Ao falar de visitas às Carmelitas, recordo a primeira, que teve lugar pouco depois da entrada da Paulina. Esqueci-me de falar dela mais acima, mas há um pormenor que não devo omitir: na manhã do dia em que devia ir ao locutório, reflectindo sozinha na minha cama (pois era lá que fazia as minhas mais profundas orações e, ao contrário da esposa do Cântico dos Cânticos, lá encontrava sempre o meu Bem-Amado), perguntava-me a mim mesma que nome iria ter no Carmelo. Sabia que havia lá uma Ir. Teresa de Jesus; contudo, o meu lindo nome de Teresa não me poderia ser tirado. De repente pensei [31 vº] no Menino Jesus, que tanto amava, e disse comigo: - «Oh, como ficaria contente, se me chamasse Teresa do Menino Jesus!». Não disse nada no locutório do sonho que tinha tido bem acordada, mas a boa Madre Maria de Gonzaga, ao perguntar às irmãs que nome havia de me dar, lembrou-se de me pôr o nome com que eu tinha sonhado... A minha alegria foi grande, e essa feliz coincidência de pensamentos pareceu-me uma delicadeza do meu Bem-Amado Pequeno Jesus.
Esqueci-me ainda de alguns pequenos pormenores da minha infância, antes da vossa entrada para o Carmelo. Não vos falei do meu amor pelas estampas e pela leitura... E no entanto, minha querida Madre, devo às belas estampas que vós me mostráveis como recompensa, uma das mais doces alegrias e das mais fortes impressões que me incitaram à prática da virtude... Esquecia as horas ao olhar para elas. A Florzinha do Divino Prisioneiro, por exemplo, dizia-me tantas coisas, que ficava extasiada. Ao ver que o nome da Paulina estava escrito por baixo da Florzinha, gostaria que o de Teresa lá estivesse também, e oferecia-me a Jesus para ser a sua Florzinha... Se não sabia brincar, gostava muito da leitura e nela passaria a minha vida. Felizmente tinha anjos da terra para me guiarem, os quais me escolhiam livros que, distraindo-me, me nutriam o coração e o espírito; além disso, só devia estar durante um certo tempo a ler, o que era para mim ocasião de grandes sacrifícios, interrompendo muitas vezes a leitura no meio da passagem mais interessante...
Esta atração pela leitura durou até à minha entrada para o Carmelo. Dizer quantos livros me passaram pelas mãos, seria impossível; mas nunca Deus permitiu que lesse um único capaz de me fazer mal. É verdade que, ao ler certos romances de cavalaria, não sentia sempre, ao primeiro impacto, a realidade da vida; mas depressa Deus me fazia [32 rº] sentir que a verdadeira glória é a que há-de durar eternamente, e que para lá chegar não é preciso fazer actos heróicos, mas esconder-se e praticar a virtude, de tal maneira que a mão esquerda ignore o que faz a direita... Foi assim que, ao ler a narrativa das ações patrióticas das heroínas francesas, em particular da Venerável Joana D´arc, tinha um grande desejo de as imitar; parecia-me sentir em mim o mesmo ardor que as animava, a mesma inspiração celeste. Então recebi uma graça que sempre considerei como uma das maiores da minha vida, porque, nessa idade, não recebia luzes como agora, que estou inundada delas. Pensei que tinha nascido para a glória e, procurando o meio de lá chegar, Deus inspirou-me os sentimentos que acabo de descrever. Fez-me compreender também que a minha própria glória não apareceria aos olhos mortais, que consistiria em me tornar uma grande Santa!!!...
Tal desejo poderia parecer temerário, se tivermos em conta quanto eu era fraca e imperfeita, e quanto o sou ainda após sete anos passados na vida religiosa. No entanto, sinto sempre a mesma confiança audaciosa de me tornar uma grande Santa, pois não conto com os meus méritos, não tendo nenhum, mas espero n´Aquele que é a Virtude, a própria Santidade. Só Ele contentando-se com os meus fracos esforços, me elevará até Ele e, cobrindo-me dos seus méritos infinitos, me fará Santa. Não pensava então que era preciso sofrer muito para chegar à santidade; Deus não tardou em mo mostrar, enviando-me as provações que contei mais acima...
Devo agora retomar a minha narração no ponto em que a deixei. Três meses depois da minha cura, o Papá levou-nos em viagem a Alençon. Era a primeira vez que lá voltava, e a minha alegria foi bem grande ao rever os lugares onde decorrera a minha infância, [32 vº] sobretudo ao poder rezar junto da campa da Mamã, pedindo-lhe que me protegesse sempre...
Deus concedeu-me a graça de não conhecer o mundo a não ser o suficiente para o desprezar e me afastar dele. Poderia dizer que foi durante a minha estada em Alençon que fiz a minha primeira entrada no mundo. Tudo era alegria, felicidade à minha volta; era festejada, acariciada, admirada, numa palavra, a minha vida, durante quinze dias não foi semeada senão de flores... Confesso que essa vida tinha encantos para mim. A Sabedoria tem muita razão ao dizer: - «A fascinação das bagatelas do mundo seduz até o espírito afastado do mal». Aos dez anos o coração deixa-se facilmente fascinar, por isso, considero uma grande graça, não ter ficado em Alençon. Os amigos que lá tínhamos eram demasiadamente mundanos, sabiam conciliar bem demais as alegrias da terra com o serviço de Deus. Não pensavam suficientemente na morte, e, no entanto, a morte já veio visitar um grande número de pessoas que conheci: jovens, ricas e felizes!!! Gosto de voltar, em pensamento, aos lugares encantadores onde elas viveram, perguntando-me onde é que elas estão, que lhes aproveitam os castelos e os parques onde as vi gozar as comodidades da vida? ... E vejo que, debaixo do Sol, tudo é vaidade e aflição de espírito... Que o único bem é amar a Deus com todo o coração e ser, cá em baixo, pobre de espírito...
Talvez Jesus me tenha querido mostrar o mundo antes da minha primeira visita que me ia fazer, a fim de que eu escolhece mais livremente o caminho que havia de lhe prometer seguir.
A época da minha Primeira Comunhão ficou-me gravada no coração como uma recordação sem nuvens. Parece-me que não podia estar mais bem preparada do que estava. Além disso, os tormentos da alma deixaram-me durante quase um ano. Jesus queria fazer-me saborear uma alegria tão perfeita quanto é possível neste vale de lágrimas...
[33 rº] Lembrai-vos, minha querida Madre, do livrinho encantador que me fizestes três meses antes da minha Primeira Comunhão?... Foi ele que me ajudou a preparar o meu coração de uma maneira continuada e rápida porque, se bem que me preparava já desde há muito tempo, era preciso dar-lhe um novo impulso, enchê-lo de flores novas, para que Jesus lá pudesse repousar com prazer... Cada dia fazia um grande número de práticas que constituíam outras tantas flores. Fazia ainda um maior número de invocações que tínheis escrito no meu livrinho para cada dia, e esses actos de amor constituíam os botões das flores...
Todas as semanas me escrevíeis uma linda cartinha que me enchia a alma de pensamentos profundos e me ajudava a praticar a virtude; era uma consolação para a vossa pobre filhinha, que fazia um grande sacrifício, ao aceitar não ser preparada todas as noites nos vossos joelhos, como o tinha sido a sua querida Celina. Era a Maria que, para mim, substituía a Paulina: ela sentava-me nos seus joelhos e eu escutava avidamente o que ela me dizia. Parecia-me que todo o seu coração, tão grande, tão generoso, passava para mim. Como os ilustres guerreiros ensinam aos seus filhos o ofício das armas, assim me falava ela dos combates da vida, da palma dada aos vencedores... A Maria falava-me ainda das riquezas imortais que é fácil amealhar dia a dia, da desgraça de passar sem o esforço de estender a mão para as apanhar. Em seguida ensinava-me a maneira de ser Santa pela fidelidade às mais pequenas coisas. Deu-me a folhinha «Da renúncia», que eu meditava com prazer...
Ah! como a minha querida madrinha era eloquente! Gostaria de não ser a única a ouvir esses profundos ensinamentos. Sentia-me tão comovida que, na minha ingenuidade, pensava que os maiores pecadores teriam ficado comovidos como eu e que, abandonando as suas riquezas perecíveis, já não teriam querido ganhar [33 vº] senão as do Céu...
Até então ninguém me tinha ensinado ainda a fazer oração apesar da minha grande vontade de aprender. A Maria, achando-me bastante piedosa, apenas me deixava fazer as minhas orações.
Um dia, uma das minhas professoras da Abadia perguntou-me o que é que eu fazia nos dias feriados quando estava sozinha. Respondi-lhe que ia para trás da minha cama, para um espaço vazio que lá havia e que era fácil de fechar com a cortina, e punha-me a pensar. - «Mas em que é que pensais?», disse-me ela. - «Penso em Deus, na vida..., na ETERNIDADE..., enfim, penso!...». A boa religiosa riu-se muito. Mais tarde, gostava de me recordar o tempo em que eu pensava, perguntando-me se ainda continuava a pensar... Compreendo agora que fazia oração, sem o saber, e que Deus me instruía já em segredo.
Os três meses de preparação passaram depressa, e logo tive de entrar em retiro, pelo que tive de passar a interna, dormindo na Abadia.
É-me impossível descrever a doce recordação que esse retiro me deixou. Na verdade, se sofri muito no colégio, fui largamente recompensada pela felicidade inefável desses poucos dias passados à espera de Jesus. Não creio que se possa saborear tanta alegria fora das comunidade religiosas. Sendo reduzido o número de crianças, era fácil ocuparem-se de cada uma em particular. Com efeito, as nossas mestras prodigalizavam-nos, então, cuidados maternais. Ocupavam-se ainda mais de mim que das outras; todas as noites, a mestra principal vinha, com a sua pequena lanterna, beijar-me à cama, dando-me provas de muito carinho. Uma noite, sensibilizada com a sua bondade, disse-lhe que lhe ia confiar um segredo e, tirando misteriosamente o meu precioso livrinho de debaixo do travesseiro, mostrei-lho, com os olhos resplandecentes de alegria... De manhã achava muito engraçado ver todas as alunas levantarem-se ao toque de despertar [34 rº] e fazer como elas. Mas não estava habituada a arranjar-me sozinha. A Maria não estava lá para me fazer os caracóis, e, por isso, via-me obrigada a ir timidamente apresentar o meu pente à mestra encarregada do toucador. Ela ria-se ao ver uma menina já com onze anos que não se sabia arranjar. Mesmo assim, ela penteava-me, mas não tão delicadamente como a Maria; porém, não me atrevia a queixar-me, como fazia todos os dias sob a delicada mão da madrinha...
Durante o retiro, pude comprovar que eu era uma criança ternamente amada e acarinhada, como há poucas na terra, sobretudo entre as crianças que não têm mãe... A Maria e a Leónia iam todos os dias visitar-me com o Papá que me cumulava de carícias; de maneira que não sofri a ausência da família, nem houve nada que obscurecesse o belo Céu do meu retiro.
Ouvia com muita atenção as instruções que nos dava o Sr. Pe Domin, e até escrevia o resumo. Quanto aos meus pensamentos, não quis escrever nenhum, certa de que me recordaria bem deles, e assim foi...
Gostava imenso de ir com as religiosas a todos os ofícios. Chamava a atenção entre as minhas companheiras por um grande Crucifixo que a Leónia me tinha dado, e que levava atravessado no cinto, à maneira dos missionários. Aquele Crucifixo causava inveja às religiosas, que pensavam que, ao trazê-lo, queria imitar a minha irmã carmelita... Ah! Era bem para ela que voavam os meus pensamentos! Sabia que a minha Paulina estava em retiro como eu, não para Jesus se dar a ela, mas para se dar ela mesma a Jesus. Assim, aquela solidão, passada à espera, era-me duplamente preciosa...
Lembro-me de que uma manhã me fizeram ir para a enfermaria porque tossia muito. (Desde a minha doença as minhas mestras tinham muito cuidado comigo; bastava uma pequena dor de cabeça ou estar um pouco mais pálida [34 vº] para me mandarem tomar ar ou ir descansar para a enfermaria). Vi entrar a minha querida Celina, que tinha obtido licença para me ir visitar, apesar do retiro, e para me oferecer uma estampa que me deu muita alegria. Era «A Florzinha do Divino Prisioneiro». Oh! como foi bom receber essa recordação da mão da Celina!... Quantos pensamentos de amor não tive por causa dela!...
Na véspera do grande dia, recebi a absolvição pela segunda vez. A minha confissão geral deixou-me uma grande paz na alma, e Deus não permitiu que a mais ligeira nuvem a viesse perturbar. De tarde pedi perdão a toda a família, que me veio visitar; mas não pude falar senão com as minhas lágrimas, pois estava emocionada demais... Faltava a Paulina, mas eu sentia que estava perto de mim em espírito; tinha-me enviado uma bela estampa pela Maria; não me cansava de a admirar e de a fazer admirar a toda a gente!
Eu tinha escrito ao Padre Pichon para me recomendar às suas orações, e disse-lhe também que em breve seria carmelita, e que então ele seria o meu director. (Foi de facto o que aconteceu quatro anos mais tarde, pois foi no Carmelo que lhe abri a minha alma.)... A Maria deu-me uma carta dele. Na verdade, sentia-me extremamente feliz!... Todas as alegrias me chegaram juntas. O que maior alegria me deu na sua carta foi esta frase: «Amanhã celebrarei a santa missa por vós e pela vossa Paulina». Assim, no dia 8 de Maio, a Paulina e a Teresa ficaram ainda mais unidas, pois Jesus parecia fundi-las, inundando-as de graças...
Chegou finalmente o mais belo dos dias! Que inefáveis recordações deixaram na minha alma os mais pequenos pormenores desse dia do Céu!... O alegre despertar da aurora, os beijos respeitosos e ternos das mestras e das [35 rº] companheiras mais velhas...; o salão cheio de flocos de neve com que cada menina era vestida...; e sobretudo a entrada para a capela e o canto matinal da linda canção: «Ó altar santo que os anjos rodeiam!»
Mas não quero entrar em pormenores. Há coisas que perdem o seu perfume quando expostas ao ar; há pensamentos da alma que não se podem traduzir em linguagem da terra sem perderem o sentido íntimo e celeste; são como aquela: «Pedra branca que será dada ao vencedor, sobre a qual está escrito um nome que ninguém conhece, a não ser aquele que a recebe». Ah! como foi doce o primeiro beijo de Jesus à minha alma!... Foi um beijo de amor. Sentia-me amada e dizia por minha vez: - «Eu amo-vos! Dou-me a Vós para sempre!»
Não houve pedidos, nem lutas, nem sacrifícios. Desde há muito, Jesus e a pobre Teresinha tinham-se olhado e tinham-se compreendido... Nesse dia já não era um olhar, mas uma fusão, já não eram dois: a Teresa desaparecera como a gota de água que se perde no oceano. Só ficava Jesus, como dono, com Rei. Acaso não lhe tinha a Teresa pedido que lhe retirasse a liberdade, porque a liberdade lhe metia medo? Sentia-se tão fraca, tão frágil, que queria unir-se para sempre à Força Divina!...
A sua alegria era demasiado grande, demasiado profunda, para a poder conter. Depressa a inundaram lágrimas de alegria, com grande admiração das companheiras, que mais tarde diziam umas às outras: - «Porque é que ela chorou? Teria alguma coisa que a perturbasse?... Não seria acaso por não ter a mãe ao pé dela, ou a irmã carmelita de que tanto gosta?» Não compreendiam que, ao vir a um coração toda a alegria do Céu, este coração exilado a não podia suportar sem derramar lágrimas...
Ah! não! A ausência da mamã não me dava pena no dia da minha Primeira Comunhão. Não estava o Céu [35 vº] na minha alma, e a mamã não tinha tomado lá lugar há muito tempo? Por isso, ao receber a visita de Jesus, recebia também a da minha querida mãe, que me abençoava, alegrando-se com a minha felicidade... Também não chorei a ausência da Paulina. Sem dúvida, teria ficado contente se a visse ao meu lado, mas o meu sacrifício estava aceite há muito tempo. Nesse dia, só a alegria enchia o meu coração. Unia-me a ela que se dava irrevogavelmente Àquele que tão amorosamente se dava a mim!...
De tarde, fui eu que pronunciei o acto de consagração à Santíssima Virgem. Era muito justo que eu falasse em nome das minhas companheiras à minha Mãe do Céu, eu que tinha sido privada tão nova da minha mãe na terra... Pus todo o meu coração em lhe falar, em me consagrar a ela, como uma criança que se lança nos braços da sua mãe e lhe pede para velar por ela. Parece-me que a Santíssima Virgem deve ter olhado a sorrir para a sua Florzinha. Acaso não tinha sido ela que a tinha curado com um sorriso visível?... Não tinha ela deposto no cálice da sua Florzinha o seu Jesus, a Flor dos campos, o Lírio dos vales?...
Ao entardecer desse belo dia, encontrei-me novamente no seio da minha família da terra. Já de manhã, depois da missa, tinha beijado o Papá e todos os meus queridos parentes; mas a verdadeira reunião era à tarde. O Papá, pegando na mão da sua Rainhazinha dirigiu-se para o Carmelo... Vi então a minha Paulina que se tornara esposa de Jesus; vi-a com o seu véu branco como o meu e com a sua coroa de rosas... Ah! a minha alegria foi sem amargura. Esperava ir em breve juntar-me a ela, e esperar com ela o Céu!
Não fui insensível à festa familiar na noite da minha Primeira Comunhão. O lindo relógio que o meu Rei me deu causou-me muito prazer. A minha alegria era tranquila, e nada veio perturbar a minha paz íntima. A Maria levou-me para junto dela, na noite que se seguiu a esse belo dia, pois os dias mais radiosos são seguidos de trevas; só o dia da primeira, da única [36 rº] da eterna Comunhão do Céu será sem ocaso!...
O dia seguinte à minha Primeira Comunhão, foi também um belo dia, embora impregnado de melancolia. O lindo vestido que a Maria me tinha comprado, todos os presentes que recebera, não me enchiam o coração. Só Jesus me podia contentar. Aspirava pelo momento em que o poderia receber pela segunda vez.
Cerca de um mês depois da minha Primeira Comunhão, fui confessar-me para a Ascenção, e ousei pedir licença para receber a Sagrada comunhão. Contra toda a esperança, o Sr. Padre deu-me lincença, e tive a felicidade de me ir ajoelhar à Sagrada Mesa entre o Papá e a Maria. Que doce recordação conservei desta segunda visita de Jesus! As minhas lágrimas correram novamente com uma inefável doçura. Repetia sem cessar, para mim mesma estas palavras de S. Paulo: - «Já não sou eu que vivo, é Jesus que vive em mim!».
A partir daquela comunhão, o meu desejo de receber a Deus tornou-se cada vez maior. Obtive licença para o fazer em todas as festas principais.
Na véspera desses dias felizes, a Maria, à noite, punha-me nos seus joelhos e preparava-me, como o tinha feito para a minha Primeira Comunhão. Lembro-me de que uma vez me falou do sofrimento, dizendo que, provavelmente, eu não teria de ir por esse caminho, mas que Deus me levaria sempre como uma criança...
No dia seguinte, depois da comunhão, as palavras da Maria voltaram-me ao pensamento. Senti nascer no meu coração um grande desejo de sofrer, com a íntima certeza de que Jesus me reservava um grande número de cruzes. Senti-me inundada de consolações tão grandes que as considero uma das maiores graças da minha vida.
O sofrimento tornou-se o meu atractivo. Tinha encantos que me entusiasmavam, sem bem os conhecer. Até então, tinha sofrido sem amar o sofrimento; desde esse dia senti por ele [36 vº] um verdadeiro amor. Sentia também o desejo de não amar senão a Deus, de não encontrar alegria senão n´Ele. Muitas vezes, durante as minhas comunhões, repetia estas palavras da Imitação: «Oh! Jesus, doçura inefável! convertei em amargura para mim todas as consolações da terra!...». Esta oração saía-me dos lábios sem esforço, sem constrangimento; parecia-me que a repetia, não por minha vontade, mas como uma criança que repete as palavras que uma pessoa amiga lhe inspira...
Mais tarde dir-vos-ei, minha querida Madre, como aprouve a Jesus realizar o meu desejo; como foi sempre só Ele a minha doçura inefável. Se vos falasse disso já, seria obrigada a antecipar a minha vida de jovem. Ainda me restam muitos pormenores para vos contar sobre a minha vida de criança.
Pouco tempo depois da minha Primeira Comunhão, entrei novamente em retiro para a minha Confirmação. Tinha-me preparado com muito cuidado para receber a visita do Espírito Santo. Não compreendia que não se desse muita atenção à recepção deste sacramento de Amor. Normalmente só se fazia um dia de retiro para a Confirmação, mas, como o Senhor Bispo não pôde vir no dia marcado, tive a consolação de ter dois dias de solidão. Para nos distrair, a nossa mestra levou-nos ao Monte Cassino, e lá colhi grandes margaridas às mãos-cheias para a festa do Corpo de Deus.
Ah! como a minha alma estava contente! Como os apóstolos, esperava com alegria a visita do Espírito Santo... Alegrava-me com o pensamento de em breve ser perfeita cristã e, sobretudo, com o de ter eternamente na fronte a cruz misteriosa que o Bispo faz ao administrar o sacramento...
Por fim, chegou o feliz momento. Não senti um vento impetuoso no momento da descida do Espírito Santo, mas antes aquela brisa ligeira cujo murmúrio o profeta Elias ouviu sobre o monte Horeb... Nesse dia recebi a força para sofrer, porque logo depois devia começar o martírio da minha alma...
[37 rº] Foi a minha querida Leónia que foi a madrinha. Estava tão comovida que não pôde impedir que as lágrimas lhe corressem durante toda a cerimónia. Recebeu comigo a Sagrada Comunhão, pois tive ainda a alegria de me unir a Jesus nesse belo dia.
Depois dessas deliciosas e inesquecíveis festas, a minha vida reentrou no ordinário, isto é, tive de retomar a vida do colégio, que me era tão penosa. Na altura da minha Primeira Comunhão, gostava daquela convivência com as crianças da minha idade, todas cheias de boa vontade, tendo tomado, como eu, a resolução de praticar seriamente a virtude. Mas tinha de voltar a viver em contacto com alunas muito diferentes, dissipadas, que não queriam observar o regulamento, e isso fazia-me sofrer muito.
Tinha um carácter alegre, mas não sabia participar nos jogos próprios da minha idade. Muitas vezes, durante os recreios, encostava-me a uma árvore e ali contemplava o espectáculo, entregando-me a sérias reflexões!
Tinha inventado um jogo que me agradava: era enterrar os pobres passarinhos que encontrávamos mortos debaixo das árvores. Muitas alunas quiseram ajudar-me, de maneira que o nosso cemitério ficou muito bonito, plantado de árvores e flores proporcionadas ao tamanho dos nossos pequenos pequenos emplumados. Gostava também de contar histórias que eu inventava à medida que me vinham ao pensamento. As minhas companheiras então rodeavam-me com avidez, e às vezes as alunas mais velhas misturavam-se com o grupo das ouvintes. A mesma história durava vários dias, pois divertia-me a torná-la cada vez mais interessante à medida que via pelo rosto das minhas companheiras as impressões que causava. Mas a mestra não tardou em proibir-me de continuar o meu ofício de orador, querendo ver-nos a jogar e a correr e não a discorrer.
Fixava facilmente o sentido do que aprendia, mas custava-me a decorar palavra por palavra. Por isso, durante o ano que precedeu a minha Primeira Comunhão, pedi [37 vº] licença quase todos os dias para estudar o catecismo durante os recreios. Os meus esforços foram coroados de êxito, e fui sempre a primeira. Se, por acaso, por uma só palavra esquecida, perdia o lugar, o meu desgosto manifestava-se em lágrimas amargas que o Sr. P. Domin não sabia como acalmar... Estava muito contente comigo (mas não quando eu chorava) e chamava-me o seu doutorzinho por causa do meu nome de Teresa.
Uma vez, a aluna que estava a seguir a mim não soube fazer à sua companheira a pergunta do catecismo. O senhor Padre, tendo em vão percorrido todas as alunas, chegou a mim, e disse que ia ver se eu merecia o meu primeiro lugar. Na minha profunda humildade, era só o que eu esperava. Levantei-me com aprumo, e disse o que me era pedido sem dar um único erro, com grande admiração de todos. Depois da minha Primeira Comunhão, continuei a ter interesse pelo catecismo, até que saí do colégio.
Era muito bem sucedida nos meus estudos; era quase sempre a primeira. Os meus maiores êxitos alcançava-os em história e redacção. Todas as minhas mestras me consideravam uma aluna muito inteligente. Já não acontecia o mesmo em casa do nosso tio, onde passava por uma pequena ignorante, boa e meiga, ajuizada, mas incapaz e pouco hábil... Não me admira ser esta a opinião que o nosso tio e a nossa tia tinham, e que, sem dúvida ainda têm, a meu respeito. Eu quase não falava, por ser muito tímida; quando escrevia, a minha letra de galinha e a minha ortografia, que é muito natural, não foram feitas para seduzir...
Nos pequenos trabalhos de costura, bordados e outros, saía-me bem, é verdade, ao gosto das minhas mestras, mas a maneira desastrada e desajeitada com que pegava nos meus lavoures justificava a opinião pouco favorável que tinham a meu respeito. Considero isso uma graça de Deus que, querendo o meu coração [38 rº] só para Ele, atendia já a minha oração «Mudando em amargura as consolações da terra». Tanto mais precisava disso, quanto não teria ficado insensível aos elogios. Muitas vezes louvavam à minha frente a inteligência das outras, mas nunca a minha. Então concluí que a não tinha, e resignei-me a ver-me sem ela...
O meu coração sensível e terno, ter-se-ia facilmente entregado se tivesse encontrado um coração capaz de o compreender... Tentei afeiçoar-me a meninas da minha idade, sobretudo a duas delas. Amava-as e, por seu lado, elas também me amavam tanto quanto eram capazes. Mas, ah! como é mesquinho e inconstante o coração das criaturas!!! ... Depressa notei que o meu amor era incompreendido. Uma das minhas amigas, tendo-se visto obrigada a ir para casa, regressou passados alguns meses. Durante a sua ausência, tinha pensado nela, guardando com muito apreço um anelzinho que ela me tinha dado. Ao voltar a ver a minha companheira, senti muita alegria; mas, pobre de mim! não obtive senão um olhar indiferente... Senti que o meu amor não era compreendido, e não mendiguei um afecto que me era recusado.
Contudo, Deus deu-me um coração tão fiel que, a partir do momento em que amou puramente, ama sempre. Por isso continuei a rezar pela minha companheira, e ainda a amo...
Ao ver a Celina gostar duma das nossas mestras, quis imitá-la, mas não consegui, por não saber cativar as simpatias das criaturas. Oh! feliz ignorância! Quantos e quão grandes males me evitou!...
Como agradeço a Jesus por me ter feito encontrar «apenas amargura nas amizades da terra!». Com um coração como o meu, ter-me-ia deixado apanhar e cortar as asas; como teria podido então «voar e repousar?». Como é que um coração entregue ao afecto das criaturas pode unir-se intimamente a Deus?... Sinto que isso não é possível. Sem ter bebido da taça envenenada [38 vº] do amor demasiado ardente das criaturas, sinto que não posso enganar-me. Vi tantas almas voar como pobre borboletas e queimar as asas, seduzidas por essa falsa chama, e depois voltar para a verdadeira, para a doce chama do amor que lhes dava asas novas, mais brilhantes e mais leves, para poderem voar para Jesus, esse Figo divino «que arde sem consumir».
Ah! não duvido! Jesus sabia que eu era fraca demais para me expor à tentação. Talvez me tivesse deixado queimar inteiramente pela chama enganadora, se a tivesse visto brilhar aos meus olhos! Não foi assim. Eu só encontrei amargura onde as almas mais fortes encontram a alegria e renunciam a ela por fidelidade.
Portanto, não tenho mérito nenhum por não me ter entregado ao amor das criaturas, uma vez que fui preservada dele apenas pela grande misericórdia de Deus!... Reconheço que, sem Ele, teria podido cair tão baixo como Santa Madalena.
A profunda palavra de Nosso Senhor a Simão ressoa com uma grande doçura na minha alma. Bem sei: «aquele a quem menos se perdoa, ama menos», mas também sei que Jesus me perdoou mais que a Santa Madalena, porque me perdoou antecipadamente, impedindo-me de cair. Ah! como gostaria de pode explicar o que sinto!... Eis um exemplo que traduzirá um pouco o meu pensamento:
Suponho que o filho dum grande médico encontra no caminho uma pedra que o faz cair, e que, na queda, ele fractura um membro. O pai acorre imediatamente, levanta-o com amor, trata das feridas, empregando para tal todos os recursos da sua arte. Uma vez completamente curado, o filho testemunha-lhe o seu reconhecimento. Sem dúvida, esse filho tem muita razão para amar o pai! Mas vou fazer ainda outra suposição: Tendo o pai sabido que no caminho do filho havia uma pedra, apressa-se a ir à frente dele e retira-a, sem ser visto por ninguém. Certamente, este filho, [39 rº] objecto da sua previdente ternura, não SABENDO a desgraça de que o pai o livrou, não lhe testemunhará o seu reconhecimento, e amá-lo-á menos do que se tivesse sido curado por ele... Mas, se vier a saber o perigo do qual escapou, não o amará ainda mais? Pois bem, eu sou essa filha, objecto do amor previdente de um Pai que não enviou o seu Verbo para resgatar os justos, mas os pecadores. Quer que O ame, porque me perdoou, não muito, mas tudo. Não esperou que eu O amasse muito como Santa Madalena, mas quis que eu SOUBESSE como me tinha amado com um amor de inefável previdência, para que agora O ame loucamente!...
Ouvi dizer que nunca se encontrou uma alma pura que amasse mais do que uma alma arrependida. Ah! como gostaria de desmentir essa palavra!...
Dou-me conta de estar muito longe do meu assunto, por isso, vou já retomá-lo.
O ano que se seguiu à minha Primeira Comunhão passou-se quase todo sem que a minha alma experimentasse provações interiores. Foi durante o meu retiro para a Segunda Comunhão que me vi assaltada pela terrível doença dos escrúpulos... É preciso ter passado por esse martírio, para o compreender bem. Ser-me-ia impossível dizer o que sofri durante ano e meio... Todos os meus pensamentos e as minhas simples acções se tornavam para mim motivo de perturbação. Não tinha sossego, senão contando-os à Maria, o que me custava muito, pois julgava-me obrigada a dizer-lhe os pensamento extravagantes que tinha acerca dela. Logo que descarregava o meu fardo, desfrutava de um momento de paz; mas essa paz passava como um relâmpago e, pouco depois, recomeçava o meu martírio.
Que paciência não teve de ter a minha querida Maria para me escutar, [39 vº] sem nunca se mostrar aborrecida!... Mal eu voltava da Abadia, ela começava a fazer-me os caracóis para o dia seguinte (pois todos os dias, para agradar ao Papá, a rainhazinha tinha o cabelo aos caracóis, com grande admiração das suas companheiras, e especialmente das mestras, que não viam meninas tratadas tão cuidadosamente pelos pais). Durante a sessão de penteado, eu não parava de chorar, contando todos os meus escrúpulos.
No fim do ano, a Celina, tendo terminado os estudos, voltou para casa. A pobre Teresa, obrigada a regressar sozinha, não tardou a adoeçer. O único encanto que a retinha no colégio era viver com a sua inseparável Celina; sem ela, a sua «filhinha» nunca lá pôde ficar...
Saí, portanto, da Abadia com 13 anos de idade, e continuei a minha educação recebendo várias lições por semana em casa da «Senhora Papinau». Era muito boa pessoa, muito instruída, mas com certas maneiras de solteirona. Vivia com a mãe, e era engraçado ver que a vida comum faziam a três (porque a gata era da família, e eu tinha que aturar que ela fizesse o seu ronrom em cima dos meus cadernos e até de admirar o seu lindo porte).
Como os Buissonnets ficavam longe demais para as pernas não muito jovens da minha professora, ela tinha pedido que eu fosse a casa dela receber as lições. Assim, eu tinha a vantagem de viver no seio da família. Quando eu chegava, normalmente só encontrava a velha senhora Cochain, que olhava para mim com seus grandes olhos claros, e logo chamava com voz grave e sentenciosa: - «Senhora Papinau! A m´ni-na Te-résa está aqui...». A filha respondia prontamente com voz infantil: - «Vou já, mamã»! E logo em seguida começava a lição.
Estas lições tinham a vantagem (para além da instrução que recebia) de me fazerem conhecer o mundo... Quem o poderia acreditar?... Naquela sala mobilada à antiga, rodeada de livros e cadernos, eu assistia muitas vezes [40 rº] a visitas de todos os géneros: Sacerdotes, senhoras, meninas, etc... A Srª Cochain fazia todos os possíveis por se encarregar da conversa para deixar a filha dar-me lição; mas nesses dias não aprendia grande coisa. Com o nariz num livro, ouvia tudo o que se dizia e até o que melhor fora para mim não ter ouvido, pois a vaidade penetra tão facilmente no coração!... Uma senhora dizia que eu tinha um lindo cabelo...; outra, ao sair, julgando não ser ouvida, perguntava quem era aquela menina tão linda... Essas palavras, tanto mais lisongeiras quanto não eram ditas na minha frente, deixavam-me na alma uma impressão de prazer que me mostrava claramente quanto eu estava cheia de amor próprio.
Oh! como tenho compaixão das almas que se perdem!... É tão fácil extraviar-se nas sendas floridas do mundo!... Sem dúvida, para uma alma um pouco elevada, a doçura que ele oferece é misturada com amargura, e o vazio imenso dos desejos não poderia ser preenchido com os louvores de um instante... Mas, se o meu coração não tivesse sido elevado para Deus desde o seu despertar, se o mundo me tivesse sorrido desde a minha entrada na vida, que teria sido de mim?... Ó minha querida Madre! com quanto reconhecimento canto as misericórdias do Senhor!... Não foi Ele que, segundo as palavras da Sabedoria me «retirou do mundo antes que o meu espírito fosse corrompido pela sua malícia e que as suas aparências enganadoras me tivessem seduzido a alma?»...
Também a Santíssima Virgem velava pela sua Florzinha. Não querendo, de modo nenhum, que fosse manchada no contacto com as coisas da terra, retirou-a para a sua montanha antes de ser desabrochado. Enquanto esperava por esse feliz momento, a Teresinha crescia em amor para com a sua Mãe do Céu. Para lhe provar este amor, ela fez uma acção que custou muito e que vou contar em poucas palavras, apesar da sua extensão...
[40 vº] Quase logo a seguir à minha entrada para a Abadia, fora recebida na Associação dos Santos Anjos. Gostava muito das práticas de devoção que ela impunha, tendo uma inclinação muito particular para invocar os Bem-aventurados Espíritos do Céu, e particularmente aquele que Deus me deu para ser o companheiro do meu exílio.
Algum tempo depois da minha Primeira Comunhão, a fita de aspirantes às Filhas de Maria substituiu a dos Santos Anjos, mas deixei a Abadia sem ter ingressado na associação da Santíssima Virgem. E não tinha licença para entrar como antiga aluna, por ter saído antes de terminar os estudos. Confesso que não desejava muito ardentemente esse privilégio; mas, pensando que todas as minhas irmãs tinham sido «Filhas de Maria», tive receio de ser menos filha da minha Mãe do Céu do que elas, e fui muito humildemente (apesar de muito me custar) à Abadia pedir a autorização para ser recebida na Assossiação da Santíssima Virgem.
A primeira mestra não mo quis recusar; mas pôs como condição ir lá dois dias por semana, de tarde, para provar se era digna de ser admitida. Muito longe de me agradar, esta autorização custou-me imenso. Não tinha, como as outras antigas alunas, uma mestra amiga com a qual pudesse passar várias horas. Assim, contentava-me com ir comprimentar a mestra, e depois trabalhava em silêncio até ao fim da lição de lavores. Ninguém se ocupava de mim; por isso, subia ao coro da capela e ficava diante do SS. Sacramento até que o Papá me ia buscar. Era a minha única consolação. Não era acaso Jesus o meu único amigo?... Não sabia falar senão com Ele. As conversas com as criaturas, mesmo as conversas piedosas, cansavam-me a alma... Sentia que era preferível falar com Deus do que [41 rº] falar de Deus, pois mistura-se tanto amor próprio nas conversas espirituais!...
Ah! era realmente só pela Santíssima Virgem que eu ia à Abadia!... Ás vezes sentia-me só, muito só. Como nos dias da minha vida de colegial, quando passeava triste e doente pelo pátio grande, repetia estas palavras que sempre faziam renascer a paz e a força no meu coração: «A vida é o teu navio, e não a tua morada!...» Quando eu era pequenina, estas palavras davam-me a coragem; e mesmo agora, apesar dos anos, que fazem desaparecer tantas impressões de piedade infantil, a imagem do navio encanta-me ainda a alma e ajuda-me a suportar o exílio...
Não diz também a Sabedoria que «a vida é como o barco que corta as ondas agitadas, sem deixar atrás de si nenhum sinal da sua rápida passagem?...». Quando penso nestas coisas, a minha alma mergulha no infinito; parece-me estar já a chegar à margem eterna...; parece-me receber já os abraços de Jesus... Julgo ver a minha Mãe do Céu vir ao meu encontro com o Papá..., a mamã..., os quatro anjinhos... Parece-me gozar, enfim, para sempre, da verdadeira, da eterna vida em família...
Mas antes de ver a família reunida no lar Paterno dos Céus, tinha de passar ainda por muitas separações. No ano em que fui recebida como filha da Santíssima Virgem, ela roubou-me a minha querida Maria, o único amparo da minha alma. Era a Maria que me guiava, me consolava, me ajudava a praticar a virtude; ela era o meu único oráculo.
Sem dúvida, a Paulina tinha ficado muito antes no meu coração; mas a Paulina estava longe, muito longe de mim!... Tinha sofrido um martírio para me habituar a viver sem ela, por ver entre mim e ela muros intrans[41 vº]poníveis. Mas, por fim, tinha acabado por reconhecer a triste realidade: a Paulina estava perdida para mim, quase da mesma maneira como se estivesse morta. Continuava a amar-me, rezava por mim; mas aos meus olhos, a minha querida Paulina tornara-se uma santa que já não devia compreender as coisas da terra, e as misérias da sua pobre Teresa, se ela as conhecesse, causar-lhe-iam admiração impedi-la-iam de a amar tanto...
Aliás, mesmo que tivesse querido confiar-lhe os meus pensamentos, como nos Buissonnets, não teria podido, pois as visitas no locutório eram só para a Maria. A Celina e eu não tínhamos licença para entrar senão no fim, apenas o tempo necessário para se nos oprimir o coração...
Por isso, não tinha, na realidade, senão a Maria. Ela era para mim, por assim dizer, indispensável. Só a ela comunicava os meus escrúpulos; e obedecia-lhe de tal maneira que o meu confessor nunca soube da minha péssima doença. Dizia-lhe apenas o número de pecados que a Maria me tinha permitido confessar, nem mais um. Assim teria podido passar pela alma menos escrupulosa do mundo, apesar de o ser em extremo... A Maria sabia, portanto, tudo quanto se passava na minha alma; sabia também dos meus desejos de ir para o Carmelo. Amava-a tanto que não podia viver sem ela.
A nossa tia convidava-nos todos os anos, à vez, a irmos a casa dela em Trouville. Teria gostado muito de ir, mas com a Maria! Quando não estava com ela, aborrecia-me muito. Uma vez, não obstante, fiquei contente em Trouville. Foi no ano da viagem do Papá a Constantinopla. Para nos distrair um pouco (pois estávamos muito tristes por o Papá estar tão longe), a Maria mandou-nos, à Celina e a mim, passar 15 dias à beira mar. Diverti-me lá muito, porque tinha comigo a Celina. A nossa tia proporcionou-nos todos os divertimentos possíveis: passeios de burro, pesca da enguia, etc.
Eu era ainda muito criança, [42 rº] apesar dos meus doze anos e meio. Lembro-me da alegria que sentia ao usar lindas fitas de cor azul-celeste que a nossa tia me tinha dado para pôr no cabelo. Também me lembro de até me ter confessado em Trouville desse prazer infantil que julgava ser pecado...
Uma tarde, fim uma experiência que muito me surpreendeu. A Maria (Guérin), que estava quase sempre adoentada, choramingava muitas vezes. Então a nossa tia acariciava-a, chamava-lhe os nomes mais meigos, e nem por isso a minha querida priminha parava de choramingar nem de dizer que lhe doía a cabeça. Eu, que também tinha dores de cabeça quase todos os dias, e não me queixava, quis, uma tarde, imitar a Maria; pus-me a choramingar, numa poltrona, a um canto do salão. Imediatamente acorreram à minha volta a Joana e a nossa tia, perguntando-me o que é que eu tinha. Respondi como a Maria: - «Dói-me a cabeça». Parece que não tinha jeito para me queixar, pois não consegui convencê-las minimamente de que a dor de cabeça me fizesse chorar. Em vez de me acariciarem, falaram-me como a uma pessoa crescida, e a Joana censurou-me por eu ter falta de confiança na nossa tia, pois pensava que eu tinha qualquer inquietação de consciência...
Enfim, aprendi à minha custa, bem decidida a nunca mais imitar os outros, e compreendi a fábula de «O burro e o cão». Eu era o burro que, tendo visto as carícias que prodigalizavam ao cãozinho, veio pôr a sua pesada pata na mesa para receber o seu quinhão de beijos. Mas, ai de mim! se não recebi pauladas como o pobre animal, recebi verdadeiramente a paga na mesma moeda, e essa paga curou-me para toda a vida do desejo de atraír as atenções; a única tentativa que fiz para tal saiu-me demasiado cara!...
No ano seguinte, que foi o da partida da minha querida madrinha, a nossa tia voltou a convidar-me, mas desta vez fui sozinha, e senti-me tão deslocada que, [42 vº] passados dois ou três dias caí doente, e foi preciso levarem-me outra vez para Lisieux. A minha doença, que temiam que fosse grave, não era senão a nostalgia dos Buissonnets; mal lá pus os pés, a saúde voltou... E era a essa criança que Deus ia roubar o único apoio que a prendia à vida!... Logo que tive conhecimento da determinação da Maria, resolvi não sentir mais nenhum gosto por nada da terra. A seguir à minha saída do colégio, tinha-me instalado no antigo quarto de pintura da Paulina, e tinha-o arranjado ao meu gosto. Era um autêntico bazar; um agregado de piedade e de curiosidades; um jardim e uma passareira... Ao fundo destacava-se uma grande cruz de madeira preta sem Cristo, e alguns desenhos que gostava; noutra parede, uma giga guarnecida de musselina e de fitas cor-de-rosa com ervas finas e flores; finalmente, na última parede, dominava sozinho o retrato da Paulina aos 10 anos. Por baixo desse retrato tinha uma mesa, sobre a qual estava uma grande gaiola com um grande número de pássaros, cuja chilreada melodiosa moía a cabeça aos visitantes, mas não à sua pequena dona, que gostava muito deles...
Havia ainda o «pequeno móvel branco» com os meus livros de estudo, cadernos, etc... Em cima desse móvel estava colocada uma imagem da Santíssima Virgem com jarras sempre com flores naturais, e castiçais. A toda a volta havia uma quantidade de pequenas imagens de santos e de santas, cestinhos de conchas, caixas de cartolina, etc!... Por fim, tinha um jardim suspenso diante da janela, onde cuidava dos vasos de flores (as mais raras que podia encontrar). Tinha ainda, dentro do «meu museu» uma jardineira, onde punha a minha planta favorita...
Diante da janela [43 rº] estava colocada a minha mesa, coberta com um pano verde e, sobre este pano tinha colocado, no meio, uma ampulheta, uma pequena imagem de S. José, um porta-relógios, cestos de flores, um tinteiro, etc... Algumas cadeiras mancas e a encantadora cama da boneca da Paulina completavam o meu mobiliário.
Realmente, aquela pobre mansarda era um mundo para mim, e, como o Sr. de Maistre, eu teria podido escrever um livro intitulado: «Passeio à volta do meu quarto». Era nesse quarto que gostava de ficar sozinha horas inteiras para estudar e meditar perante o belo panorama que se estendia diante dos meus olhos...
Ao saber da partida da Maria, o quarto perdeu para mim todo o encanto. Não queria deixar um único instante a irmã querida, que em breve ia voar... Quantos actos de paciência a fiz praticar! Cada vez que passava diante da porta do quarto dela, batia até ela me abrir, e então beijava-a com todo o meu coração. Queria fazer provisão de beijos para todo o tempo em que iria ficar privada deles.
Um mês antes da sua entrada para o Carmelo, o Papá levou-nos a Alençon; mas aquela viagem nem de longe se pareceu com a primeira; dessa vez, tudo foi para mim tristeza e amargura. Não poderia descrever as lágrimas que derramei sobre a campa da mamã, porque me tinha esquecido de levar um ramalhete de escovinhas que tinha apanhado para ela.
Realmente, eu contristava-me com tudo! Era ao contrário de agora, pois Deus dá-me a graça de não ficar abatida por nenhuma coisa passageira. Quando me lembro do tempo passado, a minha alma tranborda de reconhecimento, ao ver os favores que recebi do Céu; operou-se em mim uma mudança tal, que estou irreconhecível...
É verdade que eu desejava a graça «de ter um domínio absoluto sobre as minhas acções, de ser senhora delas, e não escrava». [43 vº] Estas palavras da Imitação impressionavam-me profundamente, mas tinha que comprar, por assim dizer, com os meus desejos essa graça inestimável. Então ainda era apenas uma criança que parecia não ter outra vontade senão a dos outros, o que levava a gente de Alençon a dizer que eu era fraca de carácter...
Foi durante esta viagem que a Leónia fez a sua experiência nas Clarissas. Sofri com a sua entrada extraordinária, pois gostava muito dela, e não tinha podido beijá-la antes de partir. Nunca esquecerei a bondade e o embaraço do pobre paizinho, ao vir anunciar-nos que a Leónia já tinha o hábito de Clarissa... Como nós, ele achava aquilo muito esquisito, mas não queria dizer nada, ao ver como a Maria estava contente. Levou-nos ao convento, e lá senti uma tristeza como nunca tinha sentido à vista de um convento. Produziu em mim um efeito contrário ao do Carmelo, onde tudo me dilatava a alma... O ver as religiosas não me encantou mais, e não tive a tentação de ficar junto delas.
A pobre Leónia ficava, no entanto, muito linda sob o seu novo traje. Disse-nos para olharmos bem para os seus olhos, porque não voltaríamos a vê-los. (As Clarissas apresentam-se sempre com os olhos baixos). Mas Deus contentou-se com dois meses de sacrifício, e a Leónia voltou a mostrar-nos os seus olhos azuis, muitíssimas vezes banhados em lágrimas...
Ao deixar Alençon, pensei que ela ficaria [definitivamente] com as Clarissas; por isso, foi com muito pesar que me afastei da triste rua da meia lua, Já só éramos três, e em breve a nossa querida Maria também nos havia de deixar...
O dia 15 de Outubro foi o dia da separação! Da alegre e numerosa família dos Buissonnets só restavam as duas últimas filhas... As pombas tinham fugido do ninho paterno; as que ficaram teriam querido voar atrás delas, mas as suas asas [44 rº] eram ainda muito fracas para poderem empreender o seu voo...
Deus, que queria chamar a si a mais pequena e a mais fraca de todas, apressou-se a fazer crescer as suas asas. Ele, que se compraz em mostrar a sua bondade e o seu poder servindo-se dos instrumentos menos dignos, quis chamar-me antes da Celina que, sem dúvida era mais merecedora desse favor. Mas Jesus sabia quanto eu era fraca, e por isso escondeu-me primeiro a mim na cavidade do rochedo.
Quando a Maria entrou para o Carmelo, eu era ainda muito escrupulosa. Não podendo já confiar-me a ela, recorri ao Céu. Dirigi-me aos quatro anjinhos que me tinham precedido lá em cima, pois pensava que essas almas inocentes, não tendo nunca conhecido as perturbações nem o temor, deviam ter piedade da pobre irmãzinha que sofria na terra.
Falei-lhes com uma simplicidade de criança, fazendo-lhes notar que, sendo a última da família, tinha sido sempre a mais amada, a mais cumulada das ternuras das minhas irmãs, e que se eles tivessem ficado na terra, me teriam, sem dúvida, dado provas da sua afeição... A partida deles para o Céu não me parecia uma razão para me esquecerem; pelo contrário, encontrando-se em situação de se servirem dos tesouros divinos, deviam alcançar-me a paz e mostrar-me assim que também no Céu se sabe amar!...
A resposta não se fez esperar; em breve a paz veio inundar a minha alma com as suas ondas deliciosas, e compreendi que, se era amada na terra, o era também no Céu... A partir desse momento, aumentou a minha devoção para com os meus irmãozinhos, e gosto de conversar muitas vezes com eles, de lhes falar das tristezas do exílio..., do meu desejo de ir em breve juntar-me com eles na Pátria!...
Ao falar de visitas às Carmelitas, recordo a primeira, que teve lugar pouco depois da entrada da Paulina. Esqueci-me de falar dela mais acima, mas há um pormenor que não devo omitir: na manhã do dia em que devia ir ao locutório, reflectindo sozinha na minha cama (pois era lá que fazia as minhas mais profundas orações e, ao contrário da esposa do Cântico dos Cânticos, lá encontrava sempre o meu Bem-Amado), perguntava-me a mim mesma que nome iria ter no Carmelo. Sabia que havia lá uma Ir. Teresa de Jesus; contudo, o meu lindo nome de Teresa não me poderia ser tirado. De repente pensei [31 vº] no Menino Jesus, que tanto amava, e disse comigo: - «Oh, como ficaria contente, se me chamasse Teresa do Menino Jesus!». Não disse nada no locutório do sonho que tinha tido bem acordada, mas a boa Madre Maria de Gonzaga, ao perguntar às irmãs que nome havia de me dar, lembrou-se de me pôr o nome com que eu tinha sonhado... A minha alegria foi grande, e essa feliz coincidência de pensamentos pareceu-me uma delicadeza do meu Bem-Amado Pequeno Jesus.
Esqueci-me ainda de alguns pequenos pormenores da minha infância, antes da vossa entrada para o Carmelo. Não vos falei do meu amor pelas estampas e pela leitura... E no entanto, minha querida Madre, devo às belas estampas que vós me mostráveis como recompensa, uma das mais doces alegrias e das mais fortes impressões que me incitaram à prática da virtude... Esquecia as horas ao olhar para elas. A Florzinha do Divino Prisioneiro, por exemplo, dizia-me tantas coisas, que ficava extasiada. Ao ver que o nome da Paulina estava escrito por baixo da Florzinha, gostaria que o de Teresa lá estivesse também, e oferecia-me a Jesus para ser a sua Florzinha... Se não sabia brincar, gostava muito da leitura e nela passaria a minha vida. Felizmente tinha anjos da terra para me guiarem, os quais me escolhiam livros que, distraindo-me, me nutriam o coração e o espírito; além disso, só devia estar durante um certo tempo a ler, o que era para mim ocasião de grandes sacrifícios, interrompendo muitas vezes a leitura no meio da passagem mais interessante...
Esta atração pela leitura durou até à minha entrada para o Carmelo. Dizer quantos livros me passaram pelas mãos, seria impossível; mas nunca Deus permitiu que lesse um único capaz de me fazer mal. É verdade que, ao ler certos romances de cavalaria, não sentia sempre, ao primeiro impacto, a realidade da vida; mas depressa Deus me fazia [32 rº] sentir que a verdadeira glória é a que há-de durar eternamente, e que para lá chegar não é preciso fazer actos heróicos, mas esconder-se e praticar a virtude, de tal maneira que a mão esquerda ignore o que faz a direita... Foi assim que, ao ler a narrativa das ações patrióticas das heroínas francesas, em particular da Venerável Joana D´arc, tinha um grande desejo de as imitar; parecia-me sentir em mim o mesmo ardor que as animava, a mesma inspiração celeste. Então recebi uma graça que sempre considerei como uma das maiores da minha vida, porque, nessa idade, não recebia luzes como agora, que estou inundada delas.
Pensei que tinha nascido para a glória e, procurando o meio de lá chegar, Deus inspirou-me os sentimentos que acabo de descrever. Fez-me compreender também que a minha própria glória não apareceria aos olhos mortais, que consistiria em me tornar uma grande Santa!!!...
Tal desejo poderia parecer temerário, se tivermos em conta quanto eu era fraca e imperfeita, e quanto o sou ainda após sete anos passados na vida religiosa. No entanto, sinto sempre a mesma confiança audaciosa de me tornar uma grande Santa, pois não conto com os meus méritos, não tendo nenhum, mas espero n´Aquele que é a Virtude, a própria Santidade. Só Ele contentando-se com os meus fracos esforços, me elevará até Ele e, cobrindo-me dos seus méritos infinitos, me fará Santa. Não pensava então que era preciso sofrer muito para chegar à santidade; Deus não tardou em mo mostrar, enviando-me as provações que contei mais acima...
Devo agora retomar a minha narração no ponto em que a deixei. Três meses depois da minha cura, o Papá levou-nos em viagem a Alençon.
Era a primeira vez que lá voltava, e a minha alegria foi bem grande ao rever os lugares onde decorrera a minha infância, [32 vº] sobretudo ao poder rezar junto da campa da Mamã, pedindo-lhe que me protegesse sempre...
Deus concedeu-me a graça de não conhecer o mundo a não ser o suficiente para o desprezar e me afastar dele. Poderia dizer que foi durante a minha estada em Alençon que fiz a minha primeira entrada no mundo. Tudo era alegria, felicidade à minha volta; era festejada, acariciada, admirada, numa palavra, a minha vida, durante quinze dias não foi semeada senão de flores... Confesso que essa vida tinha encantos para mim. A Sabedoria tem muita razão ao dizer: - «A fascinação das bagatelas do mundo seduz até o espírito afastado do mal». Aos dez anos o coração deixa-se facilmente fascinar, por isso, considero uma grande graça, não ter ficado em Alençon. Os amigos que lá tínhamos eram demasiadamente mundanos, sabiam conciliar bem demais as alegrias da terra com o serviço de Deus. Não pensavam suficientemente na morte, e, no entanto, a morte já veio visitar um grande número de pessoas que conheci: jovens, ricas e felizes!!! Gosto de voltar, em pensamento, aos lugares encantadores onde elas viveram, perguntando-me onde é que elas estão, que lhes aproveitam os castelos e os parques onde as vi gozar as comodidades da vida? ... E vejo que, debaixo do Sol, tudo é vaidade e aflição de espírito... Que o único bem é amar a Deus com todo o coração e ser, cá em baixo, pobre de espírito...
Talvez Jesus me tenha querido mostrar o mundo antes da minha primeira visita que me ia fazer, a fim de que eu escolhece mais livremente o caminho que havia de lhe prometer seguir.
A época da minha Primeira Comunhão ficou-me gravada no coração como uma recordação sem nuvens. Parece-me que não podia estar mais bem preparada do que estava. Além disso, os tormentos da alma deixaram-me durante quase um ano. Jesus queria fazer-me saborear uma alegria tão perfeita quanto é possível neste vale de lágrimas...
[33 rº] Lembrai-vos, minha querida Madre, do livrinho encantador que me fizestes três meses antes da minha Primeira Comunhão?... Foi ele que me ajudou a preparar o meu coração de uma maneira continuada e rápida porque, se bem que me preparava já desde há muito tempo, era preciso dar-lhe um novo impulso, enchê-lo de flores novas, para que Jesus lá pudesse repousar com prazer... Cada dia fazia um grande número de práticas que constituíam outras tantas flores. Fazia ainda um maior número de invocações que tínheis escrito no meu livrinho para cada dia, e esses actos de amor constituíam os botões das flores...
Todas as semanas me escrevíeis uma linda cartinha que me enchia a alma de pensamentos profundos e me ajudava a praticar a virtude; era uma consolação para a vossa pobre filhinha, que fazia um grande sacrifício, ao aceitar não ser preparada todas as noites nos vossos joelhos, como o tinha sido a sua querida Celina. Era a Maria que, para mim, substituía a Paulina: ela sentava-me nos seus joelhos e eu escutava avidamente o que ela me dizia. Parecia-me que todo o seu coração, tão grande, tão generoso, passava para mim. Como os ilustres guerreiros ensinam aos seus filhos o ofício das armas, assim me falava ela dos combates da vida, da palma dada aos vencedores... A Maria falava-me ainda das riquezas imortais que é fácil amealhar dia a dia, da desgraça de passar sem o esforço de estender a mão para as apanhar. Em seguida ensinava-me a maneira de ser Santa pela fidelidade às mais pequenas coisas. Deu-me a folhinha «Da renúncia», que eu meditava com prazer...
Ah! como a minha querida madrinha era eloquente! Gostaria de não ser a única a ouvir esses profundos ensinamentos. Sentia-me tão comovida que, na minha ingenuidade, pensava que os maiores pecadores teriam ficado comovidos como eu e que, abandonando as suas riquezas perecíveis, já não teriam querido ganhar [33 vº] senão as do Céu...
Até então ninguém me tinha ensinado ainda a fazer oração apesar da minha grande vontade de aprender. A Maria, achando-me bastante piedosa, apenas me deixava fazer as minhas orações.
Um dia, uma das minhas professoras da Abadia perguntou-me o que é que eu fazia nos dias feriados quando estava sozinha. Respondi-lhe que ia para trás da minha cama, para um espaço vazio que lá havia e que era fácil de fechar com a cortina, e punha-me a pensar. - «Mas em que é que pensais?», disse-me ela. - «Penso em Deus, na vida..., na ETERNIDADE..., enfim, penso!...». A boa religiosa riu-se muito. Mais tarde, gostava de me recordar o tempo em que eu pensava, perguntando-me se ainda continuava a pensar... Compreendo agora que fazia oração, sem o saber, e que Deus me instruía já em segredo.
Os três meses de preparação passaram depressa, e logo tive de entrar em retiro, pelo que tive de passar a interna, dormindo na Abadia.
É-me impossível descrever a doce recordação que esse retiro me deixou. Na verdade, se sofri muito no colégio, fui largamente recompensada pela felicidade inefável desses poucos dias passados à espera de Jesus. Não creio que se possa saborear tanta alegria fora das comunidade religiosas. Sendo reduzido o número de crianças, era fácil ocuparem-se de cada uma em particular. Com efeito, as nossas mestras prodigalizavam-nos, então, cuidados maternais. Ocupavam-se ainda mais de mim que das outras; todas as noites, a mestra principal vinha, com a sua pequena lanterna, beijar-me à cama, dando-me provas de muito carinho. Uma noite, sensibilizada com a sua bondade, disse-lhe que lhe ia confiar um segredo e, tirando misteriosamente o meu precioso livrinho de debaixo do travesseiro, mostrei-lho, com os olhos resplandecentes de alegria... De manhã achava muito engraçado ver todas as alunas levantarem-se ao toque de despertar [34 rº] e fazer como elas. Mas não estava habituada a arranjar-me sozinha. A Maria não estava lá para me fazer os caracóis, e, por isso, via-me obrigada a ir timidamente apresentar o meu pente à mestra encarregada do toucador. Ela ria-se ao ver uma menina já com onze anos que não se sabia arranjar. Mesmo assim, ela penteava-me, mas não tão delicadamente como a Maria; porém, não me atrevia a queixar-me, como fazia todos os dias sob a delicada mão da madrinha...
Durante o retiro, pude comprovar que eu era uma criança ternamente amada e acarinhada, como há poucas na terra, sobretudo entre as crianças que não têm mãe... A Maria e a Leónia iam todos os dias visitar-me com o Papá que me cumulava de carícias; de maneira que não sofri a ausência da família, nem houve nada que obscurecesse o belo Céu do meu retiro.
Ouvia com muita atenção as instruções que nos dava o Sr. Pe Domin, e até escrevia o resumo. Quanto aos meus pensamentos, não quis escrever nenhum, certa de que me recordaria bem deles, e assim foi...
Gostava imenso de ir com as religiosas a todos os ofícios. Chamava a atenção entre as minhas companheiras por um grande Crucifixo que a Leónia me tinha dado, e que levava atravessado no cinto, à maneira dos missionários. Aquele Crucifixo causava inveja às religiosas, que pensavam que, ao trazê-lo, queria imitar a minha irmã carmelita... Ah! Era bem para ela que voavam os meus pensamentos! Sabia que a minha Paulina estava em retiro como eu, não para Jesus se dar a ela, mas para se dar ela mesma a Jesus. Assim, aquela solidão, passada à espera, era-me duplamente preciosa...
Lembro-me de que uma manhã me fizeram ir para a enfermaria porque tossia muito. (Desde a minha doença as minhas mestras tinham muito cuidado comigo; bastava uma pequena dor de cabeça ou estar um pouco mais pálida [34 vº] para me mandarem tomar ar ou ir descansar para a enfermaria). Vi entrar a minha querida Celina, que tinha obtido licença para me ir visitar, apesar do retiro, e para me oferecer uma estampa que me deu muita alegria. Era «A Florzinha do Divino Prisioneiro». Oh! como foi bom receber essa recordação da mão da Celina!... Quantos pensamentos de amor não tive por causa dela!...
Na véspera do grande dia, recebi a absolvição pela segunda vez. A minha confissão geral deixou-me uma grande paz na alma, e Deus não permitiu que a mais ligeira nuvem a viesse perturbar. De tarde pedi perdão a toda a família, que me veio visitar; mas não pude falar senão com as minhas lágrimas, pois estava emocionada demais... Faltava a Paulina, mas eu sentia que estava perto de mim em espírito; tinha-me enviado uma bela estampa pela Maria; não me cansava de a admirar e de a fazer admirar a toda a gente!
Eu tinha escrito ao Padre Pichon para me recomendar às suas orações, e disse-lhe também que em breve seria carmelita, e que então ele seria o meu director. (Foi de facto o que aconteceu quatro anos mais tarde, pois foi no Carmelo que lhe abri a minha alma.)... A Maria deu-me uma carta dele. Na verdade, sentia-me extremamente feliz!... Todas as alegrias me chegaram juntas. O que maior alegria me deu na sua carta foi esta frase: «Amanhã celebrarei a santa missa por vós e pela vossa Paulina». Assim, no dia 8 de Maio, a Paulina e a Teresa ficaram ainda mais unidas, pois Jesus parecia fundi-las, inundando-as de graças...
Chegou finalmente o mais belo dos dias! Que inefáveis recordações deixaram na minha alma os mais pequenos pormenores desse dia do Céu!... O alegre despertar da aurora, os beijos respeitosos e ternos das mestras e das [35 rº] companheiras mais velhas...; o salão cheio de flocos de neve com que cada menina era vestida...; e sobretudo a entrada para a capela e o canto matinal da linda canção: «Ó altar santo que os anjos rodeiam!»
Mas não quero entrar em pormenores. Há coisas que perdem o seu perfume quando expostas ao ar; há pensamentos da alma que não se podem traduzir em linguagem da terra sem perderem o sentido íntimo e celeste; são como aquela: «Pedra branca que será dada ao vencedor, sobre a qual está escrito um nome que ninguém conhece, a não ser aquele que a recebe». Ah! como foi doce o primeiro beijo de Jesus à minha alma!... Foi um beijo de amor. Sentia-me amada e dizia por minha vez: - «Eu amo-vos! Dou-me a Vós para sempre!»
Não houve pedidos, nem lutas, nem sacrifícios. Desde há muito, Jesus e a pobre Teresinha tinham-se olhado e tinham-se compreendido... Nesse dia já não era um olhar, mas uma fusão, já não eram dois: a Teresa desaparecera como a gota de água que se perde no oceano. Só ficava Jesus, como dono, com Rei. Acaso não lhe tinha a Teresa pedido que lhe retirasse a liberdade, porque a liberdade lhe metia medo? Sentia-se tão fraca, tão frágil, que queria unir-se para sempre à Força Divina!...
A sua alegria era demasiado grande, demasiado profunda, para a poder conter. Depressa a inundaram lágrimas de alegria, com grande admiração das companheiras, que mais tarde diziam umas às outras: - «Porque é que ela chorou? Teria alguma coisa que a perturbasse?... Não seria acaso por não ter a mãe ao pé dela, ou a irmã carmelita de que tanto gosta?» Não compreendiam que, ao vir a um coração toda a alegria do Céu, este coração exilado a não podia suportar sem derramar lágrimas...
Ah! não! A ausência da mamã não me dava pena no dia da minha Primeira Comunhão. Não estava o Céu [35 vº] na minha alma, e a mamã não tinha tomado lá lugar há muito tempo? Por isso, ao receber a visita de Jesus, recebia também a da minha querida mãe, que me abençoava, alegrando-se com a minha felicidade... Também não chorei a ausência da Paulina. Sem dúvida, teria ficado contente se a visse ao meu lado, mas o meu sacrifício estava aceite há muito tempo. Nesse dia, só a alegria enchia o meu coração. Unia-me a ela que se dava irrevogavelmente Àquele que tão amorosamente se dava a mim!...
De tarde, fui eu que pronunciei o acto de consagração à Santíssima Virgem. Era muito justo que eu falasse em nome das minhas companheiras à minha Mãe do Céu, eu que tinha sido privada tão nova da minha mãe na terra... Pus todo o meu coração em lhe falar, em me consagrar a ela, como uma criança que se lança nos braços da sua mãe e lhe pede para velar por ela. Parece-me que a Santíssima Virgem deve ter olhado a sorrir para a sua Florzinha. Acaso não tinha sido ela que a tinha curado com um sorriso visível?... Não tinha ela deposto no cálice da sua Florzinha o seu Jesus, a Flor dos campos, o Lírio dos vales?...
Ao entardecer desse belo dia, encontrei-me novamente no seio da minha família da terra. Já de manhã, depois da missa, tinha beijado o Papá e todos os meus queridos parentes; mas a verdadeira reunião era à tarde. O Papá, pegando na mão da sua Rainhazinha dirigiu-se para o Carmelo... Vi então a minha Paulina que se tornara esposa de Jesus; vi-a com o seu véu branco como o meu e com a sua coroa de rosas... Ah! a minha alegria foi sem amargura. Esperava ir em breve juntar-me a ela, e esperar com ela o Céu!
Não fui insensível à festa familiar na noite da minha Primeira Comunhão. O lindo relógio que o meu Rei me deu causou-me muito prazer. A minha alegria era tranquila, e nada veio perturbar a minha paz íntima. A Maria levou-me para junto dela, na noite que se seguiu a esse belo dia, pois os dias mais radiosos são seguidos de trevas; só o dia da primeira, da única [36 rº] da eterna Comunhão do Céu será sem ocaso!...
O dia seguinte à minha Primeira Comunhão, foi também um belo dia, embora impregnado de melancolia. O lindo vestido que a Maria me tinha comprado, todos os presentes que recebera, não me enchiam o coração. Só Jesus me podia contentar. Aspirava pelo momento em que o poderia receber pela segunda vez.
Cerca de um mês depois da minha Primeira Comunhão, fui confessar-me para a Ascenção, e ousei pedir licença para receber a Sagrada comunhão. Contra toda a esperança, o Sr. Padre deu-me lincença, e tive a felicidade de me ir ajoelhar à Sagrada Mesa entre o Papá e a Maria. Que doce recordação conservei desta segunda visita de Jesus! As minhas lágrimas correram novamente com uma inefável doçura. Repetia sem cessar, para mim mesma estas palavras de S. Paulo: - «Já não sou eu que vivo, é Jesus que vive em mim!».
A partir daquela comunhão, o meu desejo de receber a Deus tornou-se cada vez maior. Obtive licença para o fazer em todas as festas principais.
Na véspera desses dias felizes, a Maria, à noite, punha-me nos seus joelhos e preparava-me, como o tinha feito para a minha Primeira Comunhão. Lembro-me de que uma vez me falou do sofrimento, dizendo que, provavelmente, eu não teria de ir por esse caminho, mas que Deus me levaria sempre como uma criança...
No dia seguinte, depois da comunhão, as palavras da Maria voltaram-me ao pensamento. Senti nascer no meu coração um grande desejo de sofrer, com a íntima certeza de que Jesus me reservava um grande número de cruzes. Senti-me inundada de consolações tão grandes que as considero uma das maiores graças da minha vida.
O sofrimento tornou-se o meu atractivo. Tinha encantos que me entusiasmavam, sem bem os conhecer. Até então, tinha sofrido sem amar o sofrimento; desde esse dia senti por ele [36 vº] um verdadeiro amor. Sentia também o desejo de não amar senão a Deus, de não encontrar alegria senão n´Ele. Muitas vezes, durante as minhas comunhões, repetia estas palavras da Imitação: «Oh! Jesus, doçura inefável! convertei em amargura para mim todas as consolações da terra!...». Esta oração saía-me dos lábios sem esforço, sem constrangimento; parecia-me que a repetia, não por minha vontade, mas como uma criança que repete as palavras que uma pessoa amiga lhe inspira...
Mais tarde dir-vos-ei, minha querida Madre, como aprouve a Jesus realizar o meu desejo; como foi sempre só Ele a minha doçura inefável. Se vos falasse disso já, seria obrigada a antecipar a minha vida de jovem. Ainda me restam muitos pormenores para vos contar sobre a minha vida de criança.
Pouco tempo depois da minha Primeira Comunhão, entrei novamente em retiro para a minha Confirmação. Tinha-me preparado com muito cuidado para receber a visita do Espírito Santo. Não compreendia que não se desse muita atenção à recepção deste sacramento de Amor. Normalmente só se fazia um dia de retiro para a Confirmação, mas, como o Senhor Bispo não pôde vir no dia marcado, tive a consolação de ter dois dias de solidão. Para nos distrair, a nossa mestra levou-nos ao Monte Cassino, e lá colhi grandes margaridas às mãos-cheias para a festa do Corpo de Deus.
Ah! como a minha alma estava contente! Como os apóstolos, esperava com alegria a visita do Espírito Santo... Alegrava-me com o pensamento de em breve ser perfeita cristã e, sobretudo, com o de ter eternamente na fronte a cruz misteriosa que o Bispo faz ao administrar o sacramento...
Por fim, chegou o feliz momento. Não senti um vento impetuoso no momento da descida do Espírito Santo, mas antes aquela brisa ligeira cujo murmúrio o profeta Elias ouviu sobre o monte Horeb... Nesse dia recebi a força para sofrer, porque logo depois devia começar o martírio da minha alma...
[37 rº] Foi a minha querida Leónia que foi a madrinha. Estava tão comovida que não pôde impedir que as lágrimas lhe corressem durante toda a cerimónia. Recebeu comigo a Sagrada Comunhão, pois tive ainda a alegria de me unir a Jesus nesse belo dia.
Depois dessas deliciosas e inesquecíveis festas, a minha vida reentrou no ordinário, isto é, tive de retomar a vida do colégio, que me era tão penosa. Na altura da minha Primeira Comunhão, gostava daquela convivência com as crianças da minha idade, todas cheias de boa vontade, tendo tomado, como eu, a resolução de praticar seriamente a virtude. Mas tinha de voltar a viver em contacto com alunas muito diferentes, dissipadas, que não queriam observar o regulamento, e isso fazia-me sofrer muito.
Tinha um carácter alegre, mas não sabia participar nos jogos próprios da minha idade. Muitas vezes, durante os recreios, encostava-me a uma árvore e ali contemplava o espectáculo, entregando-me a sérias reflexões!
Tinha inventado um jogo que me agradava: era enterrar os pobres passarinhos que encontrávamos mortos debaixo das árvores. Muitas alunas quiseram ajudar-me, de maneira que o nosso cemitério ficou muito bonito, plantado de árvores e flores proporcionadas ao tamanho dos nossos pequenos pequenos emplumados. Gostava também de contar histórias que eu inventava à medida que me vinham ao pensamento. As minhas companheiras então rodeavam-me com avidez, e às vezes as alunas mais velhas misturavam-se com o grupo das ouvintes. A mesma história durava vários dias, pois divertia-me a torná-la cada vez mais interessante à medida que via pelo rosto das minhas companheiras as impressões que causava. Mas a mestra não tardou em proibir-me de continuar o meu ofício de orador, querendo ver-nos a jogar e a correr e não a discorrer.
Fixava facilmente o sentido do que aprendia, mas custava-me a decorar palavra por palavra. Por isso, durante o ano que precedeu a minha Primeira Comunhão, pedi [37 vº] licença quase todos os dias para estudar o catecismo durante os recreios. Os meus esforços foram coroados de êxito, e fui sempre a primeira. Se, por acaso, por uma só palavra esquecida, perdia o lugar, o meu desgosto manifestava-se em lágrimas amargas que o Sr. P. Domin não sabia como acalmar... Estava muito contente comigo (mas não quando eu chorava) e chamava-me o seu doutorzinho por causa do meu nome de Teresa.
Uma vez, a aluna que estava a seguir a mim não soube fazer à sua companheira a pergunta do catecismo. O senhor Padre, tendo em vão percorrido todas as alunas, chegou a mim, e disse que ia ver se eu merecia o meu primeiro lugar. Na minha profunda humildade, era só o que eu esperava. Levantei-me com aprumo, e disse o que me era pedido sem dar um único erro, com grande admiração de todos. Depois da minha Primeira Comunhão, continuei a ter interesse pelo catecismo, até que saí do colégio.
Era muito bem sucedida nos meus estudos; era quase sempre a primeira. Os meus maiores êxitos alcançava-os em história e redacção. Todas as minhas mestras me consideravam uma aluna muito inteligente. Já não acontecia o mesmo em casa do nosso tio, onde passava por uma pequena ignorante, boa e meiga, ajuizada, mas incapaz e pouco hábil... Não me admira ser esta a opinião que o nosso tio e a nossa tia tinham, e que, sem dúvida ainda têm, a meu respeito. Eu quase não falava, por ser muito tímida; quando escrevia, a minha letra de galinha e a minha ortografia, que é muito natural, não foram feitas para seduzir...
Nos pequenos trabalhos de costura, bordados e outros, saía-me bem, é verdade, ao gosto das minhas mestras, mas a maneira desastrada e desajeitada com que pegava nos meus lavoures justificava a opinião pouco favorável que tinham a meu respeito. Considero isso uma graça de Deus que, querendo o meu coração [38 rº] só para Ele, atendia já a minha oração «Mudando em amargura as consolações da terra». Tanto mais precisava disso, quanto não teria ficado insensível aos elogios. Muitas vezes louvavam à minha frente a inteligência das outras, mas nunca a minha. Então concluí que a não tinha, e resignei-me a ver-me sem ela...
O meu coração sensível e terno, ter-se-ia facilmente entregado se tivesse encontrado um coração capaz de o compreender... Tentei afeiçoar-me a meninas da minha idade, sobretudo a duas delas. Amava-as e, por seu lado, elas também me amavam tanto quanto eram capazes. Mas, ah! como é mesquinho e inconstante o coração das criaturas!!! ... Depressa notei que o meu amor era incompreendido. Uma das minhas amigas, tendo-se visto obrigada a ir para casa, regressou passados alguns meses. Durante a sua ausência, tinha pensado nela, guardando com muito apreço um anelzinho que ela me tinha dado. Ao voltar a ver a minha companheira, senti muita alegria; mas, pobre de mim! não obtive senão um olhar indiferente... Senti que o meu amor não era compreendido, e não mendiguei um afecto que me era recusado.
Contudo, Deus deu-me um coração tão fiel que, a partir do momento em que amou puramente, ama sempre. Por isso continuei a rezar pela minha companheira, e ainda a amo...
Ao ver a Celina gostar duma das nossas mestras, quis imitá-la, mas não consegui, por não saber cativar as simpatias das criaturas. Oh! feliz ignorância! Quantos e quão grandes males me evitou!...
Como agradeço a Jesus por me ter feito encontrar «apenas amargura nas amizades da terra!». Com um coração como o meu, ter-me-ia deixado apanhar e cortar as asas; como teria podido então «voar e repousar?». Como é que um coração entregue ao afecto das criaturas pode unir-se intimamente a Deus?... Sinto que isso não é possível. Sem ter bebido da taça envenenada [38 vº] do amor demasiado ardente das criaturas, sinto que não posso enganar-me. Vi tantas almas voar como pobre borboletas e queimar as asas, seduzidas por essa falsa chama, e depois voltar para a verdadeira, para a doce chama do amor que lhes dava asas novas, mais brilhantes e mais leves, para poderem voar para Jesus, esse Figo divino «que arde sem consumir».
Ah! não duvido! Jesus sabia que eu era fraca demais para me expor à tentação. Talvez me tivesse deixado queimar inteiramente pela chama enganadora, se a tivesse visto brilhar aos meus olhos! Não foi assim. Eu só encontrei amargura onde as almas mais fortes encontram a alegria e renunciam a ela por fidelidade.
Portanto, não tenho mérito nenhum por não me ter entregado ao amor das criaturas, uma vez que fui preservada dele apenas pela grande misericórdia de Deus!... Reconheço que, sem Ele, teria podido cair tão baixo como Santa Madalena.
A profunda palavra de Nosso Senhor a Simão ressoa com uma grande doçura na minha alma. Bem sei: «aquele a quem menos se perdoa, ama menos», mas também sei que Jesus me perdoou mais que a Santa Madalena, porque me perdoou antecipadamente, impedindo-me de cair. Ah! como gostaria de pode explicar o que sinto!... Eis um exemplo que traduzirá um pouco o meu pensamento:
Suponho que o filho dum grande médico encontra no caminho uma pedra que o faz cair, e que, na queda, ele fractura um membro. O pai acorre imediatamente, levanta-o com amor, trata das feridas, empregando para tal todos os recursos da sua arte. Uma vez completamente curado, o filho testemunha-lhe o seu reconhecimento. Sem dúvida, esse filho tem muita razão para amar o pai! Mas vou fazer ainda outra suposição: Tendo o pai sabido que no caminho do filho havia uma pedra, apressa-se a ir à frente dele e retira-a, sem ser visto por ninguém. Certamente, este filho, [39 rº] objecto da sua previdente ternura, não SABENDO a desgraça de que o pai o livrou, não lhe testemunhará o seu reconhecimento, e amá-lo-á menos do que se tivesse sido curado por ele... Mas, se vier a saber o perigo do qual escapou, não o amará ainda mais? Pois bem, eu sou essa filha, objecto do amor previdente de um Pai que não enviou o seu Verbo para resgatar os justos, mas os pecadores. Quer que O ame, porque me perdoou, não muito, mas tudo. Não esperou que eu O amasse muito como Santa Madalena, mas quis que eu SOUBESSE como me tinha amado com um amor de inefável previdência, para que agora O ame loucamente!...
Ouvi dizer que nunca se encontrou uma alma pura que amasse mais do que uma alma arrependida. Ah! como gostaria de desmentir essa palavra!...
Dou-me conta de estar muito longe do meu assunto, por isso, vou já retomá-lo.
O ano que se seguiu à minha Primeira Comunhão passou-se quase todo sem que a minha alma experimentasse provações interiores. Foi durante o meu retiro para a Segunda Comunhão que me vi assaltada pela terrível doença dos escrúpulos... É preciso ter passado por esse martírio, para o compreender bem. Ser-me-ia impossível dizer o que sofri durante ano e meio... Todos os meus pensamentos e as minhas simples acções se tornavam para mim motivo de perturbação. Não tinha sossego, senão contando-os à Maria, o que me custava muito, pois julgava-me obrigada a dizer-lhe os pensamento extravagantes que tinha acerca dela. Logo que descarregava o meu fardo, desfrutava de um momento de paz; mas essa paz passava como um relâmpago e, pouco depois, recomeçava o meu martírio.
Que paciência não teve de ter a minha querida Maria para me escutar, [39 vº] sem nunca se mostrar aborrecida!... Mal eu voltava da Abadia, ela começava a fazer-me os caracóis para o dia seguinte (pois todos os dias, para agradar ao Papá, a rainhazinha tinha o cabelo aos caracóis, com grande admiração das suas companheiras, e especialmente das mestras, que não viam meninas tratadas tão cuidadosamente pelos pais). Durante a sessão de penteado, eu não parava de chorar, contando todos os meus escrúpulos.
No fim do ano, a Celina, tendo terminado os estudos, voltou para casa. A pobre Teresa, obrigada a regressar sozinha, não tardou a adoeçer. O único encanto que a retinha no colégio era viver com a sua inseparável Celina; sem ela, a sua «filhinha» nunca lá pôde ficar...
Saí, portanto, da Abadia com 13 anos de idade, e continuei a minha educação recebendo várias lições por semana em casa da «Senhora Papinau». Era muito boa pessoa, muito instruída, mas com certas maneiras de solteirona. Vivia com a mãe, e era engraçado ver que a vida comum faziam a três (porque a gata era da família, e eu tinha que aturar que ela fizesse o seu ronrom em cima dos meus cadernos e até de admirar o seu lindo porte).
Como os Buissonnets ficavam longe demais para as pernas não muito jovens da minha professora, ela tinha pedido que eu fosse a casa dela receber as lições. Assim, eu tinha a vantagem de viver no seio da família. Quando eu chegava, normalmente só encontrava a velha senhora Cochain, que olhava para mim com seus grandes olhos claros, e logo chamava com voz grave e sentenciosa: - «Senhora Papinau! A m´ni-na Te-résa está aqui...». A filha respondia prontamente com voz infantil: - «Vou já, mamã»! E logo em seguida começava a lição.
Estas lições tinham a vantagem (para além da instrução que recebia) de me fazerem conhecer o mundo... Quem o poderia acreditar?... Naquela sala mobilada à antiga, rodeada de livros e cadernos, eu assistia muitas vezes [40 rº] a visitas de todos os géneros: Sacerdotes, senhoras, meninas, etc... A Srª Cochain fazia todos os possíveis por se encarregar da conversa para deixar a filha dar-me lição; mas nesses dias não aprendia grande coisa. Com o nariz num livro, ouvia tudo o que se dizia e até o que melhor fora para mim não ter ouvido, pois a vaidade penetra tão facilmente no coração!... Uma senhora dizia que eu tinha um lindo cabelo...; outra, ao sair, julgando não ser ouvida, perguntava quem era aquela menina tão linda... Essas palavras, tanto mais lisongeiras quanto não eram ditas na minha frente, deixavam-me na alma uma impressão de prazer que me mostrava claramente quanto eu estava cheia de amor próprio.
Oh! como tenho compaixão das almas que se perdem!... É tão fácil extraviar-se nas sendas floridas do mundo!... Sem dúvida, para uma alma um pouco elevada, a doçura que ele oferece é misturada com amargura, e o vazio imenso dos desejos não poderia ser preenchido com os louvores de um instante... Mas, se o meu coração não tivesse sido elevado para Deus desde o seu despertar, se o mundo me tivesse sorrido desde a minha entrada na vida, que teria sido de mim?... Ó minha querida Madre! com quanto reconhecimento canto as misericórdias do Senhor!... Não foi Ele que, segundo as palavras da Sabedoria me «retirou do mundo antes que o meu espírito fosse corrompido pela sua malícia e que as suas aparências enganadoras me tivessem seduzido a alma?»...
Também a Santíssima Virgem velava pela sua Florzinha. Não querendo, de modo nenhum, que fosse manchada no contacto com as coisas da terra, retirou-a para a sua montanha antes de ser desabrochado. Enquanto esperava por esse feliz momento, a Teresinha crescia em amor para com a sua Mãe do Céu. Para lhe provar este amor, ela fez uma acção que custou muito e que vou contar em poucas palavras, apesar da sua extensão...
[40 vº] Quase logo a seguir à minha entrada para a Abadia, fora recebida na Associação dos Santos Anjos. Gostava muito das práticas de devoção que ela impunha, tendo uma inclinação muito particular para invocar os Bem-aventurados Espíritos do Céu, e particularmente aquele que Deus me deu para ser o companheiro do meu exílio.
Algum tempo depois da minha Primeira Comunhão, a fita de aspirantes às Filhas de Maria substituiu a dos Santos Anjos, mas deixei a Abadia sem ter ingressado na associação da Santíssima Virgem. E não tinha licença para entrar como antiga aluna, por ter saído antes de terminar os estudos. Confesso que não desejava muito ardentemente esse privilégio; mas, pensando que todas as minhas irmãs tinham sido «Filhas de Maria», tive receio de ser menos filha da minha Mãe do Céu do que elas, e fui muito humildemente (apesar de muito me custar) à Abadia pedir a autorização para ser recebida na Assossiação da Santíssima Virgem.
A primeira mestra não mo quis recusar; mas pôs como condição ir lá dois dias por semana, de tarde, para provar se era digna de ser admitida. Muito longe de me agradar, esta autorização custou-me imenso. Não tinha, como as outras antigas alunas, uma mestra amiga com a qual pudesse passar várias horas. Assim, contentava-me com ir comprimentar a mestra, e depois trabalhava em silêncio até ao fim da lição de lavores. Ninguém se ocupava de mim; por isso, subia ao coro da capela e ficava diante do SS. Sacramento até que o Papá me ia buscar. Era a minha única consolação. Não era acaso Jesus o meu único amigo?... Não sabia falar senão com Ele. As conversas com as criaturas, mesmo as conversas piedosas, cansavam-me a alma... Sentia que era preferível falar com Deus do que [41 rº] falar de Deus, pois mistura-se tanto amor próprio nas conversas espirituais!...
Ah! era realmente só pela Santíssima Virgem que eu ia à Abadia!... Ás vezes sentia-me só, muito só. Como nos dias da minha vida de colegial, quando passeava triste e doente pelo pátio grande, repetia estas palavras que sempre faziam renascer a paz e a força no meu coração: «A vida é o teu navio, e não a tua morada!...» Quando eu era pequenina, estas palavras davam-me a coragem; e mesmo agora, apesar dos anos, que fazem desaparecer tantas impressões de piedade infantil, a imagem do navio encanta-me ainda a alma e ajuda-me a suportar o exílio...
Não diz também a Sabedoria que «a vida é como o barco que corta as ondas agitadas, sem deixar atrás de si nenhum sinal da sua rápida passagem?...». Quando penso nestas coisas, a minha alma mergulha no infinito; parece-me estar já a chegar à margem eterna...; parece-me receber já os abraços de Jesus... Julgo ver a minha Mãe do Céu vir ao meu encontro com o Papá..., a mamã..., os quatro anjinhos... Parece-me gozar, enfim, para sempre, da verdadeira, da eterna vida em família...
Mas antes de ver a família reunida no lar Paterno dos Céus, tinha de passar ainda por muitas separações. No ano em que fui recebida como filha da Santíssima Virgem, ela roubou-me a minha querida Maria, o único amparo da minha alma. Era a Maria que me guiava, me consolava, me ajudava a praticar a virtude; ela era o meu único oráculo.
Sem dúvida, a Paulina tinha ficado muito antes no meu coração; mas a Paulina estava longe, muito longe de mim!... Tinha sofrido um martírio para me habituar a viver sem ela, por ver entre mim e ela muros intrans[41 vº]poníveis. Mas, por fim, tinha acabado por reconhecer a triste realidade: a Paulina estava perdida para mim, quase da mesma maneira como se estivesse morta. Continuava a amar-me, rezava por mim; mas aos meus olhos, a minha querida Paulina tornara-se uma santa que já não devia compreender as coisas da terra, e as misérias da sua pobre Teresa, se ela as conhecesse, causar-lhe-iam admiração impedi-la-iam de a amar tanto...
Aliás, mesmo que tivesse querido confiar-lhe os meus pensamentos, como nos Buissonnets, não teria podido, pois as visitas no locutório eram só para a Maria. A Celina e eu não tínhamos licença para entrar senão no fim, apenas o tempo necessário para se nos oprimir o coração...
Por isso, não tinha, na realidade, senão a Maria. Ela era para mim, por assim dizer, indispensável. Só a ela comunicava os meus escrúpulos; e obedecia-lhe de tal maneira que o meu confessor nunca soube da minha péssima doença. Dizia-lhe apenas o número de pecados que a Maria me tinha permitido confessar, nem mais um. Assim teria podido passar pela alma menos escrupulosa do mundo, apesar de o ser em extremo... A Maria sabia, portanto, tudo quanto se passava na minha alma; sabia também dos meus desejos de ir para o Carmelo. Amava-a tanto que não podia viver sem ela.
A nossa tia convidava-nos todos os anos, à vez, a irmos a casa dela em Trouville. Teria gostado muito de ir, mas com a Maria! Quando não estava com ela, aborrecia-me muito. Uma vez, não obstante, fiquei contente em Trouville. Foi no ano da viagem do Papá a Constantinopla. Para nos distrair um pouco (pois estávamos muito tristes por o Papá estar tão longe), a Maria mandou-nos, à Celina e a mim, passar 15 dias à beira mar. Diverti-me lá muito, porque tinha comigo a Celina. A nossa tia proporcionou-nos todos os divertimentos possíveis: passeios de burro, pesca da enguia, etc.
Eu era ainda muito criança, [42 rº] apesar dos meus doze anos e meio. Lembro-me da alegria que sentia ao usar lindas fitas de cor azul-celeste que a nossa tia me tinha dado para pôr no cabelo. Também me lembro de até me ter confessado em Trouville desse prazer infantil que julgava ser pecado...
Uma tarde, fim uma experiência que muito me surpreendeu. A Maria (Guérin), que estava quase sempre adoentada, choramingava muitas vezes. Então a nossa tia acariciava-a, chamava-lhe os nomes mais meigos, e nem por isso a minha querida priminha parava de choramingar nem de dizer que lhe doía a cabeça. Eu, que também tinha dores de cabeça quase todos os dias, e não me queixava, quis, uma tarde, imitar a Maria; pus-me a choramingar, numa poltrona, a um canto do salão. Imediatamente acorreram à minha volta a Joana e a nossa tia, perguntando-me o que é que eu tinha. Respondi como a Maria: - «Dói-me a cabeça». Parece que não tinha jeito para me queixar, pois não consegui convencê-las minimamente de que a dor de cabeça me fizesse chorar. Em vez de me acariciarem, falaram-me como a uma pessoa crescida, e a Joana censurou-me por eu ter falta de confiança na nossa tia, pois pensava que eu tinha qualquer inquietação de consciência...
Enfim, aprendi à minha custa, bem decidida a nunca mais imitar os outros, e compreendi a fábula de «O burro e o cão». Eu era o burro que, tendo visto as carícias que prodigalizavam ao cãozinho, veio pôr a sua pesada pata na mesa para receber o seu quinhão de beijos. Mas, ai de mim! se não recebi pauladas como o pobre animal, recebi verdadeiramente a paga na mesma moeda, e essa paga curou-me para toda a vida do desejo de atraír as atenções; a única tentativa que fiz para tal saiu-me demasiado cara!...
No ano seguinte, que foi o da partida da minha querida madrinha, a nossa tia voltou a convidar-me, mas desta vez fui sozinha, e senti-me tão deslocada que, [42 vº] passados dois ou três dias caí doente, e foi preciso levarem-me outra vez para Lisieux. A minha doença, que temiam que fosse grave, não era senão a nostalgia dos Buissonnets; mal lá pus os pés, a saúde voltou... E era a essa criança que Deus ia roubar o único apoio que a prendia à vida!... Logo que tive conhecimento da determinação da Maria, resolvi não sentir mais nenhum gosto por nada da terra. A seguir à minha saída do colégio, tinha-me instalado no antigo quarto de pintura da Paulina, e tinha-o arranjado ao meu gosto. Era um autêntico bazar; um agregado de piedade e de curiosidades; um jardim e uma passareira... Ao fundo destacava-se uma grande cruz de madeira preta sem Cristo, e alguns desenhos que gostava; noutra parede, uma giga guarnecida de musselina e de fitas cor-de-rosa com ervas finas e flores; finalmente, na última parede, dominava sozinho o retrato da Paulina aos 10 anos. Por baixo desse retrato tinha uma mesa, sobre a qual estava uma grande gaiola com um grande número de pássaros, cuja chilreada melodiosa moía a cabeça aos visitantes, mas não à sua pequena dona, que gostava muito deles...
Havia ainda o «pequeno móvel branco» com os meus livros de estudo, cadernos, etc... Em cima desse móvel estava colocada uma imagem da Santíssima Virgem com jarras sempre com flores naturais, e castiçais. A toda a volta havia uma quantidade de pequenas imagens de santos e de santas, cestinhos de conchas, caixas de cartolina, etc!... Por fim, tinha um jardim suspenso diante da janela, onde cuidava dos vasos de flores (as mais raras que podia encontrar). Tinha ainda, dentro do «meu museu» uma jardineira, onde punha a minha planta favorita...
Diante da janela [43 rº] estava colocada a minha mesa, coberta com um pano verde e, sobre este pano tinha colocado, no meio, uma ampulheta, uma pequena imagem de S. José, um porta-relógios, cestos de flores, um tinteiro, etc... Algumas cadeiras mancas e a encantadora cama da boneca da Paulina completavam o meu mobiliário.
Realmente, aquela pobre mansarda era um mundo para mim, e, como o Sr. de Maistre, eu teria podido escrever um livro intitulado: «Passeio à volta do meu quarto». Era nesse quarto que gostava de ficar sozinha horas inteiras para estudar e meditar perante o belo panorama que se estendia diante dos meus olhos...
Ao saber da partida da Maria, o quarto perdeu para mim todo o encanto. Não queria deixar um único instante a irmã querida, que em breve ia voar... Quantos actos de paciência a fiz praticar! Cada vez que passava diante da porta do quarto dela, batia até ela me abrir, e então beijava-a com todo o meu coração. Queria fazer provisão de beijos para todo o tempo em que iria ficar privada deles.
Um mês antes da sua entrada para o Carmelo, o Papá levou-nos a Alençon; mas aquela viagem nem de longe se pareceu com a primeira; dessa vez, tudo foi para mim tristeza e amargura. Não poderia descrever as lágrimas que derramei sobre a campa da mamã, porque me tinha esquecido de levar um ramalhete de escovinhas que tinha apanhado para ela.
Realmente, eu contristava-me com tudo! Era ao contrário de agora, pois Deus dá-me a graça de não ficar abatida por nenhuma coisa passageira. Quando me lembro do tempo passado, a minha alma tranborda de reconhecimento, ao ver os favores que recebi do Céu; operou-se em mim uma mudança tal, que estou irreconhecível...
É verdade que eu desejava a graça «de ter um domínio absoluto sobre as minhas acções, de ser senhora delas, e não escrava». [43 vº] Estas palavras da Imitação impressionavam-me profundamente, mas tinha que comprar, por assim dizer, com os meus desejos essa graça inestimável. Então ainda era apenas uma criança que parecia não ter outra vontade senão a dos outros, o que levava a gente de Alençon a dizer que eu era fraca de carácter...
Foi durante esta viagem que a Leónia fez a sua experiência nas Clarissas. Sofri com a sua entrada extraordinária, pois gostava muito dela, e não tinha podido beijá-la antes de partir. Nunca esquecerei a bondade e o embaraço do pobre paizinho, ao vir anunciar-nos que a Leónia já tinha o hábito de Clarissa... Como nós, ele achava aquilo muito esquisito, mas não queria dizer nada, ao ver como a Maria estava contente. Levou-nos ao convento, e lá senti uma tristeza como nunca tinha sentido à vista de um convento. Produziu em mim um efeito contrário ao do Carmelo, onde tudo me dilatava a alma... O ver as religiosas não me encantou mais, e não tive a tentação de ficar junto delas.
A pobre Leónia ficava, no entanto, muito linda sob o seu novo traje. Disse-nos para olharmos bem para os seus olhos, porque não voltaríamos a vê-los. (As Clarissas apresentam-se sempre com os olhos baixos). Mas Deus contentou-se com dois meses de sacrifício, e a Leónia voltou a mostrar-nos os seus olhos azuis, muitíssimas vezes banhados em lágrimas...
Ao deixar Alençon, pensei que ela ficaria [definitivamente] com as Clarissas; por isso, foi com muito pesar que me afastei da triste rua da meia lua, Já só éramos três, e em breve a nossa querida Maria também nos havia de deixar...
O dia 15 de Outubro foi o dia da separação! Da alegre e numerosa família dos Buissonnets só restavam as duas últimas filhas... As pombas tinham fugido do ninho paterno; as que ficaram teriam querido voar atrás delas, mas as suas asas [44 rº] eram ainda muito fracas para poderem empreender o seu voo...
Deus, que queria chamar a si a mais pequena e a mais fraca de todas, apressou-se a fazer crescer as suas asas. Ele, que se compraz em mostrar a sua bondade e o seu poder servindo-se dos instrumentos menos dignos, quis chamar-me antes da Celina que, sem dúvida era mais merecedora desse favor. Mas Jesus sabia quanto eu era fraca, e por isso escondeu-me primeiro a mim na cavidade do rochedo.
Quando a Maria entrou para o Carmelo, eu era ainda muito escrupulosa. Não podendo já confiar-me a ela, recorri ao Céu. Dirigi-me aos quatro anjinhos que me tinham precedido lá em cima, pois pensava que essas almas inocentes, não tendo nunca conhecido as perturbações nem o temor, deviam ter piedade da pobre irmãzinha que sofria na terra.
Falei-lhes com uma simplicidade de criança, fazendo-lhes notar que, sendo a última da família, tinha sido sempre a mais amada, a mais cumulada das ternuras das minhas irmãs, e que se eles tivessem ficado na terra, me teriam, sem dúvida, dado provas da sua afeição... A partida deles para o Céu não me parecia uma razão para me esquecerem; pelo contrário, encontrando-se em situação de se servirem dos tesouros divinos, deviam alcançar-me a paz e mostrar-me assim que também no Céu se sabe amar!...
A resposta não se fez esperar; em breve a paz veio inundar a minha alma com as suas ondas deliciosas, e compreendi que, se era amada na terra, o era também no Céu... A partir desse momento, aumentou a minha devoção para com os meus irmãozinhos, e gosto de conversar muitas vezes com eles, de lhes falar das tristezas do exílio..., do meu desejo de ir em breve juntar-me com eles na Pátria!...