3 ANOS DOLOROSOS (1881 - 1883)

3 ANOS DOLOROSOS (1881 - 1883)
Tinha oito anos e meio quando a Leónia saiu do colégio e eu a fui substituir na Abadia. Ouvi dizer muitas vezes que o tempo passado no colégio é o melhor e o mais agradável da vida, mas, para mim, não foi assim: os cinco anos que lá passei foram os mais tristes da minha vida. Se não tivesse tido comigo a minha querida Celina, não teria podido lá ficar um único mês sem cair doente... A pobre Florzinha estava habituada a enterrar as suas frágeis raízes numa terra escolhida, feita expressamente para ela, e por isso, parece-lhe muito duro ver-se no meio de flores de todas as espécies, com raízes muitas vezes bem pouco delicadas, e ser obrigada a procurar numa terra comum a seiva necessária à sua subsistência!...
Minha querida Madre, tínheis-me ensinado tão bem que, ao entrar no colégio, era a mais adiantada das crianças da minha idade. Fui colocada numa [22 vº] turma de alunas todas mais velhas do que eu. Uma delas, com 13 ou 14 anos, era pouco inteligente mas, apesar disso, sabia enganar as alunas e até as professoras. Vendo-me tão nova, quase sempre a primeira da turma e querida de todas as religiosas, sentiu por isso, sem dúvida, uma inveja bem compreensível numa aluna interna, e fez-me pagar de mil maneiras os meus pequenos sucessos...
Com a minha natureza tímida e delicada, não me sabia defender, e conformava-me com chorar sem dizer nada, não me queixando nem sequer a vós do que sofria, mas não tinha virtude bastante para me elevar acima dessas misérias da vida, e o meu pobre coraçãozinho sofria muito...
Felizmente, todas as noites voltava ao lar paterno. Então o meu coração expandia-se: saltava para os joelhos do meu Rei, dizendo-lhe as notas que me tinham dado, e o seu beijo fazia-me esquecer todas as minhas penas... Com que alegria anunciei o resultado do primeiro ponto escrito (um ponto de H. Sagrada). Faltava-me um único valor para ter o máximo, pois não soubera o nome do pai de Moisés. Era, portanto, a primeira, e trazia uma bela insígnia de prata. Para me recompensar, o Papá deu-me uma linda moedazinha de quatro soldos, que pus numa caixa que ficou destinada a receber quase todas as quintas-feiras uma nova moeda, sempre do mesmo tamanho... (Era a essa caixa que eu ia tirar quando, em certas festas grandes, queria dar uma esmola do meu bolso para o peditório, ou para a Propagação da Fé, ou para outras obras semelhantes). A Paulina, encantada com o sucesso da sua aluna, deu-lhe de presente um [23 rº] lindo arco para a encorajar a continuar a ser muito estudiosa. A pobre pequena tinha verdadeira necessidade dessas alegrias da família: sem elas, a vida de colégio ter-lhe-ia sido dura demais. 
Todas as tardes de quinta-feira, era feriado. Mas não era como os feriados da Paulina; não estava no belveder com o Papá... Tinha que brincar, não com a minha Celina, do que gostava, quando ficava sozinha com ela, mas com as minhas priminhas e as pequenas Maudelonde. Era para mim um verdadeiro sacrifício. Não sabendo brincar como as outras crianças, não era uma companheira agradável; no entanto, fazia o possível por imitar as outras, sem o conseguir, e aborrecia-me muito, sobretudo quando tinha de passar uma tarde inteira a dançar quadrilhas. A única coisa de que gostava, era de ir ao Jardim da Estrela: então era a primeira em toda a parte, colhendo as flores em abundância e, sabendo encontrar as mais bonitas, excitava a inveja das minhas pequenas companheiras...
Do que gostava ainda, era quando, por acaso, ficava sozinha com a Mariazinha, não tendo a Celina Maudelonde para a arrastar a jogos ordinários. Ela dava-me liberdade para escolher, e eu escolhia um jogo completamente novo: a Maria e a Teresa faziam de dois eremitas, que não tinham senão uma cabana pobre, um pequeno campo de trigo e uma pouca de hortaliça para cultivar. A sua vida passava-se numa contemplação contínua, isto é, um dos eremitas substituía o outro na oração quando tinha de se ocupar da vida activa. Tudo se fazia com uma harmonia, um silêncio e maneiras tão religiosas, que tudo saía perfeito. 
Quando a nossa tia nos vinha buscar para o passeio, o nosso jogo continuava, mesmo na rua. Os dois eremitas rezavam [23 vº] juntos o terço, contando pelos dedos, para não mostrar a devoção ao público indiscreto. Porém, um dia, o eremita mais novo esqueceu-se: tendo recebido um bolo para o lanche, fez, antes de o comer, um grande sinal da cruz, o que fez rir todos os profanos do século...
A Maria e eu estávamos sempre de acordo. Tínhamos, a tal ponto, os mesmos gostos que, numa ocasião, a nossa união de vontades ultrapassou  os limites. Uma tarde, ao regressar da Abadia, disse à Maria: - «Guia-me, que eu vou fechar os olhos». «Também os quero fechar», respondeu-me ela. Dito e feito: sem discutir, cada uma fez a sua vontade... Como íamos pelo passeio, não havia que recear os carros. Após um agradável passeio de alguns minutos, tendo saboreado as delícias de caminhar sem ver, as duas tontinhas caíram juntas por cima de uns caixotes colocados à porta de uma loja, ou melhor, elas fizeram-nos cair. O comerciante saiu, todo zangado, para apanhar a mercadoria. As duas cegas voluntárias bem se tinham levantado sozinhas e caminhavam a passos largos, com os olhos bem abertos, ouvindo as justas repreensões da Joana, que estava tão zangada como o comerciante!... Então, para nos castigar, resolveu separar-nos e, a partir desse dia, a Maria e a Celina iam juntas, e eu ia com a Joana. Isso pôs termo à nossa excessiva união de vontades, e não foi mau para as mais velhas que, ao contrário de nós, nunca estavam de acordo, e discutiam  todo o caminho. Assim, a paz foi completa. 
Ainda não disse nada das minhas relações íntimas com a Celina. Ah! [24 rº] se tivesse de contar tudo, nunca mais acabaria...
Em Lisieux, os papéis tinham-se invertido: a Celina tornara-se um diabinho espertalhão, e a Teresa apenas uma menina muito meiga, mas choramingas em excesso... Isso não impedia que a Celina e a Teresa se amassem cada vez mais. Ás vezes havia algumas pequenas discussões, mas sem importância, e, no fundo, estavam sempre de acordo. Posso afirmar que a minha irmãzinha querida nunca me deu nenhum desgosto; mas, pelo contrário, foi para mim como um raio de sol, alegrando-me e consolando-me sempre... Quem poderá dizer com que  intrepidez ela me defendia na Abadia, quando eu era acusada?...
Preocupava-se tanto com a minha saúde que, às vezes, isso me aborrecia. O que não me aborrecia era vê-la brincar: punha em ordem toda a tropa das nossas bonequinhas e dava-lhes aula como uma hábil professora; só que tinha o cuidado de as suas filhas se portarem sempre bem, enquanto que as minhas eram muitas vezes postas fora por causa do seu mau comportamento...
 Dizia-me todas as coisas novas que acabava de aprender na aula, o que me divertia muito, e considerava-a um poço de ciência. Tinha recebido o título de «filhinha da Celina», e assim, quando estava zangada comigo, a sua maior prova de descontentamento era dizer-me: - «Já não és minha filha. Acabou-se. Hei-de lembrar-me sempre!...». Então só me restava chorar como uma Madalena, suplicando-lhe que me considerasse ainda como sua filhinha. E logo me beijava e me prometia nunca mais se lembrar de nada!... Para me consolar, pegava numa das suas bonecas e [24 vº] dizia-lhe: - «Minha querida, dá um beijo à tua tia».  Uma vez a boneca veio-me beijar tão efusivamente que me meteu os dois bracitos no nariz... A Celina, que não o fizera de propósito, olhava para mim estupefacta, com a boneca pendurada no meu nariz. A tia não demorou muito em repelir os abraços demasiadamente meigos da sobrinha, e pôs-se a rir às gargalhadas, de tão singular aventura. 
O mais engraçado era ver-nos comprar as nossas prendas de Ano Novo. As duas na mesma loja, escondíamo-nos cuidadosamente uma da outra.  Tendo apenas 10 soldos para gastar, precisavamos pelo menos de 5 ou 6 objectos diferentes... a ver quem comprava as coisas mais bonitas. Encantadas com as nossas compras, aguardávamos, com impaciência, o primeiro dia do ano, a fim de nos podermos oferecer mutuamente magníficos presentes. A que acordava primeiro apressava-se a ir desejar à outra feliz Ano Novo. Depois oferecíamo-nos as prendas, e cada qual se extasiava perante os tesouros adquiridos por 10 soldos!...
Estas pequenas prendas davam-nos quase tanto prazer como os belos presentes de Ano Novo do nosso tio. Aliás, não era senão o começo das alegrias. Nesse dia vestíamo-nos depressa, e cada uma punha-se à espreita, para saltar ao pescoço do Papá. Logo que saía do quarto, eram gritos de alegria por toda a casa, e o pobre paizinho mostrava-se feliz por nos ver tão contentes. As prendas que a Maria e a Paulina davam às suas filhinhas não tinham grande valor, mas causavam-lhes também uma grande alegria... Ah! é que, nessa idade, não estávamos embotadas, a nossa alma, em toda a sua frescura, expandia-se como uma flor, feliz por receber o orvalho da manhã... A mesma brisa fazia oscilar as nossas corolas e o que causava alegria ou pena a [25 rº] uma, causava-a ao mesmo tempo à outra.
Sim, as nossas alegrias eram comuns. Senti-o bem no grande dia da Primeira Comunhão da minha querida Celina. Não andava ainda na Abadia, pois só tinha sete anos, mas conservei no meu coração a bem doce recordação da preparação que vós, minha querida Madre, fizestes à Celina.  Todas as noites a púnheis nos vossos joelhos e faláveis-lhe do grande acto que ia realizar. Eu escutava ávida de me preparar também, mas, muitas vezes, dizíeis-me para me ir embora, por ser muito pequena. Então o meu coração ficava muito triste, e pensava que, quatro anos não eram demais para se preparar para receber a Deus...
Uma noite, ouvi-vos dizer que, a partir da Primeira Comunhão era preciso começar uma vida nova. Imediatamente resolvi não esperar por esse dia, mas começá-la ao mesmo tempo que a Celina... Nunca tinha sentido que a amava tanto, como o senti durante os três dias de retiro que fez. Pela primeira vez na minha vida, estava longe dela, não dormia na cama dela... No primeiro dia, tendo-me esquecido de que não ia voltar, tinha guardado um molhinho de cerejas, que o Papá me tinha comprado para o comer com ela; não a vendo chegar, tive um grande desgosto. O Papá consolou-me, dizendo-me que me levaria no dia seguinte à Abadia para ver a minha Celina, e que eu lhe daria outro molho de cerejas!... O dia da Primeira Comunhão da Celina deixou-me uma impressão semelhante à da minha. Ao acordar, de manhã, sozinha na cama grande, senti-me inundada de alegria: - «É hoje!... Chegou o grande dia!...».  - Não me cansava de [25 vº] repetir estas palavras. Parecia-me que era eu que ia fazer a Primeira Comunhão. Creio que recebi grandes graças nesse dia, e considero-o como um dos mais belos da minha vida...
Voltei um pouco atrás, para recordar essa deliciosa e grata lembrança. Agora devo falar da dolorosa provação que veio partir o coração da Teresinha, quando Jesus lhe roubou a sua querida mamã, a sua Paulina, tão ternamente amada!...
Um dia, disse à Paulina que gostaria de ser eremita, de ir com ela para um deserto longínquo; ela respondeu-me que o meu desejo era o seu, e que esperaria que eu fosse suficientemente crescida, para partir. Com certeza que isto não era dito a sério, mas a Teresinha tomara-o a sério. Por isso, qual não foi a sua dor, ao ouvir a sua querida Paulina falar um dia com a Maria da sua próxima entrada para o Carmelo... Não sabia o que era o Carmelo, mas compreendia que a Paulina me ia deixar, para entrar num convento, compreendia que ela não esperaria por mim, e que ia perder a minha segunda Mãe!... Ah! Como poderia exprimir a angústia do meu coração?... Num instante, compreendi o que era a vida. Até então não a vira tão triste, mas ela apareceu-me em toda a sua realidade; vi que não era senão um sofrimento e uma separação contínua. Derramei lágrimas bem amargas, porque não compreendia ainda a alegria do sacrifício. Eu era fraca, tão fraca, que considero uma grande graça o ter podido suportar uma provação que parecia muito superior às minhas forças!... Se tivesse vindo a saber, aos pouquinhos, da partida da minha querida Paulina, talvez não tivesse sofrido tanto, mas, [26 rº] tendo tido conhecimento dela, de surpresa, foi como se uma espada penetrasse no meu coração...
Lembrar-me-ei sempre, minha querida Madre, com que ternura vós me consolastes... Depois explicastes-me a vida do Carmelo que me pareceu muito bela! Recordando tudo o que me tínheis dito, senti que o Carmelo era o deserto onde Deus queria que eu me fosse também esconder... Senti-o tão intensamente que não restou a menor dúvida no meu coração: não era um sonho de criança que se deixa arrastar, mas a certeza de um chamamento divino. Queria ir para o Carmelo, não pela Paulina, mas só por Jesus... Pensei muitas coisas que as palavras não podem exprimir, mas que deixaram uma grande paz na minha alma.
No dia seguinte, confiei o meu segredo à Paulina que, considerando os meus desejos como a vontade do Céu, me disse que brevemente iria com ela visitar a Madre Prioresa do Carmelo, e que devia dizer-lhe o que Deus me fazia sentir... Foi escolhido um domingo para essa solene visita. Fiquei muito embaraçada quando soube que a Maria G. devia ficar comigo, pois ainda era muito pequena para ver as Carmelitas. Contudo, eu tinha de arranjar maneira de ficar sozinha. Eis o que me veio à ideia: disse à Maria que, já que tínhamos o privilégio de estar com a Madre Prioresa, tínhamos de ser muito gentis e educadas; para isso devíamos confiar-lhe os nossos segredos; portanto, cada uma por sua vez devia sair por uns momentos e deixar a outra sozinha. A Maria acreditou na minha palavra e, apesar da sua repugnância em confiar segredos que não tinha, ficámos sozinhas, uma após a outra, junto da nossa Madre.  [26 vº]  Tendo ouvido as minhas grandes confidências, a Madre Maria de Gonzaga acreditou na minha vocação, mas disse-me que não recebiam postulantes de 9 anos e que seria preciso esperar pelos meus 16 anos...
Resignei-me, apesar do meu vivo desejo de entrar o mais depressa possível e de fazer a minha Primeira Comunhão no dia da tomada de Hábito da Paulina... Foi nesse dia que recebi elogios pela segunda vez. A Ir. Teresa de Santo Agostinho, tendo-me vindo ver, não se cansava de dizer que eu era bonita... Eu não esperava vir ao Carmelo para receber louvores, por isso, ao sair do locutório, não me cansava de repetir a Deus que era unicamente por Ele que eu queria ser carmelita. 
Procurei tirar o maior proveito possível da minha querida Paulina durante as poucas semanas que ficou ainda no mundo. Todos os dias, a Celina e eu lhe comprávamos um bolo e rebuçados, pensando que dali a pouco não mais os comeria; estávamos sempre ao lado dela, não lhe deixando um minuto de descanço. Por fim chegou o dia 2 de Outubro, dia de lágrimas e de bênçãos, em que Jesus colheu a primeira das suas flores, que devia ser a mãe das que se lhe viriam juntar poucos anos depois. 
Vejo ainda o local onde recebi o último beijo da Paulina. Depois a nossa tia levou-nos todas à missa, enquanto o Papá subia à montanha do Carmelo para oferecer o seu primeiro sacrifício... Toda a família estava banhada em lágrimas, de maneira que, ao verem-nos entrar na igreja, as pessoas olhavam admiradas para nós, mas isso era-me indiferente e não me impedia de chorar. Julgo que, se tudo desabasse à minha volta, não prestaria nenhuma atenção. Olhava para o lindo céu azul e admirava-me que o sol pudesse brilhar com [27 rº] tanto esplendor quando a minha alma estava inundada de tristeza!... Julgais talvez, minha querida Madre, que exagero a dor que senti?... Dou-me bem conta  de que não deveria se assim tão grande, pois tinha esperança de vos reencontrar no Carmelo; mas a minha alma estava LONGE de estar madura: eu devia passar por bastantes cadinhos antes de atingir a tão almejada meta. 
O dia 2 de Outubro, era o dia fixado para a abertura das aulas na Abadia. Portanto, tive que ir, apesar da minha tristeza... De tarde, a nossa tia veio-nos buscar para irmos ao Carmelo, e vi a minha querida Paulina atrás das grades... Ah! quanto sofri nesse locutório do Carmelo!
Já que estou a escrever a história da minha alma, devo dizer tudo à minha querida Madre, e confesso que os sofrimentos que precederam a sua entrada não foram nada em comparação com os que se lhe seguiram... Todas as quintas-feiras, íamos em família ao Carmelo, e eu, habituada a conversar intimamente com a Paulina, dificilmente obtinha dois ou três minutos no fim da visita. Naturalmente, passava-os a chorar, e ia-me embora com o coração despedaçado. 
Não compreendia que era por delicadeza para com a tia que vós dirigíeis a palavra de preferência à Joana e à Maria, em vez de falardes com as vossas filhinhas... Não compreendia, e dizia no fundo do meu coração: - «Perdi a minha Paulina!!!» É espantoso ver como o meu espírito se desenvolveu no seio do sofrimento. Desenvolveu-se a tal ponto que não tardei a adoeçer. 
A doença que me atingiu vinha, certamente, do demónio. Furioso com a vossa entrada para o Carmelo, quis vingar-se em mim do mal que a nossa família lhe devia causar no futuro; mas ele não sabia que a [27 vº]  doce Rainha do Céu velava pela sua frágil Florzinha, que lhe sorria do alto do seu trono e se apressava a fazer cessar a tempestade, no momento em que a sua Flor se ia quebrar irremediavelmente...
Perto do fim do ano, fui atacada por dores de cabeça contínuas, que quase não me faziam sofrer; podia continuar os estudos, e ninguém se preocupava comigo. Isto durou até à Páscoa de 1883. Tendo o Papá ido a Paris com a Maria e a Leónia, a nossa tia levou-me para casa dela com a Celina. Uma noite, o nosso tio, tendo-me levado para o pé dele, falou-me da mamã, das recordações do passado, com uma bondade que me impressionou profundamente e me fez chorar. Então disse que eu era demasiado sensível, que precisava de muita distração; e resolveu, com a nossa tia, proporcionar-nos diversões durante as férias de Páscoa. Nessa noite, devíamos ir ao Circulo Católico, mas, vendo-me muito cansada, a tia mandou-me deitar. Ao despir-me fui acometida por uma tremura estranha. Pensando que eu tinha frio, a tia envolveu-me em cobertores e botijas de água quente; mas nada pôde diminuir a minha agitação que durou quase toda a noite. O tio, ao regressar do Círculo Católico com as minhas primas e a Celina, ficou muito surpreendido por me encontrar naquele estado, que considerou grave, mas não o quis dizer, para não assustar a nossa tia. No dia seguinte, foi ter com o Dr. Notta, que julgou, como o tio, que eu tinha uma doença muito grave que nunca tinha acometido uma criança tão nova. Toda a gente estava consternada. A tia viu-se obrigada a conservar-me em sua casa, e tratou-me com uma solicitude verdadeiramente maternal. Quando o Papá voltou de Paris com as minhas irmãs mais velhas, a Amanda recebeu-os com uma cara tão triste que a Maria [28 rº] pensou que eu tinha morrido...
Mas essa doença não era para eu morrer; era antes, como a de Lázaro, para Deus ser glorificado... Foi-o, com efeito, pela resignação admirável do meu pobre Paizinho, que julgou que a «filhinha ia enlouquecer, ou então, que ia morrer». Foi-o também pela da Maria!... Ah! o que ela sofreu por minha causa!... Quanto lhe estou reconhecida, pelos cuidados que me prodigalizou tão desinteressadamente... O seu coração ditava-lhe o que me era necessário. E, na verdade, um coração de Mãe é bem mais sábio que o de um médico; sabe adivinhar o que é conveniente para a doença do seu filho.
Esta pobre Maria viu-se obrigada a vir instalar-se em casa do nosso tio, pois nessa altura era impossível transportarem-me para os Buissonnets. Entretanto aproximava-se a tomada de hábito da Paulina. Evitavam falar disso na minha frente, sabendo a pena que eu teria de lá não poder ir; mas eu falava dela muitas vezes, dizendo que estaria suficientemente boa para ir ver a minha querida Paulina. 
Com efeito, Deus não me quis recusar essa consolação, ou melhor, quis consolar a sua querida Noiva, que tanto tinha sofrido com a doença da sua filhinha... Tenho notado que Jesus não quer provar os seus filhos no dia do seu noivado; essa festa deve ser sem nuvens; um antegozo das alegrias do Paraíso. Não o mostrou já 5 vezes?...
Pude, portanto, beijar a minha querida Madre, sentar-me nos seus joelhos e cumulá-la de carícias... Pude contemplá-la tão radiante, sob o branco vestido de noiva... Ah! foi um belo dia, no meio da minha sombria provação. Mas esse dia depressa passou. Pouco depois tive de subir para a carruagem que me levou para bem longe da Paulina..., para bem longe do meu querido Carmelo.
Ao chegar aos Buissonnets, mandaram-me deitar, contra a minha vontade, porque afirmava [28 vº] estar completamente curada e já não precisar de cuidados. Ai de mim! não estava senão no princípio da provação!... No dia seguinte fui atacada como já tinha sido, e a doença tornou-se tão grave que, segundo os cálculos humanos, não me curaria... Não sei como descrever doença tão estranha. Agora estou persuadida de que era obra do demónio, mas, durante muito tempo depois da minha cura acreditei que eu me tinha feito doente de propósito, e isso foi um verdadeiro martírio para a minha alma...
Disse-o à Maria, que me tranquilizou o melhor que pôde, com a sua bondade habitual. Disse-o na confissão, e o meu confessor tentou também tranquilizar-me, dizendo que não era possível fingir estar doente até ao ponto em que eu tinha estado. Deus, que, sem dúvida, me queria purificar e, sobretudo, humilhar, deixou-me neste martírio íntimo até à minha entrada para o Carmelo, onde o Pai das nossas almas me tirou todas as dúvidas, como que a mão, e desde aí fiquei completamente tranquila. 
Não é de admirar que tenha receado ter parecido doente, sem o estar de facto, porque dizia e fazia coisas que não pensava; parecia quase sempre em delírio, dizendo palavras sem nexo e, no entanto, tenho a certeza de nunca ter estado privada, nem sequer por um único instante do uso da minha razão... Parecia muitas vezes desmaiada, sem fazer o mais pequeno movimento. Então teria deixado que me fizessem tudo o que quisessem, mesmo matar. Apesar disso, ouvia tudo o que se dizia à minha volta e lembro-me ainda de tudo...
Aconteceu-me uma vez estar muito tempo sem conseguir abrir os olhos, e abri-los um instante quando estava sozinha... Creio que o demónio recebeu um poder exterior sobre mim, mas [29 rº] que não se podia aproximar da minha alma nem do meu espírito, a não ser para me inspirar terrores muito grandes por certas coisas, por exemplo, por remédios muito simples que em vão procuravam  fazer-me tomar. 
Mas, se Deus permitia ao demónio que se aproximasse de mim, enviava-me também anjos visíveis... A Maria estava sempre ao pé da minha cama tratando-me e consolando-me com a ternura de uma mãe; nunca manifestou o mais pequeno aborrecimento, e, no entanto, eu causava-lhe grande incómodo, não consentindo que se afastasse de mim. Tinha, porém, de ir tomar as refeições com o Papá; mas eu não cessava de a chamar durante todo o tempo em que ela estava ausente. A Vitória, que tomava conta de mim, via-se, por vezes, obrigada a ir buscar a minha querida «mamã», quando eu lhe chamava... Quando a Maria queria sair, tinha que ser para ir à missa ou para ir ver a Paulina; então eu não dizia nada...
O nosso tio e a nossa tia eram também muito bons para comigo. A minha querida tia vinha todos os dias ver-me e trazia-me mil guloseimas. Outras pessoas amigas da família vieram também visitar-me, mas eu suplicava à Maria que lhes dissesse que não queria receber visitas. Era-me desagradável «ver pessoas sentadas à volta da minha cama como cebolas em fila e olhando-me como a um bicho raro». A única visita de que eu gostava era a do nosso tio e da nossa tia. 
A partir da minha doença, não saberei dizer quanto aumentou a minha afeição por eles. Compreendi, melhor que nunca, que eles não eram para nós uns familiares vulgares. Ah! o pobre paizinho tinha muita razão quando nos repetia muitas vezes as palavras que acabo de escrever. Mais tarde ele próprio experimentou que não se enganara, e agora deve proteger e abençoar aqueles que lhe prodigalizaram  cuidados tão dedicados... Eu estou ainda exilada; não sabendo mostrar o meu reconhecimento, não tenho senão um meio para aliviar o meu coração: rezar pelos parentes que amo, que foram e ainda são tão bons para comigo!
A Leónia era também muito boa para comigo, tentando distrair-me o melhor que podia. Eu, às vezes, causava-lhe desgosto, pois ela via bem que a Maria não podia ser substituída junto de mim...
E a minha querida Celina, o que ela não fez pela sua Teresa?... Ao domingo, em vez de ir passear, vinha fechar-se horas inteiras com uma pobre menina que parecia uma idiota. Realmente [29 vº] era preciso amor para não fugir de mim... Ah! minhas queridas irmãzinhas, quanto vos fiz sofrer! Ninguém vos causou tanto desgosto como eu, e ninguém recebeu tanto amor como o que vós me prodigalizastes... Felizmente, terei o Céu para me desforrar: o meu Esposo é muito rico, e tirarei dos seus tesouros de amor para vos pagar cem vezes tudo o que sofrestes por minha causa...
A minha maior consolação, enquanto estive doente, era receber uma carta da Paulina... Lia-a e relia-a até a saber de cor... Uma vez, minha querida Madre, vós mandastes-me uma ampulheta e uma das minhas bonecas vestida de carmelita: descrever a minha alegria, é coisa impossível... O nosso tio não ficou contente. Dizia que, em vez de me fazerem pensar no Carmelo, seria preciso afastá-lo do meu espírito. Mas eu sentia, pelo contrário, que era a esperança de ser um dia carmelita que me fazia viver... O meu prazer era trabalhar para a Paulina.  Fazia-lhe pequenos trabalhos em cartolina e a minha maior ocupação era fazer coroas de margaridas e de miosótis para a Santíssima Virgem. Estávamos no belo mês de Maio; toda a natureza se enfeitava de flores e respirava alegria; só a «Florzinha» definhava e parecia murcha para sempre... Contudo, tinha um Sol ao pé dela: esse Sol era a imagem milagrosa da Santíssima Virgem que tinha falado duas vezes à mamã, e muitas vezes, muitas vezes mesmo, a Florzinha voltava a sua corola para esse Astro bendito...
Um dia vi o Papá entrar no quarto da Maria, onde eu estava deitada; deu-lhe várias moedas de ouro, com uma expressão de grande tristeza e disse-lhe que escrevesse para Paris e mandasse rezar missas a Nossa Senhora das Vitórias para que ela curasse a sua pobre filhinha. Ah! como fiquei emocionada, ao ver a fé e o amor do meu querido Rei! [30 rº] Quereria poder dizer-lhe que estava curada, mas já lhe tinha dado muitas alegrias falsas; não eram os meus desejos que podiam fazer um milagre, pois era preciso um para me curar. Era preciso um milagre, e foi Nossa Senhora das Vitórias quem o fez. 
Um domingo (durante a novena de missas), a Maria saiu para o jardim, deixando-me com a Leónia, que estava a ler ao pé da janela. Passados alguns minutos, pus-me a chamar baixinho: - «Mamã... mamã!» A Leónia, que estava habituada a ouvir-me chamar sempre assim, não me prestou atenção. Isto durou muito tempo. Então chamei com mais força e, por fim, a Maria voltou. Vi-a perfeitamente entrar, mas não podia dizer que a reconhecia, e continuava a chamar cada vez com mais força: - «Mamã!...» Sofria muito com essa luta forçada e inexplicável, e a Maria sofria talvez ainda mais do que eu. Depois de vãos esforços para me mostrar que estava ao pé de mim, pôs-se de joelhos junto da minha cama com a Leónia e a Celina; depois, voltando-se para a Santíssima Virgem, e rezando-lhe com o fervor de uma Mãe que pede a vida do seu filho, a Maria obteve o que desejava...
Não encontrando na terra nenhum auxílio, a pobre Teresinha voltara-se também para a sua Mãe do Céu; pediu-lhe com todo o coração que tivesse finalmente piedade dela... De repente, a Santíssima Virgem pareceu-me bela, tão bela como nunca vira nada tão belo; o seu rosto irradiava uma bondade e uma ternura inefáveis; mas o que me penetrou até ao fundo da alma foi o «encantador sorriso da Santíssima Virgem». Então todos os meus males se desvaneceram. Duas grossas lágrimas brotaram das minhas pálpebras e deslizaram silenciosamente pelas minhas faces; mas eram lágrimas de uma alegria pura... Ah! pensava, a SS. Virgem sorriu-me! Como sou feliz!... [30 vº] Mas nunca o direi a ninguém, porque então a minha felicidade desapareceria. Sem nenhum esforço, baixei os olhos e vi a Maria que olhava para mim com amor; parecia comovida e parecia adivinhar o favor que a Santíssima Virgem me tinha concedido... Ah! era certamente a ela, às suas orações fervorosas, que eu devia a graça do sorriso da Rainha dos Céus. Ao ver o meu olhar fixo na Santíssima Virgem, dissera consigo: - «A Teresa está curada!». Sim, a Florzinha ia renascer para a vida, o Raio luminoso que a tinha reanimado não cessaria os seus benefícios. Não agiu de uma só vez, mas lentamente, suavemente, reergueu a sua Flor e fortaleceu-a de tal maneira que, cinco anos depois, ela expandia-se sobre a fértil montanha do Carmelo. 
Como disse, a Maria tinha adivinhado que a Santíssima Virgem me concedera alguma graça oculta, por isso, quando fiquei só com ela, perguntou-me o que é que eu tinha visto, e não pude resistir às suas interrogações tão ternas e tão insistentes; admirada por ver o meu segredo descoberto sem que o tivesse revelado, confiei-o inteiramente à minha querida Maria...
Pobre de mim! Como o tinha pressentido, a minha felicidade ia desaparecer e transformar-se em amargura. Durante quatro anos a recordação da graça inefável que tinha recebido foi para mim um tormento de alma; não reencontraria a minha felicidade senão aos pés de Nossa Senhora das Vitórias; mas então foi-me dada em toda a plenitude... Voltarei a falar mais tarde desta segunda graça da Santíssima Virgem. Agora devo dizer-vos, minha querida Madre, como a minha alegria se transformou em tristeza. 
A Maria, depois de ter ouvido o relato ingénuo e sincero da «minha graça», pediu-me licença para a contar no Carmelo; eu não podia dizer que não... Na minha primeira visita que fiz a este querido Carmelo, fiquei cheia de alegria por ver a minha Paulina com o hábito da Santíssima Virgem. [31rº] Foi um momento bem agradável para nós as duas... Tinhamos tantas coisas para nos dizermos, que eu não conseguia dizer absolutamente nada; tinha o coração demasiado cheio... A boa Madre Maria de Gonzaga estava lá também, dando-me mil sinais de afeição. Vi ainda outras Irmãs e, diante delas, interrogaram-me sobre a graça que eu tinha recebido, perguntando-me se a Santíssima Virgem trazia o menino Jesus, ou se havia muita luz, etc... Todas estas perguntas perturbaram-me e causaram-me pena; não conseguia dizer senão uma coisa: - «A Santíssima Virgem tinha-me parecido muito bela... e tinha-a visto sorrir-me». Era apenas o seu rosto que me tinha impressionado, por isso, vendo que as Carmelitas imaginavam coisa completamente diferente (tendo começado já os meus tormentos de alma a propósito da minha doença), julguei ter mentido...
Sem dúvida, se tivesse guardado o meu segredo, teria guardado também a minha alegria, mas a Santíssima Virgem permitiu esse tormento para o bem da minha alma; talvez, sem ele, tivesse tido algum pensamento de vaidade, ao passo que, sendo a humilhação o meu quinhão, não podia olhar para mim mesma sem um sentimento de profundo horror... Ah! o que eu sofri, só no céu o poderei dizer!... 
 
Tinha oito anos e meio quando a Leónia saiu do colégio e eu a fui substituir na Abadia. Ouvi dizer muitas vezes que o tempo passado no colégio é o melhor e o mais agradável da vida, mas, para mim, não foi assim: os cinco anos que lá passei foram os mais tristes da minha vida. Se não tivesse tido comigo a minha querida Celina, não teria podido lá ficar um único mês sem cair doente... A pobre Florzinha estava habituada a enterrar as suas frágeis raízes numa terra escolhida, feita expressamente para ela, e por isso, parece-lhe muito duro ver-se no meio de flores de todas as espécies, com raízes muitas vezes bem pouco delicadas, e ser obrigada a procurar numa terra comum a seiva necessária à sua subsistência!...
Minha querida Madre, tínheis-me ensinado tão bem que, ao entrar no colégio, era a mais adiantada das crianças da minha idade. Fui colocada numa [22 vº] turma de alunas todas mais velhas do que eu. Uma delas, com 13 ou 14 anos, era pouco inteligente mas, apesar disso, sabia enganar as alunas e até as professoras. Vendo-me tão nova, quase sempre a primeira da turma e querida de todas as religiosas, sentiu por isso, sem dúvida, uma inveja bem compreensível numa aluna interna, e fez-me pagar de mil maneiras os meus pequenos sucessos...
Com a minha natureza tímida e delicada, não me sabia defender, e conformava-me com chorar sem dizer nada, não me queixando nem sequer a vós do que sofria, mas não tinha virtude bastante para me elevar acima dessas misérias da vida, e o meu pobre coraçãozinho sofria muito...
Felizmente, todas as noites voltava ao lar paterno. Então o meu coração expandia-se: saltava para os joelhos do meu Rei, dizendo-lhe as notas que me tinham dado, e o seu beijo fazia-me esquecer todas as minhas penas... Com que alegria anunciei o resultado do primeiro ponto escrito (um ponto de H. Sagrada). Faltava-me um único valor para ter o máximo, pois não soubera o nome do pai de Moisés. Era, portanto, a primeira, e trazia uma bela insígnia de prata. Para me recompensar, o Papá deu-me uma linda moedazinha de quatro soldos, que pus numa caixa que ficou destinada a receber quase todas as quintas-feiras uma nova moeda, sempre do mesmo tamanho... (Era a essa caixa que eu ia tirar quando, em certas festas grandes, queria dar uma esmola do meu bolso para o peditório, ou para a Propagação da Fé, ou para outras obras semelhantes). A Paulina, encantada com o sucesso da sua aluna, deu-lhe de presente um [23 rº] lindo arco para a encorajar a continuar a ser muito estudiosa. A pobre pequena tinha verdadeira necessidade dessas alegrias da família: sem elas, a vida de colégio ter-lhe-ia sido dura demais. 
Todas as tardes de quinta-feira, era feriado. Mas não era como os feriados da Paulina; não estava no belveder com o Papá... Tinha que brincar, não com a minha Celina, do que gostava, quando ficava sozinha com ela, mas com as minhas priminhas e as pequenas Maudelonde. Era para mim um verdadeiro sacrifício. Não sabendo brincar como as outras crianças, não era uma companheira agradável; no entanto, fazia o possível por imitar as outras, sem o conseguir, e aborrecia-me muito, sobretudo quando tinha de passar uma tarde inteira a dançar quadrilhas. A única coisa de que gostava, era de ir ao Jardim da Estrela: então era a primeira em toda a parte, colhendo as flores em abundância e, sabendo encontrar as mais bonitas, excitava a inveja das minhas pequenas companheiras...
Do que gostava ainda, era quando, por acaso, ficava sozinha com a Mariazinha, não tendo a Celina Maudelonde para a arrastar a jogos ordinários. Ela dava-me liberdade para escolher, e eu escolhia um jogo completamente novo: a Maria e a Teresa faziam de dois eremitas, que não tinham senão uma cabana pobre, um pequeno campo de trigo e uma pouca de hortaliça para cultivar. A sua vida passava-se numa contemplação contínua, isto é, um dos eremitas substituía o outro na oração quando tinha de se ocupar da vida activa. Tudo se fazia com uma harmonia, um silêncio e maneiras tão religiosas, que tudo saía perfeito. 
Quando a nossa tia nos vinha buscar para o passeio, o nosso jogo continuava, mesmo na rua. Os dois eremitas rezavam [23 vº] juntos o terço, contando pelos dedos, para não mostrar a devoção ao público indiscreto. Porém, um dia, o eremita mais novo esqueceu-se: tendo recebido um bolo para o lanche, fez, antes de o comer, um grande sinal da cruz, o que fez rir todos os profanos do século...
A Maria e eu estávamos sempre de acordo. Tínhamos, a tal ponto, os mesmos gostos que, numa ocasião, a nossa união de vontades ultrapassou  os limites. Uma tarde, ao regressar da Abadia, disse à Maria: - «Guia-me, que eu vou fechar os olhos». «Também os quero fechar», respondeu-me ela. Dito e feito: sem discutir, cada uma fez a sua vontade... Como íamos pelo passeio, não havia que recear os carros. Após um agradável passeio de alguns minutos, tendo saboreado as delícias de caminhar sem ver, as duas tontinhas caíram juntas por cima de uns caixotes colocados à porta de uma loja, ou melhor, elas fizeram-nos cair. O comerciante saiu, todo zangado, para apanhar a mercadoria. As duas cegas voluntárias bem se tinham levantado sozinhas e caminhavam a passos largos, com os olhos bem abertos, ouvindo as justas repreensões da Joana, que estava tão zangada como o comerciante!... Então, para nos castigar, resolveu separar-nos e, a partir desse dia, a Maria e a Celina iam juntas, e eu ia com a Joana. Isso pôs termo à nossa excessiva união de vontades, e não foi mau para as mais velhas que, ao contrário de nós, nunca estavam de acordo, e discutiam  todo o caminho. Assim, a paz foi completa. 
Ainda não disse nada das minhas relações íntimas com a Celina. Ah! [24 rº] se tivesse de contar tudo, nunca mais acabaria...
Em Lisieux, os papéis tinham-se invertido: a Celina tornara-se um diabinho espertalhão, e a Teresa apenas uma menina muito meiga, mas choramingas em excesso... Isso não impedia que a Celina e a Teresa se amassem cada vez mais. Ás vezes havia algumas pequenas discussões, mas sem importância, e, no fundo, estavam sempre de acordo. Posso afirmar que a minha irmãzinha querida nunca me deu nenhum desgosto; mas, pelo contrário, foi para mim como um raio de sol, alegrando-me e consolando-me sempre... Quem poderá dizer com que  intrepidez ela me defendia na Abadia, quando eu era acusada?...
Preocupava-se tanto com a minha saúde que, às vezes, isso me aborrecia. O que não me aborrecia era vê-la brincar: punha em ordem toda a tropa das nossas bonequinhas e dava-lhes aula como uma hábil professora; só que tinha o cuidado de as suas filhas se portarem sempre bem, enquanto que as minhas eram muitas vezes postas fora por causa do seu mau comportamento...
 Dizia-me todas as coisas novas que acabava de aprender na aula, o que me divertia muito, e considerava-a um poço de ciência. Tinha recebido o título de «filhinha da Celina», e assim, quando estava zangada comigo, a sua maior prova de descontentamento era dizer-me: - «Já não és minha filha. Acabou-se. Hei-de lembrar-me sempre!...». Então só me restava chorar como uma Madalena, suplicando-lhe que me considerasse ainda como sua filhinha. E logo me beijava e me prometia nunca mais se lembrar de nada!... Para me consolar, pegava numa das suas bonecas e [24 vº] dizia-lhe: - «Minha querida, dá um beijo à tua tia».  Uma vez a boneca veio-me beijar tão efusivamente que me meteu os dois bracitos no nariz... A Celina, que não o fizera de propósito, olhava para mim estupefacta, com a boneca pendurada no meu nariz. A tia não demorou muito em repelir os abraços demasiadamente meigos da sobrinha, e pôs-se a rir às gargalhadas, de tão singular aventura. 
O mais engraçado era ver-nos comprar as nossas prendas de Ano Novo. As duas na mesma loja, escondíamo-nos cuidadosamente uma da outra.  Tendo apenas 10 soldos para gastar, precisavamos pelo menos de 5 ou 6 objectos diferentes... a ver quem comprava as coisas mais bonitas. Encantadas com as nossas compras, aguardávamos, com impaciência, o primeiro dia do ano, a fim de nos podermos oferecer mutuamente magníficos presentes. A que acordava primeiro apressava-se a ir desejar à outra feliz Ano Novo. Depois oferecíamo-nos as prendas, e cada qual se extasiava perante os tesouros adquiridos por 10 soldos!...
Estas pequenas prendas davam-nos quase tanto prazer como os belos presentes de Ano Novo do nosso tio. Aliás, não era senão o começo das alegrias. Nesse dia vestíamo-nos depressa, e cada uma punha-se à espreita, para saltar ao pescoço do Papá. Logo que saía do quarto, eram gritos de alegria por toda a casa, e o pobre paizinho mostrava-se feliz por nos ver tão contentes. As prendas que a Maria e a Paulina davam às suas filhinhas não tinham grande valor, mas causavam-lhes também uma grande alegria... Ah! é que, nessa idade, não estávamos embotadas, a nossa alma, em toda a sua frescura, expandia-se como uma flor, feliz por receber o orvalho da manhã... A mesma brisa fazia oscilar as nossas corolas e o que causava alegria ou pena a [25 rº] uma, causava-a ao mesmo tempo à outra.
Sim, as nossas alegrias eram comuns. Senti-o bem no grande dia da Primeira Comunhão da minha querida Celina. Não andava ainda na Abadia, pois só tinha sete anos, mas conservei no meu coração a bem doce recordação da preparação que vós, minha querida Madre, fizestes à Celina.  Todas as noites a púnheis nos vossos joelhos e faláveis-lhe do grande acto que ia realizar. Eu escutava ávida de me preparar também, mas, muitas vezes, dizíeis-me para me ir embora, por ser muito pequena. Então o meu coração ficava muito triste, e pensava que, quatro anos não eram demais para se preparar para receber a Deus...
Uma noite, ouvi-vos dizer que, a partir da Primeira Comunhão era preciso começar uma vida nova. Imediatamente resolvi não esperar por esse dia, mas começá-la ao mesmo tempo que a Celina... Nunca tinha sentido que a amava tanto, como o senti durante os três dias de retiro que fez. Pela primeira vez na minha vida, estava longe dela, não dormia na cama dela... No primeiro dia, tendo-me esquecido de que não ia voltar, tinha guardado um molhinho de cerejas, que o Papá me tinha comprado para o comer com ela; não a vendo chegar, tive um grande desgosto. O Papá consolou-me, dizendo-me que me levaria no dia seguinte à Abadia para ver a minha Celina, e que eu lhe daria outro molho de cerejas!... O dia da Primeira Comunhão da Celina deixou-me uma impressão semelhante à da minha. Ao acordar, de manhã, sozinha na cama grande, senti-me inundada de alegria: - «É hoje!... Chegou o grande dia!...».  - Não me cansava de [25 vº] repetir estas palavras. Parecia-me que era eu que ia fazer a Primeira Comunhão. Creio que recebi grandes graças nesse dia, e considero-o como um dos mais belos da minha vida...
Voltei um pouco atrás, para recordar essa deliciosa e grata lembrança. Agora devo falar da dolorosa provação que veio partir o coração da Teresinha, quando Jesus lhe roubou a sua querida mamã, a sua Paulina, tão ternamente amada!...
Um dia, disse à Paulina que gostaria de ser eremita, de ir com ela para um deserto longínquo; ela respondeu-me que o meu desejo era o seu, e que esperaria que eu fosse suficientemente crescida, para partir. Com certeza que isto não era dito a sério, mas a Teresinha tomara-o a sério. Por isso, qual não foi a sua dor, ao ouvir a sua querida Paulina falar um dia com a Maria da sua próxima entrada para o Carmelo... Não sabia o que era o Carmelo, mas compreendia que a Paulina me ia deixar, para entrar num convento, compreendia que ela não esperaria por mim, e que ia perder a minha segunda Mãe!... Ah! Como poderia exprimir a angústia do meu coração?... Num instante, compreendi o que era a vida. Até então não a vira tão triste, mas ela apareceu-me em toda a sua realidade; vi que não era senão um sofrimento e uma separação contínua. Derramei lágrimas bem amargas, porque não compreendia ainda a alegria do sacrifício. Eu era fraca, tão fraca, que considero uma grande graça o ter podido suportar uma provação que parecia muito superior às minhas forças!... Se tivesse vindo a saber, aos pouquinhos, da partida da minha querida Paulina, talvez não tivesse sofrido tanto, mas, [26 rº] tendo tido conhecimento dela, de surpresa, foi como se uma espada penetrasse no meu coração...
Lembrar-me-ei sempre, minha querida Madre, com que ternura vós me consolastes... Depois explicastes-me a vida do Carmelo que me pareceu muito bela! Recordando tudo o que me tínheis dito, senti que o Carmelo era o deserto onde Deus queria que eu me fosse também esconder... Senti-o tão intensamente que não restou a menor dúvida no meu coração: não era um sonho de criança que se deixa arrastar, mas a certeza de um chamamento divino. Queria ir para o Carmelo, não pela Paulina, mas só por Jesus... Pensei muitas coisas que as palavras não podem exprimir, mas que deixaram uma grande paz na minha alma.
No dia seguinte, confiei o meu segredo à Paulina que, considerando os meus desejos como a vontade do Céu, me disse que brevemente iria com ela visitar a Madre Prioresa do Carmelo, e que devia dizer-lhe o que Deus me fazia sentir... Foi escolhido um domingo para essa solene visita. Fiquei muito embaraçada quando soube que a Maria G. devia ficar comigo, pois ainda era muito pequena para ver as Carmelitas. Contudo, eu tinha de arranjar maneira de ficar sozinha. Eis o que me veio à ideia: disse à Maria que, já que tínhamos o privilégio de estar com a Madre Prioresa, tínhamos de ser muito gentis e educadas; para isso devíamos confiar-lhe os nossos segredos; portanto, cada uma por sua vez devia sair por uns momentos e deixar a outra sozinha. A Maria acreditou na minha palavra e, apesar da sua repugnância em confiar segredos que não tinha, ficámos sozinhas, uma após a outra, junto da nossa Madre.  [26 vº]  Tendo ouvido as minhas grandes confidências, a Madre Maria de Gonzaga acreditou na minha vocação, mas disse-me que não recebiam postulantes de 9 anos e que seria preciso esperar pelos meus 16 anos...
Resignei-me, apesar do meu vivo desejo de entrar o mais depressa possível e de fazer a minha Primeira Comunhão no dia da tomada de Hábito da Paulina... Foi nesse dia que recebi elogios pela segunda vez. A Ir. Teresa de Santo Agostinho, tendo-me vindo ver, não se cansava de dizer que eu era bonita... Eu não esperava vir ao Carmelo para receber louvores, por isso, ao sair do locutório, não me cansava de repetir a Deus que era unicamente por Ele que eu queria ser carmelita. 
Procurei tirar o maior proveito possível da minha querida Paulina durante as poucas semanas que ficou ainda no mundo. Todos os dias, a Celina e eu lhe comprávamos um bolo e rebuçados, pensando que dali a pouco não mais os comeria; estávamos sempre ao lado dela, não lhe deixando um minuto de descanço. Por fim chegou o dia 2 de Outubro, dia de lágrimas e de bênçãos, em que Jesus colheu a primeira das suas flores, que devia ser a mãe das que se lhe viriam juntar poucos anos depois. 
Vejo ainda o local onde recebi o último beijo da Paulina. Depois a nossa tia levou-nos todas à missa, enquanto o Papá subia à montanha do Carmelo para oferecer o seu primeiro sacrifício... Toda a família estava banhada em lágrimas, de maneira que, ao verem-nos entrar na igreja, as pessoas olhavam admiradas para nós, mas isso era-me indiferente e não me impedia de chorar. Julgo que, se tudo desabasse à minha volta, não prestaria nenhuma atenção. Olhava para o lindo céu azul e admirava-me que o sol pudesse brilhar com [27 rº] tanto esplendor quando a minha alma estava inundada de tristeza!... Julgais talvez, minha querida Madre, que exagero a dor que senti?... Dou-me bem conta  de que não deveria se assim tão grande, pois tinha esperança de vos reencontrar no Carmelo; mas a minha alma estava LONGE de estar madura: eu devia passar por bastantes cadinhos antes de atingir a tão almejada meta. 
O dia 2 de Outubro, era o dia fixado para a abertura das aulas na Abadia. Portanto, tive que ir, apesar da minha tristeza... De tarde, a nossa tia veio-nos buscar para irmos ao Carmelo, e vi a minha querida Paulina atrás das grades... Ah! quanto sofri nesse locutório do Carmelo!
Já que estou a escrever a história da minha alma, devo dizer tudo à minha querida Madre, e confesso que os sofrimentos que precederam a sua entrada não foram nada em comparação com os que se lhe seguiram... Todas as quintas-feiras, íamos em família ao Carmelo, e eu, habituada a conversar intimamente com a Paulina, dificilmente obtinha dois ou três minutos no fim da visita. Naturalmente, passava-os a chorar, e ia-me embora com o coração despedaçado. 
Não compreendia que era por delicadeza para com a tia que vós dirigíeis a palavra de preferência à Joana e à Maria, em vez de falardes com as vossas filhinhas... Não compreendia, e dizia no fundo do meu coração: - «Perdi a minha Paulina!!!» É espantoso ver como o meu espírito se desenvolveu no seio do sofrimento. Desenvolveu-se a tal ponto que não tardei a adoeçer. 
A doença que me atingiu vinha, certamente, do demónio. Furioso com a vossa entrada para o Carmelo, quis vingar-se em mim do mal que a nossa família lhe devia causar no futuro; mas ele não sabia que a [27 vº]  doce Rainha do Céu velava pela sua frágil Florzinha, que lhe sorria do alto do seu trono e se apressava a fazer cessar a tempestade, no momento em que a sua Flor se ia quebrar irremediavelmente...
Perto do fim do ano, fui atacada por dores de cabeça contínuas, que quase não me faziam sofrer; podia continuar os estudos, e ninguém se preocupava comigo. Isto durou até à Páscoa de 1883. Tendo o Papá ido a Paris com a Maria e a Leónia, a nossa tia levou-me para casa dela com a Celina. Uma noite, o nosso tio, tendo-me levado para o pé dele, falou-me da mamã, das recordações do passado, com uma bondade que me impressionou profundamente e me fez chorar. Então disse que eu era demasiado sensível, que precisava de muita distração; e resolveu, com a nossa tia, proporcionar-nos diversões durante as férias de Páscoa. Nessa noite, devíamos ir ao Circulo Católico, mas, vendo-me muito cansada, a tia mandou-me deitar. Ao despir-me fui acometida por uma tremura estranha. Pensando que eu tinha frio, a tia envolveu-me em cobertores e botijas de água quente; mas nada pôde diminuir a minha agitação que durou quase toda a noite. O tio, ao regressar do Círculo Católico com as minhas primas e a Celina, ficou muito surpreendido por me encontrar naquele estado, que considerou grave, mas não o quis dizer, para não assustar a nossa tia. No dia seguinte, foi ter com o Dr. Notta, que julgou, como o tio, que eu tinha uma doença muito grave que nunca tinha acometido uma criança tão nova. Toda a gente estava consternada. A tia viu-se obrigada a conservar-me em sua casa, e tratou-me com uma solicitude verdadeiramente maternal. Quando o Papá voltou de Paris com as minhas irmãs mais velhas, a Amanda recebeu-os com uma cara tão triste que a Maria [28 rº] pensou que eu tinha morrido...
Mas essa doença não era para eu morrer; era antes, como a de Lázaro, para Deus ser glorificado... Foi-o, com efeito, pela resignação admirável do meu pobre Paizinho, que julgou que a «filhinha ia enlouquecer, ou então, que ia morrer». Foi-o também pela da Maria!... Ah! o que ela sofreu por minha causa!... Quanto lhe estou reconhecida, pelos cuidados que me prodigalizou tão desinteressadamente... O seu coração ditava-lhe o que me era necessário. E, na verdade, um coração de Mãe é bem mais sábio que o de um médico; sabe adivinhar o que é conveniente para a doença do seu filho.
Esta pobre Maria viu-se obrigada a vir instalar-se em casa do nosso tio, pois nessa altura era impossível transportarem-me para os Buissonnets. Entretanto aproximava-se a tomada de hábito da Paulina. Evitavam falar disso na minha frente, sabendo a pena que eu teria de lá não poder ir; mas eu falava dela muitas vezes, dizendo que estaria suficientemente boa para ir ver a minha querida Paulina. 
Com efeito, Deus não me quis recusar essa consolação, ou melhor, quis consolar a sua querida Noiva, que tanto tinha sofrido com a doença da sua filhinha... Tenho notado que Jesus não quer provar os seus filhos no dia do seu noivado; essa festa deve ser sem nuvens; um antegozo das alegrias do Paraíso. Não o mostrou já 5 vezes?...
Pude, portanto, beijar a minha querida Madre, sentar-me nos seus joelhos e cumulá-la de carícias... Pude contemplá-la tão radiante, sob o branco vestido de noiva... Ah! foi um belo dia, no meio da minha sombria provação. Mas esse dia depressa passou. Pouco depois tive de subir para a carruagem que me levou para bem longe da Paulina..., para bem longe do meu querido Carmelo.
Ao chegar aos Buissonnets, mandaram-me deitar, contra a minha vontade, porque afirmava [28 vº] estar completamente curada e já não precisar de cuidados. Ai de mim! não estava senão no princípio da provação!... No dia seguinte fui atacada como já tinha sido, e a doença tornou-se tão grave que, segundo os cálculos humanos, não me curaria... Não sei como descrever doença tão estranha. Agora estou persuadida de que era obra do demónio, mas, durante muito tempo depois da minha cura acreditei que eu me tinha feito doente de propósito, e isso foi um verdadeiro martírio para a minha alma...
Disse-o à Maria, que me tranquilizou o melhor que pôde, com a sua bondade habitual. Disse-o na confissão, e o meu confessor tentou também tranquilizar-me, dizendo que não era possível fingir estar doente até ao ponto em que eu tinha estado. Deus, que, sem dúvida, me queria purificar e, sobretudo, humilhar, deixou-me neste martírio íntimo até à minha entrada para o Carmelo, onde o Pai das nossas almas me tirou todas as dúvidas, como que a mão, e desde aí fiquei completamente tranquila. 
Não é de admirar que tenha receado ter parecido doente, sem o estar de facto, porque dizia e fazia coisas que não pensava; parecia quase sempre em delírio, dizendo palavras sem nexo e, no entanto, tenho a certeza de nunca ter estado privada, nem sequer por um único instante do uso da minha razão... Parecia muitas vezes desmaiada, sem fazer o mais pequeno movimento. Então teria deixado que me fizessem tudo o que quisessem, mesmo matar. Apesar disso, ouvia tudo o que se dizia à minha volta e lembro-me ainda de tudo...
Aconteceu-me uma vez estar muito tempo sem conseguir abrir os olhos, e abri-los um instante quando estava sozinha... Creio que o demónio recebeu um poder exterior sobre mim, mas [29 rº] que não se podia aproximar da minha alma nem do meu espírito, a não ser para me inspirar terrores muito grandes por certas coisas, por exemplo, por remédios muito simples que em vão procuravam  fazer-me tomar. 
Mas, se Deus permitia ao demónio que se aproximasse de mim, enviava-me também anjos visíveis... A Maria estava sempre ao pé da minha cama tratando-me e consolando-me com a ternura de uma mãe; nunca manifestou o mais pequeno aborrecimento, e, no entanto, eu causava-lhe grande incómodo, não consentindo que se afastasse de mim. Tinha, porém, de ir tomar as refeições com o Papá; mas eu não cessava de a chamar durante todo o tempo em que ela estava ausente. A Vitória, que tomava conta de mim, via-se, por vezes, obrigada a ir buscar a minha querida «mamã», quando eu lhe chamava... Quando a Maria queria sair, tinha que ser para ir à missa ou para ir ver a Paulina; então eu não dizia nada...
O nosso tio e a nossa tia eram também muito bons para comigo. A minha querida tia vinha todos os dias ver-me e trazia-me mil guloseimas. Outras pessoas amigas da família vieram também visitar-me, mas eu suplicava à Maria que lhes dissesse que não queria receber visitas. Era-me desagradável «ver pessoas sentadas à volta da minha cama como cebolas em fila e olhando-me como a um bicho raro». A única visita de que eu gostava era a do nosso tio e da nossa tia. 
A partir da minha doença, não saberei dizer quanto aumentou a minha afeição por eles. Compreendi, melhor que nunca, que eles não eram para nós uns familiares vulgares. Ah! o pobre paizinho tinha muita razão quando nos repetia muitas vezes as palavras que acabo de escrever. Mais tarde ele próprio experimentou que não se enganara, e agora deve proteger e abençoar aqueles que lhe prodigalizaram  cuidados tão dedicados... Eu estou ainda exilada; não sabendo mostrar o meu reconhecimento, não tenho senão um meio para aliviar o meu coração: rezar pelos parentes que amo, que foram e ainda são tão bons para comigo!
A Leónia era também muito boa para comigo, tentando distrair-me o melhor que podia. Eu, às vezes, causava-lhe desgosto, pois ela via bem que a Maria não podia ser substituída junto de mim...
E a minha querida Celina, o que ela não fez pela sua Teresa?... Ao domingo, em vez de ir passear, vinha fechar-se horas inteiras com uma pobre menina que parecia uma idiota. Realmente [29 vº] era preciso amor para não fugir de mim... Ah! minhas queridas irmãzinhas, quanto vos fiz sofrer! Ninguém vos causou tanto desgosto como eu, e ninguém recebeu tanto amor como o que vós me prodigalizastes... Felizmente, terei o Céu para me desforrar: o meu Esposo é muito rico, e tirarei dos seus tesouros de amor para vos pagar cem vezes tudo o que sofrestes por minha causa...
A minha maior consolação, enquanto estive doente, era receber uma carta da Paulina... Lia-a e relia-a até a saber de cor... Uma vez, minha querida Madre, vós mandastes-me uma ampulheta e uma das minhas bonecas vestida de carmelita: descrever a minha alegria, é coisa impossível... O nosso tio não ficou contente. Dizia que, em vez de me fazerem pensar no Carmelo, seria preciso afastá-lo do meu espírito. Mas eu sentia, pelo contrário, que era a esperança de ser um dia carmelita que me fazia viver... O meu prazer era trabalhar para a Paulina.  Fazia-lhe pequenos trabalhos em cartolina e a minha maior ocupação era fazer coroas de margaridas e de miosótis para a Santíssima Virgem. Estávamos no belo mês de Maio; toda a natureza se enfeitava de flores e respirava alegria; só a «Florzinha» definhava e parecia murcha para sempre... Contudo, tinha um Sol ao pé dela: esse Sol era a imagem milagrosa da Santíssima Virgem que tinha falado duas vezes à mamã, e muitas vezes, muitas vezes mesmo, a Florzinha voltava a sua corola para esse Astro bendito...
Um dia vi o Papá entrar no quarto da Maria, onde eu estava deitada; deu-lhe várias moedas de ouro, com uma expressão de grande tristeza e disse-lhe que escrevesse para Paris e mandasse rezar missas a Nossa Senhora das Vitórias para que ela curasse a sua pobre filhinha. Ah! como fiquei emocionada, ao ver a fé e o amor do meu querido Rei! [30 rº] Quereria poder dizer-lhe que estava curada, mas já lhe tinha dado muitas alegrias falsas; não eram os meus desejos que podiam fazer um milagre, pois era preciso um para me curar. Era preciso um milagre, e foi Nossa Senhora das Vitórias quem o fez. 
Um domingo (durante a novena de missas), a Maria saiu para o jardim, deixando-me com a Leónia, que estava a ler ao pé da janela. Passados alguns minutos, pus-me a chamar baixinho: - «Mamã... mamã!» A Leónia, que estava habituada a ouvir-me chamar sempre assim, não me prestou atenção. Isto durou muito tempo. Então chamei com mais força e, por fim, a Maria voltou. Vi-a perfeitamente entrar, mas não podia dizer que a reconhecia, e continuava a chamar cada vez com mais força: - «Mamã!...» Sofria muito com essa luta forçada e inexplicável, e a Maria sofria talvez ainda mais do que eu. Depois de vãos esforços para me mostrar que estava ao pé de mim, pôs-se de joelhos junto da minha cama com a Leónia e a Celina; depois, voltando-se para a Santíssima Virgem, e rezando-lhe com o fervor de uma Mãe que pede a vida do seu filho, a Maria obteve o que desejava...
Não encontrando na terra nenhum auxílio, a pobre Teresinha voltara-se também para a sua Mãe do Céu; pediu-lhe com todo o coração que tivesse finalmente piedade dela... De repente, a Santíssima Virgem pareceu-me bela, tão bela como nunca vira nada tão belo; o seu rosto irradiava uma bondade e uma ternura inefáveis; mas o que me penetrou até ao fundo da alma foi o «encantador sorriso da Santíssima Virgem». Então todos os meus males se desvaneceram. Duas grossas lágrimas brotaram das minhas pálpebras e deslizaram silenciosamente pelas minhas faces; mas eram lágrimas de uma alegria pura... Ah! pensava, a SS. Virgem sorriu-me! Como sou feliz!... [30 vº] Mas nunca o direi a ninguém, porque então a minha felicidade desapareceria. Sem nenhum esforço, baixei os olhos e vi a Maria que olhava para mim com amor; parecia comovida e parecia adivinhar o favor que a Santíssima Virgem me tinha concedido... Ah! era certamente a ela, às suas orações fervorosas, que eu devia a graça do sorriso da Rainha dos Céus. Ao ver o meu olhar fixo na Santíssima Virgem, dissera consigo: - «A Teresa está curada!». Sim, a Florzinha ia renascer para a vida, o Raio luminoso que a tinha reanimado não cessaria os seus benefícios. Não agiu de uma só vez, mas lentamente, suavemente, reergueu a sua Flor e fortaleceu-a de tal maneira que, cinco anos depois, ela expandia-se sobre a fértil montanha do Carmelo. 
Como disse, a Maria tinha adivinhado que a Santíssima Virgem me concedera alguma graça oculta, por isso, quando fiquei só com ela, perguntou-me o que é que eu tinha visto, e não pude resistir às suas interrogações tão ternas e tão insistentes; admirada por ver o meu segredo descoberto sem que o tivesse revelado, confiei-o inteiramente à minha querida Maria...
Pobre de mim! Como o tinha pressentido, a minha felicidade ia desaparecer e transformar-se em amargura. Durante quatro anos a recordação da graça inefável que tinha recebido foi para mim um tormento de alma; não reencontraria a minha felicidade senão aos pés de Nossa Senhora das Vitórias; mas então foi-me dada em toda a plenitude... Voltarei a falar mais tarde desta segunda graça da Santíssima Virgem. Agora devo dizer-vos, minha querida Madre, como a minha alegria se transformou em tristeza. 
A Maria, depois de ter ouvido o relato ingénuo e sincero da «minha graça», pediu-me licença para a contar no Carmelo; eu não podia dizer que não... Na minha primeira visita que fiz a este querido Carmelo, fiquei cheia de alegria por ver a minha Paulina com o hábito da Santíssima Virgem. [31rº] Foi um momento bem agradável para nós as duas... Tinhamos tantas coisas para nos dizermos, que eu não conseguia dizer absolutamente nada; tinha o coração demasiado cheio... A boa Madre Maria de Gonzaga estava lá também, dando-me mil sinais de afeição. Vi ainda outras Irmãs e, diante delas, interrogaram-me sobre a graça que eu tinha recebido, perguntando-me se a Santíssima Virgem trazia o menino Jesus, ou se havia muita luz, etc... Todas estas perguntas perturbaram-me e causaram-me pena; não conseguia dizer senão uma coisa: - «A Santíssima Virgem tinha-me parecido muito bela... e tinha-a visto sorrir-me». Era apenas o seu rosto que me tinha impressionado, por isso, vendo que as Carmelitas imaginavam coisa completamente diferente (tendo começado já os meus tormentos de alma a propósito da minha doença), julguei ter mentido...
Sem dúvida, se tivesse guardado o meu segredo, teria guardado também a minha alegria, mas a Santíssima Virgem permitiu esse tormento para o bem da minha alma; talvez, sem ele, tivesse tido algum pensamento de vaidade, ao passo que, sendo a humilhação o meu quinhão, não podia olhar para mim mesma sem um sentimento de profundo horror... Ah! o que eu sofri, só no céu o poderei dizer!... 
 
 

Tinha oito anos e meio quando a Leónia saiu do colégio e eu a fui substituir na Abadia. Ouvi dizer muitas vezes que o tempo passado no colégio é o melhor e o mais agradável da vida, mas, para mim, não foi assim: os cinco anos que lá passei foram os mais tristes da minha vida. Se não tivesse tido comigo a minha querida Celina, não teria podido lá ficar um único mês sem cair doente... A pobre Florzinha estava habituada a enterrar as suas frágeis raízes numa terra escolhida, feita expressamente para ela, e por isso, parece-lhe muito duro ver-se no meio de flores de todas as espécies, com raízes muitas vezes bem pouco delicadas, e ser obrigada a procurar numa terra comum a seiva necessária à sua subsistência!...

Minha querida Madre, tínheis-me ensinado tão bem que, ao entrar no colégio, era a mais adiantada das crianças da minha idade. Fui colocada numa [22 vº] turma de alunas todas mais velhas do que eu. Uma delas, com 13 ou 14 anos, era pouco inteligente mas, apesar disso, sabia enganar as alunas e até as professoras. Vendo-me tão nova, quase sempre a primeira da turma e querida de todas as religiosas, sentiu por isso, sem dúvida, uma inveja bem compreensível numa aluna interna, e fez-me pagar de mil maneiras os meus pequenos sucessos...

Com a minha natureza tímida e delicada, não me sabia defender, e conformava-me com chorar sem dizer nada, não me queixando nem sequer a vós do que sofria, mas não tinha virtude bastante para me elevar acima dessas misérias da vida, e o meu pobre coraçãozinho sofria muito...

Felizmente, todas as noites voltava ao lar paterno. Então o meu coração expandia-se: saltava para os joelhos do meu Rei, dizendo-lhe as notas que me tinham dado, e o seu beijo fazia-me esquecer todas as minhas penas... Com que alegria anunciei o resultado do primeiro ponto escrito (um ponto de H. Sagrada). Faltava-me um único valor para ter o máximo, pois não soubera o nome do pai de Moisés. Era, portanto, a primeira, e trazia uma bela insígnia de prata. Para me recompensar, o Papá deu-me uma linda moedazinha de quatro soldos, que pus numa caixa que ficou destinada a receber quase todas as quintas-feiras uma nova moeda, sempre do mesmo tamanho... (Era a essa caixa que eu ia tirar quando, em certas festas grandes, queria dar uma esmola do meu bolso para o peditório, ou para a Propagação da Fé, ou para outras obras semelhantes). A Paulina, encantada com o sucesso da sua aluna, deu-lhe de presente um [23 rº] lindo arco para a encorajar a continuar a ser muito estudiosa. A pobre pequena tinha verdadeira necessidade dessas alegrias da família: sem elas, a vida de colégio ter-lhe-ia sido dura demais. 

Todas as tardes de quinta-feira, era feriado. Mas não era como os feriados da Paulina; não estava no belveder com o Papá... Tinha que brincar, não com a minha Celina, do que gostava, quando ficava sozinha com ela, mas com as minhas priminhas e as pequenas Maudelonde. Era para mim um verdadeiro sacrifício. Não sabendo brincar como as outras crianças, não era uma companheira agradável; no entanto, fazia o possível por imitar as outras, sem o conseguir, e aborrecia-me muito, sobretudo quando tinha de passar uma tarde inteira a dançar quadrilhas. A única coisa de que gostava, era de ir ao Jardim da Estrela: então era a primeira em toda a parte, colhendo as flores em abundância e, sabendo encontrar as mais bonitas, excitava a inveja das minhas pequenas companheiras...

Do que gostava ainda, era quando, por acaso, ficava sozinha com a Mariazinha, não tendo a Celina Maudelonde para a arrastar a jogos ordinários. Ela dava-me liberdade para escolher, e eu escolhia um jogo completamente novo: a Maria e a Teresa faziam de dois eremitas, que não tinham senão uma cabana pobre, um pequeno campo de trigo e uma pouca de hortaliça para cultivar. A sua vida passava-se numa contemplação contínua, isto é, um dos eremitas substituía o outro na oração quando tinha de se ocupar da vida activa. Tudo se fazia com uma harmonia, um silêncio e maneiras tão religiosas, que tudo saía perfeito. 

Quando a nossa tia nos vinha buscar para o passeio, o nosso jogo continuava, mesmo na rua. Os dois eremitas rezavam [23 vº] juntos o terço, contando pelos dedos, para não mostrar a devoção ao público indiscreto. Porém, um dia, o eremita mais novo esqueceu-se: tendo recebido um bolo para o lanche, fez, antes de o comer, um grande sinal da cruz, o que fez rir todos os profanos do século...

A Maria e eu estávamos sempre de acordo. Tínhamos, a tal ponto, os mesmos gostos que, numa ocasião, a nossa união de vontades ultrapassou  os limites. Uma tarde, ao regressar da Abadia, disse à Maria: - «Guia-me, que eu vou fechar os olhos». «Também os quero fechar», respondeu-me ela. Dito e feito: sem discutir, cada uma fez a sua vontade... Como íamos pelo passeio, não havia que recear os carros. Após um agradável passeio de alguns minutos, tendo saboreado as delícias de caminhar sem ver, as duas tontinhas caíram juntas por cima de uns caixotes colocados à porta de uma loja, ou melhor, elas fizeram-nos cair. O comerciante saiu, todo zangado, para apanhar a mercadoria. As duas cegas voluntárias bem se tinham levantado sozinhas e caminhavam a passos largos, com os olhos bem abertos, ouvindo as justas repreensões da Joana, que estava tão zangada como o comerciante!... Então, para nos castigar, resolveu separar-nos e, a partir desse dia, a Maria e a Celina iam juntas, e eu ia com a Joana. Isso pôs termo à nossa excessiva união de vontades, e não foi mau para as mais velhas que, ao contrário de nós, nunca estavam de acordo, e discutiam  todo o caminho. Assim, a paz foi completa. 

Ainda não disse nada das minhas relações íntimas com a Celina. Ah! [24 rº] se tivesse de contar tudo, nunca mais acabaria...

Em Lisieux, os papéis tinham-se invertido: a Celina tornara-se um diabinho espertalhão, e a Teresa apenas uma menina muito meiga, mas choramingas em excesso... Isso não impedia que a Celina e a Teresa se amassem cada vez mais. Ás vezes havia algumas pequenas discussões, mas sem importância, e, no fundo, estavam sempre de acordo. Posso afirmar que a minha irmãzinha querida nunca me deu nenhum desgosto; mas, pelo contrário, foi para mim como um raio de sol, alegrando-me e consolando-me sempre... Quem poderá dizer com que  intrepidez ela me defendia na Abadia, quando eu era acusada?...

Preocupava-se tanto com a minha saúde que, às vezes, isso me aborrecia. O que não me aborrecia era vê-la brincar: punha em ordem toda a tropa das nossas bonequinhas e dava-lhes aula como uma hábil professora; só que tinha o cuidado de as suas filhas se portarem sempre bem, enquanto que as minhas eram muitas vezes postas fora por causa do seu mau comportamento...

 Dizia-me todas as coisas novas que acabava de aprender na aula, o que me divertia muito, e considerava-a um poço de ciência. Tinha recebido o título de «filhinha da Celina», e assim, quando estava zangada comigo, a sua maior prova de descontentamento era dizer-me: - «Já não és minha filha. Acabou-se. Hei-de lembrar-me sempre!...». Então só me restava chorar como uma Madalena, suplicando-lhe que me considerasse ainda como sua filhinha. E logo me beijava e me prometia nunca mais se lembrar de nada!... Para me consolar, pegava numa das suas bonecas e [24 vº] dizia-lhe: - «Minha querida, dá um beijo à tua tia».  Uma vez a boneca veio-me beijar tão efusivamente que me meteu os dois bracitos no nariz... A Celina, que não o fizera de propósito, olhava para mim estupefacta, com a boneca pendurada no meu nariz. A tia não demorou muito em repelir os abraços demasiadamente meigos da sobrinha, e pôs-se a rir às gargalhadas, de tão singular aventura. 

O mais engraçado era ver-nos comprar as nossas prendas de Ano Novo. As duas na mesma loja, escondíamo-nos cuidadosamente uma da outra.  Tendo apenas 10 soldos para gastar, precisavamos pelo menos de 5 ou 6 objectos diferentes... a ver quem comprava as coisas mais bonitas. Encantadas com as nossas compras, aguardávamos, com impaciência, o primeiro dia do ano, a fim de nos podermos oferecer mutuamente magníficos presentes. A que acordava primeiro apressava-se a ir desejar à outra feliz Ano Novo. Depois oferecíamo-nos as prendas, e cada qual se extasiava perante os tesouros adquiridos por 10 soldos!...

Estas pequenas prendas davam-nos quase tanto prazer como os belos presentes de Ano Novo do nosso tio. Aliás, não era senão o começo das alegrias. Nesse dia vestíamo-nos depressa, e cada uma punha-se à espreita, para saltar ao pescoço do Papá. Logo que saía do quarto, eram gritos de alegria por toda a casa, e o pobre paizinho mostrava-se feliz por nos ver tão contentes. As prendas que a Maria e a Paulina davam às suas filhinhas não tinham grande valor, mas causavam-lhes também uma grande alegria... Ah! é que, nessa idade, não estávamos embotadas, a nossa alma, em toda a sua frescura, expandia-se como uma flor, feliz por receber o orvalho da manhã... A mesma brisa fazia oscilar as nossas corolas e o que causava alegria ou pena a [25 rº] uma, causava-a ao mesmo tempo à outra.

Sim, as nossas alegrias eram comuns. Senti-o bem no grande dia da Primeira Comunhão da minha querida Celina. Não andava ainda na Abadia, pois só tinha sete anos, mas conservei no meu coração a bem doce recordação da preparação que vós, minha querida Madre, fizestes à Celina.  Todas as noites a púnheis nos vossos joelhos e faláveis-lhe do grande acto que ia realizar. Eu escutava ávida de me preparar também, mas, muitas vezes, dizíeis-me para me ir embora, por ser muito pequena. Então o meu coração ficava muito triste, e pensava que, quatro anos não eram demais para se preparar para receber a Deus...

Uma noite, ouvi-vos dizer que, a partir da Primeira Comunhão era preciso começar uma vida nova. Imediatamente resolvi não esperar por esse dia, mas começá-la ao mesmo tempo que a Celina... Nunca tinha sentido que a amava tanto, como o senti durante os três dias de retiro que fez. Pela primeira vez na minha vida, estava longe dela, não dormia na cama dela... No primeiro dia, tendo-me esquecido de que não ia voltar, tinha guardado um molhinho de cerejas, que o Papá me tinha comprado para o comer com ela; não a vendo chegar, tive um grande desgosto. O Papá consolou-me, dizendo-me que me levaria no dia seguinte à Abadia para ver a minha Celina, e que eu lhe daria outro molho de cerejas!... O dia da Primeira Comunhão da Celina deixou-me uma impressão semelhante à da minha. Ao acordar, de manhã, sozinha na cama grande, senti-me inundada de alegria: - «É hoje!... Chegou o grande dia!...».  - Não me cansava de [25 vº] repetir estas palavras. Parecia-me que era eu que ia fazer a Primeira Comunhão. Creio que recebi grandes graças nesse dia, e considero-o como um dos mais belos da minha vida...

Voltei um pouco atrás, para recordar essa deliciosa e grata lembrança. Agora devo falar da dolorosa provação que veio partir o coração da Teresinha, quando Jesus lhe roubou a sua querida mamã, a sua Paulina, tão ternamente amada!...

Um dia, disse à Paulina que gostaria de ser eremita, de ir com ela para um deserto longínquo; ela respondeu-me que o meu desejo era o seu, e que esperaria que eu fosse suficientemente crescida, para partir. Com certeza que isto não era dito a sério, mas a Teresinha tomara-o a sério. Por isso, qual não foi a sua dor, ao ouvir a sua querida Paulina falar um dia com a Maria da sua próxima entrada para o Carmelo... Não sabia o que era o Carmelo, mas compreendia que a Paulina me ia deixar, para entrar num convento, compreendia que ela não esperaria por mim, e que ia perder a minha segunda Mãe!... Ah! Como poderia exprimir a angústia do meu coração?... Num instante, compreendi o que era a vida. Até então não a vira tão triste, mas ela apareceu-me em toda a sua realidade; vi que não era senão um sofrimento e uma separação contínua. Derramei lágrimas bem amargas, porque não compreendia ainda a alegria do sacrifício. Eu era fraca, tão fraca, que considero uma grande graça o ter podido suportar uma provação que parecia muito superior às minhas forças!... Se tivesse vindo a saber, aos pouquinhos, da partida da minha querida Paulina, talvez não tivesse sofrido tanto, mas, [26 rº] tendo tido conhecimento dela, de surpresa, foi como se uma espada penetrasse no meu coração...

Lembrar-me-ei sempre, minha querida Madre, com que ternura vós me consolastes... Depois explicastes-me a vida do Carmelo que me pareceu muito bela! Recordando tudo o que me tínheis dito, senti que o Carmelo era o deserto onde Deus queria que eu me fosse também esconder... Senti-o tão intensamente que não restou a menor dúvida no meu coração: não era um sonho de criança que se deixa arrastar, mas a certeza de um chamamento divino. Queria ir para o Carmelo, não pela Paulina, mas só por Jesus... Pensei muitas coisas que as palavras não podem exprimir, mas que deixaram uma grande paz na minha alma.

No dia seguinte, confiei o meu segredo à Paulina que, considerando os meus desejos como a vontade do Céu, me disse que brevemente iria com ela visitar a Madre Prioresa do Carmelo, e que devia dizer-lhe o que Deus me fazia sentir... Foi escolhido um domingo para essa solene visita. Fiquei muito embaraçada quando soube que a Maria G. devia ficar comigo, pois ainda era muito pequena para ver as Carmelitas. Contudo, eu tinha de arranjar maneira de ficar sozinha. Eis o que me veio à ideia: disse à Maria que, já que tínhamos o privilégio de estar com a Madre Prioresa, tínhamos de ser muito gentis e educadas; para isso devíamos confiar-lhe os nossos segredos; portanto, cada uma por sua vez devia sair por uns momentos e deixar a outra sozinha. A Maria acreditou na minha palavra e, apesar da sua repugnância em confiar segredos que não tinha, ficámos sozinhas, uma após a outra, junto da nossa Madre.  [26 vº]  Tendo ouvido as minhas grandes confidências, a Madre Maria de Gonzaga acreditou na minha vocação, mas disse-me que não recebiam postulantes de 9 anos e que seria preciso esperar pelos meus 16 anos...

Resignei-me, apesar do meu vivo desejo de entrar o mais depressa possível e de fazer a minha Primeira Comunhão no dia da tomada de Hábito da Paulina... Foi nesse dia que recebi elogios pela segunda vez. A Ir. Teresa de Santo Agostinho, tendo-me vindo ver, não se cansava de dizer que eu era bonita... Eu não esperava vir ao Carmelo para receber louvores, por isso, ao sair do locutório, não me cansava de repetir a Deus que era unicamente por Ele que eu queria ser carmelita. 

Procurei tirar o maior proveito possível da minha querida Paulina durante as poucas semanas que ficou ainda no mundo. Todos os dias, a Celina e eu lhe comprávamos um bolo e rebuçados, pensando que dali a pouco não mais os comeria; estávamos sempre ao lado dela, não lhe deixando um minuto de descanço. Por fim chegou o dia 2 de Outubro, dia de lágrimas e de bênçãos, em que Jesus colheu a primeira das suas flores, que devia ser a mãe das que se lhe viriam juntar poucos anos depois. 

Vejo ainda o local onde recebi o último beijo da Paulina. Depois a nossa tia levou-nos todas à missa, enquanto o Papá subia à montanha do Carmelo para oferecer o seu primeiro sacrifício... Toda a família estava banhada em lágrimas, de maneira que, ao verem-nos entrar na igreja, as pessoas olhavam admiradas para nós, mas isso era-me indiferente e não me impedia de chorar. Julgo que, se tudo desabasse à minha volta, não prestaria nenhuma atenção. Olhava para o lindo céu azul e admirava-me que o sol pudesse brilhar com [27 rº] tanto esplendor quando a minha alma estava inundada de tristeza!... Julgais talvez, minha querida Madre, que exagero a dor que senti?... Dou-me bem conta  de que não deveria se assim tão grande, pois tinha esperança de vos reencontrar no Carmelo; mas a minha alma estava LONGE de estar madura: eu devia passar por bastantes cadinhos antes de atingir a tão almejada meta. 

O dia 2 de Outubro, era o dia fixado para a abertura das aulas na Abadia. Portanto, tive que ir, apesar da minha tristeza... De tarde, a nossa tia veio-nos buscar para irmos ao Carmelo, e vi a minha querida Paulina atrás das grades... Ah! quanto sofri nesse locutório do Carmelo!

Já que estou a escrever a história da minha alma, devo dizer tudo à minha querida Madre, e confesso que os sofrimentos que precederam a sua entrada não foram nada em comparação com os que se lhe seguiram... Todas as quintas-feiras, íamos em família ao Carmelo, e eu, habituada a conversar intimamente com a Paulina, dificilmente obtinha dois ou três minutos no fim da visita. Naturalmente, passava-os a chorar, e ia-me embora com o coração despedaçado. 

Não compreendia que era por delicadeza para com a tia que vós dirigíeis a palavra de preferência à Joana e à Maria, em vez de falardes com as vossas filhinhas... Não compreendia, e dizia no fundo do meu coração: - «Perdi a minha Paulina!!!» É espantoso ver como o meu espírito se desenvolveu no seio do sofrimento. Desenvolveu-se a tal ponto que não tardei a adoeçer. 

A doença que me atingiu vinha, certamente, do demónio. Furioso com a vossa entrada para o Carmelo, quis vingar-se em mim do mal que a nossa família lhe devia causar no futuro; mas ele não sabia que a [27 vº]  doce Rainha do Céu velava pela sua frágil Florzinha, que lhe sorria do alto do seu trono e se apressava a fazer cessar a tempestade, no momento em que a sua Flor se ia quebrar irremediavelmente...

Perto do fim do ano, fui atacada por dores de cabeça contínuas, que quase não me faziam sofrer; podia continuar os estudos, e ninguém se preocupava comigo. Isto durou até à Páscoa de 1883. Tendo o Papá ido a Paris com a Maria e a Leónia, a nossa tia levou-me para casa dela com a Celina. Uma noite, o nosso tio, tendo-me levado para o pé dele, falou-me da mamã, das recordações do passado, com uma bondade que me impressionou profundamente e me fez chorar. Então disse que eu era demasiado sensível, que precisava de muita distração; e resolveu, com a nossa tia, proporcionar-nos diversões durante as férias de Páscoa. Nessa noite, devíamos ir ao Circulo Católico, mas, vendo-me muito cansada, a tia mandou-me deitar. Ao despir-me fui acometida por uma tremura estranha. Pensando que eu tinha frio, a tia envolveu-me em cobertores e botijas de água quente; mas nada pôde diminuir a minha agitação que durou quase toda a noite. O tio, ao regressar do Círculo Católico com as minhas primas e a Celina, ficou muito surpreendido por me encontrar naquele estado, que considerou grave, mas não o quis dizer, para não assustar a nossa tia. No dia seguinte, foi ter com o Dr. Notta, que julgou, como o tio, que eu tinha uma doença muito grave que nunca tinha acometido uma criança tão nova. Toda a gente estava consternada. A tia viu-se obrigada a conservar-me em sua casa, e tratou-me com uma solicitude verdadeiramente maternal. Quando o Papá voltou de Paris com as minhas irmãs mais velhas, a Amanda recebeu-os com uma cara tão triste que a Maria [28 rº] pensou que eu tinha morrido...

Mas essa doença não era para eu morrer; era antes, como a de Lázaro, para Deus ser glorificado... Foi-o, com efeito, pela resignação admirável do meu pobre Paizinho, que julgou que a «filhinha ia enlouquecer, ou então, que ia morrer». Foi-o também pela da Maria!... Ah! o que ela sofreu por minha causa!... Quanto lhe estou reconhecida, pelos cuidados que me prodigalizou tão desinteressadamente... O seu coração ditava-lhe o que me era necessário. E, na verdade, um coração de Mãe é bem mais sábio que o de um médico; sabe adivinhar o que é conveniente para a doença do seu filho.

Esta pobre Maria viu-se obrigada a vir instalar-se em casa do nosso tio, pois nessa altura era impossível transportarem-me para os Buissonnets. Entretanto aproximava-se a tomada de hábito da Paulina. Evitavam falar disso na minha frente, sabendo a pena que eu teria de lá não poder ir; mas eu falava dela muitas vezes, dizendo que estaria suficientemente boa para ir ver a minha querida Paulina. 

Com efeito, Deus não me quis recusar essa consolação, ou melhor, quis consolar a sua querida Noiva, que tanto tinha sofrido com a doença da sua filhinha... Tenho notado que Jesus não quer provar os seus filhos no dia do seu noivado; essa festa deve ser sem nuvens; um antegozo das alegrias do Paraíso. Não o mostrou já 5 vezes?...

Pude, portanto, beijar a minha querida Madre, sentar-me nos seus joelhos e cumulá-la de carícias... Pude contemplá-la tão radiante, sob o branco vestido de noiva... Ah! foi um belo dia, no meio da minha sombria provação. Mas esse dia depressa passou. Pouco depois tive de subir para a carruagem que me levou para bem longe da Paulina..., para bem longe do meu querido Carmelo.

Ao chegar aos Buissonnets, mandaram-me deitar, contra a minha vontade, porque afirmava [28 vº] estar completamente curada e já não precisar de cuidados. Ai de mim! não estava senão no princípio da provação!... No dia seguinte fui atacada como já tinha sido, e a doença tornou-se tão grave que, segundo os cálculos humanos, não me curaria... Não sei como descrever doença tão estranha. Agora estou persuadida de que era obra do demónio, mas, durante muito tempo depois da minha cura acreditei que eu me tinha feito doente de propósito, e isso foi um verdadeiro martírio para a minha alma...

Disse-o à Maria, que me tranquilizou o melhor que pôde, com a sua bondade habitual. Disse-o na confissão, e o meu confessor tentou também tranquilizar-me, dizendo que não era possível fingir estar doente até ao ponto em que eu tinha estado. Deus, que, sem dúvida, me queria purificar e, sobretudo, humilhar, deixou-me neste martírio íntimo até à minha entrada para o Carmelo, onde o Pai das nossas almas me tirou todas as dúvidas, como que a mão, e desde aí fiquei completamente tranquila. 

Não é de admirar que tenha receado ter parecido doente, sem o estar de facto, porque dizia e fazia coisas que não pensava; parecia quase sempre em delírio, dizendo palavras sem nexo e, no entanto, tenho a certeza de nunca ter estado privada, nem sequer por um único instante do uso da minha razão... Parecia muitas vezes desmaiada, sem fazer o mais pequeno movimento. Então teria deixado que me fizessem tudo o que quisessem, mesmo matar. Apesar disso, ouvia tudo o que se dizia à minha volta e lembro-me ainda de tudo...

Aconteceu-me uma vez estar muito tempo sem conseguir abrir os olhos, e abri-los um instante quando estava sozinha... Creio que o demónio recebeu um poder exterior sobre mim, mas [29 rº] que não se podia aproximar da minha alma nem do meu espírito, a não ser para me inspirar terrores muito grandes por certas coisas, por exemplo, por remédios muito simples que em vão procuravam  fazer-me tomar. 

Mas, se Deus permitia ao demónio que se aproximasse de mim, enviava-me também anjos visíveis... A Maria estava sempre ao pé da minha cama tratando-me e consolando-me com a ternura de uma mãe; nunca manifestou o mais pequeno aborrecimento, e, no entanto, eu causava-lhe grande incómodo, não consentindo que se afastasse de mim. Tinha, porém, de ir tomar as refeições com o Papá; mas eu não cessava de a chamar durante todo o tempo em que ela estava ausente. A Vitória, que tomava conta de mim, via-se, por vezes, obrigada a ir buscar a minha querida «mamã», quando eu lhe chamava... Quando a Maria queria sair, tinha que ser para ir à missa ou para ir ver a Paulina; então eu não dizia nada...

O nosso tio e a nossa tia eram também muito bons para comigo. A minha querida tia vinha todos os dias ver-me e trazia-me mil guloseimas. Outras pessoas amigas da família vieram também visitar-me, mas eu suplicava à Maria que lhes dissesse que não queria receber visitas. Era-me desagradável «ver pessoas sentadas à volta da minha cama como cebolas em fila e olhando-me como a um bicho raro». A única visita de que eu gostava era a do nosso tio e da nossa tia. 

A partir da minha doença, não saberei dizer quanto aumentou a minha afeição por eles. Compreendi, melhor que nunca, que eles não eram para nós uns familiares vulgares. Ah! o pobre paizinho tinha muita razão quando nos repetia muitas vezes as palavras que acabo de escrever. Mais tarde ele próprio experimentou que não se enganara, e agora deve proteger e abençoar aqueles que lhe prodigalizaram  cuidados tão dedicados... Eu estou ainda exilada; não sabendo mostrar o meu reconhecimento, não tenho senão um meio para aliviar o meu coração: rezar pelos parentes que amo, que foram e ainda são tão bons para comigo!

A Leónia era também muito boa para comigo, tentando distrair-me o melhor que podia. Eu, às vezes, causava-lhe desgosto, pois ela via bem que a Maria não podia ser substituída junto de mim...

E a minha querida Celina, o que ela não fez pela sua Teresa?... Ao domingo, em vez de ir passear, vinha fechar-se horas inteiras com uma pobre menina que parecia uma idiota. Realmente [29 vº] era preciso amor para não fugir de mim... Ah! minhas queridas irmãzinhas, quanto vos fiz sofrer! Ninguém vos causou tanto desgosto como eu, e ninguém recebeu tanto amor como o que vós me prodigalizastes... Felizmente, terei o Céu para me desforrar: o meu Esposo é muito rico, e tirarei dos seus tesouros de amor para vos pagar cem vezes tudo o que sofrestes por minha causa...

A minha maior consolação, enquanto estive doente, era receber uma carta da Paulina... Lia-a e relia-a até a saber de cor... Uma vez, minha querida Madre, vós mandastes-me uma ampulheta e uma das minhas bonecas vestida de carmelita: descrever a minha alegria, é coisa impossível... O nosso tio não ficou contente. Dizia que, em vez de me fazerem pensar no Carmelo, seria preciso afastá-lo do meu espírito. Mas eu sentia, pelo contrário, que era a esperança de ser um dia carmelita que me fazia viver... O meu prazer era trabalhar para a Paulina.  Fazia-lhe pequenos trabalhos em cartolina e a minha maior ocupação era fazer coroas de margaridas e de miosótis para a Santíssima Virgem. Estávamos no belo mês de Maio; toda a natureza se enfeitava de flores e respirava alegria; só a «Florzinha» definhava e parecia murcha para sempre... Contudo, tinha um Sol ao pé dela: esse Sol era a imagem milagrosa da Santíssima Virgem que tinha falado duas vezes à mamã, e muitas vezes, muitas vezes mesmo, a Florzinha voltava a sua corola para esse Astro bendito...

Um dia vi o Papá entrar no quarto da Maria, onde eu estava deitada; deu-lhe várias moedas de ouro, com uma expressão de grande tristeza e disse-lhe que escrevesse para Paris e mandasse rezar missas a Nossa Senhora das Vitórias para que ela curasse a sua pobre filhinha. Ah! como fiquei emocionada, ao ver a fé e o amor do meu querido Rei! [30 rº] Quereria poder dizer-lhe que estava curada, mas já lhe tinha dado muitas alegrias falsas; não eram os meus desejos que podiam fazer um milagre, pois era preciso um para me curar. Era preciso um milagre, e foi Nossa Senhora das Vitórias quem o fez. 

Um domingo (durante a novena de missas), a Maria saiu para o jardim, deixando-me com a Leónia, que estava a ler ao pé da janela. Passados alguns minutos, pus-me a chamar baixinho: - «Mamã... mamã!» A Leónia, que estava habituada a ouvir-me chamar sempre assim, não me prestou atenção. Isto durou muito tempo. Então chamei com mais força e, por fim, a Maria voltou. Vi-a perfeitamente entrar, mas não podia dizer que a reconhecia, e continuava a chamar cada vez com mais força: - «Mamã!...» Sofria muito com essa luta forçada e inexplicável, e a Maria sofria talvez ainda mais do que eu. Depois de vãos esforços para me mostrar que estava ao pé de mim, pôs-se de joelhos junto da minha cama com a Leónia e a Celina; depois, voltando-se para a Santíssima Virgem, e rezando-lhe com o fervor de uma Mãe que pede a vida do seu filho, a Maria obteve o que desejava...

Não encontrando na terra nenhum auxílio, a pobre Teresinha voltara-se também para a sua Mãe do Céu; pediu-lhe com todo o coração que tivesse finalmente piedade dela... De repente, a Santíssima Virgem pareceu-me bela, tão bela como nunca vira nada tão belo; o seu rosto irradiava uma bondade e uma ternura inefáveis; mas o que me penetrou até ao fundo da alma foi o «encantador sorriso da Santíssima Virgem». Então todos os meus males se desvaneceram. Duas grossas lágrimas brotaram das minhas pálpebras e deslizaram silenciosamente pelas minhas faces; mas eram lágrimas de uma alegria pura... Ah! pensava, a SS. Virgem sorriu-me! Como sou feliz!... [30 vº] Mas nunca o direi a ninguém, porque então a minha felicidade desapareceria. Sem nenhum esforço, baixei os olhos e vi a Maria que olhava para mim com amor; parecia comovida e parecia adivinhar o favor que a Santíssima Virgem me tinha concedido... Ah! era certamente a ela, às suas orações fervorosas, que eu devia a graça do sorriso da Rainha dos Céus. Ao ver o meu olhar fixo na Santíssima Virgem, dissera consigo: - «A Teresa está curada!». Sim, a Florzinha ia renascer para a vida, o Raio luminoso que a tinha reanimado não cessaria os seus benefícios. Não agiu de uma só vez, mas lentamente, suavemente, reergueu a sua Flor e fortaleceu-a de tal maneira que, cinco anos depois, ela expandia-se sobre a fértil montanha do Carmelo. 

Como disse, a Maria tinha adivinhado que a Santíssima Virgem me concedera alguma graça oculta, por isso, quando fiquei só com ela, perguntou-me o que é que eu tinha visto, e não pude resistir às suas interrogações tão ternas e tão insistentes; admirada por ver o meu segredo descoberto sem que o tivesse revelado, confiei-o inteiramente à minha querida Maria...

Pobre de mim! Como o tinha pressentido, a minha felicidade ia desaparecer e transformar-se em amargura. Durante quatro anos a recordação da graça inefável que tinha recebido foi para mim um tormento de alma; não reencontraria a minha felicidade senão aos pés de Nossa Senhora das Vitórias; mas então foi-me dada em toda a plenitude... Voltarei a falar mais tarde desta segunda graça da Santíssima Virgem. Agora devo dizer-vos, minha querida Madre, como a minha alegria se transformou em tristeza. 

A Maria, depois de ter ouvido o relato ingénuo e sincero da «minha graça», pediu-me licença para a contar no Carmelo; eu não podia dizer que não... Na minha primeira visita que fiz a este querido Carmelo, fiquei cheia de alegria por ver a minha Paulina com o hábito da Santíssima Virgem. [31rº] Foi um momento bem agradável para nós as duas... Tinhamos tantas coisas para nos dizermos, que eu não conseguia dizer absolutamente nada; tinha o coração demasiado cheio... A boa Madre Maria de Gonzaga estava lá também, dando-me mil sinais de afeição. Vi ainda outras Irmãs e, diante delas, interrogaram-me sobre a graça que eu tinha recebido, perguntando-me se a Santíssima Virgem trazia o menino Jesus, ou se havia muita luz, etc... Todas estas perguntas perturbaram-me e causaram-me pena; não conseguia dizer senão uma coisa: - «A Santíssima Virgem tinha-me parecido muito bela... e tinha-a visto sorrir-me». Era apenas o seu rosto que me tinha impressionado, por isso, vendo que as Carmelitas imaginavam coisa completamente diferente (tendo começado já os meus tormentos de alma a propósito da minha doença), julguei ter mentido...

Sem dúvida, se tivesse guardado o meu segredo, teria guardado também a minha alegria, mas a Santíssima Virgem permitiu esse tormento para o bem da minha alma; talvez, sem ele, tivesse tido algum pensamento de vaidade, ao passo que, sendo a humilhação o meu quinhão, não podia olhar para mim mesma sem um sentimento de profundo horror... Ah! o que eu sofri, só no céu o poderei dizer!...