Antes de vos falar desta provação, devia ter-vos falado, minha Madre querida, do retiro que precedeu a minha Profissão. Esteve longe de me proporcionar consolações, pois a aridez mais absoluta e quase o abandono, foram o meu quinhão. Jesus dormia, como sempre, na minha barquinha. Ah! bem vejo que raras vezes as almas O deixam dormir nelas tranquilamente. Jesus está tão cansado de custear sempre tudo e de tomar a iniciativa, que se apressa a aproveitar o repouso que Lhe ofereço. Não acordará certamente, antes do meu grande retiro da eternidade. Mas, em vez disso me causar pena, dá-me um extremo prazer...
Verdadeiramente, estou longe de ser uma santa. Só isso é já uma prova. Em vez de me alegrar com a minha aridez, devia atribuí-la ao meu pouco fervor e à minha pouca fidelidade; deveria consolar-me, por dormir (desde há sete anos) durante a oração e a acção de graças. Ora, eu não fico desolada... Penso que as criancinhas tanto agradam aos pais quando dormem, como quando estão acordadas; penso que para fazerem operações, os médicos [76 rº] adormecem os doentes. Enfim, penso que «o Senhor vê a nossa fragilidade e lembra-se de que apenas somos pó».
O meu retiro da Profissão foi, portanto, como todos os que se lhe seguiram, um retiro de grande aridez. Contudo, Deus mostrava-me claramente, sem que disso me apercebesse, a maneira de Lhe agradar e de praticar as mais sublimes virtudes. Dei-me muitas vezes conta de que Jesus não me quer dar provisões. Alimenta-me a cada instante com um manjar completamente novo. Encontrou-o em mim sem saber como lá está... Creio muito simplesmente que é o próprio Jesus, escondido no íntimo do meu coraçãozinho, que me dá a graça de agir em mim, e me faz pensar em tudo o que Ele quer que eu faça no momento presente.
Alguns dias antes do da minha Profissão, tive a felicidade de receber a bênção do Soberano Pontífice. Tinha-a solicitado através do bom Irmão Simeão para o Papá e para mim. Tive uma grande consolação em poder retribuir ao meu querido paizinho a graça que me tinha proporcionado levando-me a Roma.
Chegou finalmente o belo dia das minhas núpcias. Foi sem nuvens; mas na Véspera levantou-se na minha alma uma tempestade como nunca vira... Nunca me tinha vindo ao pensamento uma única dúvida da minha vocação; tinha de conhecer essa provação. À noite, ao fazer a Via-Sacra depois das Matinas, a minha vocação pareceu-me um sonho, uma quimera... Achava a vida do Carmelo muito bela, mas o demónio inspirava-me a certeza de não ser própria para mim, e que enganaria as superioras, seguindo por um caminho ao qual não era chamada... As minhas trevas eram tão grandes, que não via nem com[76 vº]preendia senão uma coisa: Eu não tinha vocação!... Ah! como descrever a angústia da minha alma?... Parecia-me (coisa absurda, que mostra que esta tentação era do demónio) que, se dissesse os meus temores à minha Mestra, ela me impediria de pronunciar os santos votos. Porém, antes queria fazer a vontade de Deus e voltar para o mundo, do que ficar no Carmelo fazendo a minha. Fui, portanto chamar a minha Mestra e, cheia de confusão, manifestei-lhe o estado da minha alma... Felismente, ela viu mais claro do que eu, e tranquilizou-me completamente. Aliás, o acto de humildade que praticara, acabava de pôr em fuga o demónio, que pensava, talvez, que eu não ousaria confessar a minha tentação.
Logo que acabei de falar, as dúvidas desapareceram. No entanto, para tornar mais completo o meu acto de humildade, quis ainda confiar a minha estranha tentação à nossa Madre, que se contentou com rir-se de mim.
Na manhã do dia 8 de Setembro, senti-me inundada por um rio de paz. E foi nessa paz «superior a todo o sentimento», que pronunciei os meus santos votos... A minha união com Jesus realizou-se, não no meio de trovões e relâmpagos, isto é, de graças extraordinárias, mas no seio de uma ligeira brisa, parecida com aquela que ouviu na montanha o Nosso Padre Santo Elias.
Quantas graças não pedi nesse dia!... Sentia-me verdadeiramente Rainha, por isso, aproveitava o meu título para libertar os cativos, para obter favores do Rei para com os seus súbditos ingratos, enfim, queria libertar todas as almas do Purgatório e converter os pecadores... Rezei muito pela minha Madre, pelas minhas queridas irmãs, por toda a família, mas especialmente pelo paizinho, tão provado e tão santo... Oferecia-me a Jesus, para que Ele cumpra perfeitamente em mim a sua vontade, sem que as criaturas jamais se oponham...
[77 rº] Esse belo dia passou, como passam os mais tristes, pois até os mais radiosos têm um dia seguinte. Mas foi sem tristeza que depositei a minha coroa aos pés da Santíssima Virgem. Estava certa de que o tempo não faria desaparecer a minha felicidade...
Que bela festa a da Natividade de Maria para me tornar Esposa de Jesus! Era a pequena Santíssima Virgem, de um dia, que apresentava a sua pequena Flor ao pequeno Jesus... Nesse dia tudo foi pequeno, excepto as graças e a paz que recebi, excepto a alegria pacífica que experimentei à noite, ao contemplar as estrelas a cintilar no firmamento, ao pensar que em breve o belo Céu se abriria aos meus olhos encantados, e que poderia unir-me ao meu Esposo num transporte de alegria eterna...
No dia 24 teve lugar a cerimónia da minha Tomada de Véu. Foi um dia inteiramente velado de lágrimas... O Papá não estava lá para abençoar a sua rainha..., o Padre estava no Canadá..., o Senhor Bispo, que devia vir e jantar em casa do meu tio, estava doente também, e não veio. Enfim, tudo foi tristeza e amargura... Não obstante, a paz, sempre a paz, encontrava-se no fungo do cálice...
Nesse dia Jesus permitiu que não conseguisse reter as lágrimas, e o meu pranto não foi compreendido... Com efeito, tinha suportado, sem chorar, provações muito maiores, mas então era ajudada por uma graça poderosa. Pelo contrário, no dia 24, Jesus abandonou-me às minhas próprias forças, e eu mostrei quão poucas eram.
Oito dias depois da minha Tomada de Véu, realizou-se o casamento da Joana. Ser-me-ia impossível dizer-vos, minha querida Madre, quanto me instruiu o seu exemplo acerca das delicadezas que uma esposa deve prodigalizar ao seu esposo. Ouvia avidamente tudo quanto podia aprender a esse respeito, porque não queria fazer menos pelo meu Bem-amado Jesus do que a Joana fazia pelo Francisco, uma criatura muito perfeita, sem dúvida, mas afinal uma criatura!...
[77 vº] Diverti-me mesmo a compor uma carta-convite, para a comparar com a dela. Eis como a concebi:
CARTA-CONVITE PARA AS NÚPCIAS DA IRMÃ TERESA DO MENINO JESUS E DA SANTA FACE
O Deus Todo-Poderoso, Criador do Céu e da Terra, Soberano Dominador do mundo, e a gloriosíssima Virgem Maria, Rainha da Corte celeste, têm o gosto de vos anunciar o casamento do seu augusto Filho, Jesus, Rei dos reis e Senhor dos senhores, com a Menina Teresa Martin, agora Dama e Princesa dos reinos trazidos em dote pelo seu divino Esposo, a saber: a Infância de Jesus e a sua Paixão, sendo seus títulos de nobreza: do Menino Jesus e da Santa Face.
O Senhor Luís Martin, Proprietário e Dono dos Senhorios do Sofrimento e da Humilhação, e a Senhora Martin, Princesa e Dama de honor da Corte celeste, têm o gosto de vos anunciar o casamento da sua filha Teresa, com Jesus o Verbo de Deus, segunda Pessoa da Adorável Trindade que, pela actuação do Espírito Santo se fez Homem e Filho de Maria, a Rainha dos Céus.
Não tendo podido convidar-vos para a bênção Nupcial que lhes foi dada na montanha do Carmelo, no dia 8 de Setembro de 1890 (tendo sido admitida apenas a corte celeste), estais, no entanto, convidados para comparecer na Torna-Boda, que terá lugar Amanhã, Dia da Eternidade, em cujo dia, Jesus, Filho de Deus, virá sobre as Nuvens do Céu, no esplendor da sua Majestade, para julgar os Vivos e os Mortos.
Sendo a hora incerta, sois convidados a estar preparados e a vigiar.
[78 rº] Agora, minha querida Madre, que me falta dizer-vos? Ah! pensava ter terminado, mas nada vos disse ainda da minha alegria por ter conhecido a nossa Santa Madre Genovena. Esta é uma graça indescritível. Pois bem, Deus, que já me tinha concedido tantas, quis que vivesse com uma Santa, de maneira nenhuma inimitável, mas santificada por virtudes escondidas e ordinárias...
Várias vezes recebi dela grandes consolações, especialmente num domingo. Indo, como habitualmente, fazer-lhe uma breve visita, encontrei duas Irmãs ao pé da Madre Genovena. Olhei para ela a sorrir, e preparava-me para sair, porque não podemos estar três ao pé de uma doente; mas ela, olhando-me com ar inspirado, disse-me: - «Esperai, minha filhinha. Vou apenas dizer-vos uma palavrinha. Todas as vezes que cá vindes, pedis-me que vos dê um ramalhete espiritual. Pois bem, hoje vou dar-vos este: Servi a Deus com paz e com alegria. Lembrai-vos, minha filha, de que o nosso Deus é o Deus da paz».
Depois de lhe ter agradecido com simplicidade, saí comovida até às lágrimas, e convencida de que Deus lhe tinha revelado o estado da minha alma. Naquele dia encontrava-me numa extrema provação, quase triste, numa noite tal, que até duvidava se Deus me amava. Por isso, minha querida Madre, bem adivinhais a alegria e a consolação que senti!...
[78 vº] No Domingo seguinte, quis saber que revelação tinha tido a Madre Genovena. Garantiu-me que não tinha recebido nenhuma. Então a minha admiração foi ainda maior, vendo em que eminente grau Jesus vivia nela e a fazia agir e falar. Ah! essa santidade parece-me a mais verdadeira, a mais santa, e é a que desejo, pois não se encontra nela nenhuma ilusão...
No dia da minha Profissão, fiquei também muito consolada, ao ouvir da boca da Madre Genovena que tinha passado pela mesma provação que eu, antes de pronunciar os votos...
Lembrai-vos, minha querida Madre, das consolações que encontrámos junto dela, aquando dos nossos grandes sofrimentos? Enfim, a recordação que a Madre Genovena deixou no meu coração é uma recordação perfumada...
No dia da sua partida para o Céu, senti-me particularmente impressionada. Era a primeira vez que assistia a uma morte. Na verdade, esse espectáculo era maravilhoso... Estava mesmo ao pé da cama da santa muribunda; via perfeitamente os seus mais leves movimentos. Parecia-me que, durante as duas horas que ali passei, a minha alma se deveria sentir cheia de fervor; pelo contrário, tinha-se apoderado de mim uma espécie de insensibilidade; mas no momento exacto em que a nossa santa Madre Genovena nascia para o Céu, a minha disposição interior inverteu-se num abrir e fechar de olhos. Senti-me cheia de uma alegria e de um fervor indescritíveis. Era como se a Madre Genovena me tivesse dado uma parte da felicidade de que gozava, pois estou bem persuadida de que foi direita ao Céu...
Enquanto ela ainda vivia, disse-lhe um dia: - «Ó minha Madre, vós não ireis para o Purgatório!». - «Assim o espero!» - respondeu-me com doçura... Ah! certamente, Deus não pôde defraudar uma esperança tão repleta de humildade. Todas as graças que recebemos, assim o provam.
Todas as Irmãs se apressaram a implorar alguma relíquia. Vós sabeis, minha querida Madre, a que tenho a dita de possuir. Durante a agonia da Madre Genovena, notei uma lágrima cintilando-lhe nas pálpebras, como um diamante. Essa lágrima, a última de todas as que derramou, não caiu; vi-a ainda a brilhar no coro, sem que ninguém pensasse em recolhê-la. Então, pegando num paninho fino, ousei aproximar-me à noite, sem ser vista, e recolhi, como relíquia, a última lágrima de uma Santa... Desde então tenho-a trazido sempre na [79 rº] bolsinha onde estão encerrados os meus votos.
Não dou importância aos meus sonhos. Aliás, raramente tenho sonhos simbólicos, e até me pergunto como pode ser que, estando todo o dia a pensar em Deus, já não me ocupe com Ele durante o sono... Ordinariamente sonho com bosques, flores, regatos, com o mar, e quase sempre vejo criancinhas bonitas, apanho borboletas e pássaros como nunca vi. Como vedes, minha Madre, se os meus sonhos têm uma aparência poética, estão longe de ser místicos...
Uma noite, depois da morte da Madre Genovena, tive um sonho mais consolador. Sonhei que ela estava a fazer o seu testamento, dando a cada Irmã uma coisa que lhe tinha pertencido. Quando chegou a minha vez, pensava não receber mais nada, pois nada mais lhe restava. Mas, soerguendo-se, disse-me por três vezes, com um acento penetrante: - «A vós, deixo-vos o meu coração».
Um mês depois da partida da nossa santa Madre, declarou-se a gripe na Comunidade. Só eu e mais duas irmãs ficámos de pé. Nunca poderei dizer tudo quanto vi, o que me pareceu a vida e tudo o que passa...
O dia em que fiz 19 anos foi festejado com a morte de uma Irmã. Pouco depois seguiram-na outras duas. Nessa altura estava eu sozinha com o cargo da sacristia, por estar muito gravemente doente a primeira do ofício. Era eu que tinha de preparar os funerais, abrir as grades do coro para a missa, etc. Deus deu-me, nessa altura, muitas graças de fortaleza. Pergunto-me agora a mim própria, como consegui ficar sem medo tudo o que fiz. A morte reinava por toda a parte. As mais doentes eram tratadas por aquelas que mal se arrastavam. Logo que uma Irmã dava o último suspiro, éramos obrigadas a deixá-la sozinha.
Uma manhã, ao levantar-me, tive o pressentimento de que a Ir. Madalena tinha morrido. O dormitório estava às escuras. Ninguém saía das celas. Por fim, decidi-me [79 vº] a entrar na da Ir. Madalena, cuja porta estava aberta. Vi-a, efectivamente, vestida e deitada no enxergão, e não tive o menor susto. Vendo que não tinha vela, fui-lha buscar, bem como uma coroa de rosas.
Na noite da morte da Madre Sub-prioresa, fiquei só com a enfermeira. É impossível imaginar o triste estado da Comunidade nessa altura. Só as que andavam de pé é que poderão fazer uma ideia. Mas no meio desse abandono, eu sentia que Deus velava por nós. Era sem sacrifício que as muribundas passavam para uma vida melhor. Logo depois de morrerem, uma expressão de alegria e de paz transparecia nas suas feições; parecia um sono aprasível. E era-o verdadeiramente, pois, uma vez passada a aparência deste mundo, elas acordarão para gozar eternamente as delícias reservadas aos eleitos...
Durante todo o tempo em que a Comunidade assim foi provada, pude ter a inefável consolação de receber todos os dias a Sagrada Comunhão... Ah! como era ditoso!... Jesus mimoseou-me durante muito tempo, mais que às suas fiéis esposas, pois permitiu que m´O dessem, sem que as outras tivessem a felicidade de O receber. Sentia-me também muito feliz por tocar nos vasos sagrados e por preparar os corporais destinados a receber Jesus. Dava-me conta de que precisava de ser muito fervorosa, e lembrava-me muita vezes desta frase dirigida a um santo diácono: «Sede santo, vós que tocais nos vasos do Senhor».
Não posso dizer que tenha recebido muitas vezes consolações durante as minhas acções de graças; é talvez o momento em que menos as tenho... Acho muito natural, já que me ofereci a Jesus, não como uma pessoa que deseja receber a sua visita para consolação própria, mas, pelo contrário, para dar prazer Àquele que se dá a mim.
Imagino a minha alma como um terreno livre, e peço à Santíssima Virgem que tire os escombros que o possam impedir [80 rº] de estar livre; em seguida suplico-Lhe que prepare ela própria uma vasta tenda digna do Céu, que a ornamente com os seus próprios adereços, e depois convido os Santos e os Anjos para fazerem um concerto magnífico.
Parece-me que, quando Jesus desce ao meu coração, fica contente por se achar tão bem recebido, e eu fico contente também... Tudo isto não impede que as distracções e o sono me venham visitar; mas, ao sair da acção de graças, vendo que a fiz tão mal, tomo a resolução de ficar todo o resto do dia em acção de graças...
Como vedes, minha querida Madre, estou longe de ser conduzida pelo caminho do temor. Sei encontrar sempre maneira de ficar contente e aproveitar as minhas misérias... Certamente isto não desagrada a Jesus, porque Ele parece encorajar-me por este caminho.
Um dia, contrariamente ao meu costume, sentia-me um pouco perturbada ao ir á comunhão. Parecia-me que Deus não estava contente comigo, e dizia para mim mesma: «Ah! Se hoje só receber metada de uma hóstia, ficarei desgostosa, pois vou pensar que Jesus vem ao meu coração contra a vontade». Aproximo-me e... Oh! que felicidade! Pela primeira vez na minha vida, vejo o sacerdote pegar em duas hóstias bem separadas e dar-mas! ... Vós compreendeis a minha alegria e as doces lágrimas que derramei perante tão grande misericórdia...
No ano seguinte à minha Profissão, isto é, dois meses antes da morte da Madre Genovena, recebi grandes graças durante o retiro. Ordinariamente, os retiros pregados são-me ainda mais penosos que os que faço sozinha; mas nesse ano foi diferente. Tinha feito uma novena preparatória com muito fervor, apesar do sentimento íntimo que tinha, pois me parecia que o pregador não seria capaz de me compreender, sendo indicado sobretudo para fazer bem aos grandes pecadores, e não [80 vº] às almas religiosas. Deus, querendo demonstrar-me que era só Ele o Director da minha alma, serviu-se precisamente daquele Padre, que não foi apreciado senão por mim...
Tinha então grandes provações interiores de todas as espécies (até me interrogar, por vezes, se haveria Céu). Estava resolvida a nada dizer das minhas disposições íntimas, por não saber como as exprimir. Mas, mal entrei no confessionário, senti a alma dilatar-se. Depois de ter dito umas poucas palavras, fui compreendida de uma maneira maravilhosa, e até adivinhada... A minha alma era como um livro, no qual o Padre lia melhor que eu mesma...
Lançou-me a todo o pano sobre as ondas da confiança e do amor, que me atraíam com tanta força, mas sobre as quais não me atrevia a navegar... Disse-me que as minhas faltas não contristavam a Deus, que, estando no seu lugar, me dizia da sua parte que estava muito contente comigo...
Oh! como fiquei contente ao ouvir estas consoladoras palavras!... Nunca tinha ouvido dizer que as faltas podiam não contristar a Deus. Esta garantia cumulou-me de alegria; ela fez-me suportar pacientemente o exílio da vida... Sentia bem no meu íntimo que era verdade, porque Deus é mais terno que uma mãe. Ora, vós, minha querida Madre, não estais sempre pronta a perdoar-me as pequenas indelicadezas que involuntariamente tenho para convosco?...
Quantas vezes não fiz essa consoladora experiência!... Nenhuma repreenção me teria impressionado tanto como uma só das vossas carícias. Sou de um carácter tal, que o temor me faz recuar. Com o amor não avanço apenas, mas voo...
Ó minha Madre! foi sobretudo a partir do dia da vossa eleição que voei pelos caminhos do amor... Nesse dia, a Paulina tornou-se o meu Jesus vivo... Pela segunda vez tornou-se minha «Mamã!...».
[81 rº] Desde há muito tempo, tenho a felicidade de contemplar as maravilhas que Jesus opera através da minha querida Madre. Vejo que só o sofrimento pode criar as almas, e mais do que nunca me revelam a sua profundidade estas sublimes palavras de Jesus: «Em verdade, em verdade vos digo, se o grão de trigo lançado à terra não morrer, fica sozinho; mas se morrer, dará muito fruto».
Que abundante colheita não obtivestes!... Semeastes nas lágrimas, mas, dentro em breve, vereis o fruto dos vossos trabalhos, e voltareis cheio de alegria, trazendo os feixes nas mãos. Ó minha Madre! entre esses feixes floridos, a Florzinha branca mantém-se escondida; mas no Céu terá voz para cantar a vossa ternura e as virtudes que vos vê praticar todos os dias na sombra e no silêncio da vida do exílio...
Sim, de há dois anos para cá, compreendi muitos mistérios que até então me estavam ocultos. Deus mostrou-me a mesma misericórdia que mostrou ao rei Salomão. Não quis que eu tivesse um único desejo que não fosse satisfeito; não só os meus desejos de perfeição, mas até aqueles cuja vaidade compreendia, sem a ter experimentado.
Tendo-vos considerado sempre, minha querida Madre, como meu ideal, desejava parecer-me convosco em tudo. Vendo-vos pintar belos quadros e compor encantadoras poesias, dizia para comigo: - «Ah! como ficaria contente, se soubesse pintar e exprimir os meus pensamentos em versos e também fazer bem às almas!...». Não queria pedir esses dons naturais; e os meus desejos ficavam escondidos no fundo do meu coração. Jesus, escondido também neste pobre coraçãozinho, quis mostrar-lhe que tudo é vaidade e aflição de espírito debaixo do sol...
Com grande admiraçã das Irmãs, mandaram-me pintar, e Deus permitiu que eu soubesse aproveitar das lições que me dava a minha querida Madre... Quis ainda [81 vº] que, a seu exemplo, conseguisse fazer poesias, compondo trechos que acharam bonitos...
Assim como Salomão, voltando-se para as obras das suas mãos, com as quais se tinha cansado tão inutilmente, viu que tudo era vaidade e aflição de espírito, também eu reconheci por EXPERIÊNCIA que a felicidade não consiste senão em se esconder, em permanecer na ignorância das coisas criadas. Compreendi que, sem o amor, todas as obras são nada, mesmo as mais espectaculares, como ressuscitar mortos ou converter povos...
Em vez de me fazerem mal e de me levarem à vaidade, os dons que Deus me prodigalizou (sem lhos ter pedido) conduzem-me a Ele, vejo que só Ele é imutável, que só Ele pode satisfazer os meus imensos desejos...
Há ainda outros desejos de outro género, que aprouve a Jesus satisfazer-me; desejos infantis, parecidos com aqueles da neve da minha Tomada de Hábito. Sabeis, minha querida Madre, quanto gosto de flores. Fazendo-me prisioneira aos 15 anos, renunciei para sempre à felicidade de correr pelos campos esmaltados com os tesouros da Primavera. Pois bem: nunca tive tantas flores como desde que entrei para o Carmelo!... É costume os noivos oferecerem muitas vezes ramos às suas noivas. Jesus não se esqueceu disso. Enviou-me em profusão molhos de escovinhas, margaridas gigantes, papoilas, etc..., todas as flores que mais me encantam.
Havia uma florzinha, chamada nigela dos trigos, que não tinha ainda encontrado desde que mudámos para Liseux. Desejava muito voltar a vê-la, essa flor da minha infância, que colhi tantas vezes nos campos de Alençon. E foi no Carmelo que me veio sorrir e mostrar que, nas mais pequenas coisas como nas grandes, Deus dá o cêntuplo já nesta vida às almas que por seu amor tudo deixaram.
Mas o mais íntimo dos meus desejos, o maior de todos, que pensava nunca [82 rº] ver realizar-se, era a entrada da minha querida Celina para o mesmo Carmelo que nós... Esse sonho parecia-me inverosímil: viver sob o mesmo tecto, partilhar as alegrias e as dores da companheira da minha infância. Por isso, tinha feito completamente o meu sacrifício; tinha confiado a Jesus o futuro da minha querida irmã, consentindo vê-la partir para o fim do mundo, se fosse preciso.
A única coisa que não podia aceitar era que não fosse esposa de Jesus, pois, amando-a tanto como a mim mesma, era-me impossível vê-la dar o coração a um mortal. Tinha já sofrido muito, ao saber que ela estava exposta no mundo a perigos que me tinham sido desconhecidos. Posso dizer que, desde que entrei para o Carmelo, a minha afeição pela Celina era um amor tanto de mãe como de irmã...
Um dia em que ela tinha de ir a um sarau, fiquei tão preocupada, que supliquei a Deus que a impedisse de dançar, e até (contra o meu costume) derramei uma torrente de lágrimas. Jesus dignou-se atender-me. Não permitiu que a sua noivazinha pudesse dançar nessa noite (apesar de não ficar embaraçada para o fazer graciosamente quando era preciso). Tendo sido convidada sem poder recusar-se, o seu par sentiu-se totalmente incapaz de a fazer dançar. Com grande confusão sua, foi obrigado a andar simplesmente para a reconduzir ao lugar, e depois esquivou-se e não reapareceu em todo o sarau.
Esta aventura, única no género, fez-me crescer na confiança e no amor d´Aquele que, gravando o seu Sinal na minha fronte, o imprimira ao mesmo tempo na da minha querida Celina...
No dia 29 de Julho do ano passado, Deus, quebrando as amarras do seu incomparável servidor, e chamando-o à recompensa eterna, quebrou ao mesmo tempo as que retinham no mundo a sua querida noiva. Ela tinha cumprido a sua missão. Encarregada de nos representar a todas junto do nosso pai tão ternamente amado, cumprira essa missão como um anjo... E os anjos não ficam [82 vº] na terra; uma vez que cumpriram a vontade de Deus, voltam logo para junto d´Ele; é por isso que têm asas...
Também o nosso anjo agitou as suas asas brancas. Estava pronto para voar para bem longe para encontrar Jesus. Mas Jesus fê-lo voar para bem perto... Contentou-se com aceitar o grande sacrifício, que foi muito doloroso para a Teresinha... Durante dois anos, a sua Celina tinha-lhe ocultado um segredo. Ah! quanto não tinha ela sofrido também!...
Por fim, do alto do Céu, o meu querido Rei, que na terra não gostava de demoras, apressou-se a tratar dos negócios tão enrendados da sua Celina, e no dia 14 de Setembro ela veio juntar-se a nós!...
Um dia em que as dificuldades pareciam inseparáveis, disse a Jesus durante a acção de graças: «Sabeis, meu Deus, quanto desejo saber se o Papá foi direitinho para o Céu, Não vos peço que me faleis, mas dai-me um sinal. Se a irmã A. de J. consentir na entrada de Celina, ou não levantar obstáculo, será essa a resposta de que o Papá foi direitinho ter convosco».
Como sabeis, minha querida Madre, esta Irmã achava que três já éramos demais, e por conseguinte não queria admitir outra. Mas Deus, que tem na sua mão o coração das criaturas e o inclina como Ele quer, mudou as disposições dessa Irmã. A primeira pessoa que encontrei depois da acção de graças foi ela. Chamou-me com amabilidade, disse-me que subisse à vossa cela, e falou-me da Celina com as lágrimas nos olhos...
Ah! quantas razões não tenho para agradecer a Jesus, que soube satisfazer todos os meus desejos!...
Agora já não tenho nenhum desejo, a não ser o de amar a Jesus até à loucura... Os meus desejos infantis desvaneceram-se. É certo que ainda gosto de enfeitar com flores o altar do Menino Jesus; mas desde que me deu a Flor que desejava, a minha querida Celina, não desejo mais nenhuma: é a ela que Lhe [83 rº] ofereço como o meu mais lindo ramalhete...
Também não desejo o sofrimento nem a morte, embora os ame a ambos; é só o amor que me atrai... Desejei-os durante muito tempo. Possuí o sofrimento, e pensei abordar à praia do Céu; pensei que a Florzinha seria colhida na sua primavera... Agora apenas me guia o abandono. Não tenho nenhuma outra bússola!...
Não posso pedir mais nada com ardor, excepto o cumprimento perfeito da vontade de Deus sobre a minha alma, sem que as criaturas possam pôr obstáculos. Posso dizer estas palavras do Cântico Espiritual do N. Pai S. João da Cruz:
«Bebi do meu Amado na adega interior; quando saía por todo aquele prado, já nada conhecia, e o rebanho deixei que antes seguia. De alma me consagrei ao seu serviço, e todo o meu haver. E já não guardo a grei nem tenho outro mister, pois já somente amar é meu viver!...»
Ou ainda estas:
«Faz obra tal o Amor, depois que o conheci que, se há bem ou mal em mim, tudo faz de um só sabor, e a alma transforma em si».
Ó minha querida Madre! como é doce o caminho do Amor! Pode-se cair, sem dúvida, podem-se cometer infidelidades; mas sabendo o amor tirar proveito de tudo, bem depressa consumiu tudo o que pode desagradar a Jesus, deixando apenas uma humilde e profunda paz no fundo do meu coração...
Ah! quantas luzes não extraí das obras do Nosso Pai S. João da Cruz!... Na idade de 17 ou 18 anos, não tinha outro alimento espiritual. Mas mais tarde todos os livros me deixaram na aridez, e estou ainda nesse estado. Se abro um livro escrito por um autor espiritual (mesmo o mais belo, o mais comovedor), sinto logo oprimir-se-me o coração, e leio, por assim dizer, sem compreender; e, se compreendo, o meu entendimento para, sem poder meditar...
Nesta impotência, a Sagrada Escritura e a Imi[83 vº]tação vêm em meu auxílio. Encontro nelas um alimento sólido e muito puro. Mas é sobretudo o Evangelho que me vale durante as minhas orações. Nele encontro tudo o que é necessário à minha pobre alminha. Nele descubro sempre novas luzes, sentidos escondidos e misteriosos...
Compreendo, e sei por experiência, que «o reino de Deus está dentro de nós». Jesus não tem necessidade nenhuma de livros nem de doutores para instruir as almas. Ele, o Doutor dos doutores, ensina sem ruído de palavras. Nunca O ouvi falar, mas sei que Ele está em mim. Ele guia-me e inspira-me a cada instante o que devo dizer ou fazer. Precisamente no momento em que delas tenho necessidade, descubro luzes que ainda não tinha visto. Não é durante a oração que elas se manifestam mais; a maior parte das vezes é no meio das ocupações do dia.
Ó minha querida Madre! depois de tantas graças, não poderei eu cantar com o salmista: «O Senhor é bom, é eterna a sua misericórdia?». Parece-me que se todas as criaturas tivessem as mesmas graças que eu, Deus não seria temido por ninguém, mas amado até à loucura, e que por amor, e não a tremer, nunca nenhuma alma consentiria em contristá-lo!...
Compreendo, porém, que as almas não podem ser todas semelhantes; é preciso que as haja de diferentes tipos, a fim de honrarem de maneira especial cada uma das perfeições de Deus. A mim deu-me a sua Misericórdia infinita, e é através dela que contemplo e adoro as demais perfeições divinas. Assim, todas se me apresentam resplandecentes de amor. A própria Justiça (e talvez mais ainda que qualquer outra) me parece revestida de amor...
Que doce alegria pensar que Deus é Justo, isto é, que tem em conta as nossas fraquezas, que conhece perfeitamente a fragilidade da nossa natureza! De que terei medo, então? Ah! o Deus infinitamente justo que se dignou [84 rº] perdoar com tanta bondade os pecados do filho pródigo, não deverá ser justo também para comigo que «estou sempre com Ele»?...
Este ano, no dia 9 de Junho, festa da Santíssima Trindade, recebi a graça de compreender mais do que nunca quanto Jesus deseja ser amado.
Pensei nas almas que se oferecem como vítimas à Justiça de Deus a fim de desviarem e de atraírem sobre elas os castigos reservados aos culpados. Esse oferecimento parecia-me belo e generoso, mas estava longe de me sentir impelida a fazê-lo. «Ó meu Deus! - exclamei do fundo do meu coração – só haverá a vossa Justiça para receber almas que se imolam como vítimas?... Não tem também necessidade delas o vosso Amor Misericordioso? Em toda a parte é desconhecido e rejeitado. Os corações, aos quais o quereis oferecer, voltam-se para as criaturas pedindo-lhes a felicidade com o seu miserável afecto, em vez de se lançarem nos vossos braços e de aceitarem o vosso Amor infinito...
«Ó meu Deus! o vosso amor desprezado vai ficar no vosso coração? Estou convencida de que se encontrásseis almas que se oferecem como vítimas de holocausto ao vosso Amor, Vós as consumiríeis rapidamente. Creio que ficaríeis contente por não reprimirdes as ondas de infinita ternura que há em Vós... Se a vossa Justiça gosta de se aliviar, ela que só se estende sobre a terra, quanto mais não desejará o vosso Amor Misericordioso abrasar as almas, pois a vossa Misericórdia eleva-se até aos Céus... Ó meu Jesus! que seja eu essa feliz vítima! Consumi o vosso holocausto com o fogo do vosso Divino Amor!...».
Minha querida Madre, vós que me permitistes oferecer-me deste modo a Deus, sabeis as ondas, ou antes, os oceanos de graças que vieram inundar-me a alma... Ah! desde esse dia feliz, parece-me que o Amor me penetra e me envolve. Parece-me que a cada instante este Amor Misericordioso me renova, purifica a minha alma e não deixa nela nenhum vestígio de pecado. Por isso, [84 vº] não posso temer o Purgatório... Sei que por mim mesma não mereceria sequer entrar naquele lugar de expiação, já que só as almas santas aí terão acesso; mas sei também que o Fogo do Amor é mais santificante que o do Purgatório. Sei que Jesus não pode desejar para nós sofrimentos inúteis, e que não me inspiraria os desejos que sinto se não mos quisesse satisfazer...
Oh! como é doce o caminho do Amor!... Quanto desejo aplicar-me a fazer sempre com o maior abandono a vontade de Deus!...
Eis, minha querida Madre, tudo o que vos posso dizer da vida da vossa Teresinha. Sabeis melhor por vós mesma o que ela é e o que Jesus fez por ela. Por isso me perdoareis por ter abreviado tanto a história da sua vida religiosa...
Como acabará esta «História de uma Florzinha branca»? Talvez a Florzinha vá ser colhida na sua frescura; ou talvez seja transplantada para outras margens... Ignoro-o. Mas do que estou certa é de que a Misericórdia de Deus a acompanhará sempre; é de que ela nunca cessará de bendizer a querida mãe que a entregou a Jesus. Eternamente se alegrará por ser uma das flores da sua coroa... Eternamente cantará com esta querida Madre o cântico, sempre novo, do Amor...
[85 vº] EXPLICAÇÃO DOS BRASÕES
O brasão JHS é o que Jesus se dignou trazer em dote à sua pobre esposazinha. A órfã da Beresina tornou-se Teresa do MENINO JESUS da SANTA FACE. São esses os seus títulos de nobreza, a sua riqueza e a sua esperança.
A videira que separa em dois o brasão, é ainda a figura d´Aquele que se dignou dizer-nos: «Eu sou a Videira e vós os ramos. Quero que me produzais muito fruto». Os dois ramos que contornam, um a Santa Face, outro o Menino Jesus, são a imagem de Teresa, que não tem senão um desejo aqui em baixo: o de se oferecer como um cachinho de uvas para refrescar Jesus Menino, para O divertir, para se deixar espremer por Ele conforme os seus caprichos e poder também matar a sede ardente que sentiu durante a sua paixão.
A harpa representa ainda Teresa, que quer, sem cessar, cantar a Jesus melodias de amor.
O brasão FMT é o de Maria-Francisca-Teresa, a Florzinha da Santíssima Virgem. Por isso esta Florzinha está representada a receber os raios benfazejos da doce Estrela da Manhã.
A terra verdejante representa a família abençoada, no seio da qual a Florzita cresceu.
Mais ao longe, vê-se uma montanha, que representa o Carmelo. Foi este o lugar bendito que Teresa escolheu para representar nas suas armas o dardo inflamado de amor, que lhe há-de merecer a palma do martírio, esperando poder dar verdadeiramente o seu sangue por Aquele a quem ela ama. Porque, para corresponder a todo o amor de Jesus, ela queria fazer por Ele o que Ele fez por ela...
Mas Teresa não se esquece de que é apenas uma frágil cana; por isso a colocou no seu brazão.
O triângulo luminoso representa a adorável Trindade, que não cessa de derramar os seus dons inestimáveis na alma da pobre Teresinha; e assim, no seu reconhecimento, nunca esquecerá esta divisa: «O Amor só com Amor se paga».