169. Sexto motivo - A prática desta devoção dá grande liberdade interior, que é a liberdade dos filhos de Deus, àqueles que a praticarem fielmente. Como por esta devoção nos tornamos escravos de Jesus, consagrando-nos a Ele totalmente, nesta qualidade, este bom Mestre em recompensa do cativeiro amoroso que escolhemos: 1.º) tira à alma todo o escrúpulo e temor servil que a pode prender, amesquinhar e confundir; 2.º) abre o coração para uma santa confiança em Deus, fazendo ver n´Ele um Pai; 3.º) inspira-nos um amor terno e filial.
170. Sem me deter a provar a verdade, contento-me em referir um passo histórico da vida da madre Inês de Jesus, religiosa dominicana, do convento de Laneac, em Auvergne, morta em odor de santidade no ano de 1634. Não tendo senão sete anos e sofrendo de grandes penas de espírito, ouviu uma voz que lhe disse que, no caso de ficar livre de todas as suas aflições e ser protegida contra todos os seus inimigos, se devia tornar, o mais cedo possível, escrava de Jesus e de Sua santa Mãe. Entregou-se inteiramente a Jesus e a Maria nesta qualidade, embora não conhecesse até àquela data esta devoção; tendo encontrado uma corrente de ferro, colocou-a à cinta e nunca mais a largou até à hora da morte. Depois de ter feito isto, todas as suas penas e escrúpulos cessaram e encontrou-se em grande paz e dilatação do coração, o que levou a ensinar esta devoção a muitas outras almas que por ela fizeram grandes progressos, entre outros, a M, Olier, professor do Seminário de São Sulpício, e a vários sacerdotes e eclisiásticos do mesmo seminário... Um dia, a Santíssima Virgem apareceu-lhe e colocou-lhe ao pescoço uma corrente de ouro para lhe testemunhar o apreço que tivera o ter-se ela feito sua escrava e de seu Filho; Santa Cecília, que acompanhava a Virgem, disse-lhe - felizes aqueles que são fiéis escravos da Rainha do Céu, pois gozarão da verdadeira liberdade - Tibi servire libertas.
ARTIGO VII
ESTA DEVOÇÃO TRAZ GRANDES BENEFÍCIOS AO PRÓXIMO
171. Sétimo motivo - Pode ainda ser motivo para nos levar a abraçar esta prática os grandes benefícios que dela advém para o próximo. Por esta prática exercemos para com Ele a caridade de modo eminente, pois damos-Lhe, pelas mãos de Maria, tudo o que temos de mais caro, isto é, o valor satisfatório e impetratório de todas as nossas boas obras, sem excepção do menor pensamento ou sofrimento; consentimos em que tudo aquilo que adquirimos e tudo o que viremos a adquirir, até à hora da morte, atos satisfatórios, seja, segundo a vontade da Santíssima Virgem, usando quer para a conversão dos pecadores, quer para a libertação das almas do Purgatório.
Não será isto amar o próximo perfeitamente? Não será isto ser verdadeiro discípulo de Jesus, pois estes reconhecem-se pela caridade? Não será este o meio de converter os pecadores, sem temor de vaidade, e de libertar as almas do Purgatório, sem ter de fazer muito mais do que aquilo que somos obrigados a fazer, segundo o nosso estado?
172. Para conhecer a excelência deste motivo, seria preciso conhecer o bem que representa converter um pecador ou libertar uma alma do Purgatório: bem infinito, maior do que criar o Céu e a Terra, pois se dá a uma alma a posse de Deus. Quando por esta prática se libertasse apenas uma alma do Purgatório, durante toda uma vida, ou se convertesse um só pecador, não seria isto bastante para resolver todo o homem verdadeiramente caritativo a abraçá-la?
No entanto, devemos notar que as nossas boas obras, passando pelas mãos de Maria, recebem um aumento de pureza e, por consequência, de mérito e de valor satisfatório e impetratório; tornam-se por isso, muito mais capazes de aliviar as almas do Purgatório e de converter os pecadores do que se não passassem pelas mãos liberais e virginais de Maria. O pouco que damos por intermédio da Santíssima Virgem, sem nisso entrar a nossa vontade, e por uma verdadeira caridade desinteressada, torna-se, na verdade, bem poderoso para dobrar a cólera de Deus e atrair a Sua misericórdia; verificar-se-á, à hora da morte, que uma alma fiel a esta prática conseguiu, por este meio, libertar muitas almas do Purgatório e converter muitos pecadores, embora não tenha praticado senão ações próprias do seu estado, bastante normais. Que alegria para a alma durante o seu julgamento e que glória para a eternidade!
ARTIGO VIII
ESTA DEVOÇÃO É MEIO ADMIRÁVEL DE PERSEVERANÇA
173. Oitavo motivo - Finalmente, aquilo que nos deve prender mais poderosamente, de algum modo, a esta devoção à Santíssima Virgem, é porque ela é um admirável meio de perseverança na virtude de ser fiel. Porque será que grande parte das conversões dos pecadores não são duráveis? Porque caem tão facilmente no pecado? Porque será que a maior parte dos justos, longe de avançar de virtude em virtude e de adquirir novas graças, perde tantas vezes as poucas virtudes e graças que tem? Esta desgraça provém de que o homem, como acima mostrei, sendo tão corrompido, tão fraco e inconstante, se fia em si, apoia-se nas próprias forças e julga-se capaz de guardar o tesouro das suas graças, virtudes e méritos.
Por esta devoção confia-se à Virgem, que é fiel, tudo o que possui, tomando-a por depositária universal de todos os bens da natureza e da graça. Entregamo-nos à sua fidelidade, apoiamo-nos no seu poder, contamos com a sua misericórdia e a sua caridade, para que conserve e aumente as nossas virtudes e méritos, mau grado o diabo, o mundo e a carne que empregam todas as suas forças para no-los arrebatar. Dizemos-lhe como um bom filho à sua mãe, um fiel servo à sua senhora: Depositum custodi; minha boa Mãe e Senhora, reconheço que tenho recebido, até hoje, mais graças de Deus por vossa intercessão do que mereço e que a minha funesta experiência me ensina que trago este tesouro num vaso frágil e que sou muito fraco e miserável para o conservar: adolescentulus sum ego et contemptus; por favor, recebei em depósito tudo o que possuo, e conservai-o para mim, pela vossa fidelidade e poder. Se mo guardais, nada poderei perder; se me sustentais, não poderei cair; se me protegeis, nada poderão contra mim os meus inimigos.
174. Eis o que diz São Bernardo, em termos formais, para nos inspirar esta prática:
Desde que Maria vos sustenta, não caireis, desde que vos proteja, nada tereis a temer; desde que vos conduza, não sentireis fadiga; se vos for favorável, chegareis ao porto da salvação; Ipsa tenente, non curruis; ipsa protegente, non metuis; ipsa duce, non fatigaris; ipsa propita pervenis. (Serm. super Missus est)
São Boaventura parece dizer a mesma coisa, em termos mais formais ainda:
A Santíssima Virgem não está somente contida na plenitude dos santos; mas ela contém e guarda os santos na sua plenitude, para que esta não diminua; ela impede que as suas virtudes se dissipem, que os seus méritos se desaproveitem, que as suas graças se percam, que os demónios os prejudiquem; numa palavra, ela impede que Nosso Senhor os castigue quando pecam: Virgo nun solun plenitudine sanctorum detinetir, sed etiam in plenitudine sanctos detine, ne plenitudo minuatur; detinet virtutes ne fugiant; detinet merita ne pereant; detinet gratias ne efluant; detinet daemones ne nocent; detinet Filium, ne peccatores percutiat. (São Boaventura, in Speculo B. V.)
175. A Virgem Santíssima é a Virgem fiel que, pela sua fidelidade a Deus, repara os estragos feitos pela infiel Eva e que consegue a fidelidade para com Deus e a perseverança àqueles que se prendem a ela. Por isso, um santo compara-a a uma firme âncora que os retém e impede de naufragar no mar agitado deste mundo, onde tantos perecem, por se não prenderem a esta âncora forte. Animas ad spem tuam sicut ad firmam anchoram alligamus.
A ela os santos que se salvaram são mais presos e prendem os outros, para perseverarem na virtude. Felizes, mil vezes felizes, os cristãos que, presentemente, se prendem fiel e inteiramente à Virgem, como a âncora firme. Os esforços das tempestades deste mundo não os farão soçobrar, nem perder os tesouros celestes. Felizes aqueles que entram nela como na Arca de Noé!
As águas do dilúvio dos pecados que afogam o mundo não os atingirão, pois: Qui operantur in me non peccabum: «aqueles que estão comigo a trabalhar na sua salvação não pecarão», diz ela com a Sabedoria. Felizes os infelizes filhos de Eva que se prendem a esta Mãe e Virgem fiel que nunca se desmente: Fideles permanet, se ipsam negare non potest e que ama sempre aqueles que a amam: Ego diligentes me diligo, com um amor eficaz, impedindo-os, pela abundância das graças, de recuar na virtude ou de cair no caminho perdendo a graça de seu Filho.
176. Esta boa Mãe recebe sempre, por pura caridade, tudo aquilo que lhe confiamos; e tendo recebido alguma coisa como depositária, obriga-se, por justiça, por contrato de depósito, a no-lo guardar; tal como uma pessoa a quem confiássemos em depósito uma certa quantia em dinheiro seria obrigada a guardá-los, de modo que se por sua nigligência se perdessem, essa pessoa seria responsável em boa justiça. No entanto, de modo algum a fiel Maria deixará perder aquilo que lhe confiamos: seria mais fácil passarem os Céus e a Terra do que ela ser infiel com aqueles que nela confiam.
177. Pobres filhos de Maria, a vossa pobreza é extrema, a vossa inconstância grande, a vossa natureza bem amimada. Confesso que sois retirados da mesma massa corrompida dos filhos de Adão e Eva; não vos desencorajeis por isso; consolai-vos e alegrai-vos; aqui vos deixo o segredo, segredo desconhecido de quase todos os cristãos, mesmo dos mais devotos.
Não guardeis o vosso ouro nem a vossa prata nos vossos cofres, que já foram forçados pelo espírito maligno que vos roubou, e que são demasiadamente pequenos, fracos e velhos, para conter tesouro tão grande e tão precioso. Não deveis meter água pura e límpida da fonte nos vasos contaminados e infetados pelo pecado; embora já lá não esteja o pecado, continua o seu odor e a água ficará estragada. Não coloqueis os vossos vinhos mais preciosos em velhos tonéis que já contiveram vinho estragado. Seria estragar o bom vinho e expô-lo ao perigo de se perder.
178. Embora tenha a certeza de que me compreendeis, almas privilegiadas e predestinadas, quero falar mais claramente. Não confieis o ouro da vossa caridade, a prata da vossa pureza, as águas das graças celestes, nem os vinhos dos vossos méritos e virtudes, a um saco esburacado, a um cofre velho e mal seguro, a um vaso contaminado e corrompido, como vós sois; de contrário, sereis roubados pelos ladrões, quer dizer, pelos demónios que espiam, dia e noite, o tempo próprio para o conseguir; de contrário, estragareis, pelo mau odor de amor-próprio e da própria vontade, tudo aquilo que Deus vos deu de mais puro.
Colocai, depositai no seio e no coração de Maria todos os vossos tesouros, todas as vossas graças e virtudes; é um vaso de espírito, vaso de honra, vaso insigne de devoção: Vas spirituale, vas honorabile, vas insigne devotionis. Depois que o próprio Deus em pessoa Se encerrou neste vaso, com todas as Suas perfeições, ele tornou-Se espiritual e a morada espiritual de todas as almas espirituais: tornou-Se honrável, trono dos grandes príncipes da eternidade; tornou-Se insigne em devoção e a morada dos mais ilustres em graça e em virtude; tornou-Se, finalmente, rico com uma casa de ouro, forte como uma torre de David, puro como uma torre de marfim!
179. Oh! Como é feliz aquele que tudo dá a Maria, se confia e perde tudo em Maria! É todo de Maria e Maria toda dele. Pode ousadamente dizer como David: Haec facta est mihi, «Maria foi feita para mim»; ou com o discípulo bem-amado: Accepi eam in mea, «Eis aí a tua Mãe», ou com Jesus Cristo; Omnia mea tua sunt, et omnia tua mea sunt, «tudo o que é meu é teu, e tudo o que é teu é meu».
180. Se algum crítico ler isto deve imaginar que falo assim por exagero ou devoção exaltada! Não me compreenderá, quer porque é homem carnal, que não aprecia as coisas do espírito, quer porque é do mundo e não pode receber o Espírito Santo, quer porque é orgulhoso e crítico e portanto condena e despreza tudo aquilo que não compreende. Contudo, as almas que não são nascidas do sangue, nem da vontade do homem, mas de Deus e de Maria, compreender-me-ão e apreciarão; é para essas que escrevo.
181. Digo, entretanto, para uns e outros, retomando a matéria interrompida, que a divina Maria, sendo a mais correta e liberal de todas as criaturas, não se deixa vencer em amor e generosidade; por um ovo, diz um santo homem, dá um boi; quer dizer: embora seja pouco o que se lhe dá, ela dará sempre muito daquilo que Deus lhe deu; por conseguinte, se uma alma se lhe entrega sem reserva, ela dá-se a esta alma sem reserva também, se essa alma pôe toda a sua confiança nela, sem presunção, trabalhando pela sua parte por adquirir virtudes e domar as paixões.
182. Digam, portanto, os fiéis servos da Virgem, digam ousadamente com São João Damasceno:
Se tiver confiança em vós, Mãe de Deus, estarei salvo; se tiver a vossa proteção, nada terei a temer; se tiver o vosso socorro, combaterei e porei em fuga os meus inimigos, pois a vossa devoção é arma de salvação que Deus dá àqueles que quer salvar: Spem tuam babens, o Deipara, servabor: defensionem tuam possidens, nom timebo; persequar inimicos meos et in fugam vertam, habens protectionem tuam et auxilium tuum; nam tibi devotum esse est arma quaedam salutis quae Deus his dat quos vult salvos fieri.
ARTIGO VI
169. Sexto motivo - A prática desta devoção dá grande liberdade interior, que é a liberdade dos filhos de Deus, àqueles que a praticarem fielmente. Como por esta devoção nos tornamos escravos de Jesus, consagrando-nos a Ele totalmente, nesta qualidade, este bom Mestre em recompensa do cativeiro amoroso que escolhemos: 1.º) tira à alma todo o escrúpulo e temor servil que a pode prender, amesquinhar e confundir; 2.º) abre o coração para uma santa confiança em Deus, fazendo ver n´Ele um Pai; 3.º) inspira-nos um amor terno e filial.
170. Sem me deter a provar a verdade, contento-me em referir um passo histórico da vida da madre Inês de Jesus, religiosa dominicana, do convento de Laneac, em Auvergne, morta em odor de santidade no ano de 1634. Não tendo senão sete anos e sofrendo de grandes penas de espírito, ouviu uma voz que lhe disse que, no caso de ficar livre de todas as suas aflições e ser protegida contra todos os seus inimigos, se devia tornar, o mais cedo possível, escrava de Jesus e de Sua santa Mãe. Entregou-se inteiramente a Jesus e a Maria nesta qualidade, embora não conhecesse até àquela data esta devoção; tendo encontrado uma corrente de ferro, colocou-a à cinta e nunca mais a largou até à hora da morte. Depois de ter feito isto, todas as suas penas e escrúpulos cessaram e encontrou-se em grande paz e dilatação do coração, o que levou a ensinar esta devoção a muitas outras almas que por ela fizeram grandes progressos, entre outros, a M, Olier, professor do Seminário de São Sulpício, e a vários sacerdotes e eclisiásticos do mesmo seminário... Um dia, a Santíssima Virgem apareceu-lhe e colocou-lhe ao pescoço uma corrente de ouro para lhe testemunhar o apreço que tivera o ter-se ela feito sua escrava e de seu Filho; Santa Cecília, que acompanhava a Virgem, disse-lhe - felizes aqueles que são fiéis escravos da Rainha do Céu, pois gozarão da verdadeira liberdade - Tibi servire libertas.
ARTIGO VII
ESTA DEVOÇÃO TRAZ GRANDES BENEFÍCIOS AO PRÓXIMO
171. Sétimo motivo - Pode ainda ser motivo para nos levar a abraçar esta prática os grandes benefícios que dela advém para o próximo. Por esta prática exercemos para com Ele a caridade de modo eminente, pois damos-Lhe, pelas mãos de Maria, tudo o que temos de mais caro, isto é, o valor satisfatório e impetratório de todas as nossas boas obras, sem excepção do menor pensamento ou sofrimento; consentimos em que tudo aquilo que adquirimos e tudo o que viremos a adquirir, até à hora da morte, atos satisfatórios, seja, segundo a vontade da Santíssima Virgem, usando quer para a conversão dos pecadores, quer para a libertação das almas do Purgatório.
Não será isto amar o próximo perfeitamente? Não será isto ser verdadeiro discípulo de Jesus, pois estes reconhecem-se pela caridade? Não será este o meio de converter os pecadores, sem temor de vaidade, e de libertar as almas do Purgatório, sem ter de fazer muito mais do que aquilo que somos obrigados a fazer, segundo o nosso estado?
172. Para conhecer a excelência deste motivo, seria preciso conhecer o bem que representa converter um pecador ou libertar uma alma do Purgatório: bem infinito, maior do que criar o Céu e a Terra, pois se dá a uma alma a posse de Deus. Quando por esta prática se libertasse apenas uma alma do Purgatório, durante toda uma vida, ou se convertesse um só pecador, não seria isto bastante para resolver todo o homem verdadeiramente caritativo a abraçá-la?
No entanto, devemos notar que as nossas boas obras, passando pelas mãos de Maria, recebem um aumento de pureza e, por consequência, de mérito e de valor satisfatório e impetratório; tornam-se por isso, muito mais capazes de aliviar as almas do Purgatório e de converter os pecadores do que se não passassem pelas mãos liberais e virginais de Maria. O pouco que damos por intermédio da Santíssima Virgem, sem nisso entrar a nossa vontade, e por uma verdadeira caridade desinteressada, torna-se, na verdade, bem poderoso para dobrar a cólera de Deus e atrair a Sua misericórdia; verificar-se-á, à hora da morte, que uma alma fiel a esta prática conseguiu, por este meio, libertar muitas almas do Purgatório e converter muitos pecadores, embora não tenha praticado senão ações próprias do seu estado, bastante normais. Que alegria para a alma durante o seu julgamento e que glória para a eternidade!
ARTIGO VIII
ESTA DEVOÇÃO É MEIO ADMIRÁVEL DE PERSEVERANÇA
173. Oitavo motivo - Finalmente, aquilo que nos deve prender mais poderosamente, de algum modo, a esta devoção à Santíssima Virgem, é porque ela é um admirável meio de perseverança na virtude de ser fiel. Porque será que grande parte das conversões dos pecadores não são duráveis? Porque caem tão facilmente no pecado? Porque será que a maior parte dos justos, longe de avançar de virtude em virtude e de adquirir novas graças, perde tantas vezes as poucas virtudes e graças que tem? Esta desgraça provém de que o homem, como acima mostrei, sendo tão corrompido, tão fraco e inconstante, se fia em si, apoia-se nas próprias forças e julga-se capaz de guardar o tesouro das suas graças, virtudes e méritos.
Por esta devoção confia-se à Virgem, que é fiel, tudo o que possui, tomando-a por depositária universal de todos os bens da natureza e da graça. Entregamo-nos à sua fidelidade, apoiamo-nos no seu poder, contamos com a sua misericórdia e a sua caridade, para que conserve e aumente as nossas virtudes e méritos, mau grado o diabo, o mundo e a carne que empregam todas as suas forças para no-los arrebatar. Dizemos-lhe como um bom filho à sua mãe, um fiel servo à sua senhora: Depositum custodi; minha boa Mãe e Senhora, reconheço que tenho recebido, até hoje, mais graças de Deus por vossa intercessão do que mereço e que a minha funesta experiência me ensina que trago este tesouro num vaso frágil e que sou muito fraco e miserável para o conservar: adolescentulus sum ego et contemptus; por favor, recebei em depósito tudo o que possuo, e conservai-o para mim, pela vossa fidelidade e poder. Se mo guardais, nada poderei perder; se me sustentais, não poderei cair; se me protegeis, nada poderão contra mim os meus inimigos.
174. Eis o que diz São Bernardo, em termos formais, para nos inspirar esta prática:
Desde que Maria vos sustenta, não caireis, desde que vos proteja, nada tereis a temer; desde que vos conduza, não sentireis fadiga; se vos for favorável, chegareis ao porto da salvação; Ipsa tenente, non curruis; ipsa protegente, non metuis; ipsa duce, non fatigaris; ipsa propita pervenis. (Serm. super Missus est)
São Boaventura parece dizer a mesma coisa, em termos mais formais ainda:
A Santíssima Virgem não está somente contida na plenitude dos santos; mas ela contém e guarda os santos na sua plenitude, para que esta não diminua; ela impede que as suas virtudes se dissipem, que os seus méritos se desaproveitem, que as suas graças se percam, que os demónios os prejudiquem; numa palavra, ela impede que Nosso Senhor os castigue quando pecam: Virgo nun solun plenitudine sanctorum detinetir, sed etiam in plenitudine sanctos detine, ne plenitudo minuatur; detinet virtutes ne fugiant; detinet merita ne pereant; detinet gratias ne efluant; detinet daemones ne nocent; detinet Filium, ne peccatores percutiat. (São Boaventura, in Speculo B. V.)
175. A Virgem Santíssima é a Virgem fiel que, pela sua fidelidade a Deus, repara os estragos feitos pela infiel Eva e que consegue a fidelidade para com Deus e a perseverança àqueles que se prendem a ela. Por isso, um santo compara-a a uma firme âncora que os retém e impede de naufragar no mar agitado deste mundo, onde tantos perecem, por se não prenderem a esta âncora forte. Animas ad spem tuam sicut ad firmam anchoram alligamus.
A ela os santos que se salvaram são mais presos e prendem os outros, para perseverarem na virtude. Felizes, mil vezes felizes, os cristãos que, presentemente, se prendem fiel e inteiramente à Virgem, como a âncora firme. Os esforços das tempestades deste mundo não os farão soçobrar, nem perder os tesouros celestes. Felizes aqueles que entram nela como na Arca de Noé!
As águas do dilúvio dos pecados que afogam o mundo não os atingirão, pois: Qui operantur in me non peccabum: «aqueles que estão comigo a trabalhar na sua salvação não pecarão», diz ela com a Sabedoria. Felizes os infelizes filhos de Eva que se prendem a esta Mãe e Virgem fiel que nunca se desmente: Fideles permanet, se ipsam negare non potest e que ama sempre aqueles que a amam: Ego diligentes me diligo, com um amor eficaz, impedindo-os, pela abundância das graças, de recuar na virtude ou de cair no caminho perdendo a graça de seu Filho.
176. Esta boa Mãe recebe sempre, por pura caridade, tudo aquilo que lhe confiamos; e tendo recebido alguma coisa como depositária, obriga-se, por justiça, por contrato de depósito, a no-lo guardar; tal como uma pessoa a quem confiássemos em depósito uma certa quantia em dinheiro seria obrigada a guardá-los, de modo que se por sua nigligência se perdessem, essa pessoa seria responsável em boa justiça. No entanto, de modo algum a fiel Maria deixará perder aquilo que lhe confiamos: seria mais fácil passarem os Céus e a Terra do que ela ser infiel com aqueles que nela confiam.
177. Pobres filhos de Maria, a vossa pobreza é extrema, a vossa inconstância grande, a vossa natureza bem amimada. Confesso que sois retirados da mesma massa corrompida dos filhos de Adão e Eva; não vos desencorajeis por isso; consolai-vos e alegrai-vos; aqui vos deixo o segredo, segredo desconhecido de quase todos os cristãos, mesmo dos mais devotos.
Não guardeis o vosso ouro nem a vossa prata nos vossos cofres, que já foram forçados pelo espírito maligno que vos roubou, e que são demasiadamente pequenos, fracos e velhos, para conter tesouro tão grande e tão precioso. Não deveis meter água pura e límpida da fonte nos vasos contaminados e infetados pelo pecado; embora já lá não esteja o pecado, continua o seu odor e a água ficará estragada. Não coloqueis os vossos vinhos mais preciosos em velhos tonéis que já contiveram vinho estragado. Seria estragar o bom vinho e expô-lo ao perigo de se perder.
178. Embora tenha a certeza de que me compreendeis, almas privilegiadas e predestinadas, quero falar mais claramente. Não confieis o ouro da vossa caridade, a prata da vossa pureza, as águas das graças celestes, nem os vinhos dos vossos méritos e virtudes, a um saco esburacado, a um cofre velho e mal seguro, a um vaso contaminado e corrompido, como vós sois; de contrário, sereis roubados pelos ladrões, quer dizer, pelos demónios que espiam, dia e noite, o tempo próprio para o conseguir; de contrário, estragareis, pelo mau odor de amor-próprio e da própria vontade, tudo aquilo que Deus vos deu de mais puro.
Colocai, depositai no seio e no coração de Maria todos os vossos tesouros, todas as vossas graças e virtudes; é um vaso de espírito, vaso de honra, vaso insigne de devoção: Vas spirituale, vas honorabile, vas insigne devotionis. Depois que o próprio Deus em pessoa Se encerrou neste vaso, com todas as Suas perfeições, ele tornou-Se espiritual e a morada espiritual de todas as almas espirituais: tornou-Se honrável, trono dos grandes príncipes da eternidade; tornou-Se insigne em devoção e a morada dos mais ilustres em graça e em virtude; tornou-Se, finalmente, rico com uma casa de ouro, forte como uma torre de David, puro como uma torre de marfim!
179. Oh! Como é feliz aquele que tudo dá a Maria, se confia e perde tudo em Maria! É todo de Maria e Maria toda dele. Pode ousadamente dizer como David: Haec facta est mihi, «Maria foi feita para mim»; ou com o discípulo bem-amado: Accepi eam in mea, «Eis aí a tua Mãe», ou com Jesus Cristo; Omnia mea tua sunt, et omnia tua mea sunt, «tudo o que é meu é teu, e tudo o que é teu é meu».
180. Se algum crítico ler isto deve imaginar que falo assim por exagero ou devoção exaltada! Não me compreenderá, quer porque é homem carnal, que não aprecia as coisas do espírito, quer porque é do mundo e não pode receber o Espírito Santo, quer porque é orgulhoso e crítico e portanto condena e despreza tudo aquilo que não compreende. Contudo, as almas que não são nascidas do sangue, nem da vontade do homem, mas de Deus e de Maria, compreender-me-ão e apreciarão; é para essas que escrevo.
181. Digo, entretanto, para uns e outros, retomando a matéria interrompida, que a divina Maria, sendo a mais correta e liberal de todas as criaturas, não se deixa vencer em amor e generosidade; por um ovo, diz um santo homem, dá um boi; quer dizer: embora seja pouco o que se lhe dá, ela dará sempre muito daquilo que Deus lhe deu; por conseguinte, se uma alma se lhe entrega sem reserva, ela dá-se a esta alma sem reserva também, se essa alma pôe toda a sua confiança nela, sem presunção, trabalhando pela sua parte por adquirir virtudes e domar as paixões.
182. Digam, portanto, os fiéis servos da Virgem, digam ousadamente com São João Damasceno:
Se tiver confiança em vós, Mãe de Deus, estarei salvo; se tiver a vossa proteção, nada terei a temer; se tiver o vosso socorro, combaterei e porei em fuga os meus inimigos, pois a vossa devoção é arma de salvação que Deus dá àqueles que quer salvar: Spem tuam babens, o Deipara, servabor: defensionem tuam possidens, nom timebo; persequar inimicos meos et in fugam vertam, habens protectionem tuam et auxilium tuum; nam tibi devotum esse est arma quaedam salutis quae Deus his dat quos vult salvos fieri.