10. CASOS E CANÇÕES

10. CASOS E CANÇÕES
Entre minha casa e a de Francisco vivia meu padrinho Anastácio, casado com uma mulher de bastante idade, a quem o Senhor não tinha dado descendência. Lavradores bastante ricos, não
precisavam de trabalhar. Meu pai tomava-lhes conta da lavoura e
guiava-lhes por lá os jornaleiros. Agradecidos por isso tinham uma
predilecção para comigo, sobretudo a dona da casa, a quem chamava a Madrinha Teresa. Se para lá não ia de dia, tinha que dormir
a noite, pois ela dizia não poder passar sem o seu torrãozinho de
carne – assim me chamava.
Nos dias de festa, gostava de me enfeitar com o seu cordão
d’ouro e as grandes argolas que me caíam bastante abaixo dos
ombros e o lindo chapeuzito na cabeça, coberto de contas d’ouro
que sujeitavam imensas penas de várias cores. Nos arraiais, não
aparecia outra mais enfeitada; e minhas irmãs, com a Madrinha
Teresa, reviam-se nisso. As outras crianças cercavam-me em numerosos grupos, admirando o brilho de tantos enfeites. A dizer a
verdade, eu também gostava bastante da festa, e a vaidade era o
meu pior enfeite. Todos mostravam simpatia e estima por mim,
menos uma orfãzinha de quem a Madrinha Teresa se tinha encarregado, ao morrer-lhe a mãe. Ela parecia temer que lhe viesse a
tirar parte da herança que ela esperava e decerto não se teria enganado, se o bom Deus me não tivesse destinado uma outra herança bem mais preciosa.
Logo que se começou a espalhar a notícia das aparições, o
Padrinho mostrou-se indiferente e a Madrinha completamente contrária. Mostrava-se descontente por tais invenções, como ela dizia.
Comecei, por isso, a escapar-me quanto podia, de sua casa e,
comigo, começaram a desaparecer esses grupos de crianças que
aí, com frequência, se juntavam, e que a Madrinha tanto gostava
de ver dançar e cantar, dando-lhes figos secos, nozes, amêndoas,
castanhas, fruta, etc.
Passando, pois, um domingo de tarde, por junto de sua casa,
com o Francisco e a Jacinta, chamou-nos:
 
– Venham cá, meus intrujõezinhos, venham cá! Há já tanto
tempo que cá não vêm!
E lá nos foi a dar os seus mimos.
Parecendo adivinhar a nossa chegada, as outras crianças
começaram-se a juntar. A boa madrinha, contente por tornar a ver
em sua casa essa reunião que havia tanto tempo se havia dispersado, depois de nos mimosear com várias coisas, quis ver-nos
dançar e cantar.
– Vamos lá: que há-de ser? que não há-de ser? – Escolheu
ela: – Os parabéns desenganados. Um desafio: os pequenos dum
lado, as pequenas do outro.
|
 Coro
Tu és o sol desta esfera,
Não lhe negues os teus raios.
Sorrisos de primavera – ah!!!
Não convertas em desmaios!
1
Parabéns à rapariga,
Com fragrância, ao novo sol,
Porque, risonha, adivinha
Os mimos doutro arrebol.
 2
É ano rico de flores,
Rico de frutas e bem!
E o novo, nos seus alvores,
Rico de esperanças te vem.
3
São o teu melhor presente,
Teus melhores parabéns!
Cinge com eles a fronte,
É a melhor c’roa que tens.
 
 4
Se o passado te foi lindo,
Futuro mais lindo tens!
Parabéns pelo findo,
Pelo que entra, parabéns!
 5
Nesta vida, flor do Atlântico,
Neste amigável festim,
Celebre-se, em ledo cântico.
O jardineiro e o jardim!
 6
Compadecem-te as flores
De teu paterno torrão!
Teu lar de castos amores,
Teus laços de coração.
 II
 Coro
Achas acto, cavalheiro,
Que ao ver surdir o penal,
A Berlenga e o Carvoeiro (8
) – ah!!!
Apaguem o seu farol?
 1
Mas o mar em frol rebenta,
Remoinho, eterno fulcro!
Cada norte é uma tormenta,
Cada tormenta um sepulcro.
(8) A Berlenga é uma pequena ilha no Atlântico, perto do Cabo Carvoeiro, em
Peniche.
 
2
Tristes morros da Papoa,
Estelas e Farilhões (9)!
Que tragédia não ressoa
Cada um de seus cachões!
 3
Cada escolho, nestas águas,
É de morte um presságio!
Cada vaga canta mágoas,
Cada cruz lembra um naufrágio.
 4
Pois tu queres ser mais duro,
Queres sumir-te, e és luz
Que, da vida, em mar escuro,
Tanto barquinho conduz?!
 III
 Coro
E fico d’olhos enxutos
Ao falar em despedida!
O hesitar foi de minutos - ah!!!
O imolar-me é de toda a vida.
 1
Vai, mas diz ao Céu que corte
Da sua graça o raudal!
E as flores mirre de morte,
Por não seres seu canal.
(9) As Estelas e Farilhões são ilhéus próximos da Berlenga.
2
Vai, que fico em desconforto,
Enlutado o Santuário!
Dobrará o bronze a morte,
Na grimpa do campanário.
 3
Mas apenas me deixas
Da triste Igreja, no Adro,
Vou deixar eternas queixas,
Escrevendo em negro quadro!
4
Foi jardim risonho e belo
Este solo hoje sem flor!
Não lhe faltou o desvelo;
Faltou ele ao seu cultor.
5
Espero da Providência
Futurosos carinhos!
Esperem-nos, com preferência,
As que deixam pátrios ninhos.
Entre minha casa e a de Francisco vivia meu padrinho Anastácio, casado com uma mulher de bastante idade, a quem o Senhor não tinha dado descendência. Lavradores bastante ricos, não
precisavam de trabalhar. Meu pai tomava-lhes conta da lavoura e
guiava-lhes por lá os jornaleiros. Agradecidos por isso tinham uma
predilecção para comigo, sobretudo a dona da casa, a quem chamava a Madrinha Teresa. Se para lá não ia de dia, tinha que dormir
a noite, pois ela dizia não poder passar sem o seu torrãozinho de
carne – assim me chamava.
Nos dias de festa, gostava de me enfeitar com o seu cordão
d’ouro e as grandes argolas que me caíam bastante abaixo dos
ombros e o lindo chapeuzito na cabeça, coberto de contas d’ouro
que sujeitavam imensas penas de várias cores. Nos arraiais, não
aparecia outra mais enfeitada; e minhas irmãs, com a Madrinha
Teresa, reviam-se nisso. As outras crianças cercavam-me em numerosos grupos, admirando o brilho de tantos enfeites. A dizer a
verdade, eu também gostava bastante da festa, e a vaidade era o
meu pior enfeite. Todos mostravam simpatia e estima por mim,
menos uma orfãzinha de quem a Madrinha Teresa se tinha encarregado, ao morrer-lhe a mãe. Ela parecia temer que lhe viesse a
tirar parte da herança que ela esperava e decerto não se teria enganado, se o bom Deus me não tivesse destinado uma outra herança bem mais preciosa.
Logo que se começou a espalhar a notícia das aparições, o
Padrinho mostrou-se indiferente e a Madrinha completamente contrária. Mostrava-se descontente por tais invenções, como ela dizia.
Comecei, por isso, a escapar-me quanto podia, de sua casa e,
comigo, começaram a desaparecer esses grupos de crianças que
aí, com frequência, se juntavam, e que a Madrinha tanto gostava
de ver dançar e cantar, dando-lhes figos secos, nozes, amêndoas,
castanhas, fruta, etc.
Passando, pois, um domingo de tarde, por junto de sua casa,
com o Francisco e a Jacinta, chamou-nos:
 
– Venham cá, meus intrujõezinhos, venham cá! Há já tanto
tempo que cá não vêm!
E lá nos foi a dar os seus mimos.
Parecendo adivinhar a nossa chegada, as outras crianças
começaram-se a juntar. A boa madrinha, contente por tornar a ver
em sua casa essa reunião que havia tanto tempo se havia dispersado, depois de nos mimosear com várias coisas, quis ver-nos
dançar e cantar.
– Vamos lá: que há-de ser? que não há-de ser? – Escolheu
ela: – Os parabéns desenganados. Um desafio: os pequenos dum
lado, as pequenas do outro.
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 Coro
Tu és o sol desta esfera,
Não lhe negues os teus raios.
Sorrisos de primavera – ah!!!
Não convertas em desmaios!
1
Parabéns à rapariga,
Com fragrância, ao novo sol,
Porque, risonha, adivinha
Os mimos doutro arrebol.
 2
É ano rico de flores,
Rico de frutas e bem!
E o novo, nos seus alvores,
Rico de esperanças te vem.
3
São o teu melhor presente,
Teus melhores parabéns!
Cinge com eles a fronte,
É a melhor c’roa que tens.
 
 4
Se o passado te foi lindo,
Futuro mais lindo tens!
Parabéns pelo findo,
Pelo que entra, parabéns!
 5
Nesta vida, flor do Atlântico,
Neste amigável festim,
Celebre-se, em ledo cântico.
O jardineiro e o jardim!
 6
Compadecem-te as flores
De teu paterno torrão!
Teu lar de castos amores,
Teus laços de coração.
 II
 Coro
Achas acto, cavalheiro,
Que ao ver surdir o penal,
A Berlenga e o Carvoeiro (8) – ah!!!
Apaguem o seu farol?
 1
Mas o mar em frol rebenta,
Remoinho, eterno fulcro!
Cada norte é uma tormenta,
Cada tormenta um sepulcro.
 
2
Tristes morros da Papoa,
Estelas e Farilhões (9)!
Que tragédia não ressoa
Cada um de seus cachões!
 3
Cada escolho, nestas águas,
É de morte um presságio!
Cada vaga canta mágoas,
Cada cruz lembra um naufrágio.
 4
Pois tu queres ser mais duro,
Queres sumir-te, e és luz
Que, da vida, em mar escuro,
Tanto barquinho conduz?!
III
Coro
E fico d’olhos enxutos
Ao falar em despedida!
O hesitar foi de minutos - ah!!!
O imolar-me é de toda a vida.
 1
Vai, mas diz ao Céu que corte
Da sua graça o raudal!
E as flores mirre de morte,
Por não seres seu canal.
 
2
Vai, que fico em desconforto,
Enlutado o Santuário!
Dobrará o bronze a morte,
Na grimpa do campanário.
 3
Mas apenas me deixas
Da triste Igreja, no Adro,
Vou deixar eternas queixas,
Escrevendo em negro quadro!
4
Foi jardim risonho e belo
Este solo hoje sem flor!
Não lhe faltou o desvelo;
Faltou ele ao seu cultor.
5
Espero da Providência
Futurosos carinhos!
Esperem-nos, com preferência,
As que deixam pátrios ninhos.
 
(8) A Berlenga é uma pequena ilha no Atlântico, perto do Cabo Carvoeiro, em
Peniche.
 

(9) As Estelas e Farilhões são ilhéus próximos da Berlenga.