10 A GRANDE PROVAÇÃO INTERIOR - A NOITE ESCURA DA FÉ (1896 – 1897)

10  A GRANDE PROVAÇÃO INTERIOR - A NOITE ESCURA DA FÉ (1896 – 1897)


 

[1 Rº] J.M.J.T Junho de 1897

Minha caríssima Madre, manifestastes-me o desejo que convosco acabe de cantar as misericórdias do Senhor. Este doce canto, comecei-o com a vossa querida filha, Inês de Jesus, que foi a mãe encarregada por Deus de me guiar nos dias da minha infância. Era, portanto, com ela que devia cantar as graças concedidas à Florzinha da Santíssima Virgem quando se encontrava na primavera da vida.

Mas é convosco que devo cantar a felicidade desta Florzinha, agora que os tímidos raios da aurora deram lugar aos abrasadores calores do meio-dia. Sim, é convosco, caríssima Madre, para corresponder ao vosso desejo, que vou tentar exprimir os sentimentos da minha alma, a minha gratidão para com Deus e para convosco, que visivelmente m´O representais.

Não foi nas vossas mãos maternais que me entreguei inteiramente a Ele? Ó minha Madre, lembrai-vos desse dia? Sim, estou certa de que o vosso coração não o poderia esquecer. Quanto a mim, tenho de esperar pelo belo Céu, não encontrando aqui em baixo palavras capazes de exprimirem o que se passou no meu coração nesse dia bendito.

Caríssima Madre, houve outro dia em que a minha alma se ligou ainda mais à vossa, se tal é possível. Foi no dia em que Jesus vos impôs novamente o cargo de Prioresa. Nesse dia, minha querida Madre, semeastes em lágrimas, mas no Céu ficareis cheia de alegria, [1vº] ao verdes-vos carregada de feixes preciosos.

Ó minha Madre, perdoai-me a minha simplicidade infantil. Estou certa de que me permitis falar sem andar à procura do que é permitido a uma jovem religiosa dizer à sua Prioresa. Talvez nem sempre me mantenha dentro dos limites prescritos aos inferiores, mas, minha Madre – atrevo-me a dizê-lo – a culpa é vossa: trato-vos como uma filha, porque não me tratais como Prioresa, mas como mãe...

Ah! sei perfeitamente, querida Madre, que é Deus que me fala sempre por vosso intermédio. Muitas religiosas pensam que me amimastes, que desde a minha entrada na Arca Santa não recebi de vós senão carícias e elogios. Porém, não é assim. Vereis, minha Madre, no caderno que contém as recordações da minha infância, o que penso da educação forte e maternal que recebi de vós. Do mais profundo do meu coração vos agradeço não me terdes poupado. Jesus sabia bem que à sua Florzinha era necessária a água vivificante da humilhação; era demasiado débil para lançar raízes sem essa ajuda, e foi por meio de vós, minha Madre, que esse benefício me foi dispensado.

De há ano e meio para cá, Jesus quis modificar a maneira de fazer crescer a sua Florzinha. Achou, sem dúvida, que estava suficientemente regada; pois agora é o sol que a faz desenvolver. Jesus não quer para ela senão o seu sorriso, que Ele lhe dá ainda através de vós, minha caríssima Madre.

Este sol aprazível, longe de fazer murchar a Florzinha, [2 rº] fá-la crescer maravilhosamente. No fundo do seu cálice, conserva as preciosas gotas de orvalho que recebeu, e essas gotas lembram-lhe sempre que é pequena e débil...

Podem inclinar-se para ela todas as criaturas, admirá-la, cumulá-la de louvores..., não sei porquê, mas isso não acrescentaria nem uma gota de falsa alegria à alegria verdadeira que saboreia no seu coração, sabendo o que ela é aos olhos de Deus: um pobre pequeno nada, e nada mais...

Digo não compreender porquê, mas, acaso não foi por ter sido preservada da água dos louvores durante todo o tempo em que o seu calicezinho não estava ainda cheio do orvalho da humilhação? Agora já não há perigo, pelo contrário, a Florzinha acha tão delicioso o orvalho de que está cheia, que se acautelará muito bem para o não trocar pela água tão insípida dos elogios.

Não quero falar, minha querida Madre, do amor e da confiança que me testemunhais. Não julgueis que o coração da vossa filha lhes seja insensível; simplesmente, reconheço que agora nada tenho a temer, pelo contrário, posso desfrutar deles, atribuindo a Deus o que Ele quis pôr de bom em mim. Se Lhe agrada fazer-me parecer melhor do que eu sou, isso não é comigo; Ele é livre de agir como quiser...

Ó minha Madre, como são diferentes os caminhos pelos quais o Senhor conduz as almas! Na vida dos Santos encontramos muitos que nada quiseram deixar deles [2 vº] para depois da morte, nem a mais pequena recordação, o mais pequeno escrito. Há outros, pelo contrário, como a nossa Madre Santa Teresa, que enriqueceram a Igreja com as suas sublimes revelações, não temendo manifestar os segredos do Rei, para que seja mais conhecido, mais amado pelas almas.

Qual destes dois géneros de santos agrada mais a Deus? Parece-me, minha Madre, que ambos Lhe são igualmente agradáveis, uma vez que todos seguiram a moção do Espírito Santo, e que o Senhor disse: Dizei ao justo que Tudo está bem. Sim, tudo está bem, quando não se procura senão a vontade de Jesus. É por isso que eu, pobre Florzinha, obedeço a Jesus, ao procurar agradar à minha caríssima Madre.

Bem sabeis, minha Madre, que sempre desejei ser santa. Mas, ai de mim! sempre verifiquei, ao comparar-me com os Santos, que há entre eles e eu a mesma diferença que existe entre uma montanha, cujo cume se perde nos céus, e o obscuro grão de areia pisado pelos pés dos caminhantes.

Em vez de desanimar, disse para comigo: - «Deus não pode inspirar desejos irrealizáveis. Posso, portanto, apesar da minha pequenez, aspirar à santidade. Fazer-me crescer a mim mesma é impossível; tenho de suportar-me tal como sou, com todas as minhas imperfeições. Mas quero procurar a maneira de ir para o Céu por um caminhito muito direito, muito curto; um caminhito completamente novo. »

Estamos num século de invenções. Agora já não se tem a maçada de subir os degraus de uma [3rº] escada; em casa dos ricos o ascensor substitui-a vantajosamente. Eu queria também encontrar um ascensor que me elevasse até Jesus, porque sou demasiado pequena para subir a rude escada da perfeição. Então, procurei nos Livros Sagrados a indicação do ascensor, objecto do meu desejo, e li estas palavras saídas da boca da Sabedoria eterna: Se alguém for pequenino, venha a mim.

Então aproximei-me, adivinhando que tinha encontrado o que procurava, e querendo saber, ó meu Deus! o que faríeis ao pequenino que respondesse ao vosso apelo. Continuei as minhas buscas, e eis o que encontrei: - Como uma mãe acaricia o seu filho, assim eu vos consolarei; levar-vos-ei ao colo e embalar-vos-ei nos meus joelhos!

Ah! nunca palavras tão ternas e tão melodiosas me vieram alegrar a alma! O ascensor que me há-de elevar até ao Céu, são os vossos braços, ó Jesus! Para isso não tenho necessidade de crescer; pelo contrário, é preciso que eu permaneça pequena, e que me torne cada vez mais pequena.

Ó meu Deus! excedestes a minha esperança, e eu quero cantar as vossas misericórdias. «Instruístes-me desde a minha juventude, e até ao presente anunciei as vossas maravilhas. Continuarei a publicá-las até à minha mais avançada idade» (SI. LXX).

Qual será para mim essa idade avançada? Acho que podia ser já, porque aos olhos do Senhor, dois mil anos são como vinte..., como um só dia...

Ah! não penseis, caríssima Madre, que a vossa filha deseja deixar-vos... Não julgueis que ela considera maior [3 vº] graça morrer na aurora do que ao declinar o dia. O que ela aprecia, o que ela unicamente deseja, é agradar a Jesus... Agora que Ele parece estar a aproximar-se dela para a atrair à morada da sua glória, a vossa filha alegra-se. Há muito tempo que compreendeu que Deus não precisa de ninguém (dela ainda menos que doutros) para fazer bem na terra.

Perdoai-me, minha Madre, se vos entristeço. Ah! quereria tanto alegrar-vos! Mas pensais acaso que, se as vossas orações não são atendidas na terra, se Jesus separar por alguns dias a filha da sua mãe, essas orações não serão atendidas no Céu...?

O vosso desejo, bem sei, é que eu desempenhe junto de vós uma missão muito agradável, muito fácil. Não poderei completar essa missão no alto dos Céus? Como Jesus disse um dia a S. Pedro, vós dissestes à vossa filha: «Apascenta os meus cordeiros», e eu fiquei admirada; disse-vos «ser pequena demais»... Supliquei-vos que levásseis vós mesma os vossos cordeirinhos a pastar e que me guardásseis, que por condescendência, me levásseis a pastar, com eles. E vós, minha caríssima Madre, respondendo um pouco ao meu justo desejo, guardastes os cordeirinhos com as ovelhas, mas recomendando-me que os levasse muitas vezes a pastar à sombra, que lhes indicasse as ervas melhores e mais fortificantes, que lhes mostrasse bem as flores atraentes, nas quais nunca devem tocar, a não ser para as esmagar debaixo dos pés...

Não tivestes receio, minha querida Madre, de que eu desencaminhasse os vossos cordeirinhos. A minha inexperiência e a minha [4 rº] juventude não vos assustaram minimamente. Talvez vos tenhais lembrado de que muitas vezes o Senhor se compraz em conceder a sabedoria aos pequenos, e de que um dia, num transporte de alegria, Ele bendisse o seu Pai por ter escondido os seus segredos aos prudentes e por os ter revelado aos mais pequenos.

Bem sabeis, minha Madre, que em geral as almas avaliam o poder divino segundo os seus curtos pensamentos; admite-se que na terra haja excepções em tudo; só Deus parece não ter o direito de as fazer. Sei desde hà muito tempo que esta maneira de medir a experiência pelos anos se pratica entre os homens, porque já o santo Rei David na sua adolescência cantava ao Senhor: «Sou jovem e desprezado». Contudo, no salmo 118, não receou dizer: «Tornei-me mais prudente que os anciãos, porque procurei a vossa vontade... A vossa palavra é a lâmpada que alumia os meus passos... Estou pronto para cumprir as vossas ordens, e nada me perturba...».

Caríssima Madre, não receastes dizer-me um dia, que Deus iluminava a minha alma, que me dava mesmo a experiência dos anos. Ó minha Madre! sou agora demasiado pequena para ter vaidade. Sou também pequena demais para compor belas frases, a fim de vos fazer crer que tenho muita humildade. Prefiro confessar muito simplesmente que o Todo-Poderoso fez grandes coisas na alma da filha da sua divina Mãe, e que a maior foi a de lhe ter mostrado a sua pequenez, a sua impotência.

[4 vº] Sabeis muito bem, querida Madre, que Deus se dignou fazer passar a minha alma por bastantes géneros de provações. Sofri muito desde que estou na terra; mas, se na minha infância sofri com tristeza, já não é assim que sofro agora: é na alegria e na paz. Sou feliz por sofrer.

Ó minha Madre! é preciso que conheçais todos os segredos da minha alma para não sorrirdes ao ler estas linhas. Com efeito, julgando pelas aparências, haverá alma menos provada do que a minha? Ah! que surpresa para muitos, se o martírio que sofro há um ano se tornasse manifesto!...

Caríssima Madre, vós conheceis este martírio, mas vou ainda falar-vos dele, pois considero-o uma grande graça que recebi durante o vosso bendito Priorado.

No ano passado, Deus concedeu-me a consolação de observar o jejum da Quaresma com todo o rigor; nunca me sentira tão forte, e essa força manteve-se até à Páscoa. Porém, no dia de Sexta-Feira Santa, Jesus quis dar-me a esperança de ir dentro em breve vê-lo no Céu... Oh! como é grata para mim essa recordação!...

Depois de ter ficado junto do Túmulo até à meia-noite, voltei para a cela. Mas, mal tivera tempo de poisar a cabeça no travesseiro, quando senti como que um fluxo que subia, subia aos borbotões até aos lábios. Não sabia o que era, mas pensei que talvez fosse morrer, e a minha alma estava inundada [5 rº] de alegria... Todavia, como tinha apagado a lamparina, disse comigo que seria preciso esperar pela manhã para me certificar da minha felicidade, pois parecia-me que era sangue que eu tinha vomitado. A manhã não se fez esperar muito. Ao acordar, pensei logo que tinha algo de alegre a descobrir e, aproximando-me da janela, pude verificar que não me enganara... Ah! a minha alma ficou repleta de uma grande consolação; estava intimamente persuadida de que Jesus, no aniversário da sua morte, me queria fazer ouvir uma primeira chamada. Era como um doce e longínquo murmúrio que me anunciava a chegada do Esposo...

Foi com enorme fervor que assisti a Prima e ao Capítulo de culpas. Tinha pressa de ver chegar a minha vez, a fim de, ao pedir-vos perdão, vos pudesse confiar, minha caríssima Madre, a minha esperança e a minha felicidade. Mas acrescentei que não sofria mesmo nada (o que era verdade), e supliquei-vos, minha Madre, que não me désseis nada de especial.

Com efeito, tive a consolação de passar o dia de Sexta-Feira Santa como desejava. Nunca as austeridades do Carmelo me tinham parecido tão deliciosas. A esperança de ir para o Céu inundava-me de alegria.

Chegada a noite desse dia ditoso, foi preciso ir repousar. Mas, como na noite precedente, Jesus deu-me o mesmo sinal de que a minha entrada na vida eterna não estaria longe...

Gozava então de uma fé tão viva, tão clara, que o pensamento do Céu constituía toda a minha felicidade. Não po[5 vº]dia crer que houvesse ímpios que não tivessem fé. Julgava que, falavam ao contrário do que pensavam ao negarem a existência do Céu, do belo Céu onde o próprio Deus queria ser a sua recompensa eterna.

Nos dias tão alegres do tempo pascal, Jesus fez-me compreender que há verdadeiramente almas que não têm fé, almas que, por abuso das graças perdem esse precioso tesouro, fonte das únicas alegrias puras e verdadeiras. Permitiu que a minha alma fosse invadida pelas mais espessas trevas e que o pensamento do Céu, tão deleitoso para mim, não fosse senão motivo de combate e de angústia...

Este tormento não devia durar alguns dias, algumas semanas; devia apenas acabar na hora marcada por Deus..., e essa hora ainda não chegou... Gostaria de ser capaz de exprimir o que sinto, mas, pobre de mim! penso ser impossível. É preciso ter viajado através deste sombrio túnel para lhe compreender a obscuridade. Contudo, vou tentar explicá-lo com uma comparação.

Imagino que nasci num país coberto por um espesso nevoeiro, e que nunca contemplei o risonho aspecto da natureza inundada, transfigurada pelo sol brilhante. É verdade que desde a minha infância ouço falar dessas maravilhas; sei que o país onde estou não é a minha pátria, que há outro, pelo qual devo aspirar sem cessar.

Não é uma história inventada por um habitante do triste país onde estou, é uma realidade indubitável, porque o Rei da pátria do sol brilhante veio viver 33 anos [6 rº] no país das trevas. Infelizmente! as trevas não compreenderam que esse Divino Rei era a Luz do mundo!

Mas, Senhor, a vossa filha compreendeu a vossa divina Luz. Pede-Vos perdão para os seus irmãos e aceita comer por quanto tempo quiserdes o pão da dor, e de maneira nenhuma se quer levantar desta mesa cheia de amargura, à qual comem os pobres pecadores, antes do dia que vós destinastes... Acaso não poderá dizer-vos em nome dela e em nome dos seus irmãos: Tende piedade de nós, Senhor, porque somos pobres pecadores!... Oh! Senhor, despedi-nos justificados! Que todos aqueles que não foram iluminados pelo resplandecente facho da fé, o vejam finalmente brilhar. Ó Jesus, se é preciso que a mesa manchada por eles seja purificada por uma alma que vos ama, quero aí comer sozinha o pão da provação, até que Vos agrade introduzir-me no vosso reino luminoso. A única graça que Vos peço, é a de nunca Vos ofender!...

Minha caríssima Madre, não há sequência no que vos escrevo. A minha pequena história, que parecia um conto de fadas, transformou-se, de repente, em oração. Não sei que interesse podereis achar em ler todos estes pensamentos confusos e mal expressos. Enfim, minha Madre, não escrevo para compor uma obra literária, mas por obediência. Se vos aborreço, pelo menos vereis que a vossa filha de provas de boa vontade. Vou, portanto, [6 vº] sem desanimar, continuar a minha pequena comparação, desde o ponto em que a deixei.

Dizia que a certeza de ir um dia para longe do país triste e tenebroso me tinha sido dada desde a infância. Não acreditava somente pelo que ouvia dizer às pessoas mais sábias do que eu, mas sentia no íntimo do coração aspirações a uma região mais bela. Da mesma maneira que o génio de Cristóvão Colombo lhe fez pressentir que havia um mundo novo, quando ninguém tinha pensado em tal, assim eu estava certa de que outra terra seria um dia a minha morada permanente.

Mas, de repente, os nevoeiros que me rodeiam tornaram-se mais densos, penetram-me na alma, e envolvem-na de tal maneira, que já não é possível encontrar nela a imagem tão aprazível da minha pátria. Tudo desapareceu! Quando quero repousar o meu coração fatigado das trevas que o envolvem, com a lembrança do país luminoso, pelo qual aspiro, o meu tormento redobra.

Parece-me que as trevas, servindo-se da voz dos pecadores, me dizem, fazendo troça de mim: - «Sonhas com a luz, com uma pátria inundada dos mais suaves perfumes..., sonhas com a posse eterna do Criador de todas estas maravilhas..., pensas sair um dia dos nevoeiros que te rodeiam... Continua! Continua! Alegra-te com a morte, que te dará, não o que tu esperas, mas uma noite mais profunda ainda, a noite do nada».

[7 rº] Caríssima Madre, a imagem que vos quis dar das trevas que obscurecem a minha alma é tão imperfeita como um esboço comparado com o modelo. No entanto, não quero escrever mais sobre isso; temeria blasfemar. Até receio ter dito demais...

Ah! que Jesus me perdoe, se O desgostei. Mas Ele sabe bem que, embora não tendo o gozo da Fé, procuro, pelo menos realizar as obras dela. Creio ter feito mais actos de fé de há um ano para cá, do que durante toda a minha vida.

Em cada nova ocasião de combate, quando o meu inimigo me vem provocar, porto-me com bravura. Sabendo que é cobardia bater-se em duelo, volto as costas ao adversário, sem me dignar olhá-lo de frente; mas corro para o meu Jesus, e digo-Lhe que estou pronta a derramar o sangue até à última gota para confessar que o Céu existe. Digo-Lhe que estou contente por não gozar esse belo Céu sobre a terra, para que Ele o abra por toda a eternidade aos pobres incrédulos.

Assim, apesar desta provação, que me tira todo o gozo, posso ainda exclamar: - «Senhor, Vós cumulais-me de alegria por tudo quanto fazeis» (Salmo XCI). Acaso haverá maior alegria do que sofrer por vosso amor?... Quanto mais íntimo é o sofrimento, quanto menos aparece aos olhos das criaturas, mais Vos alegra, ó meu Deus! Mas, se porventura fosse possível, Vós mesmo houvésseis de ignorar o meu sofrimento, ficaria ainda contente por o suportar, se por ele pudesse impedir ou reparar uma única falta contra a fé...

[7 vº] Minha caríssima Madre, parece-vos talvez que exagero a angústia da minha alma. De facto, se ajuizardes a partir dos sentimentos que exprimo nas pequenas poesias que compus durante este ano, devo parecer-vos uma alma cheia de consolações, para a qual o véu da fé quase se rompeu... Porém, para mim já não é um véu: é um muro que se ergue até aos céus e cobre o firmamento estrelado...

Quando canto a felicidade do Céu, a posso eterna de Deus, não sinto nenhuma alegria, porque canto simplesmente o que quero acreditar. Às vezes, é verdade, um pequeníssimo raio de sol vem iluminar as minhas trevas; então a provação cessa por um instante. Mas depois, a recordação desse raio, em vez de me causar alegria, torna as minhas trevas ainda mais densas.

Ó minha Madre, nunca experimentei tão bem como o Senhor é bom e misericordioso. Ele não me enviou este sofrimento senão no momento em que tive a força para o suportar; se o tivesse tido mais cedo, creio bem que teria mergulhado no desânimo... Agora ele retira-me tudo quanto pudesse haver de satisfação natural no desejo que tinha do Céu. Caríssima Madre, parece-me que agora nada me impede de levantar voo, pois já não tenho outros desejos grandes, excepto o de amar até morrer de amor... (9 de Junho).

[8 rº] Minha querida Madre, estou pasmada com o que vos escrevi ontem... Que gatafunhos!... A minha mão tremia de tal maneira, que me foi impossível continuar; e agora lamento mesmo ter tentado escrever. Espero que hoje o faça de forma mais legível, pois já não estou na cama, mas numa linda poltronazinha totalmente branca.

Ó minha Madre, reconheço que tudo o que vos digo não tem nexo, mas vejo também a necessidade de vos dizer os meus sentimentos presentes, antes de vos falar do passado, pois mais tarde talvez já não me lembre deles.

Quero, antes de mais, dizer-vos quanto estou sensibilizada com todas as vossas delicadezas maternais. Ah! acreditai, minha Madre caríssima, que o coração da vossa filha está cheio de gratidão; nunca esquecerá tudo quanto vos deve...

O que acima de tudo me comove, é a novena de missas que mandastes celebrar a Nossa Senhora das Vitórias para obter a minha cura. Tenho a certeza de que esses tesouros espirituais fazem um grande bem à minha alma.

No princípio da novena, dizia-vos, minha Madre, que era preciso que a Santíssima Virgem me curasse, ou então que me levasse para os Céus, porque achava muito triste para vós e para a Comunidade terem o encargo de uma jovem doente. Agora, quero até estar doente durante toda a minha vida, se for do agrado de Deus; e até aceito que a minha vida seja muito longa. A única graça [8 vº] que desejo é que ela acabe por amor.

Oh, não! não receio uma vida longa; não recuso o combate, porque o Senhor é o rochedo em que me elevo, é Ele que adestra as minhas mãos para o combate e os meus dedos para a guerra. Ele é o meu escudo. Confio n´Ele, - SI. CXLIII – por isso, nunca pedi a Deus para morrer jovem, mas é verdade que sempre desejei ser essa a sua vontade.

Muitas vezes o Senhor contenta-se com o desejo de trabalhar pela sua glória; e vós sabeis, minha querida Madre, que os meus desejos são muito grandes.

Sabeis também que Jesus me apresentou mais que um cálice amargo, e que mo afastou dos lábios antes de eu beber, mas não antes de me ter feito saborear-lhe a amargura.

Minha Madre, o santo Rei David tinha razão quando cantava: Como é bom e agradável os irmãos viverem juntos numa perfeita união. É verdade, e eu experimentei-o muitas vezes. Mas só com sacrifícios é que se consegue realizar esta união na terra.

Não foi de maneira nenhuma para viver com as minhas irmãs que eu vim para o Carmelo, mas unicamente para responder ao chamamento de Jesus. Ah! eu bem pressentia que viver com as próprias irmãs havia de ser uma ocasião contínua de sofrimento, quando nada se quer conceder à natureza.

Como se pode dizer que é mais perfeito afastar-se dos seus?... Alguma vez se censuraram os irmãos por combaterem no mesmo campo de batalha? Alguém os censurou por voarem juntos para receber a palma do martírio?... Sem dúvida julgaram, [9 rº] com razão, que se encorajavam mutuamente, mas também que o martírio de cada um se tornava o martírio de todos. Assim acontece na vida religiosa, à qual os teólogos chamam martírio.

Dando-se a Deus, o coração não perde a sua ternura natural; pelo contrário, essa ternura aumenta, tornando-se mais pura e divina. Minha caríssima Madre, é com essa ternura que vos amo e que amo as minhas irmãs.

Estou contente por combater em família pela glória do Rei dos Céus. Mas estou também pronta para voar para outro campo de batalha, se o Divino General me exprimir esse desejo. Não seria necessária uma ordem; bastaria um olhar, um simples gesto.

Desde a minha entrada na Arca Santa, sempre pensei que, se Jesus não me levasse bem depressa para o Céu, a minha sorte seria a da pombinha de Noé: um dia o Senhor abriria a janela da Arca e dir-me-ia para voar para muito longe, muito longe, até às regiões infiéis, levando comigo o raminho de oliveira.

Este pensamento, minha Madre, fez crescer a minha alma, fez-me pairar acima de todas as criaturas. Compreendi que mesmo no Carmelo podia haver separações, e que só no Céu a união será completa e eterna. Então quis que a minha alma habitasse desde já nos Céus, e que não olhasse senão de longe para as coisas da terra. Aceitei, não apenas exilar-me no meio de um povo desconhecido, mas – o que me era muito mais amargo – aceitei o exílio [9 vº] para as minhas irmãs.

Nunca esquecerei o dia 2 de Agosto de 1896. Precisamente nesse dia da partida dos missionários, tratou-se a sério da ida da Madre Inês de Jesus. Ah! não queria fazer nenhum movimento para a impedir de partir. Sentia, porém, uma grande tristeza no meu coração. Achava que a sua alma, tão sensível, tão delicada, não estava feita para viver no meio de almas que não seriam capazes de a compreender. Mil outros pensamentos acudiam em multidão ao meu espírito. E Jesus calava-se. Não dava ordens à tempestade... E eu dizia-Lhe: «Meu Deus, por vosso amor aceito tudo: se assim quiserdes, quero sofrer até morrer de desgosto». Jesus contentou-se com a aceitação, mas alguns meses depois, falou-se da partida da Ir. Genovena e da Ir. Maria da Trindade. Então foi outro género de sofrimento, muito íntimo, muito profundo; imaginava todas as provações, as decepções que teriam de sofrer, enfim, o meu Céu estava carregado de nuvens... Só o íntimo do meu coração permanecia calmo e em paz.

Minha caríssima Madre, a vossa prudência soube descobrir a vontade de Deus, e, da parte d´Ele, proibistes às vossas noviças que pensassem agora em deixar o berço da sua infância religiosa. Mas, as aspirações delas bem as compreendíeis, pois vós mesma, minha Madre, pedistes na vossa juventude para ir para Saigão; é assim que muitas vezes os desejos das mães encontram eco na alma [10 rº] das suas filhas.

Oh! minha querida Madre! O vosso desejo apostólico encontra na minha alma, como sabeis, um eco muito fiel. Deixai-me confiar-vos por que é que desejei e desejo ainda, se a Santíssima Virgem me curar, deixar por uma terra estranha, o delicioso oásis onde vivo tão feliz sob o vosso olhar maternal.

É preciso, minha Madre (como me dissestes) uma vocação muito especial, para viver em Carmelos estrangeiros; muitas almas pensam ser chamadas para lá, sem o serem de facto. Dissestes-me também que eu tinha essa vocação, e que só a minha saúde era obstáculo. Sei bem que esse obstáculo desapareceria se Deus me chamasse para longe, e por isso vivo sem nenhuma inquietação.

Se um dia tivesse que deixar o meu querido Carmelo, ah! não seria sem sofrimento! Jesus não me deu um coração insensível, e é precisamente por ele ser capaz de sofrer que desejo que dê a Jesus tudo quanto puder dar. Aqui, caríssima Madre, vivo sem nenhuma preocupação com os cuidados da miserável terra, tendo apenas que cumprir a agradável e fácil missão que me confiastes. Aqui estou cumulada das vossas atenções maternais. Não sinto a pobreza, pois nunca me faltou nada. Mas, sobretudo, aqui sou amada, por vós e por todas as irmãs, e esta afeição é-me muito grata. Eis porque sonho com um convento onde fosse desconhecida, onde tivesse que sofrer a pobreza, a falta de afecto, enfim, o exílio do coração.

Ah! não é com a intenção de prestar serviços ao Carmelo que [10 vº] me quisesse receber que deixaria tudo quanto me é querido; sem dúvida, faria tudo quanto dependesse de mim, mas conheço a minha incapacidade, e sei que, fazendo o melhor possível, não chegaria a fazer coisa de jeito, não tendo, como há pouco dizia, nenhum conhecimento das coisas da terra. A minha única finalidade seria, portanto, cumprir a vontade de Deus, sacrificar-me por Ele da maneira que Lhe aprovesse.

Estou certa de que não teria nenhuma decepção, pois quando se espera o sofrimento puro e simples, a mais pequena alegria torna-se uma surpresa inesperada; e depois, como sabeis, minha Madre, o próprio sofrimento torna-se a maior das alegrias quando se procura como o mais precioso dos tesouros.

Oh, não! não é com a intenção de gozar o fruto dos meus trabalhos que desejaria partir; se fosse esse o meu objectivo, não sentiria esta doce paz que me inunda, e até sofreria por não poder realizar a minha vocação para as missões longínquas. Há muito tempo que já não me pertenço. Entreguei-me totalmente a Jesus, portanto Ele é livre de fazer de mim o que Lhe agradar. Deu-me a atracção por um exílio completo, fez-me compreender todos os sofrimentos que lá encontraria, perguntando-me se quereria beber esse cálice de amargura; logo quis pegar nessa taça que Jesus me apresentava, mas Ele, retirando a mão, fez-me compreender que se contentava com a aceitação.

[11 rº] Ó minha Madre, de quantas inquietações nos livramos ao fazer o voto de obediência! Como as simples religiosas são felizes! Sendo a vontade dos superiores a sua única bússola, estão sempre seguras de estarem no caminho recto e não têm que recear enganar-se, mesmo que lhes pareça evidente que os superiores se enganam. Mas quando se deixa de olhar para a bússola infalível, quando uma pessoa se afasta do caminho que ela manda seguir, sob pretexto de fazer a vontade de Deus que não ilumina bem os que, apesar disso, estão no seu lugar, depressa a alma se transvia nos caminhos áridos, onde logo lhe falta a água da graça.

Madre caríssima, vós sois a bússola que Jesus me deu para me conduzir com segurança para a margem eterna. Como me é agradável fixar em vós o olhar e cumprir em seguida a vontade do Senhor! Desde que Ele permitiu que tenha tentações contra a fé, aumentou muito no meu coração o espírito de fé que me faz ver em vós, não apenas uma Madre que me ama e eu amo, mas, sobretudo, que me faz ver Jesus vivo na vossa alma, e comunicando-me, por meio de vós, a sua vontade.

Bem sei, minha Madre, que me tratais como uma alma fraca, como filha mimada, por isso não tenho dificuldade em levar o fardo da obediência, mas parece-me, segundo o que sinto no íntimo do coração, que não mudaria de conduta, e que o meu amor para convosco em nada diminuiria se [11 vº] vos aprouvesse tratar-me com severidade, pois veria ainda ser vontade de Jesus que assim agísseis para maior bem da minha alma.

Este ano, minha querida Madre, Deus concedeu-me a graça de compreender o que é a caridade. Dantes compreendia-o, é verdade, mas de uma maneira imperfeita. Não tinha aprofundado estas palavras de Jesus: «O segundo mandamento é semelhante ao primeiro: Amarás o teu próximo como a ti mesmo». Aplicava-me, sobretudo a amar Deus, e foi amando-O que compreendi que o meu amor não se devia traduzir só em palavras, porque: «Não são aqueles que dizem: Senhor, Senhor, que entrarão no reino dos Céus, mas aqueles que fazem a vontade de Deus».

Jesus deu a conhecer esta vontade diversas vezes; deveria dizer, quase em cada página do Evangelho. Mas na última Ceia, quando sabe que o coração dos seus discípulos se abrasa num amor mais ardente para com Ele, que acaba de se lhes dar, que acaba de se lhes dar no inefável mistério da Eucaristia, este benigno Salvador, quer dar-lhes um mandamento novo. Diz-lhes com uma ternura inexprimível: «Dou-vos um mandamento novo, que vos ameis uns aos outros, e que assim como eu vos amei, vós também vos ameis uns aos outros. O sinal pelo qual todos conhecerão que sois meus discípulos, é amar-vos mutuamente».

[12 rº] Como amou Jesus os seus discípulos, e porque os amou? Ah! não eram as qualidades naturais deles que O podiam atrair; havia entre eles e Ele uma distância infinita: Ele era a Ciência, a Sabedoria eterna; eles eram pobres pescadores, ignorantes e cheios de pensamentos terrestres. Apesar disso, Jesus chama-lhes seus amigos, seus irmãos. Quer vê-los reinar com Ele no reino de seu Pai, e para lhes abrir esse reino quer morrer numa cruz, pois disse: «Não há maior amor do que dar a vida por aqueles que se ama».

Caríssima Madre, ao meditar estas palavras de Jesus, compreendi quanto era imperfeito o meu amor para com as minhas irmãs; vi que não as amava como Deus as ama. Ah! compreendo agora que a caridade perfeita consiste em suportar os defeitos dos outros, em não se escandalizar com as suas fraquezas, em edificar-se com os mais pequenos actos de virtude que se lhes vir praticar; mas compreendi, sobretudo, que a caridade não deve ficar encerrada no fundo do coração: «Ninguém, disse Jesus, acende uma candeia para a colocar debaixo do alqueire, mas coloca-a sobre o candelabro para alumiar todos os que estão na casa». Creio que essa luz representa a caridade, que deve iluminar e alegrar, não só os que são mais queridos, mas todos aqueles que estão em casa, sem exceptuar ninguém.

Quando o Senhor ordenara ao seu povo que amasse o seu próximo [12 vº] como a si mesmo, não tinha ainda vindo à terra. Por isso, sabendo em que grau se ama a própria pessoa, não podia pedir às suas criaturas um amor maior para com o próximo. Mas quando Jesus deu aos Apóstolos um mandamento novo, o seu mandamento, como diz mais adiante, não fala já de amar o próximo como a si mesmo, mas de o amar como Ele, Jesus, o amou, como o amará até à consumação dos séculos...

Ah! Senhor! eu sei que não mandais nada que seja impossível, conheceis melhor do que eu a minha fraqueza, a minha imperfeição, sabeis bem que nunca poderia amar as minhas Irmãs como vós as amais, se Vós mesmo, ó meu Jesus, não as amásseis também a mim. Foi porque me queríeis conceder esta graça que ditastes um mandamento novo. Oh! como gosto dele, já que me dá a certeza de que a vossa vontade é amardes em mim todos aqueles a quem me mandais amar!...

Sim, eu sinto que quando sou caridosa, é só Jesus que age em mim; quanto mais estiver unida a Ele, tanto mais amo também as minhas Irmãs. Quando quero fazer crescer em mim este amor, sobretudo quando o demónio procura pôr-me diante dos olhos da alma os defeitos de tal ou tal Irmã que me é menos simpática, apresso-me a procurar as suas virtudes, os seus bons desejos, digo para comigo que se a vi cair uma vez, pode muito bem ter alcançado um grande [13 rº] número de vitórias que esconde por humildade, e que mesmo o que me parece uma falta, pode muito bem ser, por causa da intenção, um acto de virtude.

Não me custa persuadir-me disso, pois um dia fiz uma pequena experiência que me provou que nunca se deve julgar. Foi durante um recreio; a porteira tocou duas vezes, era preciso ir abrir o portão dos operários para meterem dentro árvores destinadas ao presépio. O recreio não estava animado, pois vós não estáveis lá, minha querida Madre; portanto, pensei que, se me mandassem servir de terceira, ficaria muito contente. Precisamente a Madre Sub-prioresa disse-me que fosse eu, ou então a Irmã que estava ao meu lado. Comecei logo a tirar o avental, mas bastante devagar, para que a minha companheira tirasse o dela antes de mim, pois pensava ser-lhe agradável, deixando-a fazer de terceira. A Irmã que substituía a ecónoma olhava para nós a rir, e, vendo que eu tinha sido a última a levantar-me, disse-me: Ah! bem me parecia que não éreis vós que ganharíeis uma pérola para a vossa coroa, com todos esses vagares...

Com toda a certeza, toda a Comunidade pensou que eu agira naturalmente, e não conseguiria dizer o bem que uma coisa tão pequena fez à minha alma, e me tornou indulgente para com as fraquezas das outras. Isso impede-me também de ter vaidade quando sou julgada favoravelmente, pois digo assim para comigo: «Já que tomam os meus pequenos actos de virtude por imperfeições, podem também [13 vº] enganar-se tomando por virtude aquilo que é somente imperfeição». Então digo com S. Paulo: «Pouco me importa ser julgada por um tribunal humano. Nem me julgo a mim mesma, quem me julga é o Senhor». E assim, para que este julgamento me seja favorável, ou antes, para não ser sequer julgada, quero ter sempre pensamentos caridosos, pois Jesus disse: «Não julgueis, e não sereis julgados».

Minha Madre, ao lerdes o que acabo de escrever, poderíeis pensar que a prática da caridade não me é difícil. É verdade. De há alguns meses para cá já não tenho que combater para praticar esta bela virtude; não quero dizer com isto que nunca me aconteça cometer faltas, ah! sou demasiado imperfeita para tal!, mas não me custa muito levantar-me quando caí, pois houve um certo combate em que consegui a vitória; por isso, a milícia celeste vem agora em meu socorro, pois não pode consentir em ver-me vencida, depois de ter saído vencedora na gloriosa guerra que vou tentar descrever.

Há na Comunidade uma Irmã que tem o condão de me desagradar em todas as coisas: as suas maneiras, as suas palavras, o seu carácter, pareciam-me muito desagradáveis. Apesar de tudo, é uma santa religiosa, que deve ser muito agradável a Deus; por isso, não querendo ceder à antipatia natural que sentia, disse comigo que a caridade não devia consistir nos sentimentos, mas nas obras. Então [14 rº] apliquei-me a fazer por essa Irmã o que faria pela pessoa que mais amo. Cada vez que a encontrava, rezava por ela a Deus, oferecendo-Lhe todas as suas virtudes e os seus méritos. Estava certa de que isso agradava a Jesus, pois não há artista que não goste de receber louvores pelas suas obras, e Jesus, o Artista das almas, fica contente quando não nos detemos no exterior, mas, penetrando até ao santuário íntimo que escolheu para sua morada, lhe admiramos a beleza. Não me contentava com rezar muito pela Irmã que me proporcionava tantos combates; procurava prestar-lhe todos os serviços possíveis e, quando tinha a tentação de lhe responder de uma maneira desagradável, contentava-me com dar-lhe o meu sorriso, e procurava desviar a conversa, pois a Imitação de Cristo diz: Vale mais deixar cada um com a sua opinião do que deter-se a discutir.

Muitas vezes também, quando não estava no recreio (quero dizer, durante as horas de trabalho), tendo alguns contactos de ofício com esta Irmã, quando os meus combates eram muito violentos, fugia como um desertor. Como ela ignorava absolutamente o que eu sentia por ela, nunca suspeitou dos motivos da minha conduta, e continua persuadida de que o seu carácter me é agradável. Um dia, no recreio, disse-me mais ou menos estas palavras, com um ar muito contente: «Poderíeis dizer-me, minha Irmã Teresa do Menino Jesus, o que tanto vos atrai em mim, cada vez que olhais para mim vejo-vos sorrir?» Ah! o que me atraía era Jesus escondido no fundo da sua alma... Jesus, que torna doce o que há de mais amargo... Respondi-lhe que sorria porque ficava contente de a ver (claro que não acrescentei que era sob o ponto de vista espiritual).

[14 vº] Minha caríssima Madre, já vo-lo disse, o meu último recurso para não ser vencida nos combates é a deserção. Já durante o noviciado o empregava, e sempre me deu bom resultado. Vou contar-vos um exemplo, minha Madre, que creio que vos fará sorrir. Durante uma das vossas bronquites, vim uma manhã, muito de mansinho, pôr na vossa cela as chaves da grade da comunhão, pois era sacristã. Na verdade, não estava aborrecida por ter essa ocasião de vos ver, estava até muito contente, mas esforçava-me por não o dar a entender. Uma Irmã, animada dum santo zelo, e que no entanto me amava muito, vendo-me entrar na vossa cela, minha Madre, pensou que eu vos ia acordar. Quis tirar-me as chaves, mas eu era astuta demais para lhas dar e ceder os meus direitos. Disse-lhe o mais delicadamente possível que desejava tanto como ela não vos acordar, e que me pertencia a mim entregar as chaves... Compreendo agora que teria sido muito mais perfeito ceder a essa Irmã, nova, é verdade, mas enfim, mais antiga do que eu. Não o compreendia então, por isso, querendo a todo o custo entrar atrás dela, apesar de ela empurrar a porta para não me deixar passar, não tardou que a desgraça que ambas temíamos acontecesse: o barulho que fazíamos fez-vos acordar... Então, minha Madre, tudo recaiu sobre mim: a pobre Irmã, a quem eu resistira, pôs-se a declamar todo um discurso, cujo conteúdo era o seguinte: Foi a Irmã Teresa do Menino Jesus que fez barulho... Meu Deus, como ela é insuportável... etc. [15 rº] Eu, que sentia exactamente o contrário, tinha bastante vontade de me defender; felizmente, ocorreu-me uma ideia luminosa: disse comigo que com certeza, se me começasse a justificar, não conseguiria conservar a paz na minha alma; sentia também que não tinha virtude bastante para me deixar acusar sem dizer nada; a minha única tábua de salvação, era, portanto, a fuga. Dito e feito. Saí pela calada, deixando a Irmã continuar o seu discurso, que se parecia com as imprecações de Camilo contra Roma. O meu coração batia com tanta força que me foi impossível ir longe, e sentei-me na escada para gozar em paz os frutos da minha vitória. Não havia nisso valentia, não achais, minha querida Madre? Mas apesar disso, creio que vale mais não se expor ao combate quando a derrota é certa.

Ai de mim! quando me recordo do tempo do meu noviciado, vejo bem quanto era imperfeita... Sofria por tão pouco, que agora rio-me disso. Ah! como o Senhor é bom por ter feito crescer a minha alma, por lhe ter dado asas... Todos os laços dos caçadores não seriam capazes de me assustar, porque: «É em vão que se arma o laço diante dos olhos daqueles que têm asas». (Prov.).

Mais tarde, sem dúvida, o tempo em que estou vai-me parecer ainda cheio de imperfeições, mas agora já não me admiro nada, não tenho desgosto por ver que sou a própria fraqueza, pelo contrário, é nela que me glorio, e conto descobrir em mim todos os dias novas imperfeições.

Lembrando-me de que a Caridade cobre a multidão dos [15 vº] pecados, bebo nessa mina abundante que Jesus abriu na minha frente. No Evangelho, o Senhor explica em que consiste o seu mandamento novo. Diz em S. Mateus: «Ouvistes que foi dito: amareis o vosso amigo e odiareis o vosso inimigo. Mas eu digo-vos: amai os vossos inimigos, rezai por aqueles que vos perseguem». Sem dúvida, no Carmelo não se encontram inimigos, mas enfim, há simpatias, sente-se atracção por uma Irmã, ao passo que outra nos faria dar uma grande volta para evitar encontrá-la; assim, mesmo sem o saber, ela torna-se objecto de perseguição.

Pois bem! Jesus diz-me que esta Irmã, é preciso amá-la, que é preciso rezar por ela, mesmo que o seu comportamento me levasse a pensar que ela não me ama: «Se amais aqueles que vos amam, que reconhecimento haveis de ter? Pois também os pecadores amam aqueles que os amam» (S. Lucas, VI).

E não basta amar, é preciso prová-lo. Fica-se naturalmente contente por dar um presente a um amigo; gosta-se sobretudo de fazer surpresas, mas isso de modo algum é caridade, pois os pecadores também o fazem. Eis o que Jesus me ensina ainda: «Dai a todo aquele que vos pede; e se tomarem o que vos pertence, não o reclameis». Dar a todas as que pedem é menos agradável que oferecer por si mesma, pelo impulso do seu coração; ainda quando pedem com delicadeza, não custa dar, mas, se por infelicidade, não empregam palavras bastante delicadas, logo a alma se revolta, se não estiver fortalecida na caridade. Arranja mil razões para recusar [16 rº] o que se lhe pede, e só depois de ter convencido a que pede da sua indelicadeza, é que, por fim, lhe dá por favor o que reclama, ou lhe presta um pequeno serviço que teria levado vinte vezes menos tempo a realizar do que foi preciso para fazer valer direitos imaginários.

Se é difícil dar a todo aquele que pede, ainda o é mais deixar tomar o que nos pertence sem o reclamar. Oh, minha Madre! digo que é difícil, deveria dizer antes que isso parece difícil, pois o jugo do Senhor é suave e leve; quando se aceita sente-se logo a sua suavidade, e exclama-se com o salmista: «corri pelo caminho dos vossos mandamentos, desde que dilatastes o meu coração». Só a caridade me pode dilatar o coração. Ó Jesus! desde que esta ditosa chama o consome, corro com alegria pelo caminho do vosso mandamento novo... Quero correr por ele até ao dia bem-aventurado em que, juntando-me ao cortejo virginal, poderei seguir-vos nos espaços infinitos, cantando o vosso cântico novo, que deve ser o do Amor.

Dizia eu: Jesus não quer que eu reclame o que me pertence; isto devia parecer-me fácil e natural, pois nada é meu. Os bens da terra, renunciei a eles pelo voto de pobreza, portanto, não tenho o direito de me queixar, se me tiram uma coisa que não me pertence; pelo contrário, devo alegrar-me quando me acontece experimentar a pobreza.

Antigamente parecia-me que não estava apegada a nada, mas desde que compreendi as palavras de Jesus, vejo que, em certas ocasiões, [16 vº] sou muito imperfeita. Por exemplo, no ofício de pintura, nada é meu, bem o sei; mas se, ao começar o trabalho, encontro pincéis e pinturas em grande desordem, se uma régua ou um canivete desapareceu, quase perco a paciência, e tenho de ganhar mesmo muita coragem para não reclamar com azedume os objectos que me faltam.

Às vezes é preciso pedir as coisas indispensáveis, mas fazendo-o com humildade, não faltamos ao mandamento de Jesus; pelo contrário, procedemos como os pobres que estendem a mão para receberem o que lhes é necessário. Se forem repelidos, não se admiram, ninguém lhes deve nada. Ah! que paz inunda a alma, quando ela se eleva acima dos sentimentos da natureza... Não, não há alegria comparável à que saboreia o verdadeiro pobre de espírito. Se pedir com desprendimento uma coisa necessária, e se não só essa coisa lhe for recusada, mas tentarem até tirar-lhe o que tem, segue o conselho de Jesus: «Deixai também a capa àquele que vos quiser ficar com a túnica»...

Deixar a capa é, parece-me, renunciar aos seus últimos direitos, é considerar-se como a serva, como a escrava dos outros. Quando se deixa a capa é mais fácil andar, correr; por isso Jesus acrescenta: «Se alguém vos obrigar a andar mil passos, andai com ele mais dois mil». Assim, [17 rº] não basta dar a todo aquele que me pede, é preciso ir ao encontro dos desejos, mostrar-se muito reconhecida e muito honrada por prestar um serviço; e, se levam uma coisa do meu uso, não devo mostrar que o lamento, mas, pelo contrário, parecer contente por me ver livre dela. Minha querida Madre, estou muito longe de praticar o que compreendo, mas, só o desejo que tenho de o fazer, dá-me paz.

Mais ainda que nos outros dias, dou-me conta de que me expliquei extremamente mal. Fiz uma espécie de discurso sobre a caridade que vos deve ter cansado ao lê-lo. Perdoai-me, caríssima Madre, e pensai que, neste momento, as enfermeiras praticam comigo o que acabo de escrever: não receiam dar dois mil passos quando bastariam vinte. Tenho podido, portanto, contemplar a caridade em acção! Sem dúvida, a minha alma deve estar toda perfumada por ela; quanto ao meu espírito, confesso que ficou um pouco paralisado perante tal dedicação, e a minha pena perdeu a ligeireza. Para me ser possível traduzir os meus pensamentos, é preciso estar como o pássaro solitário, e essa é raramente a minha sorte.

Mal pego na pena, eis que uma boa Irmã passa junto de mim com a forquilha ao ombro. Julga distrair-me cavaqueando um pouco: feno, patos, galinhas, visita do médico..., tudo vem à baila. Para dizer a verdade, isso não dura muito tempo, mas há mais que uma Irmã caridosa, e inesperadamente outra, que anda a virar o feno, depõe-me flores nos joelhos, julgando talvez inspirar-me ideias poéticas. Eu, que neste momento não as procuro, [17 vº] teria preferido que as flores tivessem continuado a baloiçar-se nos seus caules. Finalmente, cansada de abrir e fechar este famoso caderno, abro um livro (que não quer ficar aberto) e digo resolutamente que estou a copiar pensamentos dos Salmos e do Evangelho para a festa da nossa Madre. É bem verdade que não faço economia de citações...

Querida Madre, divertir-vos-ia, creio eu, se vos contasse todas as minhas aventuras nos arvoredos do Carmelo. Não sei se consegui escrever dez linhas sem ser interrompida; isto não me deveria dar vontade de rir, nem divertir-me; contudo, por amor de Deus e das minhas Irmãs (tão caridosas para comigo), esforço-me por me mostrar contente e, sobretudo, por o estar...

Olhai, eis que uma ceifeira se afasta, depois de me ter dito em tom compadecido: «Minha pobre Irmãzinha, isso de escrever assim durante todo o dia deve cansar-vos». - «Estai descansada – respondi-lhe – parece que escrevo muito, mas, na verdade, não escrevo quase nada». - «Tanto melhor! - disse com ar mais descansado – mas tanto faz. 'Stou contente por andarmos a virar o feno, pois sempre se distrai um pouco'». Com efeito, é para mim uma distração tão grande (sem contar as visitas das enfermeiras), que não minto ao dizer que não escrevo quase nada.

Felizmente, não desanimo com facilidade. Para vo-lo mostrar, minha Madre, vou acabar de vos explicar o que Jesus me fez compreender a respeito da caridade. Só ainda vos falei da exterior; agora gostaria de vos confiar como entendo a [18 rº] caridade puramente espiritual. Tenho a certeza de que não vou tardar em misturar uma com a outra. Mas, minha Madre, como é para vós que falo, com certeza que não vos será difícil captar o meu pensamento e desenriçar a meada da vossa filha.

Nem sempre é possível, no Carmelo, praticar à letra as palavras do Evangelho; por vezes, é-se obrigada a recusar um serviço, por causa dos ofícios. Mas quando a caridade lançou profundas raízes na alma, manifesta-se exteriormente. Há uma maneira tão graciosa de recusar o que não se pode dar, que a recusa dá tanto prazer como o dom. É verdade que se faz menos cerimónia em pedir um serviço a uma Irmã sempre pronta a fazer favores; mas Jesus disse: «Não eviteis aquele que vos quer pedir emprestado». Assim, sob o pretexto de se ser obrigado a recusar, não nos devemos afastar das Irmãs que têm o hábito de pedir constantemente favores.

Também não se deve ser prestável a fim de o parecer, ou com a esperança de que noutra ocasião a Irmã, a quem se faz um favor, no-lo retribua por sua vez, pois Nosso Senhor disse ainda: «Se emprestais àqueles de quem esperais receber alguma coisa, que agradecimento merecereis? Também os pecadores emprestam aos pecadores, a fim de receberem outro tanto. Vós, porém, fazei bem, emprestai sem nada esperar em troca, e a vossa recompensa será grande».

Oh, sim! a recompensa é grande, mesmo na terra... Neste caminho só custa o primeiro passo. Emprestar sem nada esperar em troca, parece duro para a natureza; preferir-se-ia dar, pois uma coisa dada [18 vº] já não nos pertence. Quando nos vêm dizer de modo convencido: «Minha Irmã, preciso da vossa ajuda durante algumas horas; mas ficai descansada que eu tenho licença da nossa Madre, e retribuir-vos-ei o tempo que agora me derdes, pois sei quanto andais ocupada...», sabendo muito bem que, na verdade, o tempo que se empresta nunca será retribuído, preferiríamos dizer: «Dou-vo-lo». Isto satisfaria o amor próprio, porque dar é um acto mais generoso do que emprestar, e além disso, daríamos a entender à Irmã que não contamos com os serviços dela...

Ah! como os ensinamentos de Jesus são contrários aos sentimentos da natureza! Sem a ajuda da graça seria impossível, não apenas pô-los em prática, mas até compreendê-los.