Se esta interpretação está correta, reconhecemos que nossos adversários são guiados por uma caridade sublime, quando se apressam em admitir confusamente ao batismo os libertinos e os concubinados que, desprezando o mandamento de Jesus Cristo, escondem seu relacionamento sob o véu do casamento. O que eu digo? Os prostituídos, teimosamente presos aos seus infames relacionamentos, jamais foram admitidos ao seio da Igreja mais liberal, sem antes terem sido tirados de suas vergonhosas atividades.
Admitido este princípio, eu não vejo com que argumento se poderia rejeitar essas criaturas, pois, quem não ficaria feliz em ver que, após terem empilhado sobre o fundamento sagrado da fé, a madeira, o feno e a palha, elas poderiam se purificar através do suplício mais ou menos prolongado do fogo, invés de serem condenadas à morte eterna?
Mas, ao mesmo tempo, é preciso taxar como erros esses princípios tão claros e tão pouco equivocados:
“Mesmo que tivesse toda a fé, a ponto de transportar montanhas, se não tiver caridade, não sou nada” (1Cor 13,2); “De que aproveitará, irmãos, a alguém dizer que tem fé, se não tiver obras? Acaso esta fé poderá salvá-lo?” (Tg 2,14)
Será preciso também considerar como errada esta passagem:
“Não vos enganeis: Nem os impuros, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os efeminados, nem os devassos, nem os ladrões, nem os avarentos, nem os bêbados, nem os difamadores, nem os assaltantes hão de possuir o Reino de Deus” (1Cor 6,9-10).
E também esta:
“Ora, as obras da carne são estas: fornicação, impureza, libertinagem, idolatria, superstição, inimizades, brigas, ciúmes, ódio, ambição, discórdias, partidos, invejas, bebedeiras, orgias e outras coisas semelhantes. Dessas coisas vos previno, como já vos preveni: os que as praticarem não herdarão o Reino de Deus!” (Gl 5,19-21)
Todas estas afirmações se tornam falsas, pois bastará acreditar e ser batizado, para ser salvo pelo fogo, apesar de sua falta de arrependimento. Todos esses crimes não impedirão aquele que tiver recebido o batismo em Jesus Cristo, de ser herdeiro do reino de Deus.
Esta passagem: “Ao menos alguns de vós têm sido isso. Mas fostes lavados, mas fostes santificados, mas fostes justificados, em nome do Senhor Jesus Cristo e pelo Espírito de nosso Deus” (1Cor 6,11), não terá mais nenhuma verdade, pois aqueles que tiverem sido purificados, permanecerão maculados pelos mesmos vícios.
Tudo será vazio nestas palavras de São Pedro:
“Esta água (do dilúvio) prefigurava o batismo de agora, que vos salva também a vós, não pela purificação das impurezas do corpo, mas pela que consiste em pedir a Deus uma consciência boa, pela ressurreição de Jesus Cristo” (1Pd 3,21)
Aqueles que tiverem uma consciência culpada, tão carregada por todos os crimes e todas as infâmias, que a penitência não terá eficácia em apagar suas sujeiras, serão salvos pelo batismo. A fé, que o batismo assegura o fundamento, assegurará sua salvação, desde que eles passem pelo fogo.
Eu não compreendo também por que o Senhor disse: “Se queres entrar na vida, observa os mandamentos” (Mt 19,17) e recordou todos os princípios da moral, se é possível obter a vida, sem observar essas regras, somente em virtude da fé, que, no entanto, é morta sem as obras.
Que verdade poderia haver então nestas palavras, que devem ser dirigidas um dia aos maus colocados à sua esquerda: Retirai-vos de mim, malditos! Ide para o fogo eterno destinado ao demônio e aos seus anjos (Mt 25,41)? Pois, não é reprovada aqui sua incredulidade, mas sua vida vazia de boas obras.
Para que ninguém se gabe de obter a vida eterna através da fé, que é morta sem obras, ele teve o cuidado de dizer que separará as nações que obedecem aos mesmos pastores, para que fique evidente que aqueles que lhe disserem então: Senhor, quando foi que te vimos com fome, com sede, peregrino, nu, enfermo, ou na prisão e não te socorremos? (Mt 25,44) serão os cristãos que, mesmo acreditando nele, negligenciaram as boas obras, com a ideia de que uma fé morta bastava para levar à vida eterna.
O fogo eterno será a partilha daqueles que não foram misericordiosos, daqueles que se apropriaram de bens alheios e daqueles que trataram a si mesmo sem misericórdia, destruindo em seu coração o templo do Espírito Santo. De que servem as obras de misericórdia, se o amor não é o seu princípio? Pois, disse o Apóstolo:
“Ainda que distribuísse todos os meus bens em sustento dos pobres e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, se não tiver caridade, de nada valeria!” (1Cor 13,3)
Pode amar o próximo como a si mesmo, quem não ama a si mesmo?
“Quem ama a iniquidade, odeia sua alma” – Qui autem diligit iniquitatem, odit animam suam (Sl 10,6)
Não se poderia pretender aqui, como certas pessoas ingênuas, que o fogo e não o suplício durará eternamente. Elas incutem em seus adeptos a esperança de que se salvarão através do fogo eterno e que lhes bastará ter a fé morta para escapar da chama. Em seu pensamento, o fogo será eterno, mas ele não as devorará eternamente.
Mas o Senhor, em sua sabedoria soberana, previu esse erro, resumindo sua doutrina com estas palavras: E estes irão para o castigo eterno e os justos, para a vida eterna (Mt 25,46). O suplício será, portanto, eterno como o fogo e ele está reservado, segundo o testemunho da própria Verdade, àqueles que tiveram a fé, mas não lhe acrescentaram as obras.