CAPÍTULO 27. OUTRA PASSAGEM DO APÓSTOLO TRAÍDO POR AQUELES QUE ENSINAM QUE A FÉ SALVA SEM OBRA

CAPÍTULO 27. OUTRA PASSAGEM DO APÓSTOLO TRAÍDO POR AQUELES QUE ENSINAM QUE A FÉ SALVA SEM OBRA

 

Sem dúvida que vão me perguntar qual é o sentido que eu atribuo a esta passagem do apóstolo São Paulo e qual é sua verdadeira interpretação. Eu preferiria, confesso, que meu papel se limitasse a recolher, da boca de pessoas mais esclarecidas e mais judiciosas, uma explicação capaz de conciliar, com esta passagem, todos os textos de verdade incontestável que eu já citei ou que poderia ter citado acima e que provam, pelo testemunho irrecusável das Escrituras, que a fé que salva é exclusivamente aquela que, na definição do Apóstolo, opera pela caridade (Gl 5,6), enquanto que, se ela não for acompanhada pelas obras, a fé é impotente para salvar, com ou sem a ajuda do fogo. Pois, se ela opera a salvação com a ajuda do fogo, ela realmente tem, nela mesma, a virtude de salvar. Ora, está dito claramente e sem restrição: De que aproveitará, irmãos, a alguém dizer que tem fé, se não tiver obras? Acaso esta fé poderá salvá-lo? (Tg 2,14). No entanto, eu vou expor, da maneira mais breve possível, a maneira como interpreto este texto tão difícil de compreender. Não se deve esquecer que eu preferiria, como confessei, ouvir teólogos mais esclarecidos que eu para discutir esta passagem.

 

A fundação do edifício erguido pelo sábio arquiteto é Jesus Cristo. Este princípio não precisa de demonstração, pois, de acordo com as palavras do Apóstolo: Quanto ao fundamento, ninguém pode pôr outro diverso daquele que já foi posto: Jesus Cristo (1Cor 3,11). Por Jesus Cristo é preciso entender, evidentemente, a fé em Jesus Cristo, pois ele habita nos corações pela fé, segundo a expressão do mesmo Apóstolo (Ef 3, 17. Que Cristo habite pela fé em vossos corações, arraigados e consolidados na caridade). Ora, essa fé necessária em Jesus Cristo não é outra além daquela fé que age pela caridade, como também a define o Apóstolo. Pois seria insensato tomar como fundamento o tipo de fé que se impõe aos próprios demônios, que os faz tremer e lhes arranca a confissão de que Jesus Cristo é o Filho de Deus. Gostaríamos de tomar pela fé, não a crença que fecunda a caridade, mas a confissão que arranca o medo? Portanto, é a fé em Jesus Cristo, a fé que inspira a graça cristã e que a caridade torna fecunda com boas obras é que é o fundamento da salvação para todos os humanos.

 

.O que se deve entender agora por edifício de ouro, de prata, de pedrarias ou de madeira, palha e feno, erguido sobre este fundamento?

 

Eu temo dar, ao aprofundar muito o texto, uma explicação mais obscura do que o próprio texto. No entanto, eu vou tentar, com a ajuda de Deus, expor meu sentimento com toda a precisão e toda clareza que eu for capaz.

 

Não se recordam daquele que perguntou ao próprio Príncipe do Bem, o bem que ele devia realizar para possuir a vida eterna? Ele aprendeu que devia cumprir os mandamentos, se queria conquistar a felicidade eterna. E, como ele perguntou também quais eram os mandamentos, obteve a resposta: Não matarás, não cometerás adultério, não furtarás, não dirás falso testemunho, honra teu pai e tua mãe, amarás teu próximo como a ti mesmo (Mt 19, 18-19). Agindo assim, sob a inspiração da fé em Jesus Cristo, ele teria manifestamente a fé que opera pela caridade.

 

Pois, como amar o próximo como a si mesmo, sem ter recebido o dom do amor de Deus; verdadeiro princípio do amor a si mesmo?

 

Mas, se ele observou em seguida o que Nosso Senhor acrescenta: Se queres ser perfeito, vai, vende teus bens, dá-os aos pobres e terás um tesouro no céu. Depois, vem e segue-me!81, ele construiu, sobre esse fundamento, um edifício de ouro, de prata e de pedras preciosas, pois todos os seus pensamentos, não tendo outro objeto além das coisas divinas, teriam sido dedicados a agradar a Deus e são esses altos pensamentos que representam, na minha opinião, o ouro, a prata e as pedras preciosas.

 

Mas, se ele estivesse preso por uma afeição totalmente carnal às suas riquezas, ele teria em vão feito de seus bens abundantes esmolas, evitado a fraude e o furto para aumentar seus tesouros, resistido a todas as tentações do crime e da desonestidade para não vê-los diminuir ou se esgotar. Em vão ele jamais teria se afastado do princípio inabalável que lhe serviu de fundamento. Nessa paixão totalmente mundana que o impediu de renunciar sem arrependimento à sua fortuna, ele teria erguido, sobre a fundação sólida, apenas um edifício de madeira, de feno ou de palha. Principalmente se ele tinha uma esposa que o levou, para lhe agradar, a só pensar nas coisas do mundo, no interesse de sua vaidade.

 

Só podemos nos decidir a perder sem arrependimentos os bens aos quais não estamos ligados por um sentimento totalmente carnal.

 

Possuamo-los tomando por base o fundamento da fé que age sob o impulso da caridade. Não coloquemos jamais, por cobiça ou avareza, nosso ouro acima de nossas crenças. Se sua perda aflige como um sacrifício, só obteremos a salvação passando pela pena ardente do fogo.

 

Menos expostos estamos a esse suplício e a esse arrependimento, quanto menos presos estamos às riquezas. Ou se as possuímos como se não as possuíssemos.

 

Caímos, para conservá-las ou adquiri-las, no homicídio, no adultério, na fornicação, na idolatria e outros crimes igualmente monstruosos? A solidez do fundamento não assegura a salvação através das chamas. Perderemos esse apoio e seremos abandonados aos tormentos eternos.

 

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