulidade; a ambos, finalmente, para os levar à reflexão, ao estudo e à conversão. Quer se dirija aos crentes, quer se dirija aos incrédulos, a apologética tem sempre em vista levar as almas à certeza do fato da revelação. Ora, há muitas escolas filosóficas que negam ao homem a capacidade de atingir a verdade. Será, pois, conveniente, resolver o problema da certeza.

Enquanto defensiva, a apologética visa só os anticrentes e tem por fim refutar os seus preceitos e objeções. Dizemos anticrentes e não incrédulos, porque ordinariamente os incrédulos limitam-se a não crer, ao passo que os anticrentes têm uma religião especial - a religião da ciência, da humanidade, da democracia, da solidariedade, etc. - que dirigem contra a religião católica.

 

5. Importância  

A importância da apologética deduz-se destes dois motivos:

 

É o preâmbulo da fé. Lembremo-nos, que a fé exige o concurso da inteligência, da vontade e da graça. Ora, a missão da Apologética é levar o homem até o limiar da fé, torna-la possível, provando que é racional. As provas, que o apologista nos fornece acerca do fato da revelação, devem levar-nos a formar dois juízos: a revelação manifesta-se-nos com evidência objetiva e portanto é digna de crédito (credibile est), juízo de credibilidade; se é digna de crédito, há obrigação de crer (credendum est), juízo de credendidade. O primeiro é de ] ordem especulativa, dirige-se só à inteligência; o segundo vai mais longe, atinge a vontade: é um juízo prático. Se considerarmos os fatos, a questão para nós não existe, está resolvida antes da discussão, porque, seja qual for a religião a que pertençamos, todos a recebemos do nosso meio e da nossa educação; veio-nos por intermédio dos nossos pais e dos nossos mestres. Muitos há que a aceitam sem discussão nenhuma, fundados somente na autoridade. Mas pode chegar um momento em que a dúvida assalte o espírito, e seja necessário armar a fé contra os ataques inimigos. Não recomendava já S. Pedro aos primeiros cristãos que andassem preparados para dar razão de sua crença quando lha pedissem? (I Ped. 3, 15). Hoje, ainda mais do que então, devem os católicos conhecer os motivos da sua fé e saber explicá-los aos outros. É bom advertir que não se pode duvidar da fé, embora seja permitido sujeitá-la a exame. Segundo o Concílio Vaticano I, “os que receberam a fé pelo magistério da Igreja nunca podem ter razão suficiente para a abandonar, ou pôr em dúvida”. (Const. Dei Filius, Can. III e Can. VI). Aos que dizem que é preciso fazer primeiro tábua rasa da fé para chegar à verdade, responde Leibniz: “Quando se trata de dar a razão das coisas, a dúvida para nada serve... Que se faça um exame para passar a dúvida..., passe. Mas que, para examinar. Seja necessário começar por duvidar, é isso o que eu nego”.

 

A apologética é a condição necessária da Teologia. Com efeito, a exposição da doutrina da fé católica já supõe a fé, e só tem em vista os crentes. Donde se segue que apesar de terem pontos de contato e de se ocuparem igualmente da revelação, diferem contudo no ponto de partida e no desenvolvimento. De fato, o apologista, só com o instrumento da razão, eleva-se das criaturas ao Criador, a um Deus revelador, e chega ao fato da Igreja docente; ao passo que a Teologia segue a ordem inversa: partindo do ponto onde chega a apologética, isto é, do magistério infalível da Igreja, expõe os ensinamentos da fé.

 

III - DIVISÃO DA APOLOGÉTICA 

 

Como as relações entre Deus e o homem são o fundamento da religião católica, a apologética deve tratar de Deus, do homem e das suas relações mútuas. Ora, a solução dos problemas, que dizem respeito a este tríplice objeto, pertence ao domínio da filosofia e da história. Daí as duas grandes divisões: a parte filosófica e a parte histórica.

 

1º) Parte filosófica  

Pertencem à filosofia os problemas relativos:

 

A Deus. Esta primeira seção trata da existência de Deus, da sua natureza e da sua ação (Criação e Providência).

 

Ao homem. A segunda seção deve provar a existência da alma humana, duma alma espiritual, livre e imortal.

 

Às suas relações mútuas. A terceira seção é a conclusão das duas primeiras. Parte da natureza de Deus e do homem, e tem por fim provar, não só as suas relações mútuas e necessárias, mas ainda aquelas cuja existência é possível presumir-se. As três seções da primeira parte constituem o que se chama preâmbulos racionais da fé.

 

2º) Parte histórica  

Na segunda parte entramos na questão de fato. Ora, os fatos pertencem à história. É portanto com documentos históricos que o apologista deve provar a existência da revelação primitiva e mosaica, e finalmente da revelação cristã feita por Jesus Cristo, da qual a Igreja é depositária.

A parte histórica subdivide-se, pois, em duas seções: a demonstração cristã, e a demonstração católica.  

 

Demonstração cristã. Nesta primeira seção trata-se de provar a origem divina da religião cristã, por sinais ou critérios, que nos levem ai assentimento. São de duas espécies:

Critérios externos ou extrínsecos, isto é, todos os fatos, milagres e profecias que, não podendo ter outro autor senão Deus, nos foram dados por Ele mesmo, para determinar e confirmar a nossa fé;

Critérios internos ou intrínsecos, isto é os que são inerentes à doutrina revelada.

 

Demonstração católica. Uma vez provada a origem divina da religião cristã, o apologista deve demonstrar que só a Igreja Católica possui as notas da verdadeira Igreja fundada por Jesus Cristo.

 

Outro modo de demonstração  

Poderíamos fundir numa só as duas seções da parte histórica e fazer imediatamente a demonstração da parte católica, sem passar pela demonstração intermediária. O apologista que adota este método vai diretamente à Igreja Católica. Apresenta-a “ornada de tais caracteres que todos podem facilmente vê-la e reconhecê-la como a guarda e única possuidora do depósito da revelação”. E isso pelo fato de só ele conservar “o imenso e maravilhoso tesouro das obras divinas, que mostram até à evidência a credibilidade da fé cristã”, e por ser ela mesmo um fato divino, “um grande e perene motivo de credibilidade, pela sua admirável propagação, eminente santidade, fecundidade inesgotável em toda espécie de bens, unidade católica e invencível estabilidade” (Const. de Fide, c. III.).

Tal é, a largos traços, a apologética demonstrativa. Caminha sempre ao lado da apologética defensiva, que lhe prepara o terreno, refutando as objeções dos adversários na parte filosófica e histórica.

 

IV - OS MÉTODOS DA APOLOGÉTICA 

 

1º) Definição  

 

Método apologético é o conjunto de processos que os apologistas empregam para demonstrar a verdade da religião cristã.

 

2º) Espécies  

Como o método da apologética deve variar necessariamente segundo a natureza do assunto, devemos distinguir:

O método filosófico ou racional na parte filosófica, onde se trata de comprovar pela razão a existência e a natureza de Deus e da alma humana, e estabelecer as suas relações;

O método histórico na segunda parte, onde é mister provar historicamente o fato da revelação. O método histórico tem ainda diversos nomes, segundo o processo que o apologista seguir.

 

Segundo o ponto de partida que se adotar, há o método ascendente e o descendente.

No método descendente, segue-se o caminho que indicamos no n.o 8: vai da causa ao efeito, de Deus à sua obra. Remontando às origens do mundo, aduz sucessivamente as provas da tríplice revelação divina: primitiva, mosaica e cristã.

No método ascendente, segue-se a ordem inversa exposta no n.o 9: vai de efeito à causa, da obra ao autor. Partindo do fato atual da Igreja, estabelece os títulos que lhe dão direito à nossa crença. Depois disso, falta apenas ouvir o seu testemunho acerca da revelação.

 

Segundo a natureza dos argumentos e a importância que o apologista lhe atribui na demonstração, temos: o método extrínseco e o intrínseco.

O método extrínseco toma este nome, porque o seu ponto de partida é extrínseco, isto é, tomado fora do homem, e porque se serve quase exclusivamente de critérios extrínsecos.

O método intrínseco, pelo contrário, parte do homem para se elevar até Deus e liga mais importância aos critérios extrínsecos. Considerando o homem sob o ponto de vista individual e social, este método mostra que a religião sobrenatural satisfaz os desejos da alma.

 

Nota: O método da imanência  

Com o método intrínseco está relacionado o método da imanência. Os seus defensores tomam como ponto de partida o pensamento e a ação do homem. O homem, dizem eles, sente um desejo insaciável de felicidade: tem fome e sede do ideal, do infinito, do divino. Em certas horas de melancolia e tristeza, sente, como diz Santo Agostinho, uma inquietação que não o deixa sossegar. Estes estados da alma, que são obra da graça, devem dispor o homem de boa vontade a aceitar a revelação cristã, pois só ela é capaz de saciar o coração. Desta forma, as aspirações internas e imanentes (do latim in manere, immanens, que reside dentro), isto é, - conforme a etimologia da palavra - que estão no fundo do nosso ser, provam que a natureza do homem precisa dum complemento, e que postula (postular = pedir, trazer como conseqüência, ter necessidade de.), por assim dizer, o sobrenatural, o transcendente, o divino, que a revelação cristã nos oferece.

 

Valor dos diferentes métodos  

Não vamos discutir aqui o valor dos métodos ascendente e descendente. Basta observar que o método ascendente apresenta a vantagem de ser menos extenso, mas que por isso mesmo tem o inconveniente de não ser tão completo.

Que pensar a respeito dos métodos extrínseco, intrínseco e de imanência? É claro que a sua eficácia, e portanto o seu valor, varia com as épocas e com os estados de espírito daqueles a quem se dirigem. A apologética, sobretudo quanto ao seu método, pode considerar-se como uma arte. Como o seu objetivo é convencer o espírito e mover o coração, é natural que empregue os meios mais adaptáveis às condições de tempo e de pessoas. Portanto, a apologética, ainda que imutável quanto à substância, é contudo muito variável quanto à forma: os modos de apresentar os motivos de credibilidade, a escolha dos argumentos e a importância que convém dar a cada um, deixam-se ao talento do apologista. Nenhum desses métodos, porém, é isento de perigos, se não se conservar nos seus justos limites.

O método extrínseco, levado ao extremo, cai no intelectualismo. Pois, pode facilmente exagerar o valor da razão, e então parece destruir a liberdade da fé e arrisca-se a não conseguir o seu fim. Porquanto, ainda que demonstre, a modo de teorema, a existência da revelação divina e que a Igreja Católica é a sua depositária, nunca acreditaremos nela se não corresponder às nossas aspirações.

Do mesmo modo, se o método intrínseco diminui muito o valor da razão e dá largas à vontade e ao sentimento da gênese do ato de fé, cai no subjetivismo e fideísmo e também não consegue o seu fim. Com efeito, não basta mostrar que a revelação cristã se harmoniza com as aspirações do coração humano; porque, se se omitem as provas históricas que atestam a sua origem divina, sempre poderão os adversários que a religião católica vale tanto como as outras.

O que dissemos do método intrínseco, aplica-se igualmente ao de imanência. Será talvez excelente preparação da alma, mas só deixará de ser digno de censura, quando não for exclusivo.

 

Apologética integral  

Por conseguinte, a apologética integral deve reunir os três métodos: extrínseco, intrínseco e de imanência.

Para chegar com mais segurança ao ato de fé, é conveniente preparar a alma pelo método intrínseco, ou pelo de imanência. “Só no coração livre", diz Blondel, "só nas almas de boa vontade e amigas do silêncio, se faz ouvir com utilidade a revelação exterior. O sentido das palavras e o brilho dos sinais da nada serviriam, se interiormente não houvesse o desejo de aceitar a luz divina”.

Concluído este trabalho preliminar, ao método intrínseco e de imanência deve seguir-se o método extrínseco, para começar a inquirição histórica e provar o fato da revelação.

 

V - HISTÓRIA DA APOLOGÉTICA 

 

É natural que os métodos da apologética tenham variado com os tempos e se tenham adaptado às necessidades do meio. Mas entre as diversas tendências, podem distinguir-se três tendências principais, e portanto, três espécies de apologética: a tradicional, a moderna e a modernista.

 

1º) Apologética tradicional  

É aquela que sempre esteve e ainda está em uso na Igreja e que forma deste modo como uma tradição continuada. É caracterizada pela importância que atribui aos critérios externos. Tem em vista sobretudo a inteligência, mas não se desinteressa das disposições morais.

Basta um rápido exame dos principais apologistas para nos convencermos que souberam harmoniosamente combinar o método intrínseco como método extrínseco.

O próprio Jesus Cristo liga grande importância à preparação moral (Parábola do semeador, Marc. 4, 1-20; dos convidados às núpcias, Mat. 22, Luc. 14). Geralmente não concede sinais da sua missão divina senão aos que têm fé, confiança e humildade.

Os Apóstolos seguem as pegadas de seu Mestre.

Mais tarde, na época das perseguições, a apologética é sobretudo defensiva. Acusam os cristãos de acusarem contra a segurança do Estado, de ateísmo e de imoralidade. Para os defender dessas calúnias, fazem os apologistas um paralelo entre o paganismo e o Cristianismo. Salientam a transcendência deste (critérios internos), e invocam depois os milagres de ordem moral: a conversão do mundo, a santidade de vida dos cristãos, a sua constância heróica nos suplícios e o aumento constante (S. Justino, Tertuliano).

S. Tomás de Aquino, o grande apologista da Idade Média, depois de expor os preâmbulos da fé e refutar as objeções dos adversários (Suma contra os gentios) mostra na Suma Teológica a harmonia e a coerência entre as verdades cristãs e as aspirações da alma (critérios intrínsecos).

É verdade que no século XVII, Bussuet usa exclusivamente critérios externos, mas em compensação Pascal emprega sobretudo os critérios internos, a ponto de poder ser considerado como iniciador do método de imanência, da que já falamos (n.o 12). Começa pelos critérios internos de ordem subjetiva e considera a natureza humana na sua grandeza e na sua miséria. Quer assim levar o homem a admitir que precisa da religião para explicar a sua indigência e dar-lhe remédio. Com efeito, só ela nos faz compreender a nossa miséria, mostrando-nos que a causa é o pecado original; só ela nos indica o remédio, que é a Redenção de Jesus Cristo. Deste modo Pascal prepara o coração antes de provar a verdade do Cristianismo pelos critérios externos.

 

2º) Apologética moderna  

Distingue-se pela importância que dá aos critérios internos. Sob pretexto de que as provas históricas e os critérios externos - milagres e profecias - carecem de valor para convencer os espíritos imbuídos de idéias modernas no campo da filosofia e das ciências, os apologistas atendem sobretudo à preparação moral. Apresentam as maravilhas do Cristianismo, a perfeita harmonia que existe entre o culto católico e a estética (Chateaubriand), o seu valor e virtude intrínseca (Ollé Laprune, Yves lê Querdec), a transcendência (P. de Broglie), as belezas íntimas e os efeitos admiráveis, como é levar a consolação aos que sofrem (método íntimo de Mons. Bougaud). Ou então consideram a religião e a autoridade da Igreja, como o fundamento da ordem moral e social (Lacordaire, Balfour, Brunetière, etc.). Esse método, de si excelente, ficaria, como já dissemos, incompletos, se omitisse totalmente os critérios externos: milagres e profecias (n.o 13).

 

3º) Apologética modernista  

Foi condenada pelo decreto Lamentábili (3 de julho de 1907) de pela encíclica Pascendi (8 de setembro de 1907). Tem como representantes mais notáveis na França, Loisy (L´Évangile et l´Église, Autour d´un petit livre), Le Roy (Dogme et Critique); na Inglaterra, Tyrrel (De Sila a Caribdes); na Itália, Fogazzaro (Il Santo). As idéias principais são:

 

Na parte filosófica. Pode considerar-se sob dois aspectos: positivo e negativo.

Sob o aspecto negativo é agnóstica. O modernismo, baseado nos sistemas modernos, são como o subjetivismo de Kant, o positivismo de A. Comte e o intuicionismo de H. Bérgson, defende que a razão pura é impotente para sair do círculo de experiências e dos fenômenos, e, portanto, incapaz de demonstrar a existência de Deus, ainda que seja pelas criaturas.

Sob o aspecto positivo, é constituída pela doutrina da imanência vital ou religiosa (imanentismo). Segundo essa doutrina. Nada se manifesta ao homem, que nele não esteja já previamente contido. “Deus não é um fenômeno que se possa observar fora de si, nem uma verdade demonstrável por um racionalismo lógico. Quem o não sente no coração, jamais o encontrará fora. O objeto do conhecimento religioso só se revela pelo próprio conhecimento religioso” (Sabatier). Deste modo não é a razão que demonstra a existência de Deus, mas a intuição (do latim intueri, contemplar, ver. É o conhecimento direto dos objetos, sem intermédio e sem raciocínio.) que o descobre no fundo da alma, ou, como eles dizem, nos abismos da subconsciência onde o encontramos vivo e ativo.

 

Na parte histórica. O historiador modernista, por mais que o negue, deixa-se sempre influenciar pelos seus princípios filosóficos. Como agnóstico, prende-se que o único objeto da história são os fenômenos. Pelo fato de Deus estar acima dos fenômenos, não pode ser objeto da história, mas da fé. Daí provém a grande diferença que estabelecem entre o Cristo da história e o Cristo da fé; o primeiro é real, e o segundo, transformado e desfigurado pela fé. Outros dois princípios - o da imanência vital e o da lei da evolução - explicam o resto: a origem da religião nascida de sentimento religioso de Cristo e dos primeiros cristãos, e a sua transformação sucessiva, que se nota no desenvolvimento do dogma. Além disso, os Livros Sagrados e, especialmente os Evangelhos, não têm valor algum histórico.

Resumindo, o apologista modernista rejeita todas as provas tradicionais. Na parte filosófica, partindo da teoria kantista, segundo a qual a razão teórica não prova a existência de Deus, substitui as provas racionais pela do sentimento. Na parte histórica, negando que Deus possa ser objeto da história, suprime os critérios extrínsecos - milagres e profecias - os grandes sinais da Revelação Divina. Quanto ao demais, julga supérfluo pedir à história o que o testemunho da consciência lhe descobre. Para que havemos de procurar a Deus fora de nós, se o sentimos no coração? O dever do apologista limita-se, pois, a penetrar nos recônditos da alma, e provocar ali mesmo a experiência religiosa. O sentimento religioso, isto é, a consciência individual, que nos dá a conhecer que o Cristianismo vive em nós e satisfaz as profundas exigências da natureza, é a única razão da fé, a única revelação, a fonte de toda a religião.

Basta esta exposição sumária para nos persuadirmos que o modernismo destrói toda a idéia da verdadeira religião e opõe-se a apologética católica.

 

O PROBLEMA DA CERTEZA  

Logo no começo da apologética, surge um grave problema. Poderá a inteligência humana conhecer a realidade das coisas e alcançar a certeza objetiva? E, sendo a razão o principal instrumento do apologista, qual é o seu valor para chegar à verdade? Podemos confiar nela? Poder-nos-á conduzir à certeza? Tal é o primeiro problema que se impõe ao apologista e a que vamos responder sumariamente, porque está fora do nosso plano demonstrar “ex professo” o valor da razão e a objetividade do conhecimento. Além de ser assunto muito complexo e de sair dos limites de nosso simples trabalho, pertence ao domínio da filosofia; se os leitores quiserem estudar mais a fundo esta questão, indicamos os livros citados na Bibliografia. O único fim que nos propomos é, pois, dar uma idéia geral do problema e dos sistemas, que em diversos sentidos o resolvem, pondo-nos deste modo em contato com os adversários, que brevemente encontraremos no caminho.

Este capítulo terá quatro artigos: 1º) Noção, espécies e critério da certeza; 2º) Falsas soluções do problema da certeza; 3º) Verdadeira solução; 4o) Que se deve entender por certeza religiosa.

 

ART. I - A CERTEZA. NOÇÃO. ESPÉCIES. CRITÉRIO

 

1. Noção  

 

Certeza é o estado da mente em que está intimamente persuadida de possuir a verdade. Estar certo é, portanto, formular um juízo, que exclui totalmente a dúvida e o temor de errar.

 

2. Espécies  

 

A certeza não admite graus; ou é, ou não é. Por mais pequeno que seja o temor de errar, se existe, desvanecesse a certeza e dá lugar á opinião, ou à dúvida. Contudo, conforme os aspectos sob que se considere, é possível distinguir diversas espécies de certeza.

 

Segundo a natureza das verdades que atinge, temos:

 

A certeza metafísica, que se funda na relação necessária entre os termos do juízo. Quando digo que “o todo é maior que a parte”, o atributo convém de tal modo ao sujeito que é impossível conceber o contrário. Ao formularmos um juízo desses, o nosso espírito não só não admite a possibilidade de dúvida, mas afirma que a contraditória é absurda e não se pode conceber;

 

A certeza física, que se baseia na constância das leis do universo. Só a experiência nos pode dar esta certeza. Assim, quando dizemos que “os corpos tendem a cair para o centro da terra”, julgamos que a proposição contrária é falsa, por contradizer os fatos observados, mas não absurda, pois as leis poderiam ser de outro modo;

 

A certeza moral, que se funda no testemunho dos homens, quando este se apresenta com todas as garantias de verdade. As verdades históricas e, portanto, as religiosas são objeto da certeza moral.

 

Segundo o modo do conhecimento, a certeza é:

 

Imediata, direta ou intuitiva, quando se apresenta à inteligência sem o intermédio de outra verdade; ex.: o todo é maior que a parte;

 

Mediata, indireta ou discursiva, quando a conhecemos indiretamente por meio do raciocínio; ex.: a soma dos ângulos internos de um triângulo é igual a dois retos.

Com relação à evidência, a certeza pode ser:

 

Intrínseca, se a evidência é, direta ou indiretamente, apreendida do próprio objeto;

 

Extrínseca, se provém da autoridade daquele que a afirma. No primeiro caso, há ciência propriamente dita: no segundo, crença ou fé moral, como acontece nas verdades históricas.

 

3. Critério  

 

Em geral chama-se critério o sinal distintivo com que se reconhece uma coisa e que nos impede de a confundir com outra. O critério da verdade é, portanto, o sinal pelo qual podemos reconhecer que uma coisa é verdadeira e dela estar certos. Por conseguinte, o problema da verdade reduz-se a saber qual é sinal por onde podemos conhecer que estamos em posse da verdade.

 

Foram propostos vários critérios: a revelação divina (Huet, de Bonald), o consenso universal (Lamennais), o senso comum (Reid, Hamilton), o sentimento (Jacobi). Nenhum deles é admissível, porque todos são insuficientes e provém duma injustificada desconfiança da razão humana em geral, ou da razão individual em particular. O critério ou sinal infalível e universal da verdade é a evidência. Mas, que é a evidência? O termo evidente, como a etimologia o indica, significa que a verdade está revestida duma claridade que a faz brilhar aos nossos olhos. Desse modo a evidência exerce no espírito uma espécie de violência, coloca-o na impossibilidade de não ver. Estou certo porque vejo que a coisa é assim, e não pode ser de outro modo; e vejo que é assim, ou por intuição direta, ou por meio da demonstração, ou finalmente por um testemunho irrefragável que não me permite julgar o contrário.

 

ART. II - FALSAS SOLUÇÕES DO PROBLEMA DA CERTEZA

 

Várias são as escolas filosóficas que negam a possibilidade de conhecer a verdade e repousar na certeza. Só encaramos o problema sob o ponto de vista da missão que a inteligência deve desempenhar na descoberta da verdade.

 

Os céticos, criticistas, positivistas e intuicionistas negam ou deprimem o valor da razão. Examinemos rapidamente esses sistemas.

 

Ceticismo. Defendem os céticos que o homem é incapaz de distinguir o verdadeiro do falso, e portanto que deve abster-se de julgar. Para prova desta tese, aduzem quatro motivos: a ignorância, o erro, a contradição e o dialelo.

 

A ignorância. É manifesta a ignorância humana a respeito de diversos assuntos. Demais, como as coisas estão concatenadas entre si, a ignorância de um aspecto qualquer de um ser faz que não possamos conhecer a fundo e tal como é; não sabemos “le tout de rien”, como diz Pascal.

 

O erro. O homem engana-se freqüentemente e, o que é pior, quando se engana, julga possuir a verdade. Como há-de saber então quando alcançou a verdade?

 

A contradição. Os homens raramente estão de acordo.

 

A verdade varia:

 

Com os países. “Curiosa justiça limitada por uma serra ou um rio. Verdade do lado de cá dos Pirineus, erro do lado de lá!" - disse também Pascal;

 

Com os tempos. Ações, que hoje são lícitas, eram outrora proibidas, e reciprocamente;

 

Com os indivíduos. O que um julga bem, outro julga-o mal; Mais ainda; o mesmo indivíduo muda a cada passo o seu modo de ver e de pensar;

 

O dialelo (do grego di allêlôn, um pelo outro - é sinônimo de círculo vicioso). É o argumento mais especioso do ceticismo. Pode formular-se: Para provar o argumento da razão não há outro meio além da razão. Ora, isso é evidentemente um círculo vicioso; logo, tanto por esse motivo como pelos precedentes, o ceticismo defende com todo o direito que a dúvida é o estado legítimo da inteligência.

 

O criticismo ou relativismo kantista.

 

Segundo Kant, todos os juízos se acomodam às leis da mente. O conhecimento não é regulado pelos objetos; não provém do exterior por intermédio da experiência. Não podemos conhecer as coisas como são em si. Os objetos são unicamente o que o espírito quer que sejam: moldam-se, por assim dizer, nas formas da inteligência e nos pareceriam outro se nosso espírito fosse constituído de outro modo. Por isso nosso conhecimento é relativo, e só tem valor relativamente a nós, pois são as nossas faculdades que impõem as suas formas subjetivas aos objetos conhecidos; daí os nomes de subjetivismo e relativismo, que por vezes se dão à doutrina de Kant. Mas, se apenas atingimos as nossas idéias (Todas as teorias fundadas no princípio que só podemos conhecer os objetos como existem na nossa mente têm o nome genérico de idealismo. Entre as várias espécies de idealismo, somente faláramos de duas principais: o idealismo crítico, ou criticismo de Kant e o idealismo metafísico de Bergson, que é a forma mais moderna de idealismo, do qual nos ocuparemos depois com o nome de intuicionismo.), é conveniente fazer a crítica das nossas faculdades cognoscitivas (razão pura, razão prática e juízo), para conhecermos a influência subjetiva que exercem no objeto conhecido. Daqui provém o nome criticismo que de ordinário de aplica à teoria kantista.

 

Além disso, a nossa mente é forçada a conceber três idéias fundamentais: a alma, o mundo e Deus. Pensamos que a estas realidades correspondem três seres, objetos ou númenos (do grego noúmenon, percebido pelo “noûs”, razão pura - significa a essência dos seres, isto é, o que são em si, em oposição as suas aparências. Segundo Kant, o númeno pode ser objeto de crença, mas não de ciência.). Mas serão porventura três seres reais? Para além dos fenômenos haverá realmente númenos? Não o podemos afirmar, pois a razão é impotente para resolver o problema, não pode conhecer o ser em si mesmo, isto é, a alma, o mundo e Deus. Kant, porém, por meio de sua teoria engenhosa, distingue a razão teórica da razão prática (a razão prática é a consciência moral, isto é, a faculdade de julgar entre o bem e o mal por meio da lei moral), e constrói com a segunda o que tinha destruído com a primeira. A razão teórica ignora as coisas em si, mas a razão prática descobre a obrigação moral no mais íntimo da consciência e deduz e existência das coisas em si, quer dizer, da lei moral que postula a liberdade, a responsabilidade, a imortalidade da alma e a existência de Deus necessária para explicar a existência da lei moral e a possibilidade da sanção.

 

O Positivismo.

 

O positivismo (A. Comte e Littré, na França; Hamilton Spencer e Stuart-Mill, na Inglaterra) afirma que a razão humana pode atingir as verdades de ordem experimental ou positivas, mas que é incapaz de conhecer o que não é objeto de experimentação. Podemos, pois, compreender os fenômenos, o relativo, mas não a substância, nem o absoluto (os termos absoluto, coisa em si e númeno empregam-se aqui como sinônimos e opõe as palavras relativo, aparência e fenômeno). Por exemplo. A razão pode verificar os fatos, e formular-lhes as leis: é o cognoscível e o objeto de ciência. Mas para além dos fatos e das leis, estende-se o domínio inacessível das coisas em si e das causas: é incognoscível. Por isso, o positivismo chama-se também agnosticismo.

 

O Intuicionismo.

 

O intuicionismo, - nome que se dá às teorias de Bergson acerca do conhecimento, - provém do relativismo de Kant e do evolucionismo de Spencer.

 

Segundo Bergson, há duas maneiras de conhecimento: pala inteligência e pela intuição:

 

Pela inteligência. Admite, à semelhança de Kant, que a razão não pode chegar ao conhecimento objetivo dos seres, e dá várias razões. Na teoria kantista o conhecimento é sempre subjetivo, pelo fato de impormos aos objetos as formas imutáveis do nosso espírito; na teoria bergsoniana, ao contrário, afirma-se que a primeira causa de erro provém da atividade de inteligência humana, que, longe de possuir formas invariáveis, opera nos objetos com que está em contato, modifica-os, assimila-os, exatamente como o organismo transforma os alimentos. A segunda causa de erro provém de os objetos estarem sujeitos e perpétuas mudanças, e só poderem se apreendidos num dado momento da sua irrequieta existência. A terceira causa tem por origem os laços insensíveis que unem entre si estas mudanças; pois trata-se mais de evolução do que de transformação. Ora, como a razão se vê obrigada a trabalhar com conceitos estáveis, segue-se que não pode exprimir o movimento das coisas, nem o que há de contínuo na sua evolução. Deve portanto isolar os estados sucessivos dos objetos, substituir a descontinuidade e a pulverização da reflexão pela continuidade e unidade do seu “devir” ou movimento evolutivo.

 

Pela intuição. Mas, - e é nesta parte que Bergson julga ultrapassar Kant, - posto que a razão não consiga chegar a um conhecimento objetivo das coisas, existe contudo um meio de atingir a realidade. Este meio é a intuição, que conhece a realidade viva e móvel, por meio da visão direta e imediata do objeto. Portanto, só o conhecimento intuitivo é verdadeiramente objetivo.

 

Deste modo, julga o sistema bergsoniano evitar a crítica kantista acrescentando um novo elemento cognoscitivo. Donde se conclui que, se o conhecimento de Deus, por meio da razão não tem valor algum, pode conseguir-se pela intuição, pela consciência e pelo coração. Esta é a razão porque os modernistas, partidários da filosofia bergsoniana substituíram a apologética racional pela apologética de intuição ou de imanência (n.o 17).

 

ART. III. - VERDADEIRA SOLUÇÃO DO PROBLEMA. O DOGMATISMO. VALOR E LIMITES DA RAZÃO

 

1. O Dogmatismo  

 

Chama-se dogmatismo (do grego dogmatizo, afirmo) o sistema filosófico, que afirma que a razão pode conseguir a certeza, e que esta corresponde à realidade das coisas, isto é, que as nossas idéias são realmente objetivas.

 

O dogmatismo invoca em seu favor as seguintes razões:

 

A falsidade dos sistemas opostos;

 

A intuição imediata da verdade objetiva dos primeiros princípios;

 

As exigências do censo comum.

 

Falsidade dos sistemas opostos.  

 

Às objeções dos céticos responde o dogmatismo que a ignorância e o erro, acerca de algumas verdades, não provam de modo algum que a certeza não possa existir acerca de outras. O fato de algumas vezes reconhecermos que erramos, não será, pelo contrário, uma prova de que a nossa razão pode conhecer a verdade? A contradição não é também um argumento em favor do ceticismo, porque não é universal; não se estende a todos os domínios do saber, nem a todas as proposições. Quanto à objeção do dialelo, pode-se retorquir contra os adversários; porque, demonstrar pela razão a ilegitimidade da razão também é um círculo vicioso.

 

Aos criticistas e positivistas contesta que a distinção, por eles estabelecida entre o fenômeno e o númeno, não é absoluta, nem pode aplicar-se aos fatos de consciência, porque, numa única intuição, conhecemos o nosso ser e a representação que dele formamos. Outro erro funesto é pretender que a ciência se ocupa unicamente dos fenômenos; que só é certo o que experimentalmente podemos verificar; e que não é lícito concluir dos fenômenos para a realidade da substância. Pelo contrário, é incontestável que a razão, auxiliada pelos dados dos sentidos e da consciência, pode deduzir os princípios de causalidade e de substância, dos efeitos subir às causas, e das causas segundas e relativas, à causa primeira e absoluta.

 

O dogmatismo admite também, como Bergson, dois modos de conhecimento muito diversos, mas julga que o modo de operar da razão é tão legítimo como o da intuição. A diferença que entre eles existe não é tão grande como se poderia pensar.

 

Com efeito, o raciocínio supõe uma intuição no começo e outra no fim. Sirva-nos de exemplo a demonstração de um teorema de geometria. A razão deve apoiar-se primeiro nos axiomas cuja verdade ela apreende diretamente, isto é, por meio de uma intuição. Em seguida, por uma serie de deduções, chega a outra intuição, conhecendo claramente uma verdade até então desconhecida e cuja evidência aparece no final da demonstração.

 

Também não é exato dizer que a atividade da alma transforma a natureza das coisas. A inteligência abstrai a essência dos objetos; porque ainda que estes estejam sujeitos à evolução contínua, e num perpétuo devir, contudo esta evolução não lhes atinge totalmente o ser. Há neles alguma coisa que não muda, e é isso o que chamamos de substância. Através das múltiplas mudanças da minha existência, tenho a consciência de ser o mesmo homem. Portanto, do mesmo modo que a intuição, pode também a razão chegar ao conhecimento objetivo.

 

Intuição imediata da verdade objetiva dos princípios primeiros. Há um certo número de princípios fundamentais que conhecemos por meio da intuição imediata e cuja verdade se nos apresenta com tal evidência que se impõe a nossa inteligência; tais são, por exemplo, o princípio de identidade e o de razão suficiente. Quem ousará afirmar que A não é A, ou que um ser pode começar a existir sem uma razão suficiente? Todos estão intimamente convencidos que os axiomas não são meras representações do intelecto, mas leis dos seres.

Senso comum. É evidente que o senso comum está em favor do dogmatismo. Todos julgam, até os filósofos que fazem profissão do contrário, que as nossas idéias não têm um valor meramente subjetivo e que estão conformes com a realidade das coisas. “Não há sábio que tome a sério a quem lhe disser que as leis da física ou da química, descobertas por ele depois de tão longas e difíceis investigações, não correspondem à realidade, que o oxigênio e o carbono são apenas idéias subjetivas e que os eclipses da lua e do sol são meras “representações” da imaginação... Ora, não se pode admitir que o instinto natural e universal do gênero humano nos engane tão grosseiramente num assunto de tanta importância” (Fongressive, Elém. De philos. T. II.).

 

2. Valor e limites da razão  

 

De todo o que precede conclui-se:

 

Que a inteligência pode chegar a certeza objetiva em certas matéria, por meio da intuição e do raciocínio. Tendo sido dotados de uma alma feita para a verdade, seriamos os seres mais infelizes de criação, se caíssemos necessariamente no erro, ou nunca estivéssemos certos de não nos enganar;

 

A ciência não se limita ao conhecimento dos fenômenos, mas, em certa medida, penetra até o ser como é em si;

 

Dizemos, em certa medida, porque ainda quando alcançamos a certeza, nunca o nosso conhecimento é absoluto e adequado, pois não pode exaurir toda a cognoscibilidade das coisas. A razão encontra barreiras insuperáveis, porque quanto mais alto está o objeto, tanto mais imperfeito é o nosso conhecimento. Podemos, é certo, demonstrar a existência de Deus e conhecer alguma coisa de sua natureza, porém, à medida que avançamos, mais incompleta será a ciência e menos exato o conhecimento.

 

Conclusão  

 

“Ainda que seja completamente exato e adequado o nosso conhecimento dos seres, contudo é verdadeiro o que deles afirmamos. Somos homens, e por isso seria insensato aspirar ao impossível e querer possuir uma ciência sobre-humana” (Fongressive, Elém. De philos. T. II.). Digamos, pois, o conselho de Lactâncio: “É boa prudência não julgar que sabemos tudo, o que é próprio só de Deus, nem que tudo ignoramos, o que é próprio do animal irracional”.

 

ART. IV - CERTEZA RELIGIOSA. MÚNUS DA RAZÃO E DA VONTADE

 

Certeza religiosa  

 

Mas de que espécie é a certeza apologética? Não há dúvida de que a certeza religiosa é de ordem moral.

 

É verdade que na parte filosófica as verdades são metafísicas por natureza; porém, as questões que nela se tratam, - existência de Deus e da alma, sua natureza e relações entre Deus e o mundo, - são tão complexas e estranhas a experimentação direta, que a solução desses problemas não se manifesta com evidência matemática, e por conseguinte requerem em nós disposições morais.

 

Na parte histórica, as provas do fato da revelação se apóiam no valor do testemunho. Portanto, o motivo da nossa certeza devem apoiar-se em sinais que atestem sua existência e credibilidade. Mas, como na parte filosófica como na histórica, a razão e a vontade têm um valor a desempenhar.

 

Múnus da razão  

 

O múnus da razão é reconhecer a verdade. Ora, como vimos, o critério da verdade é a evidência e não o sentimento. Não julgamos que uma coisa seja verdadeira porque desejamos que o seja, mas julgamo-la tal porque vemos que é verdadeira. Nem o sentimento nem a vontade podem substituir a razão; para amar e querer uma coisa é necessário primeiro conhecê-la. Se chegamos portanto a alcançar a certeza religiosa, é porque a Revelação se apresenta revestida dos caracteres de evidência e dos motivos de credibilidade, que forçam o nosso assentimento.

 

Múnus da vontade  

 

A razão é insuficiente se não for auxiliada pela vontade, que nesse caso exerce uma dupla função:

 

Antes do juízo, deve dispor a alma para ver a luz. De fato, é ela que escolhe o objeto de estudo, que dirige para ele a atenção e nele a fixa. Mais ainda; a fim de a inteligência não ficar exposta aos perigos de errar, deve afastar da alma todas as paixões e preconceitos;

 

No momento de formular o juízo, não é menos necessária a sua intervenção para determinar a inteligência a aderir à verdade, pois esta adesão não se faz sem sacrifícios; as verdades morais, tais como a existência de Deus, dum juiz supremo, da imortalidade da alma, da lei moral e da vida futura, impõe deveres difíceis à natureza e que não raro seríamos instintivamente tentados a repelir.

 

Sem exagerar o múnus da vontade, podemos afirmar que a verdade religiosa não pode penetrar na alma simplesmente pela força de um silogismo. Devemos acrescentar, com Brunetière, que “se cremos, não é por motivos de ordem intelectual”? Estas palavras, mal interpretadas, não resistiriam à crítica; mas, na intenção do autor, significam certamente que a fé não nasce da força dos argumentos, se não houver o cuidado prévio de dispor a alma por meio da humildade, da mortificação das paixões e sobretudo da oração. As grandes conversões e as transformações morais operadas através dos séculos pelo Cristianismo foram mais propriamente trabalho da vontade e da graça, do que fruto do raciocínio.

 

Concluamos, pois, que importa assinar à vontade e à razão a missão que lhes compete. Como se exprime Platão, é preciso “procurar a verdade com todas as forças da alma”. Razão, vontade e coração devem unir-se para a conquista da verdade.

 

Bibliografia: Tratados de filosofia; em particular o Manual de Filosofia de C. Lahr (Porto, Apostolado da Imprensa), e os de Fonsegrive, Jolivet e G. Sortais. - S. Tomás, Summa Teológica, De veritate. - Kleutgen, La philosophie scholastique (Gaume). - De Pascal, Le Christianisme, I. Part. La verité da la Religion (Lethielleux). - P. Julien Werquin, L´Évidence et la Science.

 

 

A VERDADEIRA IGREJA 

 

SUMÁRIO GERAL 

 

Esta seção de apologética divide-se em três seções.

A primeira seção compreende dois capítulos agrupados sob o título geral de “Investigação da verdadeira Igreja”.

Nesta seção discutiremos duas questões:

Terá Jesus Cristo fundado uma instituição, uma Igreja, cujos traços essenciais possamos descobrir na Escritura, e à qual tenha confiado o depósito exclusivo de sua doutrina?

No caso afirmativo, quais são as notas pelas quais podemos reconhecer a verdadeira Igreja, uma vez que há várias que se dizem fundadas por Jesus Cristo?

Segunda seção. Depois de se ter demonstrado que a Igreja Romana é a verdadeira Igreja, pode dizer-se que o trabalho do apologista terminou, porque as outras duas seções já não pertencem à apologética construtiva. Contudo tratamos essas questões para responder as perguntas que geralmente se fazem nos programas de instrução religiosa e que são de grande importância.

A segunda seção, que tem por título a “Constituição de Igreja”, compreende dois capítulos:

No primeiro estuda-se a hierarquia e os poderes da Igreja sob o aspecto teológico;

O segundo trata dos direitos da Igreja e suas relações com o Estado.

Terceira seção. A terceira seção destina-se a defender a Igreja das principais objeções e ataques que mais freqüentemente os seus adversários, mal intencionados ou mal informados, lhe opõem. Esta seção terá dois capítulos:

A Igreja e a história;

E a Igreja ou a Fé perante a razão e a ciência.

SEÇÃO I - INVESTIGAÇÃO DA VERDADEIRA IGREJA

CAPÍTULO I - INSTITUIÇÃO DE UMA IGREJA

I. Noções preliminares.

Para evitar confusões, é conveniente, antes de mais nada, determinar o sentido das duas expressões “reino de Deus” e “Igreja”, cujo uso será freqüente nesse capítulo.

Conceito de reino de Deus. A expressão “reino de Deus” aparece ao menos cinqüenta vezes nos Evangelhos de S. Marcos e S. Lucas. S. Mateus, pelo contrário, emprega-a raramente (XII, 28; XXI, 31, 43), substituindo-a pelo hebraísmo “reino dos céus”. Mas pouco importa, porque as duas expressões têm o mesmo sentido. O reino de Deus, ou reino dos céus, era o assunto em que Jesus mais insistia.

Os judeus, fundando-se nos oráculos messiânicos, esperaram durante alguns séculos o estabelecimento de um grande Reino, que devia propagar-se pelo mundo, e dum Rei que Javé deveria enviar para governar. Portanto, a fundação desse reino devia se a obra do Messias. Mas o reino que Jesus prega não era semelhante àquele que os judeus imaginaram. É a nova religião, a grande sociedade cristã que Jesus Cristo vai fundar, e que há de implantar na terra até o dia em que será juiz e rei na sua última vinda. O reino de Deus tem, pois, duas faces:

Um reino terrestre, no qual poderão entrar todos os homens do mundo;

Um reino celeste e transcendente, um reino escatológico, que será estabelecido no céu.

Conceito de Igreja. Etimologicamente, a palavra Igreja (do grego “ekklêsia”, assembléia) designa uma assembléia de cidadãos convocados por um pregoeiro público.

Na linguagem escriturística a palavra tem duas significações.

No sentido restrito e conforme a etimologia, aplica-se quer a assembléia dos cristãos que se reúnem numa casa particular (Rom. XVI, 5; Col. IV, 15), quer ao conjunto de fiéis de uma cidade ou região; tais são, por exemplo, a igreja de Jerusalém (Act., VIII, 1; XI, 22; XV, 24), a igreja de Antioquia (Act. XIV, 26; XV, 3; XXIII, 1), as igrejas da Judéia (Gal., I, 22), da Ásia (I Cor., XVI, 19) e da Macedônia (II Cor., VIII, 1).

Geralmente, Igreja designa a sociedade universal dos discípulos de Cristo. Nessa significação é empregada no evangelho de S. Mateus no célebre “Tu es Petrus”... Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha “Igreja” (Mat. XVI, 18). Aparece o mesmo sentido com bastante freqüência nos Actos (V, 11; VIII, 1, 3;IX, 31), nas Epístolas de S. Paulo (I Cor., X, 32; XI, 16; XIV, 1; XV, 9; Gal., I, 13; Ef., I, 23; V, 23; Col., I, 18), Epístola de S. Tiago (V, 14).

Na linguagem dos SS. Padres, a palavra Igreja encontra-se em ambos os sentidos:

Em sentido restrito ou de assembléia dos fiéis, por exemplo, Didaché (IV, 12); ou de agrupamento local ou regional dos fiéis; como na Epístola de S. Clemente para os Coríntios no endereço e XLVII, 6;

Em sentido geral, para designar o conjunto dos fiéis pertencentes à religião cristã, encontra-se nos escritos do papa S. Clemente, de S. Inácio, de S. Ireneu, de Tertuliano e de S. Cipriano.

Conforme a doutrina católica, a palavra Igreja, tomada em sentido geral, aplica-se à sociedade dos fiéis que professam a religião de Cristo, sob a autoridade do Papa e dos Bispos.

Como sociedade, a Igreja possui a três características comuns a toda sociedade, a saber: fim, sujeitos aptos para atingir o fim, e a autoridade com a missão de os conduzir ao fim.

Os caracteres da Igreja como sociedade religiosa, tem natureza especial. O fim que prossegue é de ordem sobrenatural, pois não tem em vista os interesses temporais dos súditos, mas unicamente a salvação de suas almas. A autoridade, que assume a direção, é uma autoridade sobrenatural que recebeu de Jesus Cristo um tríplice poder:

O poder doutrinal infalível, para ensinar a doutrina de Cristo;

O poder sacerdotal para comunicar a vida divina pelos sacramentos e;

O poder de governar, que impõe aos fiéis o que é necessário e útil para sua salvação.

Nota

O conceito de reino é muito mais extenso que o da Igreja. Esta faz parte do reino; é o seu lado visível o social, mas não é todo o reino, pois este tem dois aspectos; o terrestre e o celeste ou escatológico. Contudo:

Igreja, tomada no sentido lato, confunde-se como reino de Deus. Com efeito, os teólogos distinguem o corpo e a alma da Igreja, isto é, a comunidade visível e hierárquica dos cristãos, e a sociedade invisível, a alma, à qual pertencem todos os que estão em estado de graça, ainda que professem outra religião. Compreendem, além disso, na noção de Igreja não somente os fiéis deste mundo (Igreja militante), mas também os eleitos que estão no Céu (Igreja triunfante) e as almas que sofrem no Purgatório (Igreja purgante ou padecente).

Sob o ponto de vista apologético, como aqui o entendemos, a palavra Igreja significa a sociedade visível e hierárquica dos cristãos deste mundo, considerado sob o seu aspecto esterno e social (sentido geral).

II. Divisão do capítulo

Neste capítulo estudaremos duas questões:

Indagaremos, primeiramente, se Jesus Cristo pensou em fundar uma Igreja: é a questão prévia;

No caso afirmativo, devemos provar historicamente quais são as características essenciais da Igreja fundada por Jesus. Daí, dois artigos. No primeiro, teremos como adversários os racionalistas, os protestantes liberais e os modernistas. No segundo, além desses adversários, teremos também os protestantes ortodoxos e os gregos cismáticos.

Art. I - Questão preliminar: Jesus pensou em fundar uma Igreja

Segundo os protestantes liberais e os modernistas, como Jesus tinha somente a missão de estabelecer o reino de Deus, não podia ter pensado em fundar a Igreja. O reino de Deus, como o concebem os nossos adversários, é incompatível com a noção católica de Igreja. O reino de Deus pregado por Jesus Cristo é, pois:

Para uns, um reino meramente espiritual;

Para outros, um reino somente escatológico.

Mostraremos que esses dois sistemas são uma interpretação incompleta e, por conseqüência, falsa, do pensamento e obra de Jesus Cristo.

§1º - O sistema do reino de Deus meramente interior. Refutação.

Exposição do sistema. Segundo Sebastier e Harnack, Jesus nunca pensou em fundar um Igreja, ou sociedade visível, mas limitou-se a pregar um reino de Deus interior e espiritual. A sua única preocupação foi o de fundar o reino de Deus na alma da cada fiel, operando nela uma renovação interior e inspirando-lhe para com Deus os sentimentos dum filho para com seu Pai.

Jesus encontrara, na geração de seu tempo, uma religião exclusivamente ritual e formalista. Não a proibiu expressamente, mas considerou como secundário esse aspecto externo da religião.

A grande novidade que pregou, o elemento original e propriamente seu, por assim dizer, a essência do cristianismo, é o lugar preponderante que atribui ao sentimento. Deste modo, o reino de Deus é íntimo e espiritual, destinado às necessidades da alma, sem imposição alguma de dogmas, instituições positivas e ritos meramente externos, deixando neste ponto completa liberdade ao modo de pensar individual.

Por conseguinte, a organização do cristianismo, como sociedade hierárquica, não entra no plano traçado pelo salvador; a Igreja visível é criação humana, cujas causas e origens pertencem ao domínio da história.

Refutação. Concedemos sem dificuldade aos nossos adversários que a essência da religião pregada por Cristo é sobretudo espiritual, que a maior inovação do cristianismo foi a renovação interior pela fé, pela caridade e pelo amor ao Pai, e que Jesus estabeleceu uma diferença essencial entre o farisaísmo daquele tempo e a nova religião. Não devemos porém exagerar, porque a espiritualidade do reino dos céus não é estranha ao conceito que dele faziam os profetas.

Todavia, temos de admitir, com Harnack, que o reino espiritual e interior foi exatamente a obra de Jesus; porque, como a voz dos profetas teve pouco eco, só Jesus conseguiu com sua autoridade, opor à justiça meramente externa e material do culto mosaico a justiça do novo reino, onde as virtudes interiores, como a humildade, a castidade, a caridade e o perdão das injúrias ocupam o primeiro lugar.

Mas, feitas essas observações, seguir-se-á, porventura, como pretende Harnack, que o reino de Deus, pregado e fundado por Jesus Cristo, é um reino meramente individual, uma sociedade invisível compostas das almas justas, sem nenhum caráter coletivo e social? Poder-se-á afirmar que a perfeição interior deve ser considerada como a essência do cristianismo, por ser ela só a obra de Cristo? De modo algum.

Há, neste modo de pensar, um sofisma desmascarado pelo próprio Loisy: “Não seria lógico", diz ele, "considerar como essência total duma religião o que a diferencia das outras. A fé monoteísta, por exemplo, é comum ao judaísmo, ao cristianismo e ao islamismo, e contudo, e modo algum se deve procurar, fora da idéia monoteísta, a essência dessas três religiões. O judeu, o cristão e muçulmano admitem igualmente que a fé num só Deus é o primeiro e principal artigo de seu símbolo. É pelas suas diferenças que se estabelece o fim essencial de cada uma delas, mas não são somente as diferenças que constituem as religiões... Jesus não quis destruir a lei, mos cumpri-la. É pois natural que haja no judaísmo e no cristianismo elementos em comum, essenciais a ambos... A importância desses elementos não depende de sua antiguidade, nem da sua novidade, mas do lugar que ocupam na doutrina de Jesus Cristo e da importância que o próprio Jesus Cristo lhes dá” (Loisy, L´Évangile et l´Église, Introd. p. XVI e seg.).

Por outras palavras, o “reino de Deus” não e exclusivamente espiritual, só porque o Messias ensinou que era sobretudo espiritual. Tudo isso é evidente, se interpretarmos as palavras de Jesus Cristo, segundo as condições do meio e das idéias, em que foram proferidas.

Jesus insistia particularmente na idéia de perfeição interior e de renovação espiritual para corrigir os falsos conceitos dos judeus, que esperavam um reino temporal, por se terem fixado quase exclusivamente no elemento secundário das profecias. Queria persuadir-lhes que o reino de Deus que veio fundar não era reino temporal, nem o triunfo de uma nação sobre as outras, mas reino universal, para todos os povos, no qual poderia entrar todo homem de boa vontade pela prática das virtudes morais e interiores.

Essa mesma idéia se depreende principalmente das parábolas, que eram a maneira mais usada por Jesus Cristo para ensinar as verdades que desejava inculcar. Compara, por exemplo, o reino dos céus ao campo do pai de família onde nasceram e cresceram juntamente o bom grão e o joio (Mat. XIII, 24-30), a rede que pesca peixes bons e maus (Mat. XIII, 47). Ora, essas palavras não fariam sentido na hipótese de um reino meramente interior e espiritual.

Ademais, a expressão reino de Deus seria muito imprópria se devesse entender reino de Deus na alma individual; porque, nesse caso, não se trataria de um reino, mas de tantos reinos quantas as almas.

Os partidários desse sistema, para provar a sua tese, fundam-se no texto de Lucas (XVII, 20): Ecce regnum Dei intra vos est, que traduzem deste modo: “O reino de Deus está em vós”. Mas esta passagem tem outro sentido e, segundo o contexto, deve traduzir-se: “O reino de Deus está no meio de vós”. Os fariseus interrogam Jesus e perguntam-lhe quando virá o reino de Deus. Jesus responde: “O reino de Deus não virá com mostras algumas exteriores. Não dirão: ei-lo aqui, ou ei-lo acolá; porque eis aqui está o reino de Deus no meio de vós”. Como é fácil de ver, estas palavras no contexto não só não favorecem, mas parecem até ir contra a idéia de um reino meramente espiritual; porque, dirigindo-se essa resposta aos fariseus, que não criam e que, por conseguinte, se punham fora do reino, Jesus não lhes podia dizer que o reino estava em suas almas.

Portanto, o pensamento de Jesus é muito diverso daquele que nossos adversários atribuem. Conhecendo Jesus as falsas idéias dos seus contraditores, que julgavam que a vinda do reino e do Messias seria acompanhada de sinais portentosos, de prodígios extraordinários no céu, ensinava-lhes a maneira como o reino de Deus há de vir. Diz-lhes que não virá como uma coisa que impressiona a vista, como um astro, cujo curso se pode conhecer, porque o reino será principalmente espiritual e por isso não será objeto de observação. Além de que, ajunta Jesus, é inútil andar e procura-lo, porque já veio e está no meio de vós.

Conclusão. Da genuína interpretação do texto de S. Lucas e das razões que antes demos, pode coligir-se que o reino de Deus não é meramente espiritual, mas coletivo e social e que, por conseguinte, não se pode afirmar que Jesus Cristo nunca pensou em fundar uma Igreja visível.

§2º - O sistema de um reino meramente escatológico

Exposição do sistema. Segundo Loisy a fundação da Igreja nunca entrou nos planos do Salvador. Vejamos como o autor o demonstra.

Na época em que apareceu o Nosso Salvador, era idéia corrente entre o Judeus que o Messias havia de inaugurar o reino final e definitivo de Deus, isto é, o reino escatológico. Ora, analisando os textos dos Evangelhos, somente sobre o aspecto crítico e sem os deformar com interpretações teológicas, parece certo que Jesus compartilhava do erro de seus contemporâneos.

Por conseqüência, a sua pregação tinha dois fins:

Anunciar a vinda próxima do reino e o fim do mundo, intimamente conexos entre si; e

Preparar as almas para estes acontecimentos por meio da renuncia dos bens do mundo e da prática das virtudes morais para alcançar a justiça.

Portanto o Cristo da história não pôde sequer pensar em fundar uma Igreja, isto é, uma instituição estável.

Não se pode, por conseguinte, falar de instituição divina da Igreja; porque foram as circunstâncias e o fato de não se ter realizado o reino escatológico que levaram os discípulos a corrigir o plano do Mestre e a interpretar de outro modo as expressões que Jesus tinha dito de um mundo prestes a acabar, para acomoda-las ao mundo que continua a existir. Donde se pode concluir que Jesus Cristo anunciava o reino, e em vez dele apareceu a Igreja.

Posto que a Igreja não provenha da intenção e vontade de Jesus, contudo, continuam os modernistas, pode dizer-se que está relacionada com o Evangelho, por ser uma espécie de continuação da sociedade que Jesus tinha reunido em volta de si, em vista do reino que desejava fundar. Assim, a Igreja é, em certo modo, o resultado legítimo, ainda que inesperado, da pregação de Jesus, e pode dizer-se que é realmente continuação do Evangelho. Por outros termos; Jesus tinha reunido em volta de si alguns discípulos, aos quais confiou a missão de preparar o advento do reino próximo; mas, como os acontecimentos iludiam as esperanças dos apóstolos - porque o reino não chegava, - a pequena comunidade cresceu e deu origem a Igreja.

A Igreja pode, portanto, definir-se: a sociedade dos discípulos de Cristo, que, vendo que o reino escatológico não se realizava, se organizaram e adaptaram às condições atuais.

Se perguntarmos a Loisy que havemos de fazer dos textos que narram a fundação da Igreja, responder-nos-á, com os protestantes liberais, que não são históricos, pois “são palavra de Cristo glorificado” e, por conseguinte, interpretações ou maneiras de pensar dos primeiros cristãos. Em seguida, Loisy conclui que “a fundação da Igreja por Jesus Cristo ressuscitado não é, para o historiador, fato palpável” (Loisy, L´Évangile de l´Église).

Refutação. Jesus Cristo, tendo apenas o objetivo de preparar as almas para a vinda iminente do reino dos céus e para a sua “parúsia”, mão podia ter pensado em fundar uma sociedade estável: tal é a idéia mestra do sistema de Loisy. Ora, para provar esta tese seria necessário retalhar o texto evangélico sem motivo justificável, e fazer uma escolha inadmissível, ou uma interpretação fantasista das passagens referentes à Igreja, como vamos demonstrar.

Sujeitemos a exame cada uma das afirmações de Loisy. Primeiramente, será verdade que os contemporâneos de Jesus tinham somente a idéia de um reino de Deus escatológico? Como muito bem observou o P. Lagrange, em "Le Messianisme chez lês Juifs", podemos distinguir claramente na literatura daquele tempo duas manifestações do pensamento judeu: a dos apocalipses e a dos rabinos.

Ora, tanto uns como outros afirmavam que o reino messiânico não se identificava como o reino escatológico, e ambos se preocupavam com o porvir do reino de Israel neste mundo. A única diferença que havia entre eles é que os primeiros insistem mais no reino escatológico, e os segundos, no reino do mundo atual. Por conseguinte, se Jesus Cristo tivesse adotado as idéias dos apocalipses, pregaria somente um reino escatológico e corrigiria as idéias dos rabinos. Ora, Jesus não o fez.

Vemos claramente do exame imparcial dos Evangelhos que o Salvador descreve um reino que tem duas fazes sucessivas, uma terrestre a outra escatológica ou final. A primeira é apresentada por Jesus Cristo com características que não podem de modo algum aplicar-se ao reino escatológico e se adaptam perfeitamente à vida presente. Fala de um reino já fundado: “Desde os dias de João Batista até agora, o reino de Deus padece força, e os que fazem força são os que a arrebatam”, (Mat. XII, 12). Quando replica os fariseus, que o acusam de expulsar os demônios em nome de Belzebu, diz: “Se eu lanço fora os demônios pela virtude do Espírito de Deus, logo é chegado a vós o reino de Deus” (Mat. XII, 28).

Todavia, nas parábolas de Jesus aparece mais claramente a doutrina de Jesus. Nelas se descreve o reino de Deus como realidade já existente e concreta, que deve crescer e desenvolver-se (parábola do grão de mostarda, em Mat. XIII, 31-35; Marc. IV, 30-32), que tem no seu seio bons e maus (parábolas do joio e do trigo, Mat.XVII, 24-30; da rede que pesca peixes bons e maus, Mat. XIII, 47-50; das virgens prudentes a das virgens loucas, Mat. XXIV, 1-18).

Ora, essas qualidades não se podem aplicar ao reino escatológico, e só podem convir a um reino já fundado, suscetível de se adaptar e de aperfeiçoar, que sirva de preparação a outra forma de reino onde a escolha já está feita, no qual só o bom grão, os bons peixes e as virgens prudentes terão entrada e do qual o joio os peixes maus e as virgens loucas serão escolhidos.

Instância. Não teríamos dificuldade em admitir tudo isso, dizem os partidários do sistema escatológico, se os textos alagados para provar o reino de Deus neste mundo fossem autênticos. Mas não o são; porque foram intercalados pela primitiva geração cristã que, vendo que o reino escatológico não se realizava, procuraram harmonizar o pensamento e as palavras de Jesus com os fatos.

Todo crítico de boa fé reconhece as duas séries de textos, uma escatologia e outra não, e admite que são incompatíveis entre si. Devemos, pois, fazer a escolha dos dois textos das duas tradições e indagar qual a primitiva. Ora, tudo nos leva a crer que só a série escatológica representa o genuíno pensamento do Salvador, porque não podia ter sido inventada no momento em que os fatos a desmentiam. Logo, a segunda série é posterior ao Evangelho.

Resposta. A objeção modernista carece de fundamento sólido. As duas séries de textos não são novidade alguma para nós, e todos os católicos as admitem; mas daí não se pode concluir que se excluam mutuamente. Não haverá acaso meio algum de as conciliar? A dificuldade está exatamente neste ponto.

Se Jesus Cristo tivesse anunciado o fim do mundo e o reino escatológico, como um acontecimento iminente, haveria sem dúvida motivo para contradição entre as duas séries de textos, e Jesus não podia ser o autor da série não escatológica. Mas, será verdade que o Salvador afirme que o reino escatológico devia realizar-se em breve?

Posta a questão nestes termos, poderemos responder a priori que a conciliação é possível; porque é inadmissível que os Evangelistas, escrevendo os discursos do Senhor tantos anos depois, fossem tão ineptos que introduzissem textos que os vinham contradizer. Mas uma das duas: ou os Evangelistas são fidedignos ou não. Na primeira hipótese foram fiéis, e neste caso só teríamos uma série de textos. Na segunda hipótese, porque não suprimiram e série escatológica, visto que era desmentida pelos acontecimentos, deixando apenas a série não escatológica?

Será acaso verdade que a série escatológica só admite a interpretação modernista? A resposta levar-nos-ia à celebre profecia sobre o fim do mundo. É impossível que a redação tenha sido posterior aos acontecimentos, por causa do enredo dos fatos e da confusão que se nota nas narrações. Se os Evangelistas tivessem escrito depois da ruína de Jerusalém, teriam distinguido melhor, entre a ruína de Jerusalém e o fim do mundo, e indicado com maior clareza o fato de que davam os sinais precursores. Ademais, o historiador Eusébio (Hist. Ecl. III, 5, 3) diz-nos que os cristãos da Judéia se lembraram da predição de Jesus quando viram aproximar-se os Romanos, e fugiram em grande número para Pela da Transjordânia, evitando assim os horrores da invasão. É inútil, portanto, insistir. Basta recordar que a frase de Jesus “esta geração não passará antes que todas estas coisas se cumpram" (Mat. XXIV, 34; Marc. XIII, 30; Luc. XXI. 32), invocada pelos adversários para provar que o Salvador cria no fim iminente do mundo, segundo o contexto, deve aplicar-se à ruína de Jerusalém e do povo judeu.

É certo que os Evangelistas não estabelecem distinção suficientemente clara entre as duas catástrofes a que as suas narrativas do fim do mundo e da ruína do templo são faltas de precisão. E é por esse motivo que muitos críticos julgaram que os apóstolos, levados pelas idéias do meio ambiente, se enganaram acerca do pensamento de Jesus.

Em qualquer hipótese não se pode admitir que Jesus cometesse o erro que lhe imputam os adversários; porque, é fora de dúvida, - cingindo-nos simplesmente aos dados da crítica literária, - que a catástrofe, cuja realização Jesus anunciava como iminente e à qual havia de assistir a geração de seu tempo, era a destruição de Jerusalém e do templo; porquanto, o tempo da segunda é considerado por Jesus como muito mais afastado, pois diz que “ninguém lhe sabe o dia nem a hora" (Mat. XXIV, 36).

Quanto às passagens que declaram iminente a vinda o Filho do homem sobre as nuvens do céu (Mat. XVI, 28; XXVI, 64; Marc. IX, 1; Luc. IX, 27; XXII, 69), podem entender-se da predição do admirável incremento que o reino messiânico teria em breve e do qual havia de ser testemunha a geração a que Nosso Senhor se dirigia. Assim interpretados esses textos, podemos dizer que se cumpriram à letra, visto que a difusão da religião cristã se operou com rapidez admirável.

Conclusão. Da discussão precedente não é temeridade concluir que o sistema dum reino exclusivamente escatológico é tão inaceitável quanto o sistema dum reino meramente interior e espiritual. Portanto, Jesus tinha em vista a formação de uma Igreja como sociedade visível.

Art. II. - Jesus Cristo fundo uma Igreja. Caracteres essenciais

Estado da questão

Demonstramos que o reino de Deus pregado por Cristo inclui um período a que podemos chamar fase terrestre e preparatória do reino escatológico. Ora, esse reino compreende todos aqueles que admitem a doutrina ensinada por Jesus e, por conseguinte, é uma sociedade, a que damos o nome de Igreja.

Investiguemos agora a natureza dessa sociedade. Compõe-se porventura de membros iguais, ficando assim a interpretação da doutrina de Cristo ao arbítrio do juízo individual, ou está hierarquicamente constituída, isto é, composta de dois grupos distintos, um que ensina e governa, e outro que é ensinado e governado? Instituiu Jesus, por si mesmo, uma autoridade a qual confiou a missão de ensinar autoritativamente a sua doutrina? Numa palavra, o cristianismo, é “religião de espírito” ou “religião de autoridade”?

Os protestantes ortodoxos, que são os adversários neste ponto, sustentam a primeira hipótese, isto é, que Jesus não instituiu uma autoridade visível. As verdades de fé, os preceitos e os meios de santificação ficaram dependentes da apreciação subjetiva e individual, pois Jesus não estabeleceu intermediário algum obrigatório entre Deus e a consciência.

Se lhes perguntarmos porque motivo se agrupam e fazem reuniões, respondem simplesmente que é para orar em comum, para ler e comentar o Evangelho, para praticar os ritos do batismo e da ceia e para se edificaram mutuamente no amor de Deus e na caridade fraterna, mas nunca para obedecer uma autoridade constituída. Os protestantes procuram apoiar na história essa maneira de sentir. Veremos depois como explicam a instituição da hierarquia e as origens do catolicismo.

Contra essas afirmações demonstraremos que Jesus instituiu uma hierarquia permanente, - o colégio dos Doze e seus sucessores, - cujo chefe único é Pedro e os que lhe sucederem no cargo, e que a essa hierarquia outorgou a autoridade governativa dotada duma caução divina, da infalibilidade doutrinal.

Para melhor atingir o nosso intento, dividiremos as questões do seguinte modo:

Jesus conferindo aos apóstolos os três poderes de ensinar, reger e santificar, fundou uma hierarquia e por conseguinte, instituiu uma autoridade visível;

Esta hierarquia é permanente, visto que os três poderes dos apóstolos devem transmitir-se aos seus sucessores;

À frente da hierarquia colocou um chefe único (primado de Pedro e seus sucessores);

Finalmente, garantiu a integral conservação de sua doutrina, outorgando à Igreja docente o privilégio da infalibilidade.

Estes pontos constituirão outros tantos parágrafos.

§ 1º - Jesus Cristo fundou uma Igreja hierárquica

Estado da questão

Os protestantes ortodoxos, dissemos nós, não admitem que Jesus tenha posto à frente de sua Igreja uma autoridade visível. Entretanto, concedem a historicidade e até a inspiração dos textos evangélicos que os católicos alegam em favor de sua tese.

Os racionalistas, os protestantes liberais e os modernistas, pelo contrário, rejeitam a autenticidade desses textos, dizendo que foram redigidos posteriormente por autores desconhecidos e insertos na narração evangélica depois dos acontecimentos, quer dizer, no momento em que a instituição da Igreja hierárquica era um fato consumado.

A tese católica baseia-se, portanto, em dois argumentos:

Um, fundado nos textos evangélicos, que, com todo o direito, podemos utilizar contra os protestantes ortodoxos, e

Outro, históricos, em que nos propomos refutar a falsa concepção dos liberais e dos modernistas acerca da origem da Igreja hierárquica.

Argumento escriturístico - nota: Quando sustentamos que a possibilidade de encontrar a instituição divina de uma Igreja hierárquica nos textos evangélicos, não queremos afirmar que Jesus declarou explicitamente que fundava uma Igreja hierárquica para um dia ser governada pelos Bispos sob o primado do Papa; porque nunca pronunciou explicitamente estas palavras. Para demonstrarmos a nossa tese, basta provar que encontramos o equivalente no fato de ter escolhido os Doze apóstolos e de lhes ter conferido poderes especiais que não concedeu aos outros discípulos.

Escolha dos Doze. Todos os Evangelistas são concordes em testemunhar que Jesus escolheu doze entre os discípulos, a quem deu o nome de Apóstolos (Mat. X, 2-4; Marc. III, 13, 19; Luc. VI, 13, 16; João, I, 35 e segs.). Instituiu-os de uma maneira particular, desvendou-lhes o sentido das parábolas que as turbas não compreendiam (Mat. XIII, 11) e associou-os à sua obra mandando-lhes que pregassem o reino de Deus aos filhos de Israel (Mat. X, 5, 42; Marc. VI, 7, 13; Luc. IX, 1, 6).

Poderes conferidos ao colégio dos Doze.

Ao colégio dos Doze, - a Pedro em particular (Mat. XVI, 18s), e a todo o colégio apostólico (Mat. XVIII, 18), - Jesus primeiro prometeu "o poder de ligar no céu o que eles ligassem na terra”, isto é, uma autoridade governativa que os constituiria juízes nos casos de consciência e lhes comunicaria a faculdade de preceituar ou proibir e, portanto, de obrigar; de modo que todo aquele que não obedecesse a Igreja seria considerado “como um pagão ou publicano” (Mat. XVIII, 17).

Mas, objetam os protestantes a propósito do último texto, a palavra Igreja no versículo 17 é tomada no sentido restrito de assembléia, e por isso não pode servir de argumento em favor duma autoridade hierárquica. Bem, palavra Igreja pode prestar-se a duas interpretações. Segundo as regras a hermenêutica, porém, todo texto obscuro deve ser interpretado conforme os lugares paralelos mais claros. Ora, não há dúvida que nos outros textos, que tratam dos poderes concedidos por Nosso Senhor à sua Igreja, esta concessão estende-se somente ao colégio apostólico. Portanto, devemos atribuir o mesmo sentido ao texto de Mateus.

Poucos dias antes da Ascensão, Jesus conferiu aos doze apóstolos o poder que antes ele tinha prometido: “Todo poder me foi dado no céu e na terra; ide, pois, e ensinai todas as gentes, batizando-as em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-as a observar todas as coisas que eu vos tenho ordenado, e estai certos de que eu estou convosco todos os dias até a consumação dos séculos" (Mat. XXVIII, 19, 20).

Deste modo, Jesus comunicou aos apóstolos o poder:

De ensinar: “Ide e ensinai todos os povos”;

De santificar, pelos ritos instituídos para esse fim e, em particular pelo batismo;

De governar, uma vez que os apóstolos ao de ensinar o mundo a observar tudo o que Jesus mandou.

Objetam os racionalistas que esta passagem não tem valor algum, sob pretexto que as palavras e ações de Cristo ressuscitado não podem ser comprovadas pelo historiador.

É evidente o preconceito racionalista. Se a Ressurreição pode demonstrar-se como fato histórico e como uma realidade de que os apóstolos alcançaram a certeza, o propósito de rejeitar as palavras de Cristo ressuscitado, atinge a própria ressurreição. Além de que, as palavras de Cristo ressuscitado estão de tal modo conexas com as palavras da promessa que impugnar umas é o mesmo que impugnar as outras, e negar umas é tornar inexplicável o procedimento dos apóstolos, que após a morte do seu mestre reivindicaram os três poderes mencionados.

Argumento histórico - preliminares:

A questão da instituição divina de uma Igreja hierárquica é sobretudo histórica; porque se a história nos mostrasse que a fundação da Igreja foi posterior aos tempos apostólica e obra somente circunstâncias acidentais, em vão alegaríamos argumentos escriturísticos, pois os adversários teriam o direito de considerar os textos evangélicos como interpolações.

Os documentos, que servem de fundamento ao estudo do cristianismo nascente, são os Atos dos Apóstolos e as Epístolas de S. Paulo; para o período pós-apostólico (isto é, para as três gerações que se seguem aos apóstolos), as obras dos Padres e dos escritores eclesiásticos.

Os Atos dos Apóstolos: S. Lucas, segundo a tradição universal e constante, é o autor dos Atos dos Apóstolos. Esta tradição funda-se:

Num argumento extrínseco (testemunhos de S. Ireneu, do cânon de Muratori, de Clemente de Alexandria), e

Num argumento intrínseco, pois da análise da obra concluiu-se que o autor era médico e companheiro de S. Paulo e que os Atos apresentam as mesmas particularidades de linguagem e composição que o terceiro Evangelho.

Como o livro termina com a primeira prisão de Paulo em Roma, é provável que tenha sido composto depois de ter saído do cárcere e antes da morte de S. Paulo (67). Os Atos são, pois, para o historiador dos primeiros tempos do cristianismo, um dos mais preciosos documentos.

O autor refere os fatos, já como testemunha ocular, já conforme a narração de testemunhos oculares: Paulo, Barnabé, Filipe e Marcos. A precisão e os pormenores circunstanciados com que são narrados afastam qualquer possibilidade de lenda ou de amplificações tendenciosas. Quanto aos discursos que contém, foram sem dúvida colhidos de fontes escritas, como parece indicar os numerosos aramaísmos que nele se encontram. Por outro lado, a sinceridade de S. Lucas não é suspeita, e os críticos racionalistas só põe de parte o que se opõe à sua tese, isto é, os milagres e alguns discursos por causa de seu alcance doutrinal.

A importância dos Atos é manifesta por conterem uma exposição completa da primeira pregação dos apóstolos e por nos manifestarem a organização da Igreja primitiva.

As Epístolas de S. Paulo são também para o apologista fontes de grande importância tanto pela sua antiguidade, como pelo valor documentário.

Podem agrupar-se em quatro séries segundo a data de composição:

1.a série: Ep. I e II aos Tessalonicenses (ano de 51);

2.a série: As Epístolas maiores, I e II aos Coríntios, aos Gálatas e aos Romanos (56, 57);

3.a série: As Epístolas escritas na prisão aos Filipenses, aos Efésios, aos Colossenses e a Filémon (61,62);

4.a série: As Epístolas pastorais I e II a Timóteo e a Tito (62).

A autenticidade das três primeiras séries é admitida pelos próprios racionalistas.

Em muitos lugares dos Atos dos Apóstolos fala-se de “carismas”. Carismas (grego “charis” e “charisma”, graça, dom, favor) são dons sobrenaturais concedidos pelo Espírito Santo para a propagação do cristianismo e para o bem geral da Igreja nascente. São manifestações extraordinárias do Espírito Santo e por vezes desordenadas, como o dom das línguas ou glossolalia, que consistia em louvar a Deus numa língua estranha e com ares de exaltação e entusiasmo (leia-se a este propósito I Cor. XIV). Os carismas mais apreciados era o dom dos milagres e o das profecias; mas todos eles eram sempre sinais divinos que tinham por fim confirmar a primeira pregação do Evangelho.

Exporemos, sem sair do campo da história, as duas tese, racionalista e católica, acerca da origem da Igreja. A primeira, a que damos o título geral da racionalista, é também defendida pelos historiadores protestantes, ortodoxos ou liberais e pelos modernistas. Damos aqui um resumo, o mais objetivo possível, da exposição feita por A. Sabatier ("Les Religions d´autorité et la Religion de l´espirit", pág. 47-83, 4.ª edição) que é melhor que existe em francês.

A tese racionalista - Origem da Igreja

A fundação duma Igreja hierárquica não podia ter sido obra de Jesus. “Nem a quis nem a podia prever, porque pensava que a sua vinda coincidiria com o fim do mundo; portanto, o desenvolvimento histórico do cristianismo estava fora do âmbito da sua missão messiânica”.

Como os apóstolos “estavam sempre à espera da volta triunfante de Jesus sobre as nuvens do céu”, viviam “numa exaltação febril”, considerando-se como estrangeiros e peregrinos, que "passam sem se preocupar com uma fundação perdurável”.

As primeiras comunidades de discípulos de Cristo não formavam, portanto, uma sociedade hierárquica. “Os dons individuais (carismas) eram concedidos pelo Espírito Santo a diversos membros da comunidade cristã, consoante as necessidades. Era o Espírito Santo que, operando em cada indivíduo, determinava as vocações e conferia aos fiéis, conforme a sua capacidade ou zelo, ministérios e ofícios provisórios”.

As primeiras comunidades cristãs, compostas ao princípio “de membros iguais entre si, distintos somente pela variedade dos dons do Espírito”, tornaram-se com o tempo “corpos organizados, igrejas verdadeiras, que se desenvolveram, tomando fisionomias diferentes, segundo a diversidade dos meios geográficos e sociais. As assembléias dos cristãos na Palestina e na Transjordânia imitam as sinagogas dos judeus... No Ocidente tomam a fisionomia dos colégios, ou associações pagãs, muito numerosas nessa época nas cidades gregas. Todavia, as associações cristãs dispersas pelo império mantém entre si relações freqüentes... É pois natural que tenham tido desde o começo consciência nítida da sua unidade espiritual e que tenha surgido nas casas do Apóstolo da gentes a idéia da Igreja de Deus, - ou de Cristo, - una e universal, acima das igrejas particulares e locais... A unidade ideal da Igreja tenderá a tornar-se uma realidade visível, pela unidade de governo, de culto e de disciplina”.

Pra se operar essa unidade “faltam ainda duas condições necessárias. Primeiramente é preciso que as cristandades particulares encontrem um centro fixo, à volta do qual se reúnam. Em segundo lugar importa que se estabeleçam uma regra dogmática e um princípio de autoridade com que possam vencer todas as heresias e todas as resistências”. Essas duas condições efetuaram-se do seguinte modo: Após a destruição de Jerusalém “a cristandade greco-romana buscou um novo centro à volta do qual se pudessem agrupar. As hesitações não podiam ser longas. As Igrejas de Antioquia, Éfeso e Alexandria, as mais importantes dos tempos apostólicos, eram mais ou menos iguais na autoridade que exerciam nas comunidades das respectivas regiões. Mas havia uma cidade que sobressaia sobre todas as demais e que tinha importância universal. Era Roma, e cidade eterna e sagrada... A capital do império estava, portanto, indicada de antemão para capital da cristandade”. Está realizada a primeira condição: o centro fixo, princípio da unidade hierárquica.

Numerosas seitas, entre outras, as grandes heresias do gnosticismo e do montanismo, que apareceram respectivamente pelos anos 130 e 160, realizaram a segunda condição; porque “procurou-se e descobriu-se o meio de opor a todas a objeções uma espécie de declinatório, ou questão prévia, mais eficaz do que a refutação das heresias, porque as executava logo ao nascer. Esse meio consistia na profissão de fé apostólica, num símbolo universal e popular, que constituído como lei na Igreja, excluía do seu seio, sem discussão nenhuma, todos aqueles que se recusavam a aceitá-lo. Foi esta a “regra de fé”, a que se chamou símbolo dos apóstolos, redigido pela primeira vez na Igreja de Roma, entre os anos de 150 e 160”. A partir deste momento ficou fundado o catolicismo dotado de governo episcopal e da regra de fé externa.

Resumindo: o cristianismo, no começo, era uma “religião de espírito”, tendo como única regra de fé os carismas, isto é, as inspirações individuais do Espírito Santo. Não tinha hierarquia nem sociedade visível. Não era independente das sociedades judaicas, nem das sociedades pagãs, e só conseguiu ser religião de autoridade, com hierarquia própria, 120 ou 150 anos depois de Jesus Cristo, cerca dos fins do século II, no tempo de S. Ireneu e do papa S. Vitor. Entre a morte de Jesus e a constituição católica da Igreja, há um período intermediário, em que não existiam organizações de qualquer espécie e que pode designar-se com o nome de época pré-católica do cristianismo. Daí se segue que a Igreja Católica não é de instituição divina. A fundação, o desenvolvimento e as vicissitudes de sua história explicam-se plenamente pelo concurso de circunstâncias humanas. Só depois da Igreja estabelecer a sua infalibilidade... procurou justificar teoricamente o que já tinha se realizado na prática. O dogma só consagrou o que passara à prática no primeiro ou nos dois primeiros séculos.

Tese católica - Nota. Antes de discutirmos a tese racionalista, convém observar, para evitar equívocos, que os historiadores católicos não pretendem de modo algum encontrar no começo do cristianismo uma organização tão perfeita como a que mais tarde adquiriu. Seria desejar que a semente, logo depois de lançada à terra, produzisse frutos sem passar pelas várias fases da germinação.

Os racionalistas concedem que no começo do século III, e mesmo nos fins do século II, a Igreja possuía já uma hierarquia e tinha um centro de unidade e um símbolo de fé. A nossa investigação terminará, portanto, nessa época e mostrará que o fruto sazonado, encontrado pelos historiadores e racionalistas nos fins do século II, é efeito do desenvolvimento normal da semente lançada à terra nos primeiros anos do cristianismo.

Falando sem metáforas, demonstraremos que não existiu o suposto período pré-católico, que os órgãos essenciais do cristianismo posterior estavam contidos no cristianismo dos tempos apostólicos. Antes, porém, examinaremos um por um todos os artigos da tese racionalista.

Refutação da tese racionalista

O que os nossos adversários afirmam a respeito das intenções de Jesus, isto é, que não podia ter pensado em fundar uma Igreja por esta se encontrar fora do plano da sua missão messiânica, é um preconceito já refutado que não abordaremos novamente.

Será certo - como levianamente se afirma - que os apóstolos, iludidos pela pregação de Jesus e esperando a próxima vinda do reino escatológico, também não puderam pensar na organização de uma instituição durável? Se assim fosse, se os apóstolos e os primeiros cristãos estivessem verdadeiramente convencidos que Jesus Cristo lhes tinha anunciado a vinda próxima dum reino escatológico, porque é que a comunidade cristã não se dissolveu quando viu que tinha sido enganado por Jesus? Este raciocínio é tão claro que os próprios historiadores liberais, como Harnack, reconhecem que o Evangelho era alguma coisa mais do que isso, alguma coisa nova, a saber, “a criação de uma religião universal fundada na religião do Antigo Testamento”.

Dizer que se devem aos carismas os primeiros elementos da organização da Igreja, é também uma hipótese destituída de fundamento. É evidente - como o prova a experiência quotidiana - que a inspiração individual conduz quase sempre à anarquia. É o próprio Renan que o confessa no seu Marc Aurèle: “A profecia livre, os carismas, a glossolalia e a inspiração individual eram causas mais que suficiente para reduzir o cristianismo às proporções de uma seita efêmera, como vemos na América e na Inglaterra”.

Também não é conforme à verdade afirmar que as primeiras comunidades cristãs não possuíam autonomia alguma, que não se distinguiam das sinagogas ou das escolas pagãs. Concedemos que, para suavizar as transições, se tinham feito mútuas concessões nalguns pontos secundários - as comunidades compostas exclusivamente de judeus convertidos foram autorizadas a conservar a circuncisão, ao passo que os pagãos eram admitidos ao batismo sem passar pelo judaísmo - mas propugnamos desassombradamente que o catolicismo apareceu, desde o primeiro dia, como uma religião completamente distinta da mosaica, porque os apóstolos reconheciam-se investidos de uma missão religiosa universal, que não receberam dos chefes do judaísmo.

Portanto, a idéia da Igreja única e universal não é particular de S. Paulo, posto que ocupe lugar preponderante no seu ensinamento. Essa idéia provém de os apóstolos terem sido discípulos do mesmo mestre, que a todos ensinou as mesmas verdades. Se as diversas igrejas do mundo só formam uma Igreja é porque são todas filhas da mesma comunidade primitiva, da Igreja Mãe de Jerusalém, que por toda parte pregou sempre a mesma fé.

É falsidade dizer que a ruína de Jerusalém fez deslocar o centro de gravidade do cristianismo, porque já no tempo das missões de S. Paulo e, por conseguinte, muitos anos antes da ruína de Jerusalém (ano 70), as comunidades cristãs tinham abandonado o judeo-cristianismo e já estavam desligadas da capital de Judéia. É natural que Roma tenha sido escolhido para centro da cristandade, por ser a capital do Império greco-romano; “mas fazemos certas reservas", diz Mons. Batiffol, "quanto aos termos políticos que se empregam para descrever a cooperação de Roma e também quanto à tendência de consideram como causa o que é apenas circunstância” (Batiffol, "L´Église naissante et le catholicisme").

Não se pode atribuir a influência atribuída ao Símbolo dos Apóstolos na criação da unidade da Igreja e da reação contra as heresias nascentes; porque, não é provável que tenha sido imposto às igrejas gregas o texto romano, que era a profissão de fé batismal comum a Roma e às igrejas da Gália e da África no tempo de S. Ireneu e mesmo antes dessa época. É até provável que estas não tenham possuído nenhum formulário comum da sua fé antes do Concílio de Nicéia (325). Não se pode, portanto, sustentar que o Símbolo romano tenha sido a causa da unidade.

Supõe os racionalistas que o Símbolo dos Apóstolos foi redigido por ocasião das heresias nascentes, mormente no gnosticismo e no montanismo. Ora, nessa fórmula não aparece indício algum anti-gnóstico, e os artigos encontram-se equivalentemente nos escritos anteriores à heresia gnóstica, por exemplo, entre os apologistas, como S. Justino (150), Aristides (140) e S. Inácio (110). Pode dizer-se até que, ao menos na substância, já fazem parte da literatura cristã da idade apostólica.

O Símbolo romano, com maior razão ainda, é independente do montanismo, porque este é muito posterior e só penetrou no mundo cristão do ocidente depois do ano 180, data em que, segundo o parecer dos próprios adversários, já estava redigido o Símbolo.

Argumentos da tese católica. Segundo os historiadores católicos, a hierarquia da Igreja remonta às origens do cristianismo. Como já advertimos, é fora de dúvida que a Igreja foi progredindo quanto as formas externas da sua organização; mas afirmamos - e este é o único ponto controverso - que a evolução se fez normalmente.

Os protestantes e os modernistas admitem que a Igreja, desde o tempo de S. Ireneu, do papa S. Vitor e da controvérsia pascal, possui uma autoridade de ensino e de governo, isto é, que a Igreja é hierárquica. Não é difícil provar que já o era muito antes, que o foi sempre e que não existiu era pré-católica. Não são, é certo, numerosos os documentos em que se apóia a nossa tese, mas são decisivos. Os principais, por ordem decisiva, são:

Testemunho de S. Ireneu. Não se deveria aduzir o testemunho de S. Ireneu, visto que os racionalistas concedem que a Igreja no seu tempo já estava hierarquicamente organizada. Mas relatamo-lo porque é de estrema importância e nos facilita a ascensão aos tempos primitivos da era cristã. S. Ireneu, argumentando contra os hereges, apresenta o caráter hierárquico da Igreja, como um fato notório que ninguém pode negar, como uma fundação de Cristo e dos Apóstolos. Ora, como podia reivindicar para a Igreja cristã a origem apostólica, se os seus adversários pudessem apresentar provas de fundação recente na hierarquia?

Testemunho de S. Policarpo. Se de S. Ireneu passarmos à geração precedente, encontraremos o testemunho de S. Policarpo, que, pelos meados do século II designa os pastores como “chefes da hierarquia e guardas da fé”. Entre os testemunhos do século II poderíamos citar ainda: o de Hegesipo que mostra as igrejas governadas pelos Bispos, sucessores dos apóstolos, o de Dionísio de Corinto, que escreve na sua carta à Igreja romana que a Igreja de Corinto guarda fielmente as admoestações recebidas outrora do papa Clemente e o testemunho de Abécio. Naquela célebre inscrição do fim do século II, Abécio, talvez Bispo de Hierápolis, conta que nas suas viagens pelas Igrejas cristãs, encontrou por toda parte a mesma fé,, a mesma Escritura, a mesma Eucaristia.

Testemunhos de S. Inácio de Antioquia (+110) e de S. Clemente de Roma (+100). Com esses dois testemunhos chegamos ao princípio do século II, ou fins do século I. S. Inácio fala, na sua Epístola aos Romanos, da Igreja de Roma como centro da cristandade: “Tu (Igreja de Roma) ensinaste as outras. E eu quero que permaneçam firmes as coisas que tu prescreves pelo teu ensino” (Rom. IV, 1). Cerca do ano 96, S. Clemente Romano, discípulo imediato de S. Pedro e S. Paulo, escreveu uma carta aos Coríntios, na qual nos dá da Igreja noção equivalente à de Ireneu, apresentando a hierarquia como a guarda da Tradição e a Igreja de Roma com a primazia universal sobre todas as Igrejas locais.

Deste modo, de geração em geração, chegamos aos tempos apostólicos. Os testemunhos dos Atos dos Apóstolos, com termos claros e explícitos, falam-nos da existência de uma sociedade que tem a sua hierarquia visível, a sua regra de fé e o seu culto:

Hierarquia visível. Desde o primeiro alvorecer do cristianismo, os apóstolos desempenharam a dupla função de dirigentes e pregadores. Escolheram Matias para ocupar o lugar de Judas (At. I, 12-26). No dia de Pentecostes S. Pedro começou a sua pregação e fez numerosas conversões (At. II, 37). Pouco depois os apóstolos instituíram diáconos nos quais delegaram parte dos seus poderes (At. VI, 1-6).

Regra de fé. É incontestável que entre os primeiros cristãos alguns foram favorecidos com os dons do Espírito Santo, ou carismas, mas não exageremos, nem julguemos que as primeiras comunidades eram apenas núcleos místicos de judeus piedosos, que recebiam os dogmas por meio das inspirações do Espírito Santo. Os carismas eram um motivo de credibilidade que levava as almas à fé ou as mantinha no fervor religioso. Não eram regra de fé, mas estavam subordinados ao magistério dos apóstolos e à fé recebida, como se vê em S. Paulo, que regula o uso dos carismas nas assembléias (I Cor. XIV, 26-40) e não hesita em declarar que nenhuma autoridade pode prevalecer sobre o Evangelho que ela ensinou (I Cor. XV, 1).

Portanto, o cristianismo primitivo tinha uma regra de fé que lhe veio dos apóstolos. Não é complicada e resume-se em poucas palavras. Geralmente os apóstolos ensinavam nas suas pregações que Jesus realizou a esperança messiânica, que é o Senhor a quem são devidas as honras divinas e que só nele há salvação (At. IV, 12).

Esta é a doutrina elementar, que os Apóstolos impunham a todos os membros do cristianismo. Nada absolutamente é deixado à inspiração individual; quando surge alguma controvérsia no seio da Igreja nascente, é levada aos Apóstolos como a autoridade incontestável e única, com poder de a dirimir.

Culto. A leitura dos Atos dos Apóstolos testifica-nos claramente que a sociedade cristã possuía e observava ritos especificamente distintos dos judaicos: o batismo, a imposição das mãos para conferir o Espírito Santo e a fração do pão.

Conclusão. Podemos inferir desta longa discussão que a Igreja Católica, logo no princípio da sua existência, era uma sociedade hierárquica, conforma ao dogma católico. O que os racionalistas chamam época pré-católica é uma falsidade. Se os apóstolos logo depois da Ascensão do Senhor falam e procedem como chefes, é porque julgam possuir o direito e os poderes inerentes ao seu cargo. E, se eles se crêem investidos desse poderes, é muito provavelmente porque o receberam de Cristo. Por conseqüência, os textos evangélicos estão de acordo com a historie a não há motivo algum para os adversários afirmarem que são interpolações. A nossa tese fica, portanto, solidamente provada com os dois argumentos escriturístico e histórico.

§ 2. - Jesus Cristo fundou uma hierarquia permanente. A sucessão apostólica

1. Estado da questão

Provamos no parágrafo precedente que Jesus Cristo fundou uma Igreja hierárquica pelo fato de ter instituído uma autoridade de ensino e governo na pessoa dos apóstolos. Vejamos agora se a jurisdição conferida aos apóstolos era transmissível e, em caso afirmativo, em devia recair a sucessão.

Também aqui há duas teses: a racionalista e a católica.

Na primeira não se põe o problema da transmissão da jurisdição apostólica, porque, segundo ela, a hierarquia não é instituição de origem divina, mas meramente humana. Assim, o episcopado é o resultado de várias circunstâncias e necessidades da primitiva Igreja. Veremos mais adiante as circunstâncias a que os racionalistas atribuem a sua origem.

Segundo a tese católica o episcopado é de direito divino e os bispos, tomados no seu conjunto, são os sucessores dos apóstolos, dos quais receberam os poderes e os privilégios inerentes ao cargo. Esta tese prova-se com dois argumentos:

Um escriturístico; e

Um histórico no qual refutaremos a tese racionalista.

Argumento escriturístico. Os textos do Evangelho devem servir-nos para tratar a questão de direito, a saber, se a autoridade era transmissível. Ora, a resposta deduz-se claramente dos textos já citados e, em particular, das palavras que nosso Senhor empregou quando constituiu os Apóstolos chefes da sua Igreja. Que outras coisas significam as suas palavras: “Ide, ensinai todos os povos, batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a observar todas as coisas que vos tenho mandado: e estais certos de que eu estou convosco todos os dias até a consumação dos séculos” (Mat. XXVIII. 20)? Jesus encarregou os Apóstolos da missão de pregar o Evangelho a todos os povos, de batizar e reger a Igreja até o fim do mundo. Ora, esse encargo não se podia realizar por aqueles a quem era confiado. Logo, os poderes conferidos aos Apóstolos eram ilimitados quanto ao espaço e quanto ao tempo e, por conseguinte, na intenção de Cristo, deviam transmitir-se aos sucessores dos Apóstolos.

Argumento histórico. Não insistimos muito no argumento escriturístico acerca das questões de direito, embora seja útil contra os protestantes, porque os racionalistas rejeitam todos os textos que se referem a Cristo ressuscitado, e só consideram a questão de fato. Conforme à sua teoria, “só na história, abstraindo de qualquer preconceito dogmático, se devem procurar as origens do episcopado”. Exporemos resumidamente o modo como explicam a sua origem.

Tese racionalista - Origem do episcopado.

Segundo a tese racionalista, os membros das primeiras comunidades cristãs eram todos iguais. Todos eles formavam um povo escolhido, um povo de sacerdotes e profetas.

Pode-se, no entanto, distinguir-se na sociedade cristã primitiva “duas grandes classes de operários da obra divina: os homens da palavra - os apóstolos, os profetas, os doutores - e os anciãos, os vigias “episcopoi” ou bispos e os diáconos”. Os primeiros estavam a serviço da Igreja em geral e só dependiam do Espírito que os inspirava. Os segundos, pelo contrário, eram os empregados escolhidos por cada comunidade particular.

“Ao começo, não somente não se encontra instituição alguma formal de episcopado, ou de qualquer outra hierarquia, mas até os nomes de “episcopoi” e “presbyteri” são equivalentes e designam as mesmas pessoas”. “A história não menciona exemplo algum de um bispo constituído por um apóstolo e ao qual tenha transmitido, por essa instituição, quer a totalidade, quer parte dos seus poderes”. Os poderes de ensinar e de governar eram reservados aos favorecidos pelos carismas. Somente pouco a pouco os bispos ou presbíteros, encarregados da administração temporal das Igrejas, se apossaram dos poderes de ensinar e governar, primitivamente reservado aos apóstolos a aos que tinhas os carismas. Conforme a tese racionalista, não existem poderes conferidos por Jesus Cristo. O cristianismo é uma democracia na qual a assembléia dos cristãos conserva o poder e o delega aos que elege. Para provar que a autoridade deriva da assembléia dos fiéis e que não se pode exercer senão com consentimento do povo cristão (sistema chamado multitudinismo ou presbiterianismo defendido por algumas seitas protestantes) os historiadores racionalistas alegam que antigamente os bispos eram muitas vezes escolhidos pelo povo. Confundem evidentemente a eleição com a colação da jurisdição e a sagração:

Quanto à eleição, é verdade que os fiéis concorreram por vezes para a escolha do candidato;

A eleição, porém, não conferia o poder aos eleitos; porque só depois da eleição dos fiéis ter sido confirmada pelos bispos de província eclesiástica, recebiam os eleitos a sagração e a jurisdição do metropolitano e, por conseguinte, do Sumo Pontífice. O povo não conferia a jurisdição nem sagrava os bispos.

Continuam os racionalistas, a autoridade passa primeiro dos fiéis ao conselho dos anciãos, aos seniores ou presbíteros e deste ao mais influente deles, que se torna o Bispo único. O episcopado é, portanto, segundo Renan e Harnack, uma instituição humana nascida da mediocridade das massas e da ambição de alguns; foi a mediocridade que fundou a autoridade.

A tese modernista é sensivelmente a mesma. Para eles, o episcopado não é de origem divina e os bispos não receberam dos Apóstolos a missão nem os poderes.

Tese católica

O fundamento da tese racionalista, segundo a qual, os membros das primeiras comunidades eram iguais, já foi refutado anteriormente.

A distinção entre as duas classes de operários que trabalhavam na obra cristã, isto é, entre a chamada hierarquia discorrente e a hierarquia estável, não se pode pôr em dúvida. Mas de alguma maneira constitui uma prova contra a origem divina do episcopado, como veremos na discussão do terceiro artigo da tese racionalista. Essa distinção entre as duas classes referidas já tinha sido mencionada por S. Paulo na Epístola aos Efésios. Na primeira classe inclui os apóstolos, os profetas e os evangelistas; e na segunda os pastores e os didáscalos (Ef. IV, 11).

Os apóstolos, os profetas e os evangelistas, isto é, os obreiros da primeira categoria, eram missionários: formavam a hierarquia discorrente (itinerante).

O termo apóstolo tem dois sentidos, um lato e outro restrito.

No sentido lato, que é conforme a etimologia da palavra (grego “apóstolos” enviado, mensageiro) o apóstolo é um mensageiro qualquer (II Cor. VIII, 23; Fil. II, 25). Eram apóstolos todos os que serviam de intermediários; os que, por exemplo, eram encarregados por uma igreja de levar uma carta, ou qualquer outra comunicação a outra igreja.

No sentido restrito, apóstolo significa os enviados de Cristo. Todavia, mesmo neste caso, não se aplica exclusivamente aos Doze, pois que não se podem excluir do apostolado S. Paulo e S. Barnabé. Portanto, as duas expressões “Os Apóstolos” ou “os doze” ou o “colégio dos doze” não são idênticas. Mas o que é que constitui o apostolado propriamente dito? Ter visto Cristo na sua vida mortal ou ressuscitado e ter recebido dele a sua missão. São estas as duas razões que S. Paulo aduz para reivindicar o título de apóstolo de Cristo.

Os profetas eram os que apesar de não serem enviados diretamente por Cristo, falavam em nome de Deus em virtude duma inspiração especial. Dotados do dom da profecia e da faculdade de perscrutar os corações, tinham o encargo de exortar, edificar e de converter os infiéis (I Cor. XIV, 3, 24, 25).

Os evangelistas. Esta palavra, que se encontra somente três vezes no Novo Testamento (At. XXI, 8; Ef. IV, 11; Tim. IV, 5), designa o encarregado de anunciar o Evangelho.

Na segunda categoria coloca S. Paulo:

Os pastores, isto é, os chefes propostos às igrejas locais: bispos ou presbíteros.

Os didáscalos, ou doutores, eram uma espécie de catequistas, encarregados de instruir os fiéis da localidade que lhe confiavam.

 

A explicação das origens do episcopado por uma série de crises e de transformações é o ponto central da questão. A tese racionalista nega que ao começo houvesse qualquer instituição de episcopado e para o provar estriba-se em dois argumentos:

Os dois termos episcopi e presbyteri são equivalentes; e

A história não nos refere exemplo algum dum bispo monárquico constituído por um apóstolo, ao qual esse tenha transmitido os seus poderes no todo ou em parte.

Resposta

Parece que as palavras episcopi e presbyteri foram sinônimas no princípio. Assim - para não citar mais de um exemplo - escreve S. Paulo na Carta a Tito: “Deixei-te em Creta para que regulasses o que falta e estabelecesses presbíteros em cada cidade. Que o escolhido tenha boa reputação, porque é necessário que o bispo seja irrepreensível, como administrador da casa de Deus” (Tit. I, 5-7). É evidente que nesta passagem os dois termos presbítero e bispo se empregam no mesmo sentido.

Também é certo que nos primeiros tempos não encontramos vestígios de bispo monárquico, tal como aparecerá mais tarde. Os presbíteros ou “episcopi” que os Apóstolos colocavam à frente das comunidades por eles fundadas, formavam um conselho, o presbyterium, incumbido do governo da igreja local (At. XV, 2-4; XVI, 4; XXI, 18).

Teriam esses presbíteros os poderes que mais tarde teve o bispo monárquico, ou eram simples sacerdotes? Os documentos históricos não nos permitem solucionar o problema, o que aliás não tem muita importância, visto não se tratar disso na questão. Aqui apenas nos interessa saber se os Apóstolos delegaram ou não em vida os poderes que receberam de Jesus Cristo para assegurar a questão, quando morressem. É o que vamos estudar.

Afirmam os adversários que os poderes eram inerentes aos carismas; ora, como os carismas eram incomunicáveis, os poderes não se podiam transmitir.

Também nós admitimos que os carismas eram dons ocasionais ou pessoais, porque procediam diretamente do Espírito e portanto eram incomunicáveis. Mas, é preciso não confundir os carismas com os poderes apostólicos; porque, embora muitas vezes se encontrem juntos na mesma pessoa, contudo os carismas não eram causa ou princípio dos poderes; apoiavam ou reforçavam a autoridade, mas não a constituíam. Logo, os Apóstolos receberam de Jesus Cristo poderes independentes dos carismas e, portanto, transmissíveis.

Consultemos agora os fatos e vejamos se os Apóstolos transmitiram os poderes que possuíam.

Examinemos, em primeiro lugar, as Epístolas de S. Paulo e por elas veremos que S. Paulo, ainda que se reservava a autoridade suprema nas Igrejas que fundara (I Cor. V, 3; VII 10-12; XIV, 27-40; II Cor. XII, 1-6), delegava às vezes noutros os seus poderes. Encarregou Timóteo de instituir o clero em Éfeso, e deu-lhe os poderes de impor as mãos e de estabelecer a disciplina (I Tim. V, 22). Do mesmo modo escreveu a Tito estas palavras: “Deixei-te em Creta para que regulasses o que falta...” (Tit. I, 5). Portanto, Timóteo e Tito receberam a missão de organizar as Igrejas e os poderes de impõe as mãos, isto é, os poderes episcopais.

No século II. Encontramos o germe do episcopado nos tempos apostólicos: procuremo-lo agora no século II. Logo no começo desse século descobrimos vários testemunhos da existência do episcopado monárquico.

Testemunho de S. João. Logo no princípio de seu Apocalipse, S. João escreve que vai narrar as suas revelações acerca das sete Igrejas da Ásia: Éfeso, Esmirna, Pérgamo, Tiatira, Sardes, Filadélfia e Laodicéia (Apoc. I, 1-11). São sete cartas destinada ao anjo de cada uma delas. Mas quem é esse anjo? Todos são concordem em afirmar que não se trata do anjo da guarda destas igrejas, porque, além dos elogios e exortações, as cartas contém repreensões e ameaças, o que não se pode aplicar aos espíritos celestes. Estes anjos são, portanto, os chefes espirituais das igrejas, os anjos do Senhor no sentido etimológico da palavra (“aggelos”, mensageiro, enviado), que possuíam poderes episcopais.

Testemunho de S. Inácio de Antioquia. O testemunho de S. Inácio data da primeira década do século II. Neste tempo havia um bispo não somente em Éfeso, Magnésia, Trália, Filadélfia e Esmirna, mas em muitas outras Igrejas. A hierarquia, por toda a parte, estava na posse tranqüila de seus cargos e não se encontraram na história daquele tempo os mais ligeiros indícios de crises ou revoluções, pelos quais tinha passado o episcopado antes de conquistar os poderes que todos lhe reconhecem. “Sem bispo, sacerdotes e diáconos não pode haver Igreja”, escreva S. Inácio à igreja da Trália (III,1).

Testemunho fundado nas listas episcopais feitas, uma por Hegesipo (que vem nas suas "Memórias") e outra por S. Ireneu que pode ver-se no seu "Contra as heresias". Desejando Hegesipo, sob o pontificado de Aniceto (155-166) conhecer a doutrina das diversas igrejas para ver se era uniforme, empreendeu uma viagem através de cristandade. Visitou várias cidades e demorou-se particularmente em Corinto e Roma. Nesta última cidade escreveu uma lista cronológica de todos os bispos até Aniceto...mas, infelizmente, perdeu-se e só conhecemos alguns extratos, que o historiados Eusébio nos conservou.

A lista de S. Ireneu, feita cerca do ano 180, chegou até nós na íntegra. O bispo de Lião propôs-se combater as heresias, especialmente o gnosticismo, apoiando-se na tradição e estabelecendo como princípio que a regra de fé deve basear-se no ensino dos Apóstolos fielmente guardados pela Igreja. Declara que pode “enumerar os bispos constituídos pelos Apóstolos e estabelecer a sua sucessão até nossos dias”. Mas, “como seria demasiado longo apresentar o catálogo de todas as Igrejas”, limita-se a “considerar a maior, a mais antiga, a mais conhecida de todos, e que foi fundada e organizada em Roma pelos dois gloriosíssimos Apóstolos Pedro e Paulo”. Em seguida, apresenta a lista dos Bispos de Roma até Eleutério: os bem-aventurados apóstolos (Pedro e Paulo), Lino, Anencleto, Clemente, Evaristo, Alexandre, Sixto, Telésforo, Higino, Pio, Aniceto, Sotero e Eleutério"

Alguns contestam a historicidade destas listas, alegando que o nome dos bispos variam de catálogo para catálogo, e que a lista de S. Ireneu difere da do catálogo “Liberiano” feita por Filócalo, em 354, no tempo do papa Libério. É certo que exista alguma diferença entre elas, pois o catálogo Liberiano nomeia Lino depois de Clemente e desdobra Anencleto em Cleto e Anacleto. Mas as variantes são de pouca importância e provavelmente devidas aos copistas.

Conclusão. De tudo o que precede, podemos tirar as seguintes conclusões:

Tanto dos textos evangélicos como dos documentos da Igreja primitiva, deduz-se claramente que os poderes apostólicos eram transmissíveis e foram de fato transmitidos.

Os apóstolos comunicaram os seus poderes a delegados, elevando alguns discípulos à plenitude da Ordem e confiando-lhes a missão de governar as Igrejas por eles mesmos fundadas e de fundar outras novas.

Portanto, é falso afirmar que o episcopado nasceu da mediocridade de uns e da ambição de outros; porque não foi “a mediocridade que estabeleceu a autoridade”, mas o Evangelho. Os Bispos foram instituídos para receber a missão e os poderes que Jesus tinha conferido aos Apóstolos e, por isso, tomados coletivamente, são os sucessores do colégio apostólico.

§ 3º - Jesus Cristo fundou uma Igreja monárquica. Primado de Pedro e de seus sucessores.

Demonstramos nos parágrafos precedentes que a Igreja fundada por Jesus Cristo não é uma democracia baseada na igualdade dos seus membros, mas uma sociedade hierárquica onde os dirigentes recebem os poderes diretamente de Deus e não do povo cristão.

Outra questão se apresenta neste momento. A autoridade soberana que pertence à Igreja docente reside em todos os bispos coletivamente, ou num só dos membros do episcopado? Por outros termos, a Igreja é uma monarquia ou uma oligarquia? Terá por ventura Jesus Cristo dado a sua Igreja um chefe supremo? Os protestantes e os Gregos cismáticos sustentam a negativa. Todavia, esses últimos com alguns Anglicanos concedem a S. Pedro a primazia de honra mas não de jurisdição. Essas diferem essencialmente entre si. A segunda supõe uma autoridade efetiva; a primeira concede apenas direitos honoríficos. Os que possuem a primazia têm o direito de governar seus súditos como verdadeiros vassalos; os que possuem a primeira têm somente o direito de precedência.

Nós os católicos defendemos que Jesus conferiu o primado da jurisdição a S. Pedro e, na sua pessoa, a seus sucessores. Provaremos separadamente as duas partes desta tese com os dois argumentos: um, escriturístico, e outro, histórico.

Primeira parte: O Primado de S. Pedro

Jesus Cristo fundou uma Igreja monárquica, conferindo a S. Pedro o Primado de jurisdição sobre toda a Igreja.

Argumento escriturístico. O Primado de S. Pedro deduz-se das palavras da promessa e das palavras da colação do primado.

Palavras da promessa. As palavras com que Jesus Cristo prometeu a S. Pedro o primado de jurisdição foram conferidas em Cesaréia de Filipo. Jesus interrogara os discípulos para que dissessem que opiniões corriam a seu respeito. S. Pedro em seu próprio nome, por inspiração espontânea, confessou que “Jesus era o Cristo, o Filho de Deus vivo”.

Foi então que o Salvador lhe dirigiu as célebres palavras: “Bem-aventurado és tu, Simão, filho de João, porque não foram a carne nem o sangue que to revelaram, mas sim meu Pai que está nos céus. Também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra eu edificarei a minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela. Eu te darei as chaves do reino dos céus, e tudo o que ligares na terra será ligado nos céus, e tudo o que desligardes na terra será desligado nos céus” (Mat. XVI, 17-19).

Ponhamos em relevo três pontos deste texto, que provam a nossa tese:

Jesus muda o nome de Simão em Pedro. Ora, segundo o uso bíblico, a mudança de nome é sinal de um benefício. Quando Deus quis estabelecer uma aliança com Abraão e constituí-lo pai dos crentes mudou-lhe o nome de Abram em Abraão (Gen. XVII, 4s).

No nosso caso, o novo nome dado por Jesus a Simão, simboliza a missão que Jesus quer lhe confiar. Para o futuro Simão chamar-se-á Pedro, porque há de ser a pedra, ou a rocha sobre a qual Jesus quer fundar a sua Igreja. O trocadilho, que tem toda a sua força na língua aramaica, na qual o nome “Kepha” dado por Jesus á Pedro é masculino e significa rocha, pedra, desaparece em grego e em latim, porque nessas línguas Pedro se diz Petros ou Petrus, e rocha, petra.

Pedro será, com respeito à sociedade cristã, à Igreja de Cristo, o que é a rocha com respeito ao edifício: fundamento sólido que assegurará a estabilidade de todo o edifício, rochedo inabalável, que desafiará os séculos, e sobre o qual se virão quebrar as portas do inferno, ou por outras palavras, os assaltos e o poder do demônio.

Finalmente as chaves do reino dos céus foram confiadas a S. Pedro. A entrega das chaves é um privilégio insigne e especial que confere um poder absoluto. Compara-se o reino dos céus a uma casa. Ora, só poderá entrar em casa quem tem as chaves em seu poder, e aqueles a quem ele quiser abrir a porta. Pedro é constituído único intendente da casa cristã, único introdutor do reino de Deus. É inútil insistir mais. A promessa de Cristo é tão clara que não pode haver dúvida acerca da sua significação. Só a Pedro se muda o nome, só ele é chamado fundamento da futura Igreja, só a ele serão entregues as chaves; se as palavras têm algum sentido, só podem significar o primado de Pedro.

Objetam os adversários, segundo sempre a mesma tática, que a passagem da questão não é autêntica e que foi interpolada quando a Igreja tinha já completado a sua evolução e adquirido a forma católica. A prova está em que só Mateus refere as palavras de Nosso Senhor.

Resposta. A objeção fundada no silêncio de S. Marcos e de S. Lucas não tem valor algum. A dificuldade teria alguma força se os adversários conseguissem provar que a narração dessa passagem era exigida pelo assunto que tratavam. Ora, não conseguem fazer essa demonstração; logo, o silêncio dos dois sinóticos deve atribuir-se a motivos literários, que não admitiam a entrada do texto nas suas narrativas.

Palavras da colação. Duas passagens do Evangelho nos atestam que Jesus conferiu efetivamente a Pedro o poder supremo que lhe tinha prometido.

Missão, confiada a Pedro, de confirmar os seus irmãos. Algum tempo antes da Paixão, Jesus anunciou aos apóstolos a sua falta próxima. Quando predisse a de Pedro declarou que tinha orado especialmente por ele: “Simão, Simão, eis que Satanás vos pediu com insistência para vos joeirar como trigo; mas eu roguei por ti, para que não desfaleça a tua fé; e tu, uma vez convertido, confirma os teus irmãos” (Luc. XXII, 31s). Quando os Apóstolos, depois de sucumbir à tentação, se erguerem de sua queda, purificados das fraquezas do passado pela prova, como o crivo que aparta a palha do grão, é Simão que tem a missão de os confirmar. Essa missão supõe evidentemente o primado de jurisdição.

S. Pedro é nomeado o pastor das ovelhas de Cristo. A cena passa-se após a Ressurreição. Eis como se refere S. João (João XXI, 15-17): Três vezes perguntou Jesus a Pedro se o amava e três vezes Pedro fez protestos de amor e dedicação inabalável. Então o Salvador, sabendo que estava na véspera de deixar os seus discípulos, confia a Pedro a guarda do seu rebanho, isto é, confia-lhe e cuidado de toda a cristandade, dos cordeiros e das ovelhas. “Apascenta os meus cordeiros”, repete duas vezes; e à terceira: “apascenta as minhas ovelhas”.

Ora, conforme o uso corrente nas línguas orientais, a palavra “apascentar” significa governar. Apascentar os cordeiros e as ovelhas é, portanto, governar com autoridade soberana a Igreja de Cristo; é ser o chefe supremo; é ter o primado.

Argumento histórico. Se encararmos a questão somente sob o aspecto histórico, temos duas teses opostas ntre si: a racionalista e a católica.

Tese racionalista. Segundo os racionalistas, o texto “tu és Pedro e sobre esta Pedra edificarei a minha Igreja” “só teve o sentido e o alcance dogmático, que os teólogos papistas atribuíram no século III, quando os Bispos de Roma dele se tiveram necessidade de fundar as suas pretenções então nascentes” (Sabatier, op. cit., p. 209).

O Primado de S. Pedro nunca foi reconhecido pelos outros apóstolos, mormente por S. Paulo, que nem sempre nomeia Pedro em primeiro lugar (I Cor. I, 12; III, 22; Gal. II, 9), nem receia “resistir-lhe abertamente” (Gal. II, 11).

Tese católica. Nos Atos dos Apóstolos encontra o historiador católico numerosos testemunhos para provar que S. Pedro exerceu o primado desde os primeiros dias da Igreja nascente.

Depois da Ascensão, S. Pedro propõe a eleição de um discípulo para ocupar o lugar de Judas e completar o colégio dos Doze (At. I, 15-22).

É ele o primeiro que prega o Evangelho aos judeus no dia de Pentecostes (At. II, 14; III, 16).

É S. Pedro que, inspirado por Deus recebe na Igreja os primeiros gentios (At. X, 1).

Visita as igrejas (At. IX, 32).

No Concílio de Jerusalém põe termo à longa discussão que ali se trava, decidindo que não se deve impor a circuncisão aos pagãos convertidos, e ninguém ousou opor-se à sua decisão (At. XV, 7-12). Se S. Tiago fala, depois de S. Pedro ter emitido o seu parecer, não foi para discutir a sua opinião, mas unicamente porque, sendo Bispo de Igreja de Jerusalém, julgou que se deviam impor aos gentios algumas prescrições da lei mosaica, cuja infração podia escandalizar os cristãos de origem judaica, que constituíam a maior parte do seu rebanho. Pedia S. Tiago que os gentios se abstivessem:

Dos alimentos oferecidos aos ídolos;

Da impureza, que os pagãos não consideravam como falta grave;

Das carnes sufocadas;

Do sangue, cujo uso estava interdito aos judeus (At. XVII, 20).

No parecer de S. Tiago essas prescrições evitariam o escândalo dos fracos e serviriam para aplanar dificuldades entre os cristãos de diversas proveniências.

Objetam alguns que S. Paulo nunca reconheceu o primado de S. Pedro. Como se explica neste caso que, três anos depois da conversão, foi a Jerusalém expressamente para o visitar? (Gal. I, 18s). Porque não foi antes a S. Tiago (que era o Bispo de Jerusalém) a aos outros? Não será esta uma prova evidente de que o reconhecia como chefe dos Apóstolos?

Porque é que S. Paulo, replicam, não nomeiam Pedro sempre em primeiro lugar? A razão é simples. S. Paulo nunca faz menção de todo o colégio apostólico, e apenas fala incidentalmente de alguns. As vezes, como sucede na sua Epístola aos Coríntios (I Cor. I, 12), nomeia-os em gradação ascendente, pondo o nome de Cristo depois do nome de S. Pedro.

Mas, dizem os racionalistas, não devemos esquecer-nos do conflito de Antioquia, no qual S. Paulo resistiu aberta e publicamente a S. Pedro. Para que os adversários não julguem que procuramos fugir das dificuldades, referiremos aqui o caso com as próprias palavras de Paulo (Gal. II, 11-14): “Quando Cefas veio a Antioquia, eu resisti-lhe abertamente, porque era repreensível. Com efeito, antes de chegarem os que tinham estado com Tiago, ele comia com os gentios: mas depois que eles chegaram, subtraía-se e separava-se dos gentios, temendo ofender os que eram circuncidados. E os outros judeus consentiram na sua simulação. Mas quando eu vi que eles não andavam retamente conforme a verdade do Evangelho, disse a Cefas diante de todos: Se tu, sendo judeu, vives como os gentios e não como os judeus, porque obrigas tu os gentios a viver como judeus?”

Como se vê nessa passagem, o conflito originou-se da famosa questão, levantada pelos judaizantes, a saber, e a lei judaica era obrigatória e se era preciso passar pela circuncisão para entrar na Igreja cristã. Ora, os dois apóstolos - fixemos bem este ponto - estiveram sempre de acordo, defendendo ambos a negativa; portanto, nunca houve conflito entre eles no terreno dogmático. O litígio consistia em que S. Pedro, para não provocar as recriminações dos judaizantes, absteve-se de comer com os gentios que se tinham convertido sem passar pelo judaísmo.

Esta maneira de proceder podia ser diversamente interpretada.

Podia ser uma simples medida de prudência justificada pelo fim que se queria obter. Sendo um, apóstolo dos circuncidados e outro dos incircuncisos, não é para admirar que os dois apóstolos tenham adotado posturas diferentes nesta questão disciplinar. Não se conta porventura nos Atos dos Apóstolos que o próprio S. Paulo, numa circunstância idêntica, procedeu do mesmo modo, circuncidando Timóteo por causa dos judeus que havia naquelas regiões (Lístria e Icônio), apesar das suas convicções serem diversas? (At. XVI, 3).

Também se podia tomar o procedimento de S. Pedro por covardia ou hipocrisia: deste modo o julgou S. Paulo. Pensou que para evitar as funestas conseqüências do procedimento de S. Pedro, devia repreendê-lo. É um caso de correção fraterna dada por um inferior, e na qual este parece ter faltado na moderação e deferência devidas a um superior hierárquico, deixando levar-se por um zelo indiscreto.

Se S. Paulo, objetamos nós, dava tanta importância ao procedimento de S. Pedro, não será porque a sua influência nas Igrejas era maior e mais incontestável? Logo, podemos concluir que o conflito de Antioquia, longe de ser um argumento contra o primado da Pedro, é testemunho em seu favor.

Segunda parte: O primado dos sucessores de Pedro

O primado conferido por Jesus a S. Pedro será acaso um dom pessoal, uma espécie de carisma, ou um poder transmissível a seus sucessores? Neste segundo caso, quais são os sucessores de S. Pedro? Responderemos a essas perguntas mostrando:

Que o primado de Pedro é um poder permanente, e;

Que os sucessores de S. Pedro são os Bispos de Roma.

Tese I - O primado de S. Pedro é transmissível

Esta proposição prova-se com dois argumentos: um escriturístico e outro histórico.

Argumento escriturístico. Do texto de S. Mateus (XVI, 17-19) já citado para provar o primado deduz-se que Pedro foi escolhido para fundamento da Igreja e que recebeu as chaves do reino dos céus. Ora, como o fundamento deve durar enquanto durar o edifício, e Jesus prometeu que havia de estar com a Igreja até o fim do mundo (Mat. XXVIII, 20), segue-se que o primado, princípio e fundamento do edifício, deve durar para sempre e, por conseguinte, deve poder transmitir-se aos seus sucessores. Além disso, a autoridade do primado há de ser tanto mais necessária quanto mais se desenvolver a Igreja e mais estender os seus ramos ao longe: quanto maior é o exercito tanto mais necessidade tem de um chefe supremo.

Argumento histórico. Se o primado foi transmitido aos sucessores de Pedro, a história deve dar nisso testemunho. Esta questão confunde-se com a tese seguinte, no qual veremos quem são os sucessores de S. Pedro.

Tese II - Os sucessores de S. Pedro no primado são os Bispos de Roma

Para o provarmos temos que demonstrar:

Que Pedro esteve em Roma e que foi o primeiro Bispo desta Igreja;

Que a primazia dos Bispos de Roma, seus sucessores, foi sempre reconhecida por toda a Igreja. É uma questão histórica.

A permanência e a morte de S. Pedro em Roma. Estado da questão.

Trata-se de investigar se S. Pedro esteve na capital do Império romano e se aí fundou uma comunidade cristã. Não é necessário provar que permaneceu durante muito tempo em Roma, nem que a sua permanência foi contínua. Alguns católicos, como Barónio, sustentaram que o pontificado de S. Pedro em Roma começou no ano 42 e durou 25 anos. Parece-nos exagerado; contudo esta opinião funda-se em vários testemunhos de valor:

No catálogo liberiano, que contém a cronologia dos papas como era recebida na Igreja romana;

No testemunho de Lactâncio; e

No do historiador Eusébio.

Destes testemunhos podemos deduzir que era tradição geral e constante no século IV que S. Pedro veio a Roma e governou a Igreja durante 25 anos. E como é quase certo que o catálogo liberiano deriva do catálogo de Hipólito e que Eusébio se serviu dos catálogos anteriores e especialmente da lista de S. Ireneu, segue-se que os testemunhos precedentes representem uma tradição muito anterior a sua época.

Notemos que os defensores da tese dos 25 anos de episcopado de S. Pedro em Roma não sustentam que ele nunca tivesse se ausentado daquela cidade. Com efeito, os Atos dizem-nos que Pedro esteve em Jerusalém pelas festas da Páscoa no ano 44 e presidiu ao Concílio na mesma cidade no ano 50. O governo de uma igreja não requer a permanência contínua do seu chefe, sobretudo nos tempos primitivos da Igreja.

A forma da Igreja primitiva não era semelhante à atual, porque os apóstolos eram missionários, que se lembravam das palavras do seu Mestre: “Ide, ensinai todas as gentes”. Diante dum campo tão vasto, seria para estranhar encontrá-los presos a uma residência fixa. Estavam ora num lugar, ora noutro, conforme a sementeira prometia maior messe.

Os críticos racionalistas e protestantes negaram a permanência e a morte de S. Pedro em Roma, porque na negação destes dois fatos julgavam encontrar um argumento de valor contra o primado do Papa. Mas os seus argumentos eram de tão pouca força que o próprio Renan, em apêndice ao seu livro "Antéchrist" (1873), deu “como provável a permanência de S. Pedro na capital do Império”.

Os críticos atuais não têm dificuldade de admitir a tese católica. Citemos algumas das linhas de Harnack ("Cronologia"): “O martírio de S. Pedro em Roma foi antigamente combatido pelos preconceitos tendenciosos dos protestantes... Mas foi um erro que todo investigador, que não queira ser cego, pode verificar”. “Hoje em dia", diz o mesmo crítico num discurso (1907) pronunciado na Universidade de Berlim, "sabemos que esta vinda (de S. Pedro a Roma) é um fato incontestável e que o começo da primazia romana remonta ao século II”.

Como a tese católica, que afirma que S. Pedro veio a Roma onde fundou uma Igreja e sofreu o martírio, não é contestada pelos nossos adversários (embora haja ainda muitas pessoas teimosas), bastará mencionar rapidamente os principais testemunhos em que se baseia.

Apresentamo-los por ordem regressiva e de século em século:

No começo do século III, temos o testemunho do sacerdote romano Caio e de Tertuliano. Caio dizia, escrevendo contra Proclo: “Posso mostrar-te o túmulo dos Apóstolos. Ou venhas ao Vaticano os passes pela via ostiense, poderás ver os sepulcros dos fundadores da nossa Igreja”. Esse testemunho, que é do ano 200 mais ou menos, prova que neste tempo os túmulos do Vaticano e da via de Óstia guardavam as relíquias de S. Pedro e de S. Paulo, fundadores da Igreja de Roma e martirizados no tempo de Nero. Tertuliano nesta mesma época, disputando contra os gnósticos, menciona o martírio que, sob o reinado de Nero, S. Pedro e S. Paulo sofreram em Roma, o primeiro numa cruz e o segundo à espada do algoz.

Nos fins do século II. S. Ireneu escrevia nas Gálias: “Foram os Apóstolos Pedro e Paulo que evangelizaram a Igreja Romana... por isso, é a mais antiga de todas e a mais conhecida, por conservar a tradição dos apóstolos; por esse motivo, as demais igrejas devem voltar-se para ela e reconhecer-lhe a superioridade”. Dionísio de Corinto escrevia em 170 aos Romanos: “Vindo ambos a Corinto, os dois apóstolos Pedro e Paulo nos ensinaram a doutrina evangélica; partindo depois juntos para a Itália, transmitiram-nos os mesmos ensinamentos, pois padeceram o martírio ao mesmo tempo”.

Entre os padres apostólicos citemos os testemunhos de S. Inácio e do papa S. Clemente. S. Inácio fora condenado às feras e enviado a Roma para ali sofrer o último suplício. Conhecendo os esforços da Igreja de Roma para o salvar, escreveu-lhe que não se opusesse à sua morte, a adjurou-a nestes termos: “Não vo-lo ordeno como Pedro e Paulo; eles eram apóstolos e eu sou apenas um condenado”. “Estas palavras", diz Mons. Duchesne, "não dizem expressamente que S. Pedro veio a Roma. Mas supondo que tivesse vindo, S. Inácio não teria falado de outra forma; e no caso contrário a frase não teria sentido”. S. Clemente, na Carta aos Coríntios, escrita entre os anos 95 e 98, põe em relevo os padecimentos dos dois apóstolos Pedro e Paulo, dizendo que “são entre nós o mais belo exemplo”. S. Clemente, que é romano e envia sua carta na qualidade de Bispo de Roma, insiste na circunstância, que os atos de heroísmo por ele descritos foram vistos com os seus próprios olhos e que o martírio de S. Pedro e S. Paulo foram um grande exemplo “entre nós”, isto é, em Roma.

Dos tempos apostólicos temos o testemunho do próprio S. Pedro, que escrevendo aos fiéis da Ásia, data de Babilônia a sua primeira epístola (I Pedro, V, 13). Ora, por “Babilônia", diz Renan, "S. Pedro quer sem dúvida significar a cidade de Roma. Por esse nome era designada a capital do Império entre as cristandades primitivas”.

Objetam os protestantes contra a tese católica que S. Lucas nos Atos dos Apóstolos, S. Paulo na sua Epístola aos Romanos e Flávio Josefo, que narra a perseguição de Nero, não fazem menção de S. Pedro.

Resposta. O argumento fundado no silêncio não tem valor algum, a não ser que se prova que o fato passado em silêncio devia ser tratado ou mencionado pelo historiador. Ora:

Pelo que diz respeito a S. Lucas, a objeção não tem fundamento algum, porque os Atos dos Apóstolos só descrevem os começos da Igreja Cristã nos doze primeiros capítulos; e do capítulo X em diante só falam dos Atos de Paulo. Além disso, os Atos não são de modo algum completos, pois não falam também do conflito de Antioquia.

Não nos deve causar admiração que S. Paulo não mencione S. Pedro na Epístola aos Romanos, pois em nenhuma das outras epístolas costuma saudar os bispos da cristandade ou igreja a que se dirige. Quando fala aos Efésios também não fala de Timóteo que era o seu bispo.

Josefo declara expressamente que passava em silêncio a maior parte dos crimes de Nero. Omite a crucificação de S. Pedro, mas também não fala do incêndio de Roma nem da morte de Sêneca.

Conclusão. O fato da vinda de S. Pedro a Roma e do martírio nesta cidade não tem contra si objeção alguma de peso; e em seu favor temos números e bem fundados testemunhos, que de geração em geração nos levam aos tempos apostólicos.

Poderíamos também acrescentar que os fatos são confirmados pelos monumentos que nos atestam a presença do Príncipe dos Apóstolos em Roma. Tais são as duas cadeiras de S. Pedro, uma das quais se conserva no Vaticano, as pinturas e as inscrições das catacumbas, que datam do século II, onde o seu nome é mencionado, e sobretudo as escavações feitas debaixo da Basílica de S. Pedro. Dada a configuração do terreno e outras dificuldades técnicas era inexplicável que os cristãos levantassem ali a basílica primitiva, se não quisessem coloca-la precisamente no local do martírio de S. Pedro. Mas não é preciso insistir, porque a tese católica não tem atualmente contra si crítico algum de valor.

Os Bispos de Roma tiveram sempre a primazia. - É uma questão de direito. Se S. Pedro é o primeiro Bispo de Roma, o primado de Pedro devia transmitir-se aos seus sucessores na sua Sé. Investiguemos a questão de fato e vejamos o eu diz a história.

Essa tese é da maior importância, porque, se os documentos históricos demonstrassem eu no princípio o primado dos Bispos de Roma não foi reconhecido, a questão de direito ficaria profundamente abalada. Não é, pois, para estranhar, que os racionalistas, protestantes e modernistas se tenham empenhado em provar historicamente que o primado dos Bispos de Roma não existia nos primeiros tempos.

Tese racionalista. A tese racionalista expõe-se em poucas palavras. Segundo a sua teoria, ao começo todos os bispos eram iguais em autoridade e não havia distinção entre eles. Pouco a pouco foram-se arrogando um poder maior ou menor conforme a importância da cidade em que tinham a sede. Ora, como Roma era a capital do Império romano, os seus Bispos foram considerados como chefes da Igreja universal.

A esta razão de maior peso juntam-se outras circunstâncias favoráveis, tais como a ambição dos Bispos de Roma, a sua prudência no julgamento das causas submetidas ao seu arbítrio e os serviços por eles prestados na queda do Império.

O primado do Bispo de Roma começa somente nos fins do século II, quando o papa Vitor, para pôr fim à controvérsia da celebração da festa pascal, “publicou em 194 um edito imperioso que expulsava da comunhão católica e declarava heréticas todas as Igrejas da Ásia e do outras partes, que não seguissem na Páscoa o costume romano” (Sabatier op. cit., p. 193.).

A tese católica. Os historiadores católicos defendem que o primado do Bispo de Roma foi sempre reconhecido em toda a Igreja. Nos princípios do século IV a primazia é um fato incontestado.

Todos reconhecem que nesta época os Bispos de Roma falam e procedem com plena consciência em sue primado. O papa Silvestre envia os seus legados para presidirem o concílio de Nicéia (325) e Júlio I declara que as causas dos Bispos devem ser julgadas em Roma. O papa Libério, a quem o imperador Constâncio pediu que condenassem Atanásio - prova que lhe reconhecia o direito - recusa-se a fazê-lo.

Do mesmo modo, os Padres são unânimes em admitir o primado do Bispo de Roma. S. Optato de Mileto, argumentando contra os donatistas, segundo os quais a Igreja era constituída só pelos justos e a santidade era o distintivo essencial da Igreja, responde que a unidade é também nota essencial e que é absolutamente indispensável permanecer em comunhão com a Cátedra de Pedro. S. Ambrósio considera a Igreja de Roma como o centro e cabeça de todo o universo católico. Os bispos orientais S. Atanásio, S. Gregório de Nazianzo e S. João Crisóstomo falam do bispo de Roma como do chefe da Igreja universal.

Como o primado de Pedro é universalmente reconhecido no século IV, podemos limitar a nossa investigação aos séculos precedentes. Ora, nos três primeiros séculos, a existência do primado romano é testemunhada pelos escritos dos Padres, pelos concílios e pelo costume que havia de apelar para o Bispo de Roma a fim de dirimir as questões.

Examinemos, em primeiro lugar, os testemunhos dos Padres da Igreja.

No século III, Orígenes escrevia ao papa Fabião, a dar conta da sua fé. Tertuliano, antes de cair na heresia, admitia o primado de S. Pedro. Depois de se fazer montanista, mete-o a ridículo, prova de que lhe reconhecia a existência.

No fim do século II S. Ireneu estabelece como critério das tradições apostólicas a conformidade da doutrina com a Igreja romana, que deve servir de regra de fé, por causa do primado que herdou de S. Pedro. S. Policarpo, discípulo de S. João, e Abécio visitam o Bispo de Roma e consultam-no acerca de assuntos da fé a da disciplina. Os próprios hereges Marcião e os montanista querem que sua doutrina seja aprovada pela Sé Apostólica, No princípio do século II, S. Inácio escreve aos romanos que a Igreja de Roma preside as demais.

No século I. Em 96, o Bispo de Roma, Clemente, escrevendo aos Coríntios, para chamar à ordem os que injustamente tinham demitido os presbíteros, declaram-lhes que serão réus de falta grave se não lhe obedecerem. O procedimento de Clemente de Roma tem maior importância se considerarmos que nesta época ainda vivia o Apóstolo João que não deixaria de intervir se o Bispo de Roma estivesse no mesmo plano dos outros bispos.

O primado dos Bispos de Roma foi reconhecido pelos concílios. Não podemos aduzir testemunhos anteriores ao século IV, visto que o primeiro concílio só se realizou em 325, em Nicéia.

No concílio de Éfeso (431) S. Cirilo de Alexandria, que era o primeiro entre os patriarcas do Oriente, pediu ao Bispo de Roma que sentenciasse e definisse contra a heresia nestoriana.

Os Padres do concílio de Calcedônia (451), quase todos orientais, dirigiram uma carta ao papa S. Leão a solicitar a confirmação de seus decretos. Este respondeu-lhes com uma carta célebre na qual condenava os erros de Eutiques, e, ao mesmo, enviou legados para que em seu nome presidissem ao concílio. O concílio encerrou-se com essa fórmula: “Assim falou o concílio pela boca de Leão”.

Os concílios de Constantinopla, - o terceiro celebrado em 680, o oitavo em 869, - o concílio de Florença em 1439, composto de Bispos gregos e latinos, proclamaram sucessivamente o primado do sucessor de Pedro e afirmaram que Jesus Cristo lhe deu, na pessoa de S. Pedro, “plano poder de apascentar, dirigir e governar toda a sua Igreja”.

O primado dos Bispos de Roma é também testemunhado pelo fato de intervirem em diversas Igrejas para dirimir as questões. Não falando de Clemente de Roma, que pelos fins do século I escreveu à Igreja de Corinto para a trazer ao bom caminho, vemos mais tarde os Bispos orientais, entre outros S. Atanásio e S. João Crisóstomo, apelar para o Bispo de Roma na defesa dos seus direitos.

Objetam os protestantes:

Os que tinham o nome de bispos, na realidade eram apenas presidentes do presbyterium;

Em todo caso, a sua autoridade não era universalmente reconhecida, pois S. Cipriano e os bispos da África resistiram ao decreto do papa S. Estevão que proibia a reiteração do batismo conferido pelos herejes.

Resposta.

Para provar que os Bispos eram somente simples presidentes do presbyterium, alegam que a primeira Carta de Clemente de Roma, as cartas de S. Inácio aos Romanos e o Pastor de Hermas não falam dum bispo monárquico de Roma. Ora, já dissemos que o silêncio dum escritor acerca de um fato, não prova necessariamente contra a sua existência. Em 170, Dionísio de Corinto envia uma resposta à Igreja de Roma e não ao seu bispo Sotero, e contudo Harnack, que faz a objeção, admite que Sotero era Bispo monárquico. Pouco importa, portanto, que a primeira carta de S. Clemente de Roma aos Coríntios não tenha a sua assinatura e seja enviada em nome da Igreja de Roma: não há dúvida que o seu autor seja um personagem único, o papa S. Clemente. Ainda que a carta de S. Inácio aos Romanos (107) e o Pastor de Hermas não mencionem o Bispo de Roma, não se deve daí concluir que não existia, pois também não falam dos presbíteros e dos diáconos de Roma, e a sua existência não é impugnada.

É certo que S. Cipriano, julgando que a reiteração do batismo era sobretudo uma questão disciplinar, resistiu ao decreto do papa Estevão. Mas a resistência de um homem, ainda que muito santo e de muita boa-fé, à autoridade superior, não destrói nem enfraquece essa autoridade. Grandes bispos como Bossuet, aderiram a proposições condenadas, reconhecendo contudo o primado do Soberano Pontífice.

Conclusão. A primazia dos Bispos de Roma deduz-se de dois fatos:

De S. Pedro ter sido Bispo de Roma; e

De o primado ter sido sempre universalmente reconhecido pela Igreja.

Portanto, não é verdade que a autoridade suprema dos papas deva a sua origem à ambição dos Bispos de Roma e à abdicação de outros. Se, como pretendem os adversários, os bispos tivessem sido iguais ao princípio por direito divino, ter-se-ia dado num momento da história uma transformação completa na fé e na disciplina de toda a Igreja.

Ora, tal acontecimento não se poderia dar sem se terem provocado dissenções e reclamações inúmeras da parte de outros bispos, lesados nos seus privilégios. Como a história não apresenta sinal algum dessa agitação, e só houve discussões sobre pontos secundários, como a celebração da festa da Páscoa e a questão da reiteração do batismo, segue-se que o primado do Bispo de Roma nunca foi impugnado e que a Igreja universal sempre lhe reconheceu não só o primado de honra, mas também o de jurisdição.

§ 4º - Jesus deu a sua Igreja o privilégio da infalibilidade

Vimos que Jesus Cristo fundou uma Igreja hierárquica, conferindo aos apóstolos e aos bispos seus sucessores, os poderes de ensinar, de santificar e de governar. Demonstraremos neste parágrafo que Jesus ligou ao poder de ensinar o privilégio da infalibilidade. Trataremos:

Do conceito de infalibilidade;

Das provas da sua existência;

Daqueles a quem foi concedido o privilégio.

Conceito de infalibilidade. Que deve entender-se por infalibilidade? A infalibilidade concedida por Jesus Cristo à sua Igreja é a preservação de todo erro doutrinal, garantida pela assistência especial do Espírito Santo. Não é simples inerrância de fato, mas de direito. É impossibilidade tal, que toda a doutrina, proposta por esse magistério infalível, deve ser crida como verdadeira, pois como tal é proposta.

Portanto, não se deve confundir a infalibilidade:

Com a inspiração, que consiste no impulso divino, que leva os escritores sagrados a escreverem tudo o que Deus quer, e só o que Deus quer;

Nem com a revelação, que supõe a manifestação duma verdade antes ignorada.

O privilégio da infalibilidade não faz com que a Igreja descubra verdades novas; garante-lhe somente que, devido à assistência divina, não pode errar nem, por conseguinte, induzir no erro, no que respeita a questões de fé ou moral.

Falso conceito de infalibilidade. O conceito modernista de infalibilidade funda-se na idéia falsa que os modernistas têm da revelação e, portanto, é também falso e deve rejeitar-se. Segundo o sistema modernista, a revelação opera-se na alma de cada indivíduo, pois “consiste na consciência que o homem forma das suas relações com Deus”. Por conseqüência, a infalibilidade da Igreja docente consistiria em interpretar o sentir coletivo dos fiéis e “sancionar as opiniões comuns da Igreja discente”. Este estranho conceito de infalibilidade foi condenado no decreto Lamentabili.

Existência da infalibilidade.

Adversários. A existência da infalibilidade da Igreja foi negada:

Pelos racionalistas e protestantes liberais. É lógico, uma vez que admitam que Jesus Cristo tenha pensado em fundar uma Igreja;

Pelos protestantes ortodoxos; porque, admitindo eles que todos os membros da Igreja são iguais, é natural que a interpretação da doutrina católica esteja sujeita à razão individual (teoria do livre exame).

Provas. A infalibilidade da Igreja funda-se em dois argumentos:

um a priori, ou de razão; e

outro a posteriori ou histórico.

Argumento de razão. Antes de expormos este argumento, é conveniente o lugar que ocupa na nossa demonstração, para que não haja equívocos acerca do fim que prosseguimos. Afirmamos - depois diremos porquê - que se Jesus Cristo quis conservar as verdades reveladas na sua integridade, teve de confia-las a uma autoridade viva e infalível e não somente depositá-las, como letra morta, num livro, porto que inspirado.

A isso objetam os protestantes que apoiamos a nossa tese num argumento a priori e que todas as nossas provas se reduzem a afirmar que uma coisa é, porque assim deve ser. Ora, “nas questões de fato, prosseguem eles, a prova de fato, se não é a única legítima, ao menos é a única decisiva. Se da conveniência, da utilidade e da necessidade pressuposta duma concessão divina, se pudesse concluir a sua realidade, aonde chegaríamos nós?" (Jalaguier, "De l´Église").

É certo que da conveniência de uma coisa nem sempre se pode concluir a sua existência. Poderíamos, por exemplo, perguntar-nos porque motivo foram os homens abandonados por Deus nos seus erros durante tantos séculos; porque tardou tanto a Redenção; porque não lhe deu Jesus Cristo tanto esplendor que impelisse os homens a aceita-la. Portanto, a questão é principalmente histórica e sob esse aspecto será tratada.

Antes, porém, temos o direito de perguntar se a tese católica, que defenda a instituição de um magistério vivo e infalível para nos ensinar as verdades contidas na Escritura e na Tradição, não está mais bem fundada que a teoria protestante, que admite a infalibilidade da Escritura como regra única de fé. Deve-se dizer que regra de fé é o meio prático de conhecer a doutrina de Jesus Cristo.

Demonstraremos, portanto - sem prescindir do argumento histórico - que a regra de fé dos protestantes é insuficiente para o conhecimento e conservação das verdades reveladas, e que a regra de fé Igreja católica possui todas as condições requeridas.

A regra de fé protestante é insuficiente. Não é necessária, nem foi instituída uma autoridade viva, dizem os protestantes, para conhecermos as verdades ensinadas por Jesus Cristo. A única regra de fé é a Sagrada Escritura. Por conseguinte, cada fiel pode ler e interpretar a Escritura conforme as luzes da sua consciência e haurir os dogmas e preceitos conducentes à sua edificação.

Não é difícil provar que esta regra de fé absolutamente insuficiente.

Primeiramente, como poderemos saber quais são os livros inspirados se não há uma autoridade que não garanta a sua inspiração, ou se não há ninguém para nos assegurar que o texto que possuímos não foi interpolado pelos copistas? Já dizia S. Agostinho que não acreditaria nos Evangelhos se não cresse antes na Igreja.

Como resolveremos as dificuldades? Pelo livre exame e aplicando as regras críticas e da exegese, respondem os luteranos e calvinistas. Por meio da história e da tradição, dizem os anglicanos. Pela inspiração particular, pela iluminação do Espírito Santo que ilumina a consciência de cada indivíduo, afirmam os anabatistas, os “quakers”, os metodistas e as seitas místicas. Esta variedade de respostas bastaria para fazer um juízo claro da teoria protestante. Seja qual for a solução adotada, é evidente que obteremos tantas interpretações quanto indivíduos “quot capita tot sensus”. Se não aceitarmos outra guia, senão a razão individual ou a inspiração do Espírito Santo, cairemos na anarquia intelectual ou no iluminismo.

Quando muito, os que estudarem a Bíblia adquirirão, até certo ponto, uma espécie de verdade subjetiva. Mas como conhecerão as verdades os que não são instruídos, nem tem vagar para ler e compreender a Escritura? E como poderiam obtê-la antigamente aqueles que não tinham meios para adquirir a Bíblia, antes da invenção da imprensa, quando os manuscritos eram tão raros e custosos?

Mais: no começo do cristianismo não existia o Novo Testamento e Jesus Cristo não deixou escrito. Disse aos seus apóstolos: “ide, ensinai a todas as gentes”, e não lhes recomendou que escrevessem a sua doutrina; por isso os apóstolos nunca tiveram a pretensão de expor ex-professo por escrito os ensinamentos de Jesus. Ordinariamente os seus escritos eram cartas de circunstância, destinadas a lembras alguns pontos da sua catequese. Queiram dizer-nos os protestantes qual era a regra de fé antes da existência desses escritos.

A regra de fé católica, pelo contrário, é meio seguro de conhecermos a doutrina integral de Cristo. Como é fácil de ver, não contém nenhum dos inconvenientes co sistema protestante. É certo que o catolicismo admite a infalibilidade da Sagrada Escritura; mas, além dessa fonte de revelação, admite outra mais importante e anterior à Escritura, que é a Tradição. É esta, sobretudo - e nisto consiste a diferença essencial que existe entre a teoria protestante e a teoria católica, - que ensina que Jesus constituiu uma autoridade viva, um magistério infalível que, com a assistência do Espírito Santo, recebeu a missão de determinar quais os livros inspirados, de interpreta-los autenticamente, de haurir nesta fonte, como na da Tradição, a verdadeira doutrina de Jesus, para depois a expor aos sábios e ignorantes.

Até mesmo alguns protestantes reconhecem que há entre os dois sistemas, considerados unicamente à luz da razão, certa vantagem a favor do catolicismo. “O sistema católico", diz Sabatier, "colocou a infalibilidade divina numa instituição social, admiravelmente organizada, com um chefe supremo, o Papa. O sistema protestante colocou a infalibilidade num livro. Ora, sob qualquer aspecto que se considere os dois sistemas, as vantagens estão indubitavelmente do lado do catolicismo” (Sabatier, op. cit., p. 306). Não pretendíamos demonstrar outra coisa com o argumento a priori; alcançamos, portanto, o nosso intento.

Argumento histórico. Somos chegados ao campo positivo da história. O que Jesus Cristo devia fazer, tê-lo-á feito? Terá instituído uma autoridade viva e infalível encarregada de guardar e ensinar a sua doutrina?

O primeiro ponto ficou anteriormente demonstrado: Jesus Cristo instituiu uma Igreja hierárquica e chefes a quem concedeu o poder de ensinar. Resta agora examinar o segundo ponto, no qual provaremos que o poder de ensinar, como foi conferido por Jesus Cristo, comporta o privilégio da infalibilidade.

Esta segunda proposição apóia-se nos textos da Escritura, no modo de proceder dos Apóstolos e na crença da antiguidade cristã:

Nos textos da Escritura. A Pedro, em especial, prometeu Jesus Cristo que “as portas do inferno não prevalecerão contra ela” (Igreja) (Mat. XVI, 18); e a todos os Apóstolos prometeu, por duas vezes, enviar-lhes o Espírito da verdade (João XIV, 16; XV, 26) e ficar com eles até o fim do mundo (Mat. XXVIII, 20). Essas promessas significam claramente que a Igreja é indefectível; que os Apóstolos e seus sucessores não poderão errar quando ensinarem a doutrina de Jesus; porque a assistência de Cristo não pode ser em vão, nem o erro estar onde se encontra o Espírito da verdade;

No modo de proceder dos Apóstolos. Do seu ensino se depreende que tinham consciência de ser assistidos pelo Espírito Santo. O decreto do concílio de Jerusalém termina com essas palavras; “Assim pareceu ao Espírito Santo e a nós” (At. XV, 28). Os Apóstolos pregam a doutrina evangélica “não como palavra de homens, mas como palavra de Deus, que na verdade o é” (I Tes. II, 13), a que é necessário dar pleno assentimento (II Cor. X, 5) e cujo depósito convém guardar cuidadosamente (I Tim. VI, 20). Além disso, confirmam a verdade de sua doutrina os muitos milagres (At, II, 43; III, 1-8; V, 15; IX, 34): prova evidente de que eram intérpretes infalíveis de doutrina de Cristo, de outro modo Deus não a confirmaria com o seu poder;

Na crença da antiguidade cristã. Concedem os nossos adversários que a crença num magistério vivo e infalível já existia no século III. Basta portanto aduzir testemunhos anteriores:

Na primeira metade do século III, Orígenes, aos herejes que alegam as Escrituras, responde que é necessário atender à tradição eclesiástica e crer no que foi transmitido pela secessão de Igreja de Deus. Tertuliano, no tratado “Da prescrição”, opõe aos herejes o argumento da prescrição e afirma que a regra de fé é a doutrina que a Igreja recebeu dos Apóstolos. É necessário não nos enganarmos a respeito do sentido da palavra prescrição que usa Tertuliano. Em direito moderno, quando se trata da propriedade, invoca-se a posse de longa duração, como um título que dirime qualquer reivindicação: é a prescrição longi temporis. Ora, não propriamente nesta sentido que a emprega Tertuliano, para se desembaraçar dos herejes e negar-lhes as suas pretenções. Mostra que o seu direito de propriedade deriva de um legado recebido em forma devida, que é o legitimo herdeiro dos Apóstolos. É, portanto, o argumento da tradição que Tertuliano a modo de questão preliminar, permitindo-lhe rejeitar qualquer discussão com os que não possuem essa tradição e formulam novas asserções esforçando-se ao mesmo tempo por justifica-las com as Escrituras e com a razão: é a prescrição de inovação. O argumento de prescrição reduz-se pois a isso: Não podemos discutir convosco (herejes); porque toda doutrina nova, pelo fato de ser nova, isto é, de não ser conforme com a regra de fé transmitida pelos Apóstolos, está condenada de antemão e antes de qualquer exame.

Nos fins do século II, S. Ireneu, na carta a Florino e no livro Contra as heresias, apresenta a Tradição apostólica como a são doutrina, como uma tradição que não é meramente humana. Donde se segue que não há motivo para discutir com os herejes e que estão condenados pelo fato de discordarem da Tradição. É o mesmo argumento que retomará mais tarde Tertuliano, dando-lhe uma forma mais erudita e jurídica.

Pelo ano 160, Hegesipo apresenta, como critério da fé ortodoxa, a conformidade com a doutrina dos Apóstolos transmitida por meio dos Bispos. Na primeira metade do século II, Policarpo e Papias apresentam a doutrina dos Apóstolos como a única verdadeira, como uma regra segura de fé. Nos princípios do mesmo século, temos o testemunho de S. Inácio. Afirma esse santo eu a Igreja é infalível e que a incorporação nela é necessária para se salvar.

Conclusão. Das duas provas da razão e da história se depreende que o poder doutrinal, conferido por Jesus Cristo à Igreja docente, traz consigo o privilégio da infalibilidade, isto é, que a Igreja não pode errar quando expõe a doutrina de Cristo.

Sujeito da infalibilidade. Jesus Cristo dotou a sua Igreja com o privilégio da infalibilidade. Mas a quem concedeu este privilégio? Indubitavelmente àqueles que receberam o poder de ensinar, isto é, aos Apóstolos todos, e dum modo especial, a Pedro, poder e privilégio que transmitiram depois aos seus sucessores.

Infalibilidade do colégio apostólico e do corpo episcopal.

A infalibilidade do colégio apostólico provém:

Da missão confiada a todos os apóstolos de “ensinar todas as nações” (Mat. XXVIII, 20);

Da promessa de estar com eles “até a consumação dos séculos” (Mat. XXVIII, 20) e de lhes “enviar o consolador, o Espírito Santo que lhes há de ensinar toda a verdade” (João XIV, 26). Estas passagens mostram com evidência que o privilégio da infalibilidade foi concedido ao corpo docente tomado coletivamente.

Do colégio apostólico o privilégio passou para à classe episcopal. Não sendo limitada no tempo e no espaço, segue-se que a missão de ensinar deve passar aos sucessores dos Apóstolos com o privilégio que lhe é inerente. Devemos, contudo, fazer uma distinção entre os Apóstolos e os Bispos. Os Apóstolos tinham como campo de ação todo o universo, visto que as palavras de Nosso Senhor “ide e ensinai todas as gentes” foram dirigidas a todos coletivamente. Portanto, eram missionários universais da fé e podiam pregar por toda a parte o Evangelho como doutores infalíveis. Os Bispos, porém, só se podem considerar como sucessores dos Apóstolos tomados coletivamente; cada Bispo não é o sucessor de cada Apóstolo. Têm apenas jurisdição numa determinada região, cuja extensão e limites são fixados pelo Papa. Não herdaram, por conseguinte, individualmente a infalibilidade pessoal dos Apóstolos. Só o conjunto dos Bispos goza da infalibilidade.

 

Infalibilidade de S. Pedro e de seus sucessores. O privilégio da infalibilidade foi conferido duma maneira especial a S. Pedro e aos seus sucessores. A tese prova-se com um argumento tirado dos textos evangélicos e outro baseado na história.

Argumento escriturístico. A infalibilidade de Pedro e de seus sucessores demonstram-se com os mesmos textos que provam o primado.

Em primeiro lugar, com o “Tu es Petrus” “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja”. É incontestável que a estabilidade de um edifício lhe vem dos alicerces. Se Pedro, que deve sustentar o edifício cristão, pudesse ensinar o erro, a Igreja estaria construída sobre um fundamento ruinoso e já não se poderia dizer: “as portas do inferno não prevalecerão contra ela”.

Depois com o “confirma fratres”, “confirma os teus irmãos”, Jesus assegurou a Pedro que pedira dum modo especial por ele, “para que a sua fé não desfaleça” (Luc. XXII, 32). É evidente que esta prece feita em circunstâncias tão solenes e tão graves não pode ser frustrada.

Finalmente, com o “Pasce oves” “apascenta as minhas ovelhas”. Foi confiada a Pedro a guarda de todo o rebanho. Ora, não se pode supor que Jesus Cristo tenha entregado o seu rebanho aos cuidados de um mau pastor que o desencaminhe por pastos venenosos.

Não é necessário insistir em provar que a infalibilidade de Pedro se transmitiu aos seus sucessores, porque estes deverão ser para a Igreja, na longa série dos séculos, o que Pedro foi para a Igreja nascente. A Igreja, em qualquer momento da sua história, só poderá alcançar a vitória contra os ataques de Satanás, se o fundamento, sobre o qual se apóia, conservar a mesma solidez e estabilidade.

Argumento histórico. Para provar pela história que os Papas gozaram sempre do privilégio da infalibilidade, basta mostrar que foi essa em todos os tempos a crença da Igreja e que de fato os papas nunca erraram em questões de fé e de moral.

Crença da Igreja. A crença da Igreja não se manifestou da mesma forma em todos os séculos. Houve, na verdade, certo desenvolvimento na exposição do dogma a até no uso da infalibilidade pontifícia; mas nem por isso o dogma deixa de remontar aos primeiros tempos, e de fato já o encontramos em germe na Tradição mais afastada, como se demonstra pelo sentir dos Padres da Igreja e dos concílios, e pelos fatos:

Sentir dos Padres da Igreja. No século II, S. Ireneu afirmava que todas as Igrejas se devem conformas com a de Roma, pois só ela possui a verdade integral. S. Cipriano dizia que os Romanos "estão garantidos na sua fé pela pregação do Apóstolo e são inacessíveis à perfídia e ao erro”. S. Jerônimo, para pôr termo às controvérsias que afligiam o Oriente, escreveu ao Papa Damaso nos seguintes termos: “Julguei que devia consultar e esta respeito a cadeira de Pedro e a fé Apostólica, pois só em vós está ap abrigo da corrupção o legado de nossos pais”. S. Agostinho diz a propósito do pelagianismo: “Os decretos dos dois concílios relativos ao assunto foram submetidos à Sé apostólica; já chegou a resposta, a causa está julgada”, “Roma locuta est, causa finita est”. O testemunho de S. Pedro Crisólogo não é menos explícito: “Exortamo-vos, veneráveis irmão, a receber com docilidade os escritos do Santo Papa da cidade de Roma, porque S. Pedro, sempre presente na sua sede, oferece a fé verdadeira aos que a procuram”.

Sentir dos concílios. O que fica dito anteriormente acerca do primado do Bispo de Roma, aplica-se com a mesma propriedade ao reconhecimento de sua infalibilidade.

Os fatos. No século II, o papa Vitor excomungou Teodósio que negava a divindade de Cristo , com uma sentença dita por todos como definitiva. Zeferino condenou os montanistas, Calisto os sabelianos e, a partir destas condenações, foram considerados como herejes. Em 417, o papa Inocêncio proscreveu o pelagianismo, e a Igreja reconheceu o decreto como definitivo. Em 430, o papa Celestino condenou a doutrina de Nestório, e os Padres do Concílio de Éfeso seguiram a sua opinião. O Concílio de Calcedônia (451) recebeu solenemente a célebre carta dogmática do papa Leão I a Flaviano, que condenou a heresia de Eutiques, proclamando unanimemente: “Pedro falou pela boca de Leão”. Do mesmo modo, os Padres do III Concílio de Constantinopla (680) aclamaram o decreto do papa Agatão que condenava o monotelismo, dizendo: “Pedro falou pela boca de Agatão”.

Como se vê, já desde os primeiros séculos, a Igreja romana é reconhecida como o centro da fé e como a norma segura da ortodoxia. Quanto mais avançamos, tanto mais explícitos são os termos que nos manifestam a universalidade desta crença até chegarmos à definição do dogma pelo concílio Vaticano I.

Os papas nunca erraram nas questões de fé e de moral. É este o ponto mais importante do argumento histórico. Com efeito, se alguns dos nossos adversários pudessem demonstrar que alguns papas ensinaram e definiram o erro, a infalibilidade de direito ficaria comprometida. Ora, os historiadores racionalistas e protestantes julgam encontrar provas desta falibilidade. Os casos principais a que aduzem são o papa Libério que, segundo eles, caiu no arianismo e o de Honório, que teria ensinado o monotelismo.

Objeções

O caso do papa Libério (352-366). Os historiadores racionalistas acusam o papa Libério de ter assinado uma proposição de fé ariana ou semi-ariana, para alcançar do imperador Constâncio o favor de voltar a Roma.

Resposta

A. Exposição dos fatos. Recordemos brevemente os fatos. Em 355, o imperador Constâncio, favorável ao arianismo, ordenara ao papa Libério que assinasse a condenação de Atanásio, bispo de Alexandria, o grande campeão da fé ortodoxa. Como se recusasse a fazê-lo, foi exilado para Bereia na Trácia, e o arcediago Félix foi encarregado da Igreja de Roma. Depois de um exílio de três anos aproximadamente, Libério foi restituído à sua sé (358).

B. Solução da dificuldade. Toda a questão se resume em saber que motivos levaram o imperador a levantar-lhe a pena de exílio. Há duas opiniões. Uns, seguindo Rufino, Sócrates, Teodoreto e Cassiodoro, afirmam que o imperador Constâncio pôs termo ao exílio do papa por temor de insurreições do povo romano e do clero, por causa da grande popularidade do pontífice. Outros, pelo contrário, julgam que o papa obteve o levantamento da pana, mediante condescendências culpáveis e concessões feitas em matéria de fé.. Respondamos a esta segunda opinião.

Os seus partidários, para fundamentar a sua pretensão, apóiam-se em dois gêneros de testemunhos:

Nos depoimentos dos contemporâneos: S. Atanásio, S. Hilário de Poitiers, S. Jerônimo;

Nas declarações do próprio Libério.

Entre os fragmentos do Opus historicum de S. Hilário, chegaram até nós nove cartas do papa Libério, quatro das quais datadas do exílio, parecem ser comprometedoras. Com efeito, nestas cartas o papa, para alcançar o favor declara que condena Atanásio, faz profissão da fé católica formulada em Sirmium e pede aos seus correspondentes Orientais, em especial a Fortunaciano de Aquileia, que intercedam perante o imperador para lhe abreviar o exílio.

A estas duas espécies de testemunhos aduzidos pelos adversários, responderam alguns apologistas negando a autenticidade dos depoimentos dos contemporâneos e rejeitando as cartas do papa Libério como apócrifas. Mas como não é possível provar que os testemunhos dos contemporâneos e os do próprio papa Libério não sejam autênticos, devemos aceitar a discussão na hipótese de sua autenticidade. Tudo se reduz a conhecer qual foi a falta do papa e que fórmula subscreveu; porque quando Libério terminou o exílio havia três fórmulas ditas de Sirmium. Dentre eles, só a segunda, que declara que a palavra consubstancial deve ser rejeitada como “estranha à Escritura e ininteligível”, é tida por herética. Ora, comumente se admite que não foi esta a fórmula que o papa assinou, mas provavelmente a terceira.

Quer se trate, porém, da primeira quer da terceira, os teólogos são unânimes em dizer que essas fórmulas não são absolutamente heréticas, apesar de terem o grande inconveniente de favorecer o semi-arianismo, suprimindo a palavra consubstancial da profissão de fé do concílio de Nicéia.

Conclusão. Portanto, ainda na hipótese mais desfavorável, podemos concluir:

Que o papa Libério cometeu apenas um ato de fraqueza condenando, num momento angustioso o grande Atanásio: fraqueza que Atanásio é o primeiro a desculpar: “Libério, diz este grande doutor, vencido pelos sofrimentos de um exílio de três anos e pela ameaça do suplício, assinou por fim o que lhe pediam; mas tudo se deve à violência”.

Além disso, o papa Libério nada definiu; se cometeu algum erro, quando muito podemos dizer que errou como doutor particular e não como doutor universal, quando fala “ex-cathedra”. E, mesmo que tivesse falado “ex-cathedra” - o que não admitimos - não tinha a liberdade de se requerer para o exercício da infalibilidade. Logo, em qualquer hipótese, a infalibilidade está fora de questão.

O caso do papa Honório (625-638). A dar crédito aos adversários da infalibilidade pontifícia, o papa Honório ensinou o monotelismo em duas cartas escritas a Sérgio, patriarca de Constantinopla, e por isso foi condenado como hereje pelo VI Concílio ecumênico e pelo papa Leão II.

Resposta

Exposição dos fatos. Em 451, o concílio de Calcedônia definira contra Eutiques que em Jesus Cristo havia duas naturezas completas e distintas: a humana e a divina. Se há duas naturezas, há também duas vontades: o concílio não o disse expressamente, mas é evidente, pois uma natureza inteligente não pode ser completa sem a vontade.

Não foi esse, porém, o parecer de alguns teólogos orientais que ensinaram haver em Cristo uma só vontade, a divina, ficando a vontade humana como que absorvida pela divina. Essa doutrina era falsa, mas os seus partidários julgavam encontrar nela um meio de conciliação entre os eutiquianos ou monofisistas, isto é, os partidários de uma só natureza, e os católicos. Os primeiros deviam admitir duas naturezas em Cristo e os segundos deviam conceder a unidade de vontade. Essa tática foi adotada por Sérgio, que escreveu nesse sentido ao papa Honório.

Numa carta repleta de equívocos e onde a questão era ardilosamente apresentada, dizia que tinha reconduzido muitos monofisistas à verdadeira fé e pedia-lhe que proibisse falar de uma ou duas energias, de uma ou duas vontades. Honório deixou-se enganar e escreveu a Sérgio duas cartas em que o felicitava pelo bom resultado obtido, e outra a S. Sofrónio, patriarca de Jerusalém e defensor da ortodoxia, na qual lhe aconselhava que não empregasse as palavras novas de “uma ou duas operações”. Operação, na linguagem da época, era sinônima de vontade. Não obstante a intenção conciliadora que ditou estas cartas, as disputas foram aumentando até ao VI concílio ecumênico, terceiro de Constantinopla, que anatematizou os monotelitas e, entre outros, o papa Honório.

Solução da dificuldade. A dificuldade que devemos resolver é a seguinte. Honório, nas duas cartas a Sérgio, ensinou o erro? Terá sido condenado por esse motivo pelo VI concílio ecumênico? São duas as soluções apresentadas pelos apologistas. Uns afirmam que as cartas a Sérgio são apócrifas e deste modo a questão fica cortada pela raiz. Outros admitem a sua autenticidade e é neste campo que nos colocamos, para responder aos adversários. Devemos pois inquirir se estas cartas contêm alguma heresia.

Ninguém pode negar que Honório ladeia a dificuldade com o máximo cuidado e recusa pronunciar-se acerca das duas vontades. No entanto - note-se bem esta particularidade - começa por lembrar as decisões do concílio de Calcedônia e afirma claramente que em Jesus Cristo há duas naturezas distintas, operativas. Em seguida, aprovando a tática de reconciliação adotada por Sérgio, recomenda que não se avance mais no assunto e não se torne a falar de uma ou duas operações. Acrescenta, é verdade, que em Cristo há uma só vontade, mas pelo contexto se depreende que não quer com isso negar a existência da vontade divina em Jesus; o seu fim é simplesmente excluir as duas vontades a que insidiosamente Sérgio aludia: as duas vontades que lutam em nós, a do espírito e a da carne. Honório, portanto, não nega que haja em Cristo uma vontade divina e outra humana, mas somente afirma que a vontade humana de Jesus não é, como a nossa, arrastada por duas correntes que se contrariam.

Todavia, objeta-se, Honório foi condenado pelo VI concílio ecumênico e pelo papa Leão II. Advirta-se, em primeiro lugar, que nem todas as palavras contidas nas Atas dos Concílios são infalíveis e que as decisões de um concílio só gozam do privilégio da infalibilidade, depois de serem examinadas pelo papa. Ora, as atas do VI Concílio, onde estava exarado o anátema contra Honório e contra os principais monotelistas como Sérgio, não foram confirmadas pelo papa. O Sumo Pontífice limitou-se censurar o modo de proceder de Honório, sem o anatematizar, como fez aos outros, e não lhe infringiu a nota de hereje.Conclusão. Podemos portanto concluir:

Que Honório não ensinou nem definiu o monotelismo. Quando muito pode dizer-se que não foi clarividente e que em certo modo favoreceu a heresia, abstendo-se de definir e recomendando o silêncio quando devia falar, proporcionando assim aos monotelistas um pretexto para sustentarem sua doutrina.

Ainda que houvesse erros nas suas cartas e, por esse motivo, fosse condenado pelo VI concílio, o erro e a condenação só o atingiriam como doutor particular, e não como doutor universal. Portanto, nem o caso de Honório nem o de Libério, são argumentos contra a infalibilidade pontifícia.

FONTE: https://www.padrechrystianshankar.com.br/novo/apologetica-defesa-da-fe/manual-de-apologetica