Quem lê com atenção o texto do chamado terceiro «segredo» de Fátima, que depois de longo tempo, por disposição do Santo
Padre, é aqui publicado integralmente, ficará presumivelmente
desiludido ou maravilhado depois de todas as especulações que
foram feitas. Não é revelado nenhum grande mistério; o véu do
futuro não é rasgado. Vemos a Igreja dos mártires deste século
que está para findar, representada através duma cena descrita
numa linguagem simbólica de difícil decifração. É isto o que a Mãe
do Senhor queria comunicar à cristandade, à humanidade num
tempo de grandes problemas e angústias? Serve-nos de ajuda no
início do novo milénio? Ou não serão talvez apenas projecções do
mundo interior de crianças, crescidas num ambiente de profunda
piedade, mas simultaneamente assustadas pelas tempestades que
ameaçavam o seu tempo? Como devemos entender a visão, o
que pensar dela?
Revelação pública e revelações privadas – o seu lugar teológico
Antes de encetar uma tentativa de interpretação, cujas linhas
essenciais podem encontrar-se na comunicação que o Cardeal
Sodano pronunciou, no dia 13 de Maio deste ano, no fim da Celebração Eucarística presidida pelo Santo Padre em Fátima, é necessário dar alguns esclarecimentos básicos sobre o modo como,
segundo a doutrina da Igreja, devem ser compreendidos no âmbito da vida de fé fenómenos como o de Fátima. A doutrina da Igreja
distingue «revelação pública» e «revelações privadas»; entre as
duas realidades existe uma diferença essencial, e não apenas de
grau. A noção «revelação pública» designa a acção reveladora de
Deus que se destina à humanidade inteira e está expressa literariamente nas duas partes da Bíblia: o Antigo e o Novo Testamento.
Chama-se «revelação», porque nela Deus Se foi dando a conhecer progressivamente aos homens, até ao ponto de Ele mesmo Se
tornar homem, para atrair e reunir em Si próprio o mundo inteiro
por meio do Filho encarnado, Jesus Cristo. Não se trata, portanto,
de comunicações intelectuais, mas de um processo vital em que
Deus Se aproxima do homem; naturalmente nesse processo, depois aparecem também conteúdos que têm a ver com a inteligência e a compreensão do mistério de Deus. Tal processo envolve o
homem inteiro e, por conseguinte, também a razão, mas não só
ela. Uma vez que Deus é um só, também a história que Ele vive
com a humanidade é única, vale para todos os tempos e encontrou
a sua plenitude com a vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo.
Por outras palavras, em Cristo Deus disse tudo de Si mesmo, e
portanto a revelação ficou concluída com a realização do mistério
de Cristo, expresso no Novo Testamento. O Catecismo da Igreja
Católica, para explicar este carácter definitivo e pleno da revelação, cita o seguinte texto de S. João da Cruz: «Ao dar-nos, como
nos deu, o seu Filho, que é a sua Palavra — e não tem outra —,
Deus disse-nos tudo ao mesmo tempo e de uma só vez nesta Palavra única (...) porque o que antes disse parcialmente pelos profetas, revelou-o totalmente, dando-nos o Todo que é o seu Filho. E
por isso, quem agora quisesse consultar a Deus ou pedir-Lhe alguma visão ou revelação, não só cometeria um disparate, mas
faria agravo a Deus, por não pôr os olhos totalmente em Cristo e
buscar fora d’Ele outra realidade ou novidade» (CIC, n. 65; S. João
da Cruz, A Subida do Monte Carmelo, II, 22).
O facto de a única revelação de Deus destinada a todos os
povos ter ficado concluída com Cristo e o testemunho que d’Ele
nos dão os livros do Novo Testamento vincula a Igreja com o
acontecimento único que é a história sagrada e a palavra da Bíblia,
que garante e interpreta tal acontecimento, mas não significa que
agora a Igreja pode apenas olhar para o passado, ficando assim
condenada a uma estéril repetição. Eis o que diz o Catecismo da
Igreja Católica: «No entanto, apesar de a Revelação ter acabado,
não quer dizer que esteja completamente explicitada. E está
reservado à fé cristã apreender gradualmente todo o seu alcance
no decorrer dos séculos» (n. 66). Estes dois aspectos — o vínculo
com a unicidade do acontecimento e o progresso na sua
compreensão — estão optimamente ilustrados nos discursos de
despedida do Senhor, quando Ele declara aos discípulos: «Ainda
tenho muitas coisas para vos dizer, mas não as podeis suportar
agora. Quando vier o Espírito da Verdade, Ele guiar-vos-á para a
verdade total, porque não falará de Si mesmo (...) Ele glorificar-
-Me-á, porque há-de receber do que é meu, para vo-lo anunciar»
(Jo 16, 12-14). Por um lado, o Espírito serve de guia, desvendando
assim um conhecimento cuja densidade não se podia alcançar antes
porque faltava o pressuposto, ou seja, o da amplidão e profundidade
da fé cristã, e que é tal que não estará concluída jamais. Por outro
lado, esse acto de guiar é «receber» do tesouro do próprio Jesus
Cristo, cuja profundidade inexaurível se manifesta nesta condução
por obra do Espírito. A propósito disto, o Catecismo cita uma densa
frase do Papa Gregório Magno: «As palavras divinas crescem com
quem as lê» (CIC, n. 94; S. Gregório Magno, Homilia sobre Ezequiel
1, 7, 8). O Concílio Vaticano II indica três caminhos essenciais,
através dos quais o Espírito Santo efectua a sua guia da Igreja e,
consequentemente, o «crescimento da Palavra»: realiza-se por
meio da meditação e estudo dos fiéis, por meio da íntima inteligência
que experimentam das coisas espirituais, e por meio da pregação
daqueles «que, com a sucessão do episcopado, receberam o
carisma da verdade» (Dei Verbum, n. 8).
Neste contexto, torna-se agora possível compreender correctamente o conceito de «revelação privada», que se aplica a todas
as visões e revelações verificadas depois da conclusão do Novo
Testamento; nesta categoria, portanto, se deve colocar a mensagem de Fátima. Ouçamos o que diz o Catecismo da Igreja Católica
sobre isto também: «No decurso dos séculos tem havido revelações ditas “privadas”, algumas das quais foram reconhecidas pela
autoridade da Igreja. (...) O seu papel não é (...) “completar” a Revelação definitiva de Cristo, mas ajudar a vivê-la mais plenamente
numa determinada época da história » (n. 67). Isto deixa claro duas
coisas:
1. A autoridade das revelações privadas é essencialmente diversa da única revelação pública: esta exige a nossa fé; de facto,
nela, é o próprio Deus que nos fala por meio de palavras humanas
e da mediação da comunidade viva da Igreja. A fé em Deus e na
sua Palavra é distinta de qualquer outra fé, crença, opinião humana. A certeza de que é Deus que fala, cria em mim a segurança de
encontrar a própria verdade; uma certeza assim não se pode verificar em mais nenhuma forma humana de conhecimento. É sobre
tal certeza que edifico a minha vida e me entrego ao morrer.
223
2. A revelação privada é um auxílio para esta fé, e manifesta-
-se credível precisamente porque faz apelo à única revelação pública. O Cardeal Próspero Lambertini, mais tarde Papa Bento XIV,
afirma a tal propósito num tratado clássico, que se tornou normativo
a propósito das beatificações e canonizações: «A tais revelações
aprovadas não é devida uma adesão de fé católica; nem isso é
possível. Estas revelações requerem, antes, uma adesão de fé
humana ditada pelas regras da prudência, que no-las apresentam
como prováveis e religiosamente credíveis». O teólogo flamengo
E. Dhanis, eminente conhecedor desta matéria, afirma sinteticamente que a aprovação eclesial duma revelação privada contém
três elementos: que a respectiva mensagem não contém nada em
contraste com a fé e os bons costumes, que é lícito torná-la pública, e que os fiéis ficam autorizados a prestar-lhe de forma prudente a sua adesão [E. Dhanis, Sguardo su Fatima e bilancio di una
discussione, em: La Civiltà Cattolica, CIV (1953-II), 392-406, especialmente 397]. Tal mensagem pode ser um válido auxílio para compreender e viver melhor o Evangelho na hora actual; por isso, não
se deve transcurar. É uma ajuda que é oferecida, mas não é obrigatório fazer uso dela.
Assim, o critério para medir a verdade e o valor duma revelação privada é a sua orientação para o próprio Cristo. Quando se
afasta d’Ele, quando se torna autónoma ou até se faz passar por
outro desígnio de salvação, melhor e mais importante que o Evangelho, então ela certamente não provém do Espírito Santo, que
nos guia no âmbito do Evangelho e não fora dele. Isto não exclui
que uma revelação privada realce novos aspectos, faça surgir formas de piedade novas ou aprofunde e divulgue antigas. Mas, em
tudo isso, deve tratar-se sempre de um alimento para a fé, a esperança e a caridade, que são, para todos, o caminho permanente
da salvação. Podemos acrescentar que frequentemente as revelações privadas provêm da piedade popular e nela se reflectem, dando-lhe novo impulso e suscitando formas novas. Isto não exclui
que aquelas tenham influência também na própria liturgia, como o
demonstram por exemplo a festa do Corpo de Deus e a do Sagrado Coração de Jesus. Numa determinada perspectiva, pode-se
afirmar que, na relação entre liturgia e piedade popular, está
delineada a relação entre revelação pública e revelações privadas:
a liturgia é o critério, a forma vital da Igreja no seu conjunto alimen-
tada directamente pelo Evangelho. A religiosidade popular significa que a fé cria raízes no coração dos diversos povos, entrando a
fazer parte do mundo da vida quotidiana. A religiosidade popular é
a primeira e fundamental forma de «inculturação» da fé, que deve
continuamente deixar-se orientar e guiar pelas indicações da liturgia,
mas que, por sua vez, a fecunda a partir do coração.
Desta forma, passámos já das especificações mais negativas,
e que eram primariamente necessárias, à definição positiva das
revelações privadas: Como podem classificar-se de modo correcto a partir da Escritura? Qual é a sua categoria teológica? A carta
mais antiga de S. Paulo que nos foi conservada e que é também o
mais antigo escrito do Novo Testamento, a primeira Carta aos
Tessalonicenses, parece-me oferecer uma indicação. Lá, diz o
Apóstolo: «Não extingais o Espírito, não desprezeis as profecias.
Examinai tudo e retende o que for bom» (5, 19-21). Em todo o
tempo é dado à Igreja o carisma da profecia, que, embora tenha de
ser examinado, não pode ser desprezado. A este propósito, é preciso ter presente que a profecia, no sentido da Bíblia, não significa
predizer o futuro, mas aplicar a vontade de Deus ao tempo presente e consequentemente mostrar o recto caminho do futuro. Aquele
que prediz o futuro pretende satisfazer a curiosidade da razão, que
deseja rasgar o véu que esconde o futuro; o profeta vem em ajuda
da cegueira da vontade e do pensamento, ilustrando a vontade de
Deus enquanto exigência e indicação para o presente. Neste caso,
a predição do futuro tem uma importância secundária; o essencial
é a actualização da única revelação, que me diz respeito profundamente: a palavra profética ora é advertência ora consolação, ou
então as duas coisas ao mesmo tempo. Neste sentido, pode-se
relacionar o carisma da profecia com a noção «sinais do tempo»,
redescoberta pelo Vaticano II: «Sabeis interpretar o aspecto da terra e do céu; como é que não sabeis interpretar o tempo presente?»
(Lc 12, 56). Por « sinais do tempo », nesta palavra de Jesus, devese entender o seu próprio caminho, Ele mesmo. Interpretar os sinais do tempo à luz da fé significa reconhecer a presença de Cristo
em cada período de tempo. Nas revelações privadas reconhecidas pela Igreja – e portanto na de Fátima –, trata-se disto mesmo:
ajudar-nos a compreender os sinais do tempo e a encontrar na fé a
justa resposta para os mesmos.Quem lê com atenção o texto do chamado terceiro «segredo» de Fátima, que depois de longo tempo, por disposição do Santo
Padre, é aqui publicado integralmente, ficará presumivelmente
desiludido ou maravilhado depois de todas as especulações que
foram feitas. Não é revelado nenhum grande mistério; o véu do
futuro não é rasgado. Vemos a Igreja dos mártires deste século
que está para findar, representada através duma cena descrita
numa linguagem simbólica de difícil decifração. É isto o que a Mãe
do Senhor queria comunicar à cristandade, à humanidade num
tempo de grandes problemas e angústias? Serve-nos de ajuda no
início do novo milénio? Ou não serão talvez apenas projecções do
mundo interior de crianças, crescidas num ambiente de profunda
piedade, mas simultaneamente assustadas pelas tempestades que
ameaçavam o seu tempo? Como devemos entender a visão, o
que pensar dela?
Revelação pública e revelações privadas – o seu lugar teológico
Antes de encetar uma tentativa de interpretação, cujas linhas
essenciais podem encontrar-se na comunicação que o Cardeal
Sodano pronunciou, no dia 13 de Maio deste ano, no fim da Celebração Eucarística presidida pelo Santo Padre em Fátima, é necessário dar alguns esclarecimentos básicos sobre o modo como,
segundo a doutrina da Igreja, devem ser compreendidos no âmbito da vida de fé fenómenos como o de Fátima. A doutrina da Igreja
distingue «revelação pública» e «revelações privadas»; entre as
duas realidades existe uma diferença essencial, e não apenas de
grau. A noção «revelação pública» designa a acção reveladora de
Deus que se destina à humanidade inteira e está expressa literariamente nas duas partes da Bíblia: o Antigo e o Novo Testamento.
Chama-se «revelação», porque nela Deus Se foi dando a conhecer progressivamente aos homens, até ao ponto de Ele mesmo Se
tornar homem, para atrair e reunir em Si próprio o mundo inteiro
por meio do Filho encarnado, Jesus Cristo. Não se trata, portanto,
de comunicações intelectuais, mas de um processo vital em que
Deus Se aproxima do homem; naturalmente nesse processo, depois aparecem também conteúdos que têm a ver com a inteligência e a compreensão do mistério de Deus. Tal processo envolve o
homem inteiro e, por conseguinte, também a razão, mas não só
ela. Uma vez que Deus é um só, também a história que Ele vive
com a humanidade é única, vale para todos os tempos e encontrou
a sua plenitude com a vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo.
Por outras palavras, em Cristo Deus disse tudo de Si mesmo, e
portanto a revelação ficou concluída com a realização do mistério
de Cristo, expresso no Novo Testamento. O Catecismo da Igreja
Católica, para explicar este carácter definitivo e pleno da revelação, cita o seguinte texto de S. João da Cruz: «Ao dar-nos, como
nos deu, o seu Filho, que é a sua Palavra — e não tem outra —,
Deus disse-nos tudo ao mesmo tempo e de uma só vez nesta Palavra única (...) porque o que antes disse parcialmente pelos profetas, revelou-o totalmente, dando-nos o Todo que é o seu Filho. E
por isso, quem agora quisesse consultar a Deus ou pedir-Lhe alguma visão ou revelação, não só cometeria um disparate, mas
faria agravo a Deus, por não pôr os olhos totalmente em Cristo e
buscar fora d’Ele outra realidade ou novidade» (CIC, n. 65; S. João
da Cruz, A Subida do Monte Carmelo, II, 22).
O facto de a única revelação de Deus destinada a todos os
povos ter ficado concluída com Cristo e o testemunho que d’Ele
nos dão os livros do Novo Testamento vincula a Igreja com o
acontecimento único que é a história sagrada e a palavra da Bíblia,
que garante e interpreta tal acontecimento, mas não significa que
agora a Igreja pode apenas olhar para o passado, ficando assim
condenada a uma estéril repetição. Eis o que diz o Catecismo da
Igreja Católica: «No entanto, apesar de a Revelação ter acabado,
não quer dizer que esteja completamente explicitada. E está
reservado à fé cristã apreender gradualmente todo o seu alcance
no decorrer dos séculos» (n. 66). Estes dois aspectos — o vínculo
com a unicidade do acontecimento e o progresso na sua
compreensão — estão optimamente ilustrados nos discursos de
despedida do Senhor, quando Ele declara aos discípulos: «Ainda
tenho muitas coisas para vos dizer, mas não as podeis suportar
agora. Quando vier o Espírito da Verdade, Ele guiar-vos-á para a
verdade total, porque não falará de Si mesmo (...) Ele glorificar-
-Me-á, porque há-de receber do que é meu, para vo-lo anunciar»
(Jo 16, 12-14). Por um lado, o Espírito serve de guia, desvendando
assim um conhecimento cuja densidade não se podia alcançar antes
porque faltava o pressuposto, ou seja, o da amplidão e profundidade
da fé cristã, e que é tal que não estará concluída jamais. Por outro
lado, esse acto de guiar é «receber» do tesouro do próprio Jesus
Cristo, cuja profundidade inexaurível se manifesta nesta condução
por obra do Espírito. A propósito disto, o Catecismo cita uma densa
frase do Papa Gregório Magno: «As palavras divinas crescem com
quem as lê» (CIC, n. 94; S. Gregório Magno, Homilia sobre Ezequiel
1, 7, 8). O Concílio Vaticano II indica três caminhos essenciais,
através dos quais o Espírito Santo efectua a sua guia da Igreja e,
consequentemente, o «crescimento da Palavra»: realiza-se por
meio da meditação e estudo dos fiéis, por meio da íntima inteligência
que experimentam das coisas espirituais, e por meio da pregação
daqueles «que, com a sucessão do episcopado, receberam o
carisma da verdade» (Dei Verbum, n. 8).
Neste contexto, torna-se agora possível compreender correctamente o conceito de «revelação privada», que se aplica a todas
as visões e revelações verificadas depois da conclusão do Novo
Testamento; nesta categoria, portanto, se deve colocar a mensagem de Fátima. Ouçamos o que diz o Catecismo da Igreja Católica
sobre isto também: «No decurso dos séculos tem havido revelações ditas “privadas”, algumas das quais foram reconhecidas pela
autoridade da Igreja. (...) O seu papel não é (...) “completar” a Revelação definitiva de Cristo, mas ajudar a vivê-la mais plenamente
numa determinada época da história » (n. 67). Isto deixa claro duas
coisas:
1. A autoridade das revelações privadas é essencialmente diversa da única revelação pública: esta exige a nossa fé; de facto,
nela, é o próprio Deus que nos fala por meio de palavras humanas
e da mediação da comunidade viva da Igreja. A fé em Deus e na
sua Palavra é distinta de qualquer outra fé, crença, opinião humana. A certeza de que é Deus que fala, cria em mim a segurança de
encontrar a própria verdade; uma certeza assim não se pode verificar em mais nenhuma forma humana de conhecimento. É sobre
tal certeza que edifico a minha vida e me entrego ao morrer.
223
2. A revelação privada é um auxílio para esta fé, e manifesta-
-se credível precisamente porque faz apelo à única revelação pública. O Cardeal Próspero Lambertini, mais tarde Papa Bento XIV,
afirma a tal propósito num tratado clássico, que se tornou normativo
a propósito das beatificações e canonizações: «A tais revelações
aprovadas não é devida uma adesão de fé católica; nem isso é
possível. Estas revelações requerem, antes, uma adesão de fé
humana ditada pelas regras da prudência, que no-las apresentam
como prováveis e religiosamente credíveis». O teólogo flamengo
E. Dhanis, eminente conhecedor desta matéria, afirma sinteticamente que a aprovação eclesial duma revelação privada contém
três elementos: que a respectiva mensagem não contém nada em
contraste com a fé e os bons costumes, que é lícito torná-la pública, e que os fiéis ficam autorizados a prestar-lhe de forma prudente a sua adesão [E. Dhanis, Sguardo su Fatima e bilancio di una
discussione, em: La Civiltà Cattolica, CIV (1953-II), 392-406, especialmente 397]. Tal mensagem pode ser um válido auxílio para compreender e viver melhor o Evangelho na hora actual; por isso, não
se deve transcurar. É uma ajuda que é oferecida, mas não é obrigatório fazer uso dela.
Assim, o critério para medir a verdade e o valor duma revelação privada é a sua orientação para o próprio Cristo. Quando se
afasta d’Ele, quando se torna autónoma ou até se faz passar por
outro desígnio de salvação, melhor e mais importante que o Evangelho, então ela certamente não provém do Espírito Santo, que
nos guia no âmbito do Evangelho e não fora dele. Isto não exclui
que uma revelação privada realce novos aspectos, faça surgir formas de piedade novas ou aprofunde e divulgue antigas. Mas, em
tudo isso, deve tratar-se sempre de um alimento para a fé, a esperança e a caridade, que são, para todos, o caminho permanente
da salvação. Podemos acrescentar que frequentemente as revelações privadas provêm da piedade popular e nela se reflectem, dando-lhe novo impulso e suscitando formas novas. Isto não exclui
que aquelas tenham influência também na própria liturgia, como o
demonstram por exemplo a festa do Corpo de Deus e a do Sagrado Coração de Jesus. Numa determinada perspectiva, pode-se
afirmar que, na relação entre liturgia e piedade popular, está
delineada a relação entre revelação pública e revelações privadas:
a liturgia é o critério, a forma vital da Igreja no seu conjunto alimen-
tada directamente pelo Evangelho. A religiosidade popular significa que a fé cria raízes no coração dos diversos povos, entrando a
fazer parte do mundo da vida quotidiana. A religiosidade popular é
a primeira e fundamental forma de «inculturação» da fé, que deve
continuamente deixar-se orientar e guiar pelas indicações da liturgia,
mas que, por sua vez, a fecunda a partir do coração.
Desta forma, passámos já das especificações mais negativas,
e que eram primariamente necessárias, à definição positiva das
revelações privadas: Como podem classificar-se de modo correcto a partir da Escritura? Qual é a sua categoria teológica? A carta
mais antiga de S. Paulo que nos foi conservada e que é também o
mais antigo escrito do Novo Testamento, a primeira Carta aos
Tessalonicenses, parece-me oferecer uma indicação. Lá, diz o
Apóstolo: «Não extingais o Espírito, não desprezeis as profecias.
Examinai tudo e retende o que for bom» (5, 19-21). Em todo o
tempo é dado à Igreja o carisma da profecia, que, embora tenha de
ser examinado, não pode ser desprezado. A este propósito, é preciso ter presente que a profecia, no sentido da Bíblia, não significa
predizer o futuro, mas aplicar a vontade de Deus ao tempo presente e consequentemente mostrar o recto caminho do futuro. Aquele
que prediz o futuro pretende satisfazer a curiosidade da razão, que
deseja rasgar o véu que esconde o futuro; o profeta vem em ajuda
da cegueira da vontade e do pensamento, ilustrando a vontade de
Deus enquanto exigência e indicação para o presente. Neste caso,
a predição do futuro tem uma importância secundária; o essencial
é a actualização da única revelação, que me diz respeito profundamente: a palavra profética ora é advertência ora consolação, ou
então as duas coisas ao mesmo tempo. Neste sentido, pode-se
relacionar o carisma da profecia com a noção «sinais do tempo»,
redescoberta pelo Vaticano II: «Sabeis interpretar o aspecto da terra e do céu; como é que não sabeis interpretar o tempo presente?»
(Lc 12, 56). Por « sinais do tempo », nesta palavra de Jesus, devese entender o seu próprio caminho, Ele mesmo. Interpretar os sinais do tempo à luz da fé significa reconhecer a presença de Cristo
em cada período de tempo. Nas revelações privadas reconhecidas pela Igreja – e portanto na de Fátima –, trata-se disto mesmo:
ajudar-nos a compreender os sinais do tempo e a encontrar na fé a
justa resposta para os mesmos.Quem lê com atenção o texto do chamado terceiro «segredo» de Fátima, que depois de longo tempo, por disposição do Santo
Padre, é aqui publicado integralmente, ficará presumivelmente
desiludido ou maravilhado depois de todas as especulações que
foram feitas. Não é revelado nenhum grande mistério; o véu do
futuro não é rasgado. Vemos a Igreja dos mártires deste século
que está para findar, representada através duma cena descrita
numa linguagem simbólica de difícil decifração. É isto o que a Mãe
do Senhor queria comunicar à cristandade, à humanidade num
tempo de grandes problemas e angústias? Serve-nos de ajuda no
início do novo milénio? Ou não serão talvez apenas projecções do
mundo interior de crianças, crescidas num ambiente de profunda
piedade, mas simultaneamente assustadas pelas tempestades que
ameaçavam o seu tempo? Como devemos entender a visão, o
que pensar dela?
Revelação pública e revelações privadas – o seu lugar teológico
Antes de encetar uma tentativa de interpretação, cujas linhas
essenciais podem encontrar-se na comunicação que o Cardeal
Sodano pronunciou, no dia 13 de Maio deste ano, no fim da Celebração Eucarística presidida pelo Santo Padre em Fátima, é necessário dar alguns esclarecimentos básicos sobre o modo como,
segundo a doutrina da Igreja, devem ser compreendidos no âmbito da vida de fé fenómenos como o de Fátima. A doutrina da Igreja
distingue «revelação pública» e «revelações privadas»; entre as
duas realidades existe uma diferença essencial, e não apenas de
grau. A noção «revelação pública» designa a acção reveladora de
Deus que se destina à humanidade inteira e está expressa literariamente nas duas partes da Bíblia: o Antigo e o Novo Testamento.
Chama-se «revelação», porque nela Deus Se foi dando a conhecer progressivamente aos homens, até ao ponto de Ele mesmo Se
tornar homem, para atrair e reunir em Si próprio o mundo inteiro
por meio do Filho encarnado, Jesus Cristo. Não se trata, portanto,
de comunicações intelectuais, mas de um processo vital em que
Deus Se aproxima do homem; naturalmente nesse processo, depois aparecem também conteúdos que têm a ver com a inteligência e a compreensão do mistério de Deus. Tal processo envolve o
homem inteiro e, por conseguinte, também a razão, mas não só
ela. Uma vez que Deus é um só, também a história que Ele vive
com a humanidade é única, vale para todos os tempos e encontrou
a sua plenitude com a vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo.
Por outras palavras, em Cristo Deus disse tudo de Si mesmo, e
portanto a revelação ficou concluída com a realização do mistério
de Cristo, expresso no Novo Testamento. O Catecismo da Igreja
Católica, para explicar este carácter definitivo e pleno da revelação, cita o seguinte texto de S. João da Cruz: «Ao dar-nos, como
nos deu, o seu Filho, que é a sua Palavra — e não tem outra —,
Deus disse-nos tudo ao mesmo tempo e de uma só vez nesta Palavra única (...) porque o que antes disse parcialmente pelos profetas, revelou-o totalmente, dando-nos o Todo que é o seu Filho. E
por isso, quem agora quisesse consultar a Deus ou pedir-Lhe alguma visão ou revelação, não só cometeria um disparate, mas
faria agravo a Deus, por não pôr os olhos totalmente em Cristo e
buscar fora d’Ele outra realidade ou novidade» (CIC, n. 65; S. João
da Cruz, A Subida do Monte Carmelo, II, 22).
O facto de a única revelação de Deus destinada a todos os
povos ter ficado concluída com Cristo e o testemunho que d’Ele
nos dão os livros do Novo Testamento vincula a Igreja com o
acontecimento único que é a história sagrada e a palavra da Bíblia,
que garante e interpreta tal acontecimento, mas não significa que
agora a Igreja pode apenas olhar para o passado, ficando assim
condenada a uma estéril repetição. Eis o que diz o Catecismo da
Igreja Católica: «No entanto, apesar de a Revelação ter acabado,
não quer dizer que esteja completamente explicitada. E está
reservado à fé cristã apreender gradualmente todo o seu alcance
no decorrer dos séculos» (n. 66). Estes dois aspectos — o vínculo
com a unicidade do acontecimento e o progresso na sua
compreensão — estão optimamente ilustrados nos discursos de
despedida do Senhor, quando Ele declara aos discípulos: «Ainda
tenho muitas coisas para vos dizer, mas não as podeis suportar
agora. Quando vier o Espírito da Verdade, Ele guiar-vos-á para a
verdade total, porque não falará de Si mesmo (...) Ele glorificar-
-Me-á, porque há-de receber do que é meu, para vo-lo anunciar»
(Jo 16, 12-14). Por um lado, o Espírito serve de guia, desvendando
assim um conhecimento cuja densidade não se podia alcançar antes
porque faltava o pressuposto, ou seja, o da amplidão e profundidade
da fé cristã, e que é tal que não estará concluída jamais. Por outro
lado, esse acto de guiar é «receber» do tesouro do próprio Jesus
Cristo, cuja profundidade inexaurível se manifesta nesta condução
por obra do Espírito. A propósito disto, o Catecismo cita uma densa
frase do Papa Gregório Magno: «As palavras divinas crescem com
quem as lê» (CIC, n. 94; S. Gregório Magno, Homilia sobre Ezequiel
1, 7, 8). O Concílio Vaticano II indica três caminhos essenciais,
através dos quais o Espírito Santo efectua a sua guia da Igreja e,
consequentemente, o «crescimento da Palavra»: realiza-se por
meio da meditação e estudo dos fiéis, por meio da íntima inteligência
que experimentam das coisas espirituais, e por meio da pregação
daqueles «que, com a sucessão do episcopado, receberam o
carisma da verdade» (Dei Verbum, n. 8).
Neste contexto, torna-se agora possível compreender correctamente o conceito de «revelação privada», que se aplica a todas
as visões e revelações verificadas depois da conclusão do Novo
Testamento; nesta categoria, portanto, se deve colocar a mensagem de Fátima. Ouçamos o que diz o Catecismo da Igreja Católica
sobre isto também: «No decurso dos séculos tem havido revelações ditas “privadas”, algumas das quais foram reconhecidas pela
autoridade da Igreja. (...) O seu papel não é (...) “completar” a Revelação definitiva de Cristo, mas ajudar a vivê-la mais plenamente
numa determinada época da história » (n. 67). Isto deixa claro duas
coisas:
1. A autoridade das revelações privadas é essencialmente diversa da única revelação pública: esta exige a nossa fé; de facto,
nela, é o próprio Deus que nos fala por meio de palavras humanas
e da mediação da comunidade viva da Igreja. A fé em Deus e na
sua Palavra é distinta de qualquer outra fé, crença, opinião humana. A certeza de que é Deus que fala, cria em mim a segurança de
encontrar a própria verdade; uma certeza assim não se pode verificar em mais nenhuma forma humana de conhecimento. É sobre
tal certeza que edifico a minha vida e me entrego ao morrer.
223
2. A revelação privada é um auxílio para esta fé, e manifesta-
-se credível precisamente porque faz apelo à única revelação pública. O Cardeal Próspero Lambertini, mais tarde Papa Bento XIV,
afirma a tal propósito num tratado clássico, que se tornou normativo
a propósito das beatificações e canonizações: «A tais revelações
aprovadas não é devida uma adesão de fé católica; nem isso é
possível. Estas revelações requerem, antes, uma adesão de fé
humana ditada pelas regras da prudência, que no-las apresentam
como prováveis e religiosamente credíveis». O teólogo flamengo
E. Dhanis, eminente conhecedor desta matéria, afirma sinteticamente que a aprovação eclesial duma revelação privada contém
três elementos: que a respectiva mensagem não contém nada em
contraste com a fé e os bons costumes, que é lícito torná-la pública, e que os fiéis ficam autorizados a prestar-lhe de forma prudente a sua adesão [E. Dhanis, Sguardo su Fatima e bilancio di una
discussione, em: La Civiltà Cattolica, CIV (1953-II), 392-406, especialmente 397]. Tal mensagem pode ser um válido auxílio para compreender e viver melhor o Evangelho na hora actual; por isso, não
se deve transcurar. É uma ajuda que é oferecida, mas não é obrigatório fazer uso dela.
Assim, o critério para medir a verdade e o valor duma revelação privada é a sua orientação para o próprio Cristo. Quando se
afasta d’Ele, quando se torna autónoma ou até se faz passar por
outro desígnio de salvação, melhor e mais importante que o Evangelho, então ela certamente não provém do Espírito Santo, que
nos guia no âmbito do Evangelho e não fora dele. Isto não exclui
que uma revelação privada realce novos aspectos, faça surgir formas de piedade novas ou aprofunde e divulgue antigas. Mas, em
tudo isso, deve tratar-se sempre de um alimento para a fé, a esperança e a caridade, que são, para todos, o caminho permanente
da salvação. Podemos acrescentar que frequentemente as revelações privadas provêm da piedade popular e nela se reflectem, dando-lhe novo impulso e suscitando formas novas. Isto não exclui
que aquelas tenham influência também na própria liturgia, como o
demonstram por exemplo a festa do Corpo de Deus e a do Sagrado Coração de Jesus. Numa determinada perspectiva, pode-se
afirmar que, na relação entre liturgia e piedade popular, está
delineada a relação entre revelação pública e revelações privadas:
a liturgia é o critério, a forma vital da Igreja no seu conjunto alimen-
tada directamente pelo Evangelho. A religiosidade popular significa que a fé cria raízes no coração dos diversos povos, entrando a
fazer parte do mundo da vida quotidiana. A religiosidade popular é
a primeira e fundamental forma de «inculturação» da fé, que deve
continuamente deixar-se orientar e guiar pelas indicações da liturgia,
mas que, por sua vez, a fecunda a partir do coração.
Desta forma, passámos já das especificações mais negativas,
e que eram primariamente necessárias, à definição positiva das
revelações privadas: Como podem classificar-se de modo correcto a partir da Escritura? Qual é a sua categoria teológica? A carta
mais antiga de S. Paulo que nos foi conservada e que é também o
mais antigo escrito do Novo Testamento, a primeira Carta aos
Tessalonicenses, parece-me oferecer uma indicação. Lá, diz o
Apóstolo: «Não extingais o Espírito, não desprezeis as profecias.
Examinai tudo e retende o que for bom» (5, 19-21). Em todo o
tempo é dado à Igreja o carisma da profecia, que, embora tenha de
ser examinado, não pode ser desprezado. A este propósito, é preciso ter presente que a profecia, no sentido da Bíblia, não significa
predizer o futuro, mas aplicar a vontade de Deus ao tempo presente e consequentemente mostrar o recto caminho do futuro. Aquele
que prediz o futuro pretende satisfazer a curiosidade da razão, que
deseja rasgar o véu que esconde o futuro; o profeta vem em ajuda
da cegueira da vontade e do pensamento, ilustrando a vontade de
Deus enquanto exigência e indicação para o presente. Neste caso,
a predição do futuro tem uma importância secundária; o essencial
é a actualização da única revelação, que me diz respeito profundamente: a palavra profética ora é advertência ora consolação, ou
então as duas coisas ao mesmo tempo. Neste sentido, pode-se
relacionar o carisma da profecia com a noção «sinais do tempo»,
redescoberta pelo Vaticano II: «Sabeis interpretar o aspecto da terra e do céu; como é que não sabeis interpretar o tempo presente?»
(Lc 12, 56). Por « sinais do tempo », nesta palavra de Jesus, devese entender o seu próprio caminho, Ele mesmo. Interpretar os sinais do tempo à luz da fé significa reconhecer a presença de Cristo
em cada período de tempo. Nas revelações privadas reconhecidas pela Igreja – e portanto na de Fátima –, trata-se disto mesmo:
ajudar-nos a compreender os sinais do tempo e a encontrar na fé a
justa resposta para os mesmos.Quem lê com atenção o texto do chamado terceiro «segredo» de Fátima, que depois de longo tempo, por disposição do Santo
Padre, é aqui publicado integralmente, ficará presumivelmente
desiludido ou maravilhado depois de todas as especulações que
foram feitas. Não é revelado nenhum grande mistério; o véu do
futuro não é rasgado. Vemos a Igreja dos mártires deste século
que está para findar, representada através duma cena descrita
numa linguagem simbólica de difícil decifração. É isto o que a Mãe
do Senhor queria comunicar à cristandade, à humanidade num
tempo de grandes problemas e angústias? Serve-nos de ajuda no
início do novo milénio? Ou não serão talvez apenas projecções do
mundo interior de crianças, crescidas num ambiente de profunda
piedade, mas simultaneamente assustadas pelas tempestades que
ameaçavam o seu tempo? Como devemos entender a visão, o
que pensar dela?
Revelação pública e revelações privadas – o seu lugar teológico
Antes de encetar uma tentativa de interpretação, cujas linhas
essenciais podem encontrar-se na comunicação que o Cardeal
Sodano pronunciou, no dia 13 de Maio deste ano, no fim da Celebração Eucarística presidida pelo Santo Padre em Fátima, é necessário dar alguns esclarecimentos básicos sobre o modo como,
segundo a doutrina da Igreja, devem ser compreendidos no âmbito da vida de fé fenómenos como o de Fátima. A doutrina da Igreja
distingue «revelação pública» e «revelações privadas»; entre as
duas realidades existe uma diferença essencial, e não apenas de
grau. A noção «revelação pública» designa a acção reveladora de
Deus que se destina à humanidade inteira e está expressa literariamente nas duas partes da Bíblia: o Antigo e o Novo Testamento.
Chama-se «revelação», porque nela Deus Se foi dando a conhecer progressivamente aos homens, até ao ponto de Ele mesmo Se
tornar homem, para atrair e reunir em Si próprio o mundo inteiro
por meio do Filho encarnado, Jesus Cristo. Não se trata, portanto,
de comunicações intelectuais, mas de um processo vital em que
Deus Se aproxima do homem; naturalmente nesse processo, depois aparecem também conteúdos que têm a ver com a inteligência e a compreensão do mistério de Deus. Tal processo envolve o
homem inteiro e, por conseguinte, também a razão, mas não só
ela. Uma vez que Deus é um só, também a história que Ele vive
com a humanidade é única, vale para todos os tempos e encontrou
a sua plenitude com a vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo.
Por outras palavras, em Cristo Deus disse tudo de Si mesmo, e
portanto a revelação ficou concluída com a realização do mistério
de Cristo, expresso no Novo Testamento. O Catecismo da Igreja
Católica, para explicar este carácter definitivo e pleno da revelação, cita o seguinte texto de S. João da Cruz: «Ao dar-nos, como
nos deu, o seu Filho, que é a sua Palavra — e não tem outra —,
Deus disse-nos tudo ao mesmo tempo e de uma só vez nesta Palavra única (...) porque o que antes disse parcialmente pelos profetas, revelou-o totalmente, dando-nos o Todo que é o seu Filho. E
por isso, quem agora quisesse consultar a Deus ou pedir-Lhe alguma visão ou revelação, não só cometeria um disparate, mas
faria agravo a Deus, por não pôr os olhos totalmente em Cristo e
buscar fora d’Ele outra realidade ou novidade» (CIC, n. 65; S. João
da Cruz, A Subida do Monte Carmelo, II, 22).
O facto de a única revelação de Deus destinada a todos os
povos ter ficado concluída com Cristo e o testemunho que d’Ele
nos dão os livros do Novo Testamento vincula a Igreja com o
acontecimento único que é a história sagrada e a palavra da Bíblia,
que garante e interpreta tal acontecimento, mas não significa que
agora a Igreja pode apenas olhar para o passado, ficando assim
condenada a uma estéril repetição. Eis o que diz o Catecismo da
Igreja Católica: «No entanto, apesar de a Revelação ter acabado,
não quer dizer que esteja completamente explicitada. E está
reservado à fé cristã apreender gradualmente todo o seu alcance
no decorrer dos séculos» (n. 66). Estes dois aspectos — o vínculo
com a unicidade do acontecimento e o progresso na sua
compreensão — estão optimamente ilustrados nos discursos de
despedida do Senhor, quando Ele declara aos discípulos: «Ainda
tenho muitas coisas para vos dizer, mas não as podeis suportar
agora. Quando vier o Espírito da Verdade, Ele guiar-vos-á para a
verdade total, porque não falará de Si mesmo (...) Ele glorificar-
-Me-á, porque há-de receber do que é meu, para vo-lo anunciar»
(Jo 16, 12-14). Por um lado, o Espírito serve de guia, desvendando
assim um conhecimento cuja densidade não se podia alcançar antes
porque faltava o pressuposto, ou seja, o da amplidão e profundidade
da fé cristã, e que é tal que não estará concluída jamais. Por outro
lado, esse acto de guiar é «receber» do tesouro do próprio Jesus
Cristo, cuja profundidade inexaurível se manifesta nesta condução
por obra do Espírito. A propósito disto, o Catecismo cita uma densa
frase do Papa Gregório Magno: «As palavras divinas crescem com
quem as lê» (CIC, n. 94; S. Gregório Magno, Homilia sobre Ezequiel
1, 7, 8). O Concílio Vaticano II indica três caminhos essenciais,
através dos quais o Espírito Santo efectua a sua guia da Igreja e,
consequentemente, o «crescimento da Palavra»: realiza-se por
meio da meditação e estudo dos fiéis, por meio da íntima inteligência
que experimentam das coisas espirituais, e por meio da pregação
daqueles «que, com a sucessão do episcopado, receberam o
carisma da verdade» (Dei Verbum, n. 8).
Neste contexto, torna-se agora possível compreender correctamente o conceito de «revelação privada», que se aplica a todas
as visões e revelações verificadas depois da conclusão do Novo
Testamento; nesta categoria, portanto, se deve colocar a mensagem de Fátima. Ouçamos o que diz o Catecismo da Igreja Católica
sobre isto também: «No decurso dos séculos tem havido revelações ditas “privadas”, algumas das quais foram reconhecidas pela
autoridade da Igreja. (...) O seu papel não é (...) “completar” a Revelação definitiva de Cristo, mas ajudar a vivê-la mais plenamente
numa determinada época da história » (n. 67). Isto deixa claro duas
coisas:
1. A autoridade das revelações privadas é essencialmente diversa da única revelação pública: esta exige a nossa fé; de facto,
nela, é o próprio Deus que nos fala por meio de palavras humanas
e da mediação da comunidade viva da Igreja. A fé em Deus e na
sua Palavra é distinta de qualquer outra fé, crença, opinião humana. A certeza de que é Deus que fala, cria em mim a segurança de
encontrar a própria verdade; uma certeza assim não se pode verificar em mais nenhuma forma humana de conhecimento. É sobre
tal certeza que edifico a minha vida e me entrego ao morrer.
223
2. A revelação privada é um auxílio para esta fé, e manifesta-
-se credível precisamente porque faz apelo à única revelação pública. O Cardeal Próspero Lambertini, mais tarde Papa Bento XIV,
afirma a tal propósito num tratado clássico, que se tornou normativo
a propósito das beatificações e canonizações: «A tais revelações
aprovadas não é devida uma adesão de fé católica; nem isso é
possível. Estas revelações requerem, antes, uma adesão de fé
humana ditada pelas regras da prudência, que no-las apresentam
como prováveis e religiosamente credíveis». O teólogo flamengo
E. Dhanis, eminente conhecedor desta matéria, afirma sinteticamente que a aprovação eclesial duma revelação privada contém
três elementos: que a respectiva mensagem não contém nada em
contraste com a fé e os bons costumes, que é lícito torná-la pública, e que os fiéis ficam autorizados a prestar-lhe de forma prudente a sua adesão [E. Dhanis, Sguardo su Fatima e bilancio di una
discussione, em: La Civiltà Cattolica, CIV (1953-II), 392-406, especialmente 397]. Tal mensagem pode ser um válido auxílio para compreender e viver melhor o Evangelho na hora actual; por isso, não
se deve transcurar. É uma ajuda que é oferecida, mas não é obrigatório fazer uso dela.
Assim, o critério para medir a verdade e o valor duma revelação privada é a sua orientação para o próprio Cristo. Quando se
afasta d’Ele, quando se torna autónoma ou até se faz passar por
outro desígnio de salvação, melhor e mais importante que o Evangelho, então ela certamente não provém do Espírito Santo, que
nos guia no âmbito do Evangelho e não fora dele. Isto não exclui
que uma revelação privada realce novos aspectos, faça surgir formas de piedade novas ou aprofunde e divulgue antigas. Mas, em
tudo isso, deve tratar-se sempre de um alimento para a fé, a esperança e a caridade, que são, para todos, o caminho permanente
da salvação. Podemos acrescentar que frequentemente as revelações privadas provêm da piedade popular e nela se reflectem, dando-lhe novo impulso e suscitando formas novas. Isto não exclui
que aquelas tenham influência também na própria liturgia, como o
demonstram por exemplo a festa do Corpo de Deus e a do Sagrado Coração de Jesus. Numa determinada perspectiva, pode-se
afirmar que, na relação entre liturgia e piedade popular, está
delineada a relação entre revelação pública e revelações privadas:
a liturgia é o critério, a forma vital da Igreja no seu conjunto alimen-
tada directamente pelo Evangelho. A religiosidade popular significa que a fé cria raízes no coração dos diversos povos, entrando a
fazer parte do mundo da vida quotidiana. A religiosidade popular é
a primeira e fundamental forma de «inculturação» da fé, que deve
continuamente deixar-se orientar e guiar pelas indicações da liturgia,
mas que, por sua vez, a fecunda a partir do coração.
Desta forma, passámos já das especificações mais negativas,
e que eram primariamente necessárias, à definição positiva das
revelações privadas: Como podem classificar-se de modo correcto a partir da Escritura? Qual é a sua categoria teológica? A carta
mais antiga de S. Paulo que nos foi conservada e que é também o
mais antigo escrito do Novo Testamento, a primeira Carta aos
Tessalonicenses, parece-me oferecer uma indicação. Lá, diz o
Apóstolo: «Não extingais o Espírito, não desprezeis as profecias.
Examinai tudo e retende o que for bom» (5, 19-21). Em todo o
tempo é dado à Igreja o carisma da profecia, que, embora tenha de
ser examinado, não pode ser desprezado. A este propósito, é preciso ter presente que a profecia, no sentido da Bíblia, não significa
predizer o futuro, mas aplicar a vontade de Deus ao tempo presente e consequentemente mostrar o recto caminho do futuro. Aquele
que prediz o futuro pretende satisfazer a curiosidade da razão, que
deseja rasgar o véu que esconde o futuro; o profeta vem em ajuda
da cegueira da vontade e do pensamento, ilustrando a vontade de
Deus enquanto exigência e indicação para o presente. Neste caso,
a predição do futuro tem uma importância secundária; o essencial
é a actualização da única revelação, que me diz respeito profundamente: a palavra profética ora é advertência ora consolação, ou
então as duas coisas ao mesmo tempo. Neste sentido, pode-se
relacionar o carisma da profecia com a noção «sinais do tempo»,
redescoberta pelo Vaticano II: «Sabeis interpretar o aspecto da terra e do céu; como é que não sabeis interpretar o tempo presente?»
(Lc 12, 56). Por « sinais do tempo », nesta palavra de Jesus, devese entender o seu próprio caminho, Ele mesmo. Interpretar os sinais do tempo à luz da fé significa reconhecer a presença de Cristo
em cada período de tempo. Nas revelações privadas reconhecidas pela Igreja – e portanto na de Fátima –, trata-se disto mesmo:
ajudar-nos a compreender os sinais do tempo e a encontrar na fé a
justa resposta para os mesmos.Quem lê com atenção o texto do chamado terceiro «segredo» de Fátima, que depois de longo tempo, por disposição do Santo
Padre, é aqui publicado integralmente, ficará presumivelmente
desiludido ou maravilhado depois de todas as especulações que
foram feitas. Não é revelado nenhum grande mistério; o véu do
futuro não é rasgado. Vemos a Igreja dos mártires deste século
que está para findar, representada através duma cena descrita
numa linguagem simbólica de difícil decifração. É isto o que a Mãe
do Senhor queria comunicar à cristandade, à humanidade num
tempo de grandes problemas e angústias? Serve-nos de ajuda no
início do novo milénio? Ou não serão talvez apenas projecções do
mundo interior de crianças, crescidas num ambiente de profunda
piedade, mas simultaneamente assustadas pelas tempestades que
ameaçavam o seu tempo? Como devemos entender a visão, o
que pensar dela?
Revelação pública e revelações privadas – o seu lugar teológico
Antes de encetar uma tentativa de interpretação, cujas linhas
essenciais podem encontrar-se na comunicação que o Cardeal
Sodano pronunciou, no dia 13 de Maio deste ano, no fim da Celebração Eucarística presidida pelo Santo Padre em Fátima, é necessário dar alguns esclarecimentos básicos sobre o modo como,
segundo a doutrina da Igreja, devem ser compreendidos no âmbito da vida de fé fenómenos como o de Fátima. A doutrina da Igreja
distingue «revelação pública» e «revelações privadas»; entre as
duas realidades existe uma diferença essencial, e não apenas de
grau. A noção «revelação pública» designa a acção reveladora de
Deus que se destina à humanidade inteira e está expressa literariamente nas duas partes da Bíblia: o Antigo e o Novo Testamento.
Chama-se «revelação», porque nela Deus Se foi dando a conhecer progressivamente aos homens, até ao ponto de Ele mesmo Se
tornar homem, para atrair e reunir em Si próprio o mundo inteiro
por meio do Filho encarnado, Jesus Cristo. Não se trata, portanto,
de comunicações intelectuais, mas de um processo vital em que
Deus Se aproxima do homem; naturalmente nesse processo, depois aparecem também conteúdos que têm a ver com a inteligência e a compreensão do mistério de Deus. Tal processo envolve o
homem inteiro e, por conseguinte, também a razão, mas não só
ela. Uma vez que Deus é um só, também a história que Ele vive
com a humanidade é única, vale para todos os tempos e encontrou
a sua plenitude com a vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo.
Por outras palavras, em Cristo Deus disse tudo de Si mesmo, e
portanto a revelação ficou concluída com a realização do mistério
de Cristo, expresso no Novo Testamento. O Catecismo da Igreja
Católica, para explicar este carácter definitivo e pleno da revelação, cita o seguinte texto de S. João da Cruz: «Ao dar-nos, como
nos deu, o seu Filho, que é a sua Palavra — e não tem outra —,
Deus disse-nos tudo ao mesmo tempo e de uma só vez nesta Palavra única (...) porque o que antes disse parcialmente pelos profetas, revelou-o totalmente, dando-nos o Todo que é o seu Filho. E
por isso, quem agora quisesse consultar a Deus ou pedir-Lhe alguma visão ou revelação, não só cometeria um disparate, mas
faria agravo a Deus, por não pôr os olhos totalmente em Cristo e
buscar fora d’Ele outra realidade ou novidade» (CIC, n. 65; S. João
da Cruz, A Subida do Monte Carmelo, II, 22).
O facto de a única revelação de Deus destinada a todos os
povos ter ficado concluída com Cristo e o testemunho que d’Ele
nos dão os livros do Novo Testamento vincula a Igreja com o
acontecimento único que é a história sagrada e a palavra da Bíblia,
que garante e interpreta tal acontecimento, mas não significa que
agora a Igreja pode apenas olhar para o passado, ficando assim
condenada a uma estéril repetição. Eis o que diz o Catecismo da
Igreja Católica: «No entanto, apesar de a Revelação ter acabado,
não quer dizer que esteja completamente explicitada. E está
reservado à fé cristã apreender gradualmente todo o seu alcance
no decorrer dos séculos» (n. 66). Estes dois aspectos — o vínculo
com a unicidade do acontecimento e o progresso na sua
compreensão — estão optimamente ilustrados nos discursos de
despedida do Senhor, quando Ele declara aos discípulos: «Ainda
tenho muitas coisas para vos dizer, mas não as podeis suportar
agora. Quando vier o Espírito da Verdade, Ele guiar-vos-á para a
verdade total, porque não falará de Si mesmo (...) Ele glorificar-
-Me-á, porque há-de receber do que é meu, para vo-lo anunciar»
(Jo 16, 12-14). Por um lado, o Espírito serve de guia, desvendando
assim um conhecimento cuja densidade não se podia alcançar antes
porque faltava o pressuposto, ou seja, o da amplidão e profundidade
da fé cristã, e que é tal que não estará concluída jamais. Por outro
lado, esse acto de guiar é «receber» do tesouro do próprio Jesus
Cristo, cuja profundidade inexaurível se manifesta nesta condução
por obra do Espírito. A propósito disto, o Catecismo cita uma densa
frase do Papa Gregório Magno: «As palavras divinas crescem com
quem as lê» (CIC, n. 94; S. Gregório Magno, Homilia sobre Ezequiel
1, 7, 8). O Concílio Vaticano II indica três caminhos essenciais,
através dos quais o Espírito Santo efectua a sua guia da Igreja e,
consequentemente, o «crescimento da Palavra»: realiza-se por
meio da meditação e estudo dos fiéis, por meio da íntima inteligência
que experimentam das coisas espirituais, e por meio da pregação
daqueles «que, com a sucessão do episcopado, receberam o
carisma da verdade» (Dei Verbum, n. 8).
Neste contexto, torna-se agora possível compreender correctamente o conceito de «revelação privada», que se aplica a todas
as visões e revelações verificadas depois da conclusão do Novo
Testamento; nesta categoria, portanto, se deve colocar a mensagem de Fátima. Ouçamos o que diz o Catecismo da Igreja Católica
sobre isto também: «No decurso dos séculos tem havido revelações ditas “privadas”, algumas das quais foram reconhecidas pela
autoridade da Igreja. (...) O seu papel não é (...) “completar” a Revelação definitiva de Cristo, mas ajudar a vivê-la mais plenamente
numa determinada época da história » (n. 67). Isto deixa claro duas
coisas:
1. A autoridade das revelações privadas é essencialmente diversa da única revelação pública: esta exige a nossa fé; de facto,
nela, é o próprio Deus que nos fala por meio de palavras humanas
e da mediação da comunidade viva da Igreja. A fé em Deus e na
sua Palavra é distinta de qualquer outra fé, crença, opinião humana. A certeza de que é Deus que fala, cria em mim a segurança de
encontrar a própria verdade; uma certeza assim não se pode verificar em mais nenhuma forma humana de conhecimento. É sobre
tal certeza que edifico a minha vida e me entrego ao morrer.
223
2. A revelação privada é um auxílio para esta fé, e manifesta-
-se credível precisamente porque faz apelo à única revelação pública. O Cardeal Próspero Lambertini, mais tarde Papa Bento XIV,
afirma a tal propósito num tratado clássico, que se tornou normativo
a propósito das beatificações e canonizações: «A tais revelações
aprovadas não é devida uma adesão de fé católica; nem isso é
possível. Estas revelações requerem, antes, uma adesão de fé
humana ditada pelas regras da prudência, que no-las apresentam
como prováveis e religiosamente credíveis». O teólogo flamengo
E. Dhanis, eminente conhecedor desta matéria, afirma sinteticamente que a aprovação eclesial duma revelação privada contém
três elementos: que a respectiva mensagem não contém nada em
contraste com a fé e os bons costumes, que é lícito torná-la pública, e que os fiéis ficam autorizados a prestar-lhe de forma prudente a sua adesão [E. Dhanis, Sguardo su Fatima e bilancio di una
discussione, em: La Civiltà Cattolica, CIV (1953-II), 392-406, especialmente 397]. Tal mensagem pode ser um válido auxílio para compreender e viver melhor o Evangelho na hora actual; por isso, não
se deve transcurar. É uma ajuda que é oferecida, mas não é obrigatório fazer uso dela.
Assim, o critério para medir a verdade e o valor duma revelação privada é a sua orientação para o próprio Cristo. Quando se
afasta d’Ele, quando se torna autónoma ou até se faz passar por
outro desígnio de salvação, melhor e mais importante que o Evangelho, então ela certamente não provém do Espírito Santo, que
nos guia no âmbito do Evangelho e não fora dele. Isto não exclui
que uma revelação privada realce novos aspectos, faça surgir formas de piedade novas ou aprofunde e divulgue antigas. Mas, em
tudo isso, deve tratar-se sempre de um alimento para a fé, a esperança e a caridade, que são, para todos, o caminho permanente
da salvação. Podemos acrescentar que frequentemente as revelações privadas provêm da piedade popular e nela se reflectem, dando-lhe novo impulso e suscitando formas novas. Isto não exclui
que aquelas tenham influência também na própria liturgia, como o
demonstram por exemplo a festa do Corpo de Deus e a do Sagrado Coração de Jesus. Numa determinada perspectiva, pode-se
afirmar que, na relação entre liturgia e piedade popular, está
delineada a relação entre revelação pública e revelações privadas:
a liturgia é o critério, a forma vital da Igreja no seu conjunto alimen-
tada directamente pelo Evangelho. A religiosidade popular significa que a fé cria raízes no coração dos diversos povos, entrando a
fazer parte do mundo da vida quotidiana. A religiosidade popular é
a primeira e fundamental forma de «inculturação» da fé, que deve
continuamente deixar-se orientar e guiar pelas indicações da liturgia,
mas que, por sua vez, a fecunda a partir do coração.
Desta forma, passámos já das especificações mais negativas,
e que eram primariamente necessárias, à definição positiva das
revelações privadas: Como podem classificar-se de modo correcto a partir da Escritura? Qual é a sua categoria teológica? A carta
mais antiga de S. Paulo que nos foi conservada e que é também o
mais antigo escrito do Novo Testamento, a primeira Carta aos
Tessalonicenses, parece-me oferecer uma indicação. Lá, diz o
Apóstolo: «Não extingais o Espírito, não desprezeis as profecias.
Examinai tudo e retende o que for bom» (5, 19-21). Em todo o
tempo é dado à Igreja o carisma da profecia, que, embora tenha de
ser examinado, não pode ser desprezado. A este propósito, é preciso ter presente que a profecia, no sentido da Bíblia, não significa
predizer o futuro, mas aplicar a vontade de Deus ao tempo presente e consequentemente mostrar o recto caminho do futuro. Aquele
que prediz o futuro pretende satisfazer a curiosidade da razão, que
deseja rasgar o véu que esconde o futuro; o profeta vem em ajuda
da cegueira da vontade e do pensamento, ilustrando a vontade de
Deus enquanto exigência e indicação para o presente. Neste caso,
a predição do futuro tem uma importância secundária; o essencial
é a actualização da única revelação, que me diz respeito profundamente: a palavra profética ora é advertência ora consolação, ou
então as duas coisas ao mesmo tempo. Neste sentido, pode-se
relacionar o carisma da profecia com a noção «sinais do tempo»,
redescoberta pelo Vaticano II: «Sabeis interpretar o aspecto da terra e do céu; como é que não sabeis interpretar o tempo presente?»
(Lc 12, 56). Por « sinais do tempo », nesta palavra de Jesus, devese entender o seu próprio caminho, Ele mesmo. Interpretar os sinais do tempo à luz da fé significa reconhecer a presença de Cristo
em cada período de tempo. Nas revelações privadas reconhecidas pela Igreja – e portanto na de Fátima –, trata-se disto mesmo:
ajudar-nos a compreender os sinais do tempo e a encontrar na fé a
justa resposta para os mesmos.