3. PROBLEMAS FAMILIARES

3. PROBLEMAS FAMILIARES
Eis-me chegada, Ex.mo e Rev.mo Senhor, ao fim dos meus três
anos de pastorinha – dos 7 aos 10. Durante estes três anos, a
nossa casa e, quase me atrevia a dizer, a nossa freguesia, tinha
mudado quase completamente de aspecto. O Rev.mo Senhor Padre
Pena tinha deixado de ser nosso Pároco e tinha sido substituído
pelo Rev.mo Senhor Padre Boicinha (15). Este zelosíssimo Sacerdote,
ao ter conhecimento dos costumes pagãos que existiam na
freguesia, de bailes e danças, começou desde logo a pregar contra
 
isso, no púlpito, nas homilias aos domingos. Em público e em
particular, aproveitava todas as ocasiões que se Ihe ofereciam para
combater este mau costume. Minha mãe, desde que ouviu o bom
Pároco falar assim, proibiu a minhas irmãs ir a tais divertimentos. E
como o exemplo de minhas irmãs arrastou outras a não comparecer,
este costume foi-se a pouco e pouco desvanecendo. O mesmo
(se) passou entre as crianças que, como eu já disse a V. Ex.cia
Rev.ma no exposto sobre minha prima, formavam as suas danças à
parte. A alguém que um dia dizia a minha mãe:
– Mas até aqui não era pecado bailar! E agora, porque veio
um Pároco novo, já é pecado? Como são essas coisas?
– Não sei – respondeu minha mãe. – O que sei é que o Senhor
Prior não quer que se baile e, portanto, as minhas filhas não voltam
a esses ajuntamentos. Quando muito, deixá-las-ei bailar alguma
coisa entre família, porque diz o Senhor Prior que em família não é
mal.
No decorrer deste período de tempo, as minhas duas irmãs
mais velhas deixaram a casa paterna, pelo Sacramento do Matrimónio. Meu pai tinha-se deixado arrastar pelas más companhias e
tinha caído nos laços duma triste paixão, por causa da qual tinhamos
já perdido alguns dos nossos terrenos (16).
Minha mãe, ao ver que escasseavam os meios de subsistência, resolveu que as minhas duas irmãs, Glória e Carolina, iam
servir. Ficou, então, em casa, meu irmão, para cuidar dos campos
que nos restavam, minha mãe que cuidava do arranjo da casa e
eu, para pastorear o nosso rebanho. Minha pobre mãe vivia mergulhada numa profunda amargura e, quando à noite nos juntávamos os três, à lareira, esperando por meu pai para cear, minha
mãe, ao ver os lugares das suas outras filhas vazios, dizia, com
uma profunda tristeza:
– Meu Deus! Para onde foi a alegria deste lar!
E inclinando a cabeça sobre uma pequena mesa que tinha a
seu lado, prorrompia em amargo pranto. Era uma das cenas mais
tristes que tenho presenciado! Eu sentia o coração despedaçar-
-me de saudades por minhas irmãs e pela amargura de minha mãe.
(16) Não se deve exagerar, na vida do pai da Lúcia, a sua «paixão pelo vinho”. Ele
não era um alcoólico. Quanto aos seus deveres religiosos, é certo que não os
cumpriu, durante alguns anos, na Paróquia de Fátima, por não se entender
com o Pároco. Ia a Vila Nova de Ourém.
 
Apesar de ser criança, compreendia perfeitamente a situação
em que nos encontrávamos. Lembrava-me, então, das palavras
do Anjo: Sobretudo, aceitai, submissos, os sacrifícios que o Senhor vos enviar. Retirava-me, então, a um lugar solitário, para, com
o meu sofrimento, não aumentar o de minha mãe. (Este lugar era,
por ordinário, o nosso poço). Aí, de joelhos, debruçada sobre as
lajes que o cobriam, juntava às suas águas as minhas lágrimas e
oferecia a Deus o meu sofrimento. Por vezes, a Jacinta e o Francisco vinham encontrar-me assim amargurada. E como eu tinha a
voz embargada pelos soluços e não podia falar, eles sofrendo comigo a ponto de derramarem também abundantes lágrimas, fazia
a Jacinta, então, em voz alta, o nosso oferecimento: Meu Deus, é
em acto de reparação e pela conversão dos pecadores que Vos
oferecemos todos estes sofrimentos e sacrifícios. (A fórmula do
oferecimento não era sempre exacta, mas o sentido era sempre
este).
Tanto sofrimento começou por abalar a saúde de minha mãe.
Esta, não podendo já trabalhar, mandou vir, para a tratar e tomar
conta do arranjo da casa, minha irmã Glória. Correram, então,
quantos cirurgiões e médicos por ali havia. Gastou-se uma infinidade de remédios, sem se obter melhoras algumas. O bom Pároco
prontificou-se a levar minha mãe a Leiria, no seu carro de mulas,
para ela aí consultar os médicos. Lá foi, acompanhada de minha
irmã Teresa, mas chegou a casa meia morta pelo cansaço do
caminho e moída das consultas, sem ter obtido resultado algum.
Por fim, consultou-se um cirurgião que dava consulta em S.
Mamede, que declarou ter minha mãe uma lesão cardíaca, um elo
da espinha deslocado e os rins caídos. Submeteu-se a um rigoroso
tratamento de pontas de fogo e vários medicamentos, com os quais
obteve algumas melhoras.
Eis o estado em que nos encontrávamos, quando chegou o
dia 13 de Maio de 1917. Meu irmão completava também, por esse
tempo, a idade de assentar praça na vida militar. E como gozava
de perfeita saúde, era de esperar que ficasse apurado. Ademais,
estava-se em guerra e era difícil conseguir livrá-lo. Com o receio
de ficar sem ter quem Ihe cuidasse as terras, minha mãe mandou
também vir para casa a minha irmã Carolina. Meteu empenhos
com o médico da inspecção e o nosso bom Deus dignou-se, por
então, dar a minha mãe este alívio.
 
(13) A terceira e última aparição do Anjo.
(14) Francisco e Jacinta ainda não tinham feito a sua primeira comunhão. Nem por
isso consideraram esta como comunhão sacramental.
(15) O seu verdadeiro nome era Manuel Marques Ferreira, também conhecido
por P.e Boicinha. (Faleceu em Janeiro de 1945).
Eis-me chegada, Ex.mo e Rev.mo Senhor, ao fim dos meus três
anos de pastorinha – dos 7 aos 10. Durante estes três anos, a
nossa casa e, quase me atrevia a dizer, a nossa freguesia, tinha
mudado quase completamente de aspecto. O Rev.mo Senhor Padre
Pena tinha deixado de ser nosso Pároco e tinha sido substituído
pelo Rev.mo Senhor Padre Boicinha (15). Este zelosíssimo Sacerdote,
ao ter conhecimento dos costumes pagãos que existiam na
freguesia, de bailes e danças, começou desde logo a pregar contra
 
isso, no púlpito, nas homilias aos domingos. Em público e em
particular, aproveitava todas as ocasiões que se Ihe ofereciam para
combater este mau costume. Minha mãe, desde que ouviu o bom
Pároco falar assim, proibiu a minhas irmãs ir a tais divertimentos. E
como o exemplo de minhas irmãs arrastou outras a não comparecer,
este costume foi-se a pouco e pouco desvanecendo. O mesmo
(se) passou entre as crianças que, como eu já disse a V. Ex.cia
Rev.ma no exposto sobre minha prima, formavam as suas danças à
parte. A alguém que um dia dizia a minha mãe:
– Mas até aqui não era pecado bailar! E agora, porque veio
um Pároco novo, já é pecado? Como são essas coisas?
– Não sei – respondeu minha mãe. – O que sei é que o Senhor
Prior não quer que se baile e, portanto, as minhas filhas não voltam
a esses ajuntamentos. Quando muito, deixá-las-ei bailar alguma
coisa entre família, porque diz o Senhor Prior que em família não é
mal.
No decorrer deste período de tempo, as minhas duas irmãs
mais velhas deixaram a casa paterna, pelo Sacramento do Matrimónio. Meu pai tinha-se deixado arrastar pelas más companhias e
tinha caído nos laços duma triste paixão, por causa da qual tinhamos
já perdido alguns dos nossos terrenos (16).
Minha mãe, ao ver que escasseavam os meios de subsistência, resolveu que as minhas duas irmãs, Glória e Carolina, iam
servir. Ficou, então, em casa, meu irmão, para cuidar dos campos
que nos restavam, minha mãe que cuidava do arranjo da casa e
eu, para pastorear o nosso rebanho. Minha pobre mãe vivia mergulhada numa profunda amargura e, quando à noite nos juntávamos os três, à lareira, esperando por meu pai para cear, minha
mãe, ao ver os lugares das suas outras filhas vazios, dizia, com
uma profunda tristeza:
– Meu Deus! Para onde foi a alegria deste lar!
E inclinando a cabeça sobre uma pequena mesa que tinha a
seu lado, prorrompia em amargo pranto. Era uma das cenas mais
tristes que tenho presenciado! Eu sentia o coração despedaçar-
-me de saudades por minhas irmãs e pela amargura de minha mãe.
 
 
Apesar de ser criança, compreendia perfeitamente a situação
em que nos encontrávamos. Lembrava-me, então, das palavras
do Anjo: Sobretudo, aceitai, submissos, os sacrifícios que o Senhor vos enviar. Retirava-me, então, a um lugar solitário, para, com
o meu sofrimento, não aumentar o de minha mãe. (Este lugar era,
por ordinário, o nosso poço). Aí, de joelhos, debruçada sobre as
lajes que o cobriam, juntava às suas águas as minhas lágrimas e
oferecia a Deus o meu sofrimento. Por vezes, a Jacinta e o Francisco vinham encontrar-me assim amargurada. E como eu tinha a
voz embargada pelos soluços e não podia falar, eles sofrendo comigo a ponto de derramarem também abundantes lágrimas, fazia
a Jacinta, então, em voz alta, o nosso oferecimento: Meu Deus, é
em acto de reparação e pela conversão dos pecadores que Vos
oferecemos todos estes sofrimentos e sacrifícios. (A fórmula do
oferecimento não era sempre exacta, mas o sentido era sempre
este).
Tanto sofrimento começou por abalar a saúde de minha mãe.
Esta, não podendo já trabalhar, mandou vir, para a tratar e tomar
conta do arranjo da casa, minha irmã Glória. Correram, então,
quantos cirurgiões e médicos por ali havia. Gastou-se uma infinidade de remédios, sem se obter melhoras algumas. O bom Pároco
prontificou-se a levar minha mãe a Leiria, no seu carro de mulas,
para ela aí consultar os médicos. Lá foi, acompanhada de minha
irmã Teresa, mas chegou a casa meia morta pelo cansaço do
caminho e moída das consultas, sem ter obtido resultado algum.
Por fim, consultou-se um cirurgião que dava consulta em S.
Mamede, que declarou ter minha mãe uma lesão cardíaca, um elo
da espinha deslocado e os rins caídos. Submeteu-se a um rigoroso
tratamento de pontas de fogo e vários medicamentos, com os quais
obteve algumas melhoras.
Eis o estado em que nos encontrávamos, quando chegou o
dia 13 de Maio de 1917. Meu irmão completava também, por esse
tempo, a idade de assentar praça na vida militar. E como gozava
de perfeita saúde, era de esperar que ficasse apurado. Ademais,
estava-se em guerra e era difícil conseguir livrá-lo. Com o receio
de ficar sem ter quem Ihe cuidasse as terras, minha mãe mandou
também vir para casa a minha irmã Carolina. Meteu empenhos
com o médico da inspecção e o nosso bom Deus dignou-se, por
então, dar a minha mãe este alívio.
 
(13) A terceira e última aparição do Anjo.
(14) Francisco e Jacinta ainda não tinham feito a sua primeira comunhão. Nem por
isso consideraram esta como comunhão sacramental.
(15) O seu verdadeiro nome era Manuel Marques Ferreira, também conhecido
por P.e Boicinha. (Faleceu em Janeiro de 1945).
(16) Não se deve exagerar, na vida do pai da Lúcia, a sua «paixão pelo vinho”. Ele
não era um alcoólico. Quanto aos seus deveres religiosos, é certo que não os
cumpriu, durante alguns anos, na Paróquia de Fátima, por não se entender
com o Pároco. Ia a Vila Nova de Ourém.