1 HISTÓRIA PRIMAVERIL DE UMA FLORZINHA BRANCA ESCRITA POR ELA PRÓPRIA E DEDICADA À REVERENDA MADRE INÊS DE JESUS.

1 HISTÓRIA PRIMAVERIL DE UMA FLORZINHA BRANCA ESCRITA POR ELA PRÓPRIA E DEDICADA À REVERENDA MADRE INÊS DE JESUS.
É a vós, minha querida Madre, a vós que sois duas vezes minha mãe, que venho confiar a história da minha alma...
No dia em que me pediste que o fizesse, pareceu-me que isso distrairia o meu coração, ocupando-o consigo mesmo; mas depois Jesus fez-me sentir que obedecendo simplesmente, lhe agradaria; de resto não vou fazer senão uma coisa: começar a cantar  o que deverei  repetir eternamente: «As misericórdias do Senhor!!!»... Antes de pegar na pena, ajoelhei-me diante da imagem de Maria (aquela que nos deu tantas provas das maternais preferências da Rainha do Céu para com a nossa família), supliquei-lhe que guie a minha mão a fim de eu não traçar uma única linha que não lhe agrade. A seguir, abrindo o Santo Evangelho, os meus olhos depararam com estas palavras: «Jesus, tendo subindo a um monte, chamou a Si os que Ele quis; e foram ter com Ele» (Marcos, cap. III, v. 13).
Eis todo o mistério da minha vocação, da minha vida inteira e, sobretudo; o mistério dos privilégios de Jesus para com a minha alma... Ele não chama aqueles que são dignos, mas aqueles que quer ou, como diz S. Paulo: «Deus sente compaixão de quem entende e usa de misericórdia com quem quer usar de misericórdia. Logo, não depende daquele que quer nem daquele que corre, mas de Deus que usa de misericórdia» (Ep. aos Rom., cap. IX, v 15 e 16). 
Durante muito tempo perguntei a mim própria porque tinha Deus preferências, porque não recebiam todas as almas um grau igual de graças; admirava-me por O ver prodigalizar favores extraordinários aos Santos que O tinham [2vº] ofendido, como S. Paulo, Santo Agostinho, e que forçava, por assim dizer, a receberem as suas graças; ou então, ao ler a vida de santos a quem aprouve a Nosso Senhor acarinhar do berço ao túmulo, sem deixar no seu caminho nenhum obstáculo que os impedisse de se elevarem para Ele, e predispondo essas almas com tais favores que não podiam ofuscar o brilho imaculado da sua veste batismal, perguntava-me porque razão os pobres selvagens, por exemplo, haviam de morrer em tão grande número sem sequer terem ouvido pronunciar o nome de Deus... Jesus dignou-se instruir-me acerca deste mistério. Pôs-me diante dos olhos o livro da natureza, e compreendi que todas as flores que Ele criou são belas, que o esplendor da rosa e a alvura do lírio não tiram o perfume à pequena violeta nem a simplicidade encantadora à margarida...
Compreendi que, se todas as pequeninas flores quisessem ser rosas, a natureza perderia o seu adorno primaveril, os campos não ficariam esmaltados de florzinhas...
Assim acontece no mundo das almas, que é o jardim de Jesus. Ele quis os grandes Santos, que podem ser comparados aos lírios e às rosas; mas criou também outros mais pequenos, e estes devem contentar-se com serem margaridas ou violetas, destinadas a deleitar os olhares de Deus quando olha para o chão. A perfeição consiste em fazer a sua vontade, em ser o que Ele quer que sejamos...
Compreendi ainda que o amor de Nosso Senhor se revela tanto na alma mais simples que em nada resiste à sua graça, como na alma mais sublime. Com efeito, sendo próprio do amor baixar-se, se todas as almas parecessem com as dos Santos doutores que iluminaram a Igreja [3rº] com a claridade da sua doutrina, parece que Deus não desceria muito ao vir ao seu coração. Mas Ele criou a criança que nada sabe e não faz ouvir senão débeis gemidos; criou o pobre selvagem que para se guiar não tem, senão a lei natural; e é até esses corações que se digna baixar, são essas as suas flores campestres cuja simplicidade O encanta... Descendo assim, Deus mostra a sua grandeza infinita.
Assim como o sol ilumina ao mesmo tempo os cedros e cada uma das pequeninas flores como se fosse única sobre a terra, do mesmo modo Nosso Senhor se ocupa tão particularmente de cada alma, como se não tivesse outras semelhantes; e, como na natureza todas as estações estão ordenadas de maneira a fazer desabrochar, no dia marcado, a mais humilde margarida, do mesmo modo tudo converge para o bem de cada alma.
Sem dúvida, minha querida Madre, vos perguntais admirada, onde quero chegar, pois até aqui nada disse ainda que se pareça com a história da minha vida. Mas pedistes-me que escrevesse sem constrangimento o que me viesse ao pensamento; portanto, não é propriamente a minha vida que vou escrever, mas os meus pensamentos acerca das graças que Deus se dignou conceder-me. 
Encontro-me numa fase da minha existência em que posso lançar um olhar sobre o passado. A minha alma amadureceu no crisol das provações exteriores e interiores; agora, como a flor fortalecida pela tempestade, volto a erguer a cabeça e vejo que em mim se realizam as palavras do salmo XXII: - «O Senhor é meu Pastor, nada me faltará. Ele me faz descansar em pastagens agradáveis e férteis. Conduz-me suavemente ao longo das águas. Conduz a minha alma sem a fatigar... Mas mesmo que descesse ao vale [3vº] da sobra da morte, não temeria nenhum mal, porque Vós estareis comigo. Senhor...» O Senhor sempre foi compassivo e cheio de bondade para comigo... Tardo em castigar e abundante em misericórdias! ... (Sl.CII, v.8).
Por isso, minha Madre, é com prazer que venho cantar junto de vós as misericórdias do Senhor... É só para vós que vou escrever a história da Florzinha colhida por Jesus, por isso, vou falar à vontade, sem me preocupar nem com o estilo nem com as numerosas digressões que vou fazer. Um coração de mãe compreende sempre o seu filho, mesmo que não saiba senão balbuciar. Por isso tenho a certeza de ser compreendida e adivinhada por vós, que formastes o meu coração e o oferecestes a Jesus!...
Parece-me que, se uma florzinha pudesse falar, diria simplesmente o que Deus fez por ela, sem tentar esconder os seus benefícios. Sob o pretexto de uma falsa humildade, não diria não ter graça nem perfume, que o sol lhe tirou o seu brilho e que as tempestades lhe quebraram a haste, se reconhecesse nela exactamente o contrário. A Flor que vai contar a sua história alegra-se por ter para apregoar as delicadezas absolutamente gratuitas de Jesus, reconhece que nada nela seria capaz de atrair os olhares divinos e que só a sua misericórdia fez tudo o que de bem nela há...
Foi Ele que a fez nascer numa terra santa e como que toda impregnada de um perfume virginal. Foi Ele que a fez preceder de oito Lírios resplandecentes de brancura. No Seu amor, quis preservar a sua Florzinha dos ares envenenados do mundo: mal começava a entreabrir-se a sua corola este divino Salvador transplantou-a para a Montanha do Carmelo, onde os dois Lírios que a tinham rodeado e embalado ternamente na primavera da sua vida exalavam [4rº] já o seu suave perfume... Sete anos decorreram desde que a Florzinha lançou raízes no jardim do Esposo das virgens, e agora, três Lírios baloiçam, junto dela, as suas corolas perfumadas; um pouco mais longe, outro Lírio cresce sob os olhares de Jesus, e as duas hastes benditas que produziram estas Flores estão agora juntas para a eternidade na Pátria celeste... Lá encontram os quatro Lírios que a terra não viu crescer... Oh! que Jesus se digne não deixar muito tempo em terra estrangeira as Flores que ficaram no exílio; que em breve o ramo de Lírios fique completo no Céu!
Acabo de resumir, minha Madre, em poucas palavras, o que Deus fez por mim; agora vou entrar nos pormenores da minha vida de criança. Sei que, naquilo em que outro qualquer não veria mais que um relato aborrecido, o vosso coração materno achará encantos...
Aliás, as recordações que vou evocar são também as vossas, pois foi junto de vós que decorreu a minha infância; e tenho a felicidade de ter os pais incomparáveis, que nos rodearam dos mesmos cuidados e das mesmas ternuras. Oh! que eles se dignem abençoar a mais pequena das suas filhas e que a ajudem a cantar as misericórdias divinas!
Na história da minha alma até à minha entrada para o Carmelo distingo três períodos bem distintos. O primeiro, apesar da sua curta duração, não é o menos fecundo em recordações; vai desde o despertar da minha razão até à partida da nossa querida mãe para a pátria dos Céus.
[4vº] Deus concedeu-me a graça de me abrir muito cedo a inteligência e de me gravar tão profundamente as recordações da minha infância, que me parece que as coisas que vou contar se passaram ontem. Sem dúvida, Jesus queria, no seu amor, fazer-me conhecer a mãe incomparável que me tinha dado, mas que a sua mão Divina tinha pressa em coroar no Céu!...
Aprouve a Deus rodear-me de amor toda a minha vida. As minhas primeiras recordações estão marcadas pelos mais ternos sorrisos e carícias! ... Mas, se colocou junto de mim muito amor, também pôs dentro do meu coraçãozinho, criando-o amante e sensível, e assim eu amava muito o Papá e a mamã e testemunhava-lhes a minha ternura de mil maneiras, pois era muito expansiva. Só que os meios que empregava eram, por vezes, estranhos, como o prova esta passagem da mamã: «O bebé é uma traquinas de primeira. Acaba de me acariciar, desejando-me a morte: - "Oh! como eu gostaria que tu morresses, minha pobre mãezinha!..." Ralham-lhe e ela diz: -" Mas é para tu ires para o Céu, pois dizes que é preciso morrer para ir para lá". Deseja também a morte ao pai, quando está nos seus ímpetos de amor!».
[5rº] Eis o que a mamã dizia de mim do dia 25 de Junho de 1874, quando eu tinha apenas 18 meses: «O vosso pai acaba de instalar um baloiço. A Celina está fora de si de contente, mas a pequena a baloiçar-se, só visto; dá vontade de rir. Porta-se como uma menina grande. Não há perigo que se solte da corda; e, quando não está bem atada, ela grita. Prendemo-la com outra corda pela frente e, apesar disso, não estou sossegada quando a vejo empoleirada lá em cima.».
«Aconteceu-me uma aventura engraçada, outro dia, com a pequena. Costumo ir à missa das 5.30h. Nos primeiros dias não me atrevia a deixá-la; mas, ao ver que nunca acordava, acabei por me decidir a fazê-lo. Deito-a na minha cama e aproximo o berço de modo que é impossível ela cair. Um dia esqueci-me de encostar o berço. Chego e a pequena já não estava na minha cama; nesse momento ouço um gemido; olho e vejo-a sentada numa cadeira que estava junto da cabeceira da cama, a cabecita deitada no travesseiro; e ali dormia um mau sono, pois estava numa posição incómoda. Não pude compreender como caiu sentada nessa cadeira, pois estava deitada. Agradeci a Deus não lhe ter acontecido nada. 
Foi verdadeiramente providencial; podia ter caído no chão; o seu anjo-da-guarda velou por ela, e as almas do Purgatório, às quais rezo todos os dias uma oração pela pequena, protegeram-na. É assim que eu explico o caso. Voçês expliquem-no como entenderem!...».
No fim da carta a mamã acrescentava: «O bebezinho acaba de me passar a mãozinha pela cara e de me beijar. Esta pequerrucha não me quer deixar nem por nada; está continuamente ao pé de mim. Gosta muito de ir para o jardim, [5vº] mas se eu lá não estou, não quer lá ficar e chora até ma trazerem...».
Eis uma passagem de outra carta: «A Terezinha perguntou-me à dias se ela iria para o Céu. Respondi-lhe que sim, se se comportasse bem; e ela respondeu-me: "Sim, mas se eu não fosse boazinha, ia para o Inferno... Mas eu bem sei o que havia de fazer: voava para ir ter contigo que estavas no Céu, e como é que Deus me havia de apanhar?... Tu apertavas-me com muita força no teu colo?" Vi nos olhos dela que acreditava verdadeiramente que Deus não lhe podia fazer nada se estivesse no colo da sua mãe...». 
«A Maria gosta muito da irmã: acha-a muito boazinha; não é de admirar, pois esta pobre pequenita tem muito medo de lhe dar algum desgosto. Ontem quis dar-lhe uma rosa, pois sei que isso a torna feliz, mas começou a pedir-me que não a cortasse, que Maria tinha proibido; estava corada de emoção, apesar disso, dei-lhe duas; já não ousava entrar em casa. Bem lhe repetia que as rosas eram minhas, mas não - dizia - são da Maria...
É uma criança que se emociona com muita facilidade. Se faz qualquer travessura toda a gente tem de saber. Ontem, tendo rasgado sem querer, um bocadinho de papel da parede, ficou num estado que metia dó, tinha logo que o dizer ao pai; este chegou quatro horas depois, já ninguém se lembrava, mas ela veio a correr, dizer à Maria: - Diz depressa ao Papá que rasguei o papel. E fica-se como um criminoso que aguarda a sua condenação. Lá no seu entender, acha que lhe perdoará mais facilmente se ela se acusar».
[4vº continuação] Gostava muito da minha querida madrinha. Sem o mostrar, dava muita atenção a tudo quanto se passava e dizia à minha volta. Parece-me que julgava as coisas como agora. Ouvia muito atentamente o que a Maria ensinava à Celina, para fazer como ela. [6rº] Depois de ela ter saído da Visitação, para conseguir o favor de ser admitida no seu quarto durante as lições que dava à Celina, portava-me muito bem e fazia tudo o que ela queria; por isso, ela dava-me muitos presentes que, apesar do seu pouco valor, me davam muito prazer.
Orgulhava-me das minhas duas irmãs mais velhas, mas a que era o meu ideal de criança, era a Paulina... Quando comecei a falar e a mamã me perguntava: -«Em que estás a pensar? a resposta era invariável: - «Na Paulina!...» Outra ocasião, passava o dedito na vidraça e dizia: - «Estou a escrever: Paulina!...» Muitas vezes ouvia dizer que, com certeza, a Paulina iria ser religiosa; então, sem saber muito bem o que isso era, pensava: - «Eu também hei-de ser religiosa». Esta é uma das [minhas] primeiras recordações, e desde então nunca mudei de resolução!...
Foi a vós, minha querida Madre, que Jesus escolheu para me desposar com Ele. Nessa altura já não estáveis ao pé de mim, mas já um vínculo se estabelecera nas nossas almas... Vós éreis o meu ideal; queria parecer-me convosco, e foi o vosso exemplo que, desde a idade de dois anos, me atraiu para o Esposo das virgens... Oh! que ternas reflexões queria confiar-vos! - Mas tenho de continuar a história da Florzinha, a sua história completa e geral, pois, se quisesse falar pormenorizadamente das minhas relações com a «Paulina» teria que deixar tudo o mais!...
A minha querida Leonazinha tinha também um grande lugar no meu coração. Gostava muito de mim. À noite era ela que tomava conta de mim quando toda a família ia passear... Parece-me ouvir ainda as belas cantigas que entoava para me adormecer... Em tudo procurava maneira de me ser agradável; por isso, eu teria muito desgosto se a magoasse.
[6 vº] Lembro-me muito bem da sua Primeira Comunhão, sobretudo do momento em que pegou em mim ao colo para entrar com ela no presbitério; parecia-me tão lindo, ser assim levada por uma irmã mais velha, toda vestida de branco como eu! ...
À noite deitaram-me cedo, pois era muito pequena para ficar para o banquete; mas vejo ainda o Papá vir, à sobremesa, trazer à sua rainhazinha pedaços de bolo grande...
No dia seguinte, ou poucos dias depois, fomos com a mamã a casa da companheira da Leónia. Creio que foi nesse dia que a boa mãezinha nos levou atrás dum muro para nos dar vinho a beber, depois do jantar que a pobre senhora Dagorau nos tinha servido, pois não queria desgostar a boa mulher, mas também não queria que nos faltasse nada... Ah! como o coração de uma mãe é delicado! Como traduz a sua ternura em mil cuidados previdentes nos quais ninguém pensaria!...
Resta-me agora falar da minha querida Celina, a pequena companheira da minha infãncia. Mas as recordações são tão abundantes que não sei quais escolher. Vou extrair algumas passagens das cartas que a mamã vos escrevia para a Visitação, mas não vou copiar tudo, porque seria demasiado longo... A 10 de Julho de 1873 (o ano do meu nascimento), eis o que ela vos dizia: - «A ama trouxe a Teresinha na quinta-feira; não fez senão rir. Era sobretudo a Celininha que lhe agradava; ria com ela às gargalhadas. Dir-se-ia que já lhe apetece brincar; isso está para breve, pois já se tem nas pernitas, direita como uma estaquinha. Creio que vai começar a andar cedo e que terá bom carácter. Parece muito inteligente e tem cara de predestinada...».
[7 rº] Mas foi sobretudo depois de deixar a ama, que mostrei a minha afeição pela minha querida Celininha. Entendiamo-nos muito bem; só que eu era muito mais viva e bem menos ingénua que ela; apesar de três anos e meio mais nova, parecíamos da mesma idade. 
Eis uma passagem duma carta da mamã que vos mostrará como a Celina era sossegada e eu má: - «A Celininha é muito inclinada à virtude. É o sentimento íntimo do seu ser. Tem uma alma cândida e tem horror ao mal. Quanto ao furãozito, não se sabe muito bem o que irá ser. É tão pequeno, tão travesso! Tem uma inteligência superior à da Celina, mas é muito menos sossegada e, sobretudo, de uma teimosia quase invencível: quando diz 'não', nada a consegue fazer ceder; ainda que a fechassem um dia inteiro no quarto escuro, ela preferia dormir lá do que dizer 'sim'...»
«Apesar disso, tem um coração de ouro; é muito carinhosa e muito franca. É curioso vê-la correr atrás de mim para me fazer a sua confissão: - 'Mamã, empurrei a Celina, só uma vez; bati-lhe uma vez, mas não o faço mais'. - É assim em tudo o que faz. Na quinta-feira à noite, fomos passear para o lado da estação. Quis a todo custo entrar na sala de espera para ir buscar a Paulina; corria à frente, com uma alegria que dava gosto; mas quando viu que tinha de regressar sem subir para o comboio para ir buscar a Paulina, chorou durante todo o caminho».
Esta última parte da carta recorda-me a alegria que experimentava quando vos via regressar da Visitação. Vós, minha Madre, pegáveis em mim ao colo, e a Maria pegava na Celina; então eu fazia-vos mil carícias e inclinava-me  [7vº] para trás para admirar a vossa grande trança... Depois dáveis-me um pau de chocolate que tínheis guardado há três meses. Podeis imaginar que relíquia não era para mim!...
Lembro-me também da viagem que fiz a Le Mans. Foi a primeira vez que andei de comboio. Que alegria, ir viajar sozinha com a mamã!... No entanto, não sei porquê, puz-me a chorar, e a pobre mãezinha não pôde apresentar à nossa tia de Le Mans senão uma reles feiota, toda vermelha das lágrimas que derramara pelo caminho... Não conservei nenhuma recordação do locutório, a não ser do momento em que a nossa tia me passou um ratinho branco e um cestinho de cartolina cheio de bombons, sobre os quais se elevavam dois lindos anéis de açúcar, mesmo do tamanho do meu dedo; imediatamente exclamei: - «Que alegria! Um anel será para a Celina!». Mas, que desgraça! Pego no meu cesto pela asa, dou a outra mão à mamã e pomo-nos a caminho. Depois de alguns passos, olho para o meu cesto e vejo que os meus bombons estavam quase todos semeados pela rua, como as pedras do pequeno polegar. Olho mais de perto e vejo que um dos preciosos anéis tinha tido a sorte fatal dos bombons... Não tinha mais nada para dar à Celina! ... Então a minha dor explode. Peço para voltar para trás, mas a mamã parece não fazer caso. Era demais. Às minha lágrimas sucedem-se os meus gritos... Não podia compreender que ela não partilhasse o meu desgosto, e isso aumentava muito a minha dor...
Volto agora às cartas, nas quais a mamã vos fala da Celina e de mim. É o melhor meio que posso empregar para vos dar a conhecer bem o meu carácter. Eis uma passagem em que os meus defeitos ficam bem a descoberto: [8 rº] -«A Celina anda a brincar com a pequena ao jogo dos cubos. De vez em quando zangam-se, e a Celina cede para acrescentar uma pérola à sua coroa. Vejo-me obrigada a corrigir o pobre bebé que tem fúrias terríveis. Quando as coisas não correm do seu agrado, rebola-se no chão como uma desesperada pensando que está tudo tranquilo. Há momentos em que a contrariedade é mais forte do que ela, e fica como sufocada. É uma criança muito nervosa. Apesar disso, é muito meiga e muito inteligente. Lembra-se de tudo.»
Bem vedes, minha Madre, quão longe eu estava de ser uma menina sem defeitos! Nem sequer se podia dizer de mim que era «sossegada quando estava a dormir», porque de noite, ainda era mais irrequieta que de dia. Mandava passear todos os cobertores, e depois (sempre a dormir) batia contra a madeira da minha caminha. Acordava com as dores e dizia: «Mamã, tenho pancada!...». A pobre mãezinha tinha de se levantar e verificava que, na verdade, eu tinha galos na testa, que tinha pancada. Cobria-me bem, depois voltava a deitar-se. Mas pouco depois, eu recomeçava a ter pancada, de maneira que tiveram de me amarrar na cama. Todas as noites a Celininha vinha atar os numerosos cordões destinados a impedir a pequena traquinas de ter pancada e de acordar a mamã. Como esse método deu resultado, daí em diante fui sossegada enquanto dormia... Há outro defeito que tinha (estando acordada) de que a mamã não fala nas cartas: era um grande amor próprio. Vou dar-vos apenas dois exemplos, para não tornar este relato demasiado longo.
Um dia a mamã disse-me: - «Minha Teresinha, se beijares o chão, dou-te um soldo». Um soldo era para mim uma fortuna; para o ganhar não precisava de abaixar a minha grandeza, pois a minha pequena estatura não me distanciava muito do chão; mas o meu orgulho revoltou-se com [8vº] a ideia de beijar o chão; mantendo-me muito direita, digo à mamã: - «Oh! não, mãezinha, prefiro ficar sem o soldo!...».
Outra ocasião, tínhamos de ir a Grogny, a casa do Senhor Monnier. A mamã disse à Maria que me vestisse o meu lindo vestido azul-celeste, com rendas, mas que não me deixasse os braços nus, para o sol os não queimar. Deixei-me vestir com a indiferença que deverão ter as crianças da minha idade, mas, interiormente pensava que teria ficado muito mais bonita com os meus bracinhos nus. 
Com uma natureza como a minha, se tivesse sido educada por Pais sem virtude, ou mesmo se, como a Celina, fosse animada pela Luísa, ter-me-ia tornado muito má e talvez me tivesse perdido... Mas Jesus velava pela sua pequena noiva; quis que tudo fosse para seu bem, mesmo os seus defeitos que, reprimidos cedo, lhe serviram para crescer na perfeição...
Como eu tinha amor próprio e também amor do bem, logo que comecei a pensar a sério (o que fiz de bem pequena), bastava que me dissessem que uma coisa não estava bem, para não ter vontade que mo repetissem duas vezes...
Vejo com alegria nas cartas da mamã que, à medida que ia crescendo, lhe dava mais consolação. Não tendo à minha volta senão bons exemplos, queria, naturalmente, imitá-los. Eis o que ela escrevia em 1876:
- «Até a Teresa, por vezes, se que pôr a fazer práticas... É uma criança encantadora; é perspicaz, muito viva, mas de coração sensível. A Celina e ela gostam muito uma da outra. Bastam-se a si próprias para se entreterem. Todos os dias, depois do jantar, a Celina vai buscar o seu galito. Agarra logo à primeira a galinha de Teresa. Eu não consigo, mas ela é tão ágil que a agarra ao primeiro salto. Depois vêm as duas, com os seus bichos, sentar-se ao canto [9rº] da lareira, e brincam assim durante muito tempo. (Foi a Rosinha que me ofereceu a galinha e o galo; e eu tinha dado o galo à Celina). 
Outro dia, a Celina dormiu comigo; a Teresa dormiu no segundo andar, na cama de Celina. Ela tinha pedido à Luísa para a levar para baixo para a vestirem. A Luísa subiu à procura dela, mas encontrou a cama vazia. A Teresa tinha ouvido a Celina e tinha descido com ela. A Luíza diz-lhe: - 'Então, não queres vir para baixo para te vestires?' - 'Oh! não, minha pobre Luisinha, nós somos como duas pombinhas, não nos podemos separar!' E ao dizer isto abraçavam-se e apertavam-se uma contra a outra...
Depois, à noite, a Luísa, a Celina e a Leónia foram ao círculo católico e deixaram, em casa, esta pobre Teresa, que compreendia bem que era muito pequena para também ir; então dizia: - 'Se ao menos me quisessem deitar na cama da Celina!...' Mas não; não quiseram... Ela não disse nada e ficou sozinha com a sua lamparina. Um quarto de hora depois, dormia um sono profundo...».
Noutro dia a mamã escrevia ainda: - «A Celina e a Teresa são inseparáveis. Não há crianças que se amem tanto. Quando a Maria vem buscar a Celina para lhe dar lição, a pobre Teresa fica banhada em lágrimas. Coitada! Que irá ser dela? A sua amiguinha vai-se embora!... Maria tem pena dela; leva-a também, e a pobre pequena fica sentada numa cadeira durante duas ou três horas. Dão-lhe contas para enfiar ou um pano para cozer; não ousa mexer-se e dá muitas vezes grandes suspiros. Quando a agulha se desenfia, tenta voltar a enfiá-la. É engraçado vê-la, pois não consegue enfiá-la e não se atreve a incomodar a Maria. Pouco depois, duas grossas lágrimas escorrem-lhe pelas faces... A Maria [9vº] consola-a imediatamente; volta a enfiar-lhe a agulha, e o pobre anjinho sorri, banhado em lágrimas...».
Lembro-me de que, com efeito, não podia passar sem a Celina. Preferia sair da mesa sem acabar de comer a sobremesa, para ir com ela, logo que se levantava. Virava-me na minha cadeira alta, pedia que me pusessem no chão, e depois íamos brincar as duas. Algumas vezes íamos brincar com a pequena prefeita, o que me agradava muito, por causa do parque e de todos os lindos jogos que ela nos mostrava. Mas era sobretudo para dar prazer à Celina que eu lá ia, preferindo ficar no nosso jardinzinho a raspar as paredes, pois tirávamos todas as pequenas lantejoulas brilhantes que lá havia e depois íamos vendê-las ao Papá, que no-las comprava com um ar muito sério.
Ao domingo, como era muito pequena para ir aos ofícios, a mamã ficava a tomar conta de mim. Portava-me muito bem e andava só em bicos de pés durante a missa. Mas, logo que via a porta a abrir-se, era uma enorme explusão de alegria: precipitava-me ao encontro da minha bela irmãzinha que, então, estava enfeitada como uma capela... e dizia-lhe: - «Oh! minha Celininha, dá-me depressa do pão bento!» Ás vezes não tinha, porque chegara tarde... Que fazer então? Era-me impossível passar sem ele; era essa «a minha missa»... A solução depressa foi encontrada. - «Não tens pão bento, então fá-lo tu!» Dito e feito; a Celina pega numa cadeira, abre o armário, agarra o pão, parte um bocado e, com muita seriedade, recita sobre ele uma Ave-Maria. A seguir oferece-mo, e eu, depois de fazer com ele o sinal da cruz, como-o com uma grande devoção, achando-lhe exactamente o gosto [10rº] do pão bento...
Muitas vezes fazíamos juntas conferências espirituais, eis um exemplo que tiro das cartas da mamã: - «As nossas duas pequenas, Celina e Teresa, são anjos abençoados, pequenas naturezas angélicas. Teresa é a alegria, a felicidade de Maria e a sua glória; é incrível como se orgulha dela. É verdade que dá respostas prontas, bem raras para a sua idade; faz ver à Celina, que tem o dobro da sua idade. A Celina dizia outro dia: 'Como é possível Deus estar numa hóstia tão pequena?' A pequena disse: - 'Não tem de que admirar, pois Deus é Todo-Poderoso'. - 'O que quer dizer Todo-Poderoso?' - 'Ora, é fazer tudo o que Ele quer!'...»
Um dia, a Leónia, pensando ser grande demais para brincar com bonecas, veio ter com nós as duas com um açafate cheio de vestidos e de lindos retalhos para fazer outros; por cima estava deitada a boneca dela. - «Tome lá minhas irmãzinhas, disse-nos, escolham, dou-lhes isto tudo». A Celina estendeu a mão e pegou num pequeno molho de cordões de que gostou. Após um momento de reflexão, estendi, por minha vez a mão dizendo: - « Eu escolho tudo!» e peguei no açafate sem mais cerimónias. As testemunhas da cena acharam muito bem; a própria Celina não pensou em se queixar (aliás não lhe faltavam brinquedos; o padrinho dela cumulava-a de presentes e a Luíza arranjava maneira de lhe conseguir tudo quanto desejava). 
Este pormenor da minha infância é o resumo de toda a minha vida. Mais tarde quando encarei a perfeição, compreendi que para se vir a ser santa era preciso sofrer muito, procurar sempre o mais perfeito e esquecer-se de si mesma; compreendi que havia muitos graus na perfeição e que cada alma [10 vº] era livre de responder aos apelos de Nosso Senhor, de fazer pouco ou muito por Ele, numa palavra, de escolher entre os sacrifícios que Ele pede. Então, como nos dias da minha primeira infância, exclamei: - «Meu Deus, eu escolho tudo. Não quero ser uma santa a meias; não tenho medo de sofrer por vós; só tenho medo de uma coisa, é de conservar a minha vontade, tomai-a, porque 'Eu escolho tudo' o que vós quereis!...» Tenho de parar; não devo falar ainda da minha juventude, mas do pequeno Diabrete de quatro anos. Lembro-me de um sonho que tive, creio que por esta idade, e que se gravou profundamente na minha imaginação. Uma noite, sonhei que saía para ir passear sozinha no jardim. Tende chegado ao fundo dos degraus, que era preciso subir para lá chegar, parei aterrorizada. Diante de mim, ao pé do caramanchão, estava um barril de cal e, em cima do barril, dois horrorosos diabinhos dançavam com uma agilidade  surpreendente, apesar dos ferros de engomar que tinham nos pés; de repente lançaram sobre mim os seus olhos flamejantes, e logo no mesmo instante, parecendo muito mais assustados do que eu, precipitaram-se abaixo do barril e foram esconder-se na rouparia que ficava em frente. Vendo-os tão pouco valentes, quis saber o que iam fazer e aproximei-me da janela. Os pobres diabinhos andavam por lá, a correr em cima das mesas, e sem saber o que fazer para fugir ao meu olhar; algumas vezes aproximavam-se da janela, verificando, com ar inquieto, se eu ainda lá estaria e, vendo-me ainda, recomeçavam a correr como desesperados. 
- Sem dúvida, este sonho nada tem de extraordinário; contudo, creio que Deus permitiu que me lembre dele para me provar que uma alma em estado de graça nada tem a temer aos demónios, que são uns cobardes, capazes de fugir diante do olhar de uma criança... 
[11 rº] Eis mais uma passagem que encontro nas cartas da mamã. A pobre mãezinha pressentia já o fim do seu exílio: - «As duas pequenas nada me preocupam; as duas estão muito bem; são naturezas de eleição; com certeza, hão-de ser boas. A Maria e tu podereis educá-las perfeitamente. A Celina nunca comete a mais pequena falta voluntária. A pequena também será boa; não mentiria por todo o ouro do mundo; tem um espírito como nunca vi em nenhuma de vós».
«Outro dia foi à mercearia com a Celina e a Luíza; falava das suas práticas e discutia muito com a Celina; a senhora disse à Luíza: O que quer ela dizer, quando brinca no jardim, pois não se ouve falar senão em práticas? A Srª Gaucherin deita a cabeça de fora pela janela, para tentar compreender o que significa essa discussão de práticas... Esta pobre pequena faz a nossa felicidade; há-de ser boa; vê-se já o germe. Não fala senão de Deus; não deixaria por nada, de fazer as suas orações. Queria que tu a visses a recitar pequenas fábulas; nunca vi nada tão encantador; encontra sozinha a expressão precisa e o tom; mas é, sobretudo, quando ela diz: - 'Criancinha de cabeça loira, onde julgas tu que está Deus?' Quando ela chega a: 'Está lá em cima, no Céu azul', volta o rosto para o alto com uma expressão angélica; não nos cansamos de lho fazer repetir, de tão belo que é; há qualquer coisa de tão celestial no seu olhar, que ficamos encantados!...».
Ó minha Madre! Como era feliz nessa idade! Já começava a gozar a vida; a virtude tinha encantos para mim, e estava, parece-me, nas mesmas disposições em que estou agora, tendo já um grande [11 vº] domínio sobre as minhas ações. Ah! como passaram rapidamente os anos cheios de sol da minha primeira infância, mas que, doce rasto deixaram na minha alma! Recordo-me com satisfação dos dias em que o Papá nos levava ao pavilhão; no meu coração ficaram gravados os mais pequenos pormenores... Recordo sobretudo os passeios de domingo, em que a mamã nos acompanhava sempre... Sinto ainda as impressões profundas e poéticas que me brotavam na alma à vista dos campos de trigo, esmaltados de escovinhas e flores campestres. Gostava já dos largos horizontes... O espaço e os abetos gigantescos, cujos ramos tocavam a terra, deixavam no meu coração uma impressão semelhante à que ainda hoje sinto à vista da natureza... Muitas vezes, durante esses longos passeios, encontrávamos pobres, e era sempre a Teresinha a encarregada de lhes dar a esmola, com o que ela ficava muito contente; mas muitas vezes, também, o Papá, achando o caminho demasiado longo para a sua rainhazinha, regressava com ela mais cedo a casa (para seu grande desgosto). Então. para a consolar, a Celina enchia o seu lindo cestinho e oferecia-lho ao chegar; mas, pouca sorte! a vóvó achava que a neta tinha flores a mais e tirava uma boa parte delas para a sua Santíssima Virgem... Isto não agradava à Teresinha, mas esta acautelava-se bem para não dizer nada, tendo adquirido o bom hábito de nunca se queixar, mesmo quando tiravam o que era dela; ou então, quando era acusada injustamente, preferia calar-se e não se desculpar, o que não era mérito seu, mas virtude natural... Que pena, que esta boa disposição tenha desaparecido!...
[12 rº] Oh! na verdade, tudo me sorria na terra: encontrava flores sob cada um dos meus passos, e o meu carácter alegre contribuía também para tornar a minha vida agradável. Mas, um novo período ia começar para a minha alma: tinha de passar pelo crisol da provação e sofrer, desde a infância, para mais cedo ser oferecida a Jesus. Assim como as flores da Primavera começam a germinar sob a neve e desabrocham aos primeiros raios de sol, assim a Florzinha de que escrevo as recordações, teve de passar pelo Inverno da provação... Todos os pormenores da doença da nossa querida mãe estão aqui presentes no meu coração; lembro-me sobretudo, das últimas semanas que passou na terra; a Celina e eu éramos como pobres pequenas exiladas, todas as manhãs, a Srª Leriche vinha buscar-nos, e nós passávamos o dia em casa dela. Um dia não tivemos tempo de fazer a nossa oração antes de sair e, pelo caminho, a Celina disse-me baixinho: - «Temos de dizer que não fizemos a nossa oração?...» - «Ah, sim!», respondi. Então muito timidamente, ela disse-o à Sr.ª Leriche, e esta respondeu-nos: - «Então, minhas meninas, ides fazê-la»: e, depois de nos meter as duas num grande quarto, foi-se embora... Então, a Celina olhou para mim e dissemos: - «Ah! não é como a mamã... ela sempre nos ajudava a fazer as nossas orações!...» Ao brincar com as crianças, o pensamento da nossa querida mãe perseguia-nos sempre. Uma vez tendo a Celina recebido um belo damasco, inclinou-se e disse-me baixinho: - «Não vamos comê-lo, vou dá-lo à mamã». Ai de nós! A pobre mãezinha estava já demasiado doente para comer os frutos da terra; não deveria já saciar-se senão no Céu, da glória de Deus, e beber com Jesus o vinho misterioso de que Ele falou na última Ceia, dizendo que o partilharia connosco no reino de seu Pai.
A comovedora cerimónia da extema unção ficou também gravada na minha alma; vejo ainda o lugar onde eu estava, ao lado da Celina; nós as cinco estávamos por [12 vº] ordem de idades, e o pobrezinho Paizinho também lá estava a soluçar...
No mesmo dia, ou no dia seguinte à partida da mamã, ele pegou em mim ao colo, dizendo-me: - «Vem beijar pela última vez a tua pobre mãezinha». E eu, sem dizer nada, aproximei os lábios da testa da minha querida mãe... Não me lembro de ter chorado muito; não dizia a ninguém os sentimentos profundos que experimentava... Olhava e ouvia em silêncio... ninguém tinha tempo de se ocupar de mim, de modo que eu vi muitas coisas que teriam querido ocultar-me. Uma vez encontrei-me diante da tampa do caixão... fiquei muito tempo a observá-lo; nunca tinha visto nenhum, contudo, eu compreendia... era tão pequena que, apesar de a mamã ser de baixa estatura, tinha de levantar a cabeça para ver o cimo e pareceu-me muito grande... muito triste... Quinze anos mais tarde, encontrei-me diante de outro caixão, o da Madre Genovena; era do mesmo tamanho que o da mamã e pensei estar ainda nos dias da minha infância... Todas as minhas recordações me voltaram em catadupa; era a mesmíssima Teresinha que olhava, mas tinha crescido e o caixão parecia pequeno,  já não precisava de levantar a cabeça para o ver; já não a levantava senão para contemplar o Céu, que lhe parecia muito alegre, porque todas as provações tinham chegado ao fim e o Inverno da sua alma tinha passado para sempre...
No dia em que a Igreja abençoou os restos mortais da nossa mãezinha do Céu, Deus quis dar-me outra na terra, e quis que a escolhesse livremente. Estávamos as cinco todas juntas, olhando, com tristeza, umas para as outras; a Luísa também lá estava e, vendo a Celina e a mim, disse: - «Pobres pequenas, já não tendes mãe!...» Então a Celina lançou-se nos braços da Maria, dizendo: - «Pois bem! Tu serás a mamã». Eu estava habituada a fazer [13 rº] como ela mas voltei-me para vós, minha Madre, e, como se o futuro tivesse já rasgado o seu véu, lançei-me nos vossos braços, exclamando: - «Pois bem! para mim a Paulina será mamã!»
É a vós, minha querida Madre, a vós que sois duas vezes minha mãe, que venho confiar a história da minha alma...
 
No dia em que me pediste que o fizesse, pareceu-me que isso distrairia o meu coração, ocupando-o consigo mesmo; mas depois Jesus fez-me sentir que obedecendo simplesmente, lhe agradaria; de resto não vou fazer senão uma coisa: começar a cantar  o que deverei  repetir eternamente: «As misericórdias do Senhor!!!»... Antes de pegar na pena, ajoelhei-me diante da imagem de Maria (aquela que nos deu tantas provas das maternais preferências da Rainha do Céu para com a nossa família), supliquei-lhe que guie a minha mão a fim de eu não traçar uma única linha que não lhe agrade. A seguir, abrindo o Santo Evangelho, os meus olhos depararam com estas palavras: «Jesus, tendo subindo a um monte, chamou a Si os que Ele quis; e foram ter com Ele» (Marcos, cap. III, v. 13).
 
Eis todo o mistério da minha vocação, da minha vida inteira e, sobretudo; o mistério dos privilégios de Jesus para com a minha alma... Ele não chama aqueles que são dignos, mas aqueles que quer ou, como diz S. Paulo: «Deus sente compaixão de quem entende e usa de misericórdia com quem quer usar de misericórdia. Logo, não depende daquele que quer nem daquele que corre, mas de Deus que usa de misericórdia» (Ep. aos Rom., cap. IX, v 15 e 16). 
 
Durante muito tempo perguntei a mim própria porque tinha Deus preferências, porque não recebiam todas as almas um grau igual de graças; admirava-me por O ver prodigalizar favores extraordinários aos Santos que O tinham [2vº] ofendido, como S. Paulo, Santo Agostinho, e que forçava, por assim dizer, a receberem as suas graças; ou então, ao ler a vida de santos a quem aprouve a Nosso Senhor acarinhar do berço ao túmulo, sem deixar no seu caminho nenhum obstáculo que os impedisse de se elevarem para Ele, e predispondo essas almas com tais favores que não podiam ofuscar o brilho imaculado da sua veste batismal, perguntava-me porque razão os pobres selvagens, por exemplo, haviam de morrer em tão grande número sem sequer terem ouvido pronunciar o nome de Deus... Jesus dignou-se instruir-me acerca deste mistério. Pôs-me diante dos olhos o livro da natureza, e compreendi que todas as flores que Ele criou são belas, que o esplendor da rosa e a alvura do lírio não tiram o perfume à pequena violeta nem a simplicidade encantadora à margarida...
 
Compreendi que, se todas as pequeninas flores quisessem ser rosas, a natureza perderia o seu adorno primaveril, os campos não ficariam esmaltados de florzinhas...
 
Assim acontece no mundo das almas, que é o jardim de Jesus. Ele quis os grandes Santos, que podem ser comparados aos lírios e às rosas; mas criou também outros mais pequenos, e estes devem contentar-se com serem margaridas ou violetas, destinadas a deleitar os olhares de Deus quando olha para o chão. A perfeição consiste em fazer a sua vontade, em ser o que Ele quer que sejamos...
 
Compreendi ainda que o amor de Nosso Senhor se revela tanto na alma mais simples que em nada resiste à sua graça, como na alma mais sublime. Com efeito, sendo próprio do amor baixar-se, se todas as almas parecessem com as dos Santos doutores que iluminaram a Igreja [3rº] com a claridade da sua doutrina, parece que Deus não desceria muito ao vir ao seu coração. Mas Ele criou a criança que nada sabe e não faz ouvir senão débeis gemidos; criou o pobre selvagem que para se guiar não tem, senão a lei natural; e é até esses corações que se digna baixar, são essas as suas flores campestres cuja simplicidade O encanta... Descendo assim, Deus mostra a sua grandeza infinita.
Assim como o sol ilumina ao mesmo tempo os cedros e cada uma das pequeninas flores como se fosse única sobre a terra, do mesmo modo Nosso Senhor se ocupa tão particularmente de cada alma, como se não tivesse outras semelhantes; e, como na natureza todas as estações estão ordenadas de maneira a fazer desabrochar, no dia marcado, a mais humilde margarida, do mesmo modo tudo converge para o bem de cada alma.
 
Sem dúvida, minha querida Madre, vos perguntais admirada, onde quero chegar, pois até aqui nada disse ainda que se pareça com a história da minha vida. Mas pedistes-me que escrevesse sem constrangimento o que me viesse ao pensamento; portanto, não é propriamente a minha vida que vou escrever, mas os meus pensamentos acerca das graças que Deus se dignou conceder-me. 
 
Encontro-me numa fase da minha existência em que posso lançar um olhar sobre o passado. A minha alma amadureceu no crisol das provações exteriores e interiores; agora, como a flor fortalecida pela tempestade, volto a erguer a cabeça e vejo que em mim se realizam as palavras do salmo XXII: - «O Senhor é meu Pastor, nada me faltará. Ele me faz descansar em pastagens agradáveis e férteis. Conduz-me suavemente ao longo das águas. Conduz a minha alma sem a fatigar... Mas mesmo que descesse ao vale [3vº] da sobra da morte, não temeria nenhum mal, porque Vós estareis comigo. Senhor...» O Senhor sempre foi compassivo e cheio de bondade para comigo... Tardo em castigar e abundante em misericórdias! ... (Sl.CII, v.8).
 
Por isso, minha Madre, é com prazer que venho cantar junto de vós as misericórdias do Senhor... É só para vós que vou escrever a história da Florzinha colhida por Jesus, por isso, vou falar à vontade, sem me preocupar nem com o estilo nem com as numerosas digressões que vou fazer. Um coração de mãe compreende sempre o seu filho, mesmo que não saiba senão balbuciar. Por isso tenho a certeza de ser compreendida e adivinhada por vós, que formastes o meu coração e o oferecestes a Jesus!...
Parece-me que, se uma florzinha pudesse falar, diria simplesmente o que Deus fez por ela, sem tentar esconder os seus benefícios. Sob o pretexto de uma falsa humildade, não diria não ter graça nem perfume, que o sol lhe tirou o seu brilho e que as tempestades lhe quebraram a haste, se reconhecesse nela exactamente o contrário. A Flor que vai contar a sua história alegra-se por ter para apregoar as delicadezas absolutamente gratuitas de Jesus, reconhece que nada nela seria capaz de atrair os olhares divinos e que só a sua misericórdia fez tudo o que de bem nela há...
 
Foi Ele que a fez nascer numa terra santa e como que toda impregnada de um perfume virginal. Foi Ele que a fez preceder de oito Lírios resplandecentes de brancura. No Seu amor, quis preservar a sua Florzinha dos ares envenenados do mundo: mal começava a entreabrir-se a sua corola este divino Salvador transplantou-a para a Montanha do Carmelo, onde os dois Lírios que a tinham rodeado e embalado ternamente na primavera da sua vida exalavam [4rº] já o seu suave perfume... Sete anos decorreram desde que a Florzinha lançou raízes no jardim do Esposo das virgens, e agora, três Lírios baloiçam, junto dela, as suas corolas perfumadas; um pouco mais longe, outro Lírio cresce sob os olhares de Jesus, e as duas hastes benditas que produziram estas Flores estão agora juntas para a eternidade na Pátria celeste... Lá encontram os quatro Lírios que a terra não viu crescer... Oh! que Jesus se digne não deixar muito tempo em terra estrangeira as Flores que ficaram no exílio; que em breve o ramo de Lírios fique completo no Céu!
 
Acabo de resumir, minha Madre, em poucas palavras, o que Deus fez por mim; agora vou entrar nos pormenores da minha vida de criança. Sei que, naquilo em que outro qualquer não veria mais que um relato aborrecido, o vosso coração materno achará encantos...
Aliás, as recordações que vou evocar são também as vossas, pois foi junto de vós que decorreu a minha infância; e tenho a felicidade de ter os pais incomparáveis, que nos rodearam dos mesmos cuidados e das mesmas ternuras. Oh! que eles se dignem abençoar a mais pequena das suas filhas e que a ajudem a cantar as misericórdias divinas!
 
Na história da minha alma até à minha entrada para o Carmelo distingo três períodos bem distintos. O primeiro, apesar da sua curta duração, não é o menos fecundo em recordações; vai desde o despertar da minha razão até à partida da nossa querida mãe para a pátria dos Céus.
[4vº] Deus concedeu-me a graça de me abrir muito cedo a inteligência e de me gravar tão profundamente as recordações da minha infância, que me parece que as coisas que vou contar se passaram ontem. Sem dúvida, Jesus queria, no seu amor, fazer-me conhecer a mãe incomparável que me tinha dado, mas que a sua mão Divina tinha pressa em coroar no Céu!...
 
Aprouve a Deus rodear-me de amor toda a minha vida. As minhas primeiras recordações estão marcadas pelos mais ternos sorrisos e carícias! ... Mas, se colocou junto de mim muito amor, também pôs dentro do meu coraçãozinho, criando-o amante e sensível, e assim eu amava muito o Papá e a mamã e testemunhava-lhes a minha ternura de mil maneiras, pois era muito expansiva. Só que os meios que empregava eram, por vezes, estranhos, como o prova esta passagem da mamã: «O bebé é uma traquinas de primeira. Acaba de me acariciar, desejando-me a morte: - "Oh! como eu gostaria que tu morresses, minha pobre mãezinha!..." Ralham-lhe e ela diz: -" Mas é para tu ires para o Céu, pois dizes que é preciso morrer para ir para lá". Deseja também a morte ao pai, quando está nos seus ímpetos de amor!».
 
[5rº] Eis o que a mamã dizia de mim do dia 25 de Junho de 1874, quando eu tinha apenas 18 meses: «O vosso pai acaba de instalar um baloiço. A Celina está fora de si de contente, mas a pequena a baloiçar-se, só visto; dá vontade de rir. Porta-se como uma menina grande. Não há perigo que se solte da corda; e, quando não está bem atada, ela grita. Prendemo-la com outra corda pela frente e, apesar disso, não estou sossegada quando a vejo empoleirada lá em cima.».
 
«Aconteceu-me uma aventura engraçada, outro dia, com a pequena. Costumo ir à missa das 5.30h. Nos primeiros dias não me atrevia a deixá-la; mas, ao ver que nunca acordava, acabei por me decidir a fazê-lo. Deito-a na minha cama e aproximo o berço de modo que é impossível ela cair. Um dia esqueci-me de encostar o berço. Chego e a pequena já não estava na minha cama; nesse momento ouço um gemido; olho e vejo-a sentada numa cadeira que estava junto da cabeceira da cama, a cabecita deitada no travesseiro; e ali dormia um mau sono, pois estava numa posição incómoda. Não pude compreender como caiu sentada nessa cadeira, pois estava deitada. Agradeci a Deus não lhe ter acontecido nada. 
 
Foi verdadeiramente providencial; podia ter caído no chão; o seu anjo-da-guarda velou por ela, e as almas do Purgatório, às quais rezo todos os dias uma oração pela pequena, protegeram-na. É assim que eu explico o caso. Voçês expliquem-no como entenderem!...».
No fim da carta a mamã acrescentava: «O bebezinho acaba de me passar a mãozinha pela cara e de me beijar. Esta pequerrucha não me quer deixar nem por nada; está continuamente ao pé de mim. Gosta muito de ir para o jardim, [5vº] mas se eu lá não estou, não quer lá ficar e chora até ma trazerem...».
 
Eis uma passagem de outra carta: «A Terezinha perguntou-me à dias se ela iria para o Céu. Respondi-lhe que sim, se se comportasse bem; e ela respondeu-me: "Sim, mas se eu não fosse boazinha, ia para o Inferno... Mas eu bem sei o que havia de fazer: voava para ir ter contigo que estavas no Céu, e como é que Deus me havia de apanhar?... Tu apertavas-me com muita força no teu colo?" Vi nos olhos dela que acreditava verdadeiramente que Deus não lhe podia fazer nada se estivesse no colo da sua mãe...». 
«A Maria gosta muito da irmã: acha-a muito boazinha; não é de admirar, pois esta pobre pequenita tem muito medo de lhe dar algum desgosto. Ontem quis dar-lhe uma rosa, pois sei que isso a torna feliz, mas começou a pedir-me que não a cortasse, que Maria tinha proibido; estava corada de emoção, apesar disso, dei-lhe duas; já não ousava entrar em casa. Bem lhe repetia que as rosas eram minhas, mas não - dizia - são da Maria...
É uma criança que se emociona com muita facilidade. Se faz qualquer travessura toda a gente tem de saber. Ontem, tendo rasgado sem querer, um bocadinho de papel da parede, ficou num estado que metia dó, tinha logo que o dizer ao pai; este chegou quatro horas depois, já ninguém se lembrava, mas ela veio a correr, dizer à Maria: - Diz depressa ao Papá que rasguei o papel. E fica-se como um criminoso que aguarda a sua condenação. Lá no seu entender, acha que lhe perdoará mais facilmente se ela se acusar».
 
[4vº continuação] Gostava muito da minha querida madrinha. Sem o mostrar, dava muita atenção a tudo quanto se passava e dizia à minha volta. Parece-me que julgava as coisas como agora. Ouvia muito atentamente o que a Maria ensinava à Celina, para fazer como ela. [6rº] Depois de ela ter saído da Visitação, para conseguir o favor de ser admitida no seu quarto durante as lições que dava à Celina, portava-me muito bem e fazia tudo o que ela queria; por isso, ela dava-me muitos presentes que, apesar do seu pouco valor, me davam muito prazer.
Orgulhava-me das minhas duas irmãs mais velhas, mas a que era o meu ideal de criança, era a Paulina... Quando comecei a falar e a mamã me perguntava: -«Em que estás a pensar? a resposta era invariável: - «Na Paulina!...» Outra ocasião, passava o dedito na vidraça e dizia: - «Estou a escrever: Paulina!...» Muitas vezes ouvia dizer que, com certeza, a Paulina iria ser religiosa; então, sem saber muito bem o que isso era, pensava: - «Eu também hei-de ser religiosa». Esta é uma das [minhas] primeiras recordações, e desde então nunca mudei de resolução!...
 
Foi a vós, minha querida Madre, que Jesus escolheu para me desposar com Ele. Nessa altura já não estáveis ao pé de mim, mas já um vínculo se estabelecera nas nossas almas... Vós éreis o meu ideal; queria parecer-me convosco, e foi o vosso exemplo que, desde a idade de dois anos, me atraiu para o Esposo das virgens... Oh! que ternas reflexões queria confiar-vos! - Mas tenho de continuar a história da Florzinha, a sua história completa e geral, pois, se quisesse falar pormenorizadamente das minhas relações com a «Paulina» teria que deixar tudo o mais!...
 
A minha querida Leonazinha tinha também um grande lugar no meu coração. Gostava muito de mim. À noite era ela que tomava conta de mim quando toda a família ia passear... Parece-me ouvir ainda as belas cantigas que entoava para me adormecer... Em tudo procurava maneira de me ser agradável; por isso, eu teria muito desgosto se a magoasse.
 
[6 vº] Lembro-me muito bem da sua Primeira Comunhão, sobretudo do momento em que pegou em mim ao colo para entrar com ela no presbitério; parecia-me tão lindo, ser assim levada por uma irmã mais velha, toda vestida de branco como eu! ...
À noite deitaram-me cedo, pois era muito pequena para ficar para o banquete; mas vejo ainda o Papá vir, à sobremesa, trazer à sua rainhazinha pedaços de bolo grande...
 
No dia seguinte, ou poucos dias depois, fomos com a mamã a casa da companheira da Leónia. Creio que foi nesse dia que a boa mãezinha nos levou atrás dum muro para nos dar vinho a beber, depois do jantar que a pobre senhora Dagorau nos tinha servido, pois não queria desgostar a boa mulher, mas também não queria que nos faltasse nada... Ah! como o coração de uma mãe é delicado! Como traduz a sua ternura em mil cuidados previdentes nos quais ninguém pensaria!...
 
Resta-me agora falar da minha querida Celina, a pequena companheira da minha infãncia. Mas as recordações são tão abundantes que não sei quais escolher. Vou extrair algumas passagens das cartas que a mamã vos escrevia para a Visitação, mas não vou copiar tudo, porque seria demasiado longo... A 10 de Julho de 1873 (o ano do meu nascimento), eis o que ela vos dizia: - «A ama trouxe a Teresinha na quinta-feira; não fez senão rir. Era sobretudo a Celininha que lhe agradava; ria com ela às gargalhadas. Dir-se-ia que já lhe apetece brincar; isso está para breve, pois já se tem nas pernitas, direita como uma estaquinha. Creio que vai começar a andar cedo e que terá bom carácter. Parece muito inteligente e tem cara de predestinada...».
 
[7 rº] Mas foi sobretudo depois de deixar a ama, que mostrei a minha afeição pela minha querida Celininha. Entendiamo-nos muito bem; só que eu era muito mais viva e bem menos ingénua que ela; apesar de três anos e meio mais nova, parecíamos da mesma idade. 
Eis uma passagem duma carta da mamã que vos mostrará como a Celina era sossegada e eu má: - «A Celininha é muito inclinada à virtude. É o sentimento íntimo do seu ser. Tem uma alma cândida e tem horror ao mal. Quanto ao furãozito, não se sabe muito bem o que irá ser. É tão pequeno, tão travesso! Tem uma inteligência superior à da Celina, mas é muito menos sossegada e, sobretudo, de uma teimosia quase invencível: quando diz 'não', nada a consegue fazer ceder; ainda que a fechassem um dia inteiro no quarto escuro, ela preferia dormir lá do que dizer 'sim'...»
 
«Apesar disso, tem um coração de ouro; é muito carinhosa e muito franca. É curioso vê-la correr atrás de mim para me fazer a sua confissão: - 'Mamã, empurrei a Celina, só uma vez; bati-lhe uma vez, mas não o faço mais'. - É assim em tudo o que faz. Na quinta-feira à noite, fomos passear para o lado da estação. Quis a todo custo entrar na sala de espera para ir buscar a Paulina; corria à frente, com uma alegria que dava gosto; mas quando viu que tinha de regressar sem subir para o comboio para ir buscar a Paulina, chorou durante todo o caminho».
 
Esta última parte da carta recorda-me a alegria que experimentava quando vos via regressar da Visitação. Vós, minha Madre, pegáveis em mim ao colo, e a Maria pegava na Celina; então eu fazia-vos mil carícias e inclinava-me  [7vº] para trás para admirar a vossa grande trança... Depois dáveis-me um pau de chocolate que tínheis guardado há três meses. Podeis imaginar que relíquia não era para mim!...
Lembro-me também da viagem que fiz a Le Mans. Foi a primeira vez que andei de comboio. Que alegria, ir viajar sozinha com a mamã!... No entanto, não sei porquê, puz-me a chorar, e a pobre mãezinha não pôde apresentar à nossa tia de Le Mans senão uma reles feiota, toda vermelha das lágrimas que derramara pelo caminho... Não conservei nenhuma recordação do locutório, a não ser do momento em que a nossa tia me passou um ratinho branco e um cestinho de cartolina cheio de bombons, sobre os quais se elevavam dois lindos anéis de açúcar, mesmo do tamanho do meu dedo; imediatamente exclamei: - «Que alegria! Um anel será para a Celina!». Mas, que desgraça! Pego no meu cesto pela asa, dou a outra mão à mamã e pomo-nos a caminho. Depois de alguns passos, olho para o meu cesto e vejo que os meus bombons estavam quase todos semeados pela rua, como as pedras do pequeno polegar. Olho mais de perto e vejo que um dos preciosos anéis tinha tido a sorte fatal dos bombons... Não tinha mais nada para dar à Celina! ... Então a minha dor explode. Peço para voltar para trás, mas a mamã parece não fazer caso. Era demais. Às minha lágrimas sucedem-se os meus gritos... Não podia compreender que ela não partilhasse o meu desgosto, e isso aumentava muito a minha dor...
 
Volto agora às cartas, nas quais a mamã vos fala da Celina e de mim. É o melhor meio que posso empregar para vos dar a conhecer bem o meu carácter. Eis uma passagem em que os meus defeitos ficam bem a descoberto: [8 rº] -«A Celina anda a brincar com a pequena ao jogo dos cubos. De vez em quando zangam-se, e a Celina cede para acrescentar uma pérola à sua coroa. Vejo-me obrigada a corrigir o pobre bebé que tem fúrias terríveis. Quando as coisas não correm do seu agrado, rebola-se no chão como uma desesperada pensando que está tudo tranquilo. Há momentos em que a contrariedade é mais forte do que ela, e fica como sufocada. É uma criança muito nervosa. Apesar disso, é muito meiga e muito inteligente. Lembra-se de tudo.»
 
Bem vedes, minha Madre, quão longe eu estava de ser uma menina sem defeitos! Nem sequer se podia dizer de mim que era «sossegada quando estava a dormir», porque de noite, ainda era mais irrequieta que de dia. Mandava passear todos os cobertores, e depois (sempre a dormir) batia contra a madeira da minha caminha. Acordava com as dores e dizia: «Mamã, tenho pancada!...». A pobre mãezinha tinha de se levantar e verificava que, na verdade, eu tinha galos na testa, que tinha pancada. Cobria-me bem, depois voltava a deitar-se. Mas pouco depois, eu recomeçava a ter pancada, de maneira que tiveram de me amarrar na cama. Todas as noites a Celininha vinha atar os numerosos cordões destinados a impedir a pequena traquinas de ter pancada e de acordar a mamã. Como esse método deu resultado, daí em diante fui sossegada enquanto dormia... Há outro defeito que tinha (estando acordada) de que a mamã não fala nas cartas: era um grande amor próprio. Vou dar-vos apenas dois exemplos, para não tornar este relato demasiado longo.
 
Um dia a mamã disse-me: - «Minha Teresinha, se beijares o chão, dou-te um soldo». Um soldo era para mim uma fortuna; para o ganhar não precisava de abaixar a minha grandeza, pois a minha pequena estatura não me distanciava muito do chão; mas o meu orgulho revoltou-se com [8vº] a ideia de beijar o chão; mantendo-me muito direita, digo à mamã: - «Oh! não, mãezinha, prefiro ficar sem o soldo!...».
Outra ocasião, tínhamos de ir a Grogny, a casa do Senhor Monnier. A mamã disse à Maria que me vestisse o meu lindo vestido azul-celeste, com rendas, mas que não me deixasse os braços nus, para o sol os não queimar. Deixei-me vestir com a indiferença que deverão ter as crianças da minha idade, mas, interiormente pensava que teria ficado muito mais bonita com os meus bracinhos nus. 
Com uma natureza como a minha, se tivesse sido educada por Pais sem virtude, ou mesmo se, como a Celina, fosse animada pela Luísa, ter-me-ia tornado muito má e talvez me tivesse perdido... Mas Jesus velava pela sua pequena noiva; quis que tudo fosse para seu bem, mesmo os seus defeitos que, reprimidos cedo, lhe serviram para crescer na perfeição...
 
Como eu tinha amor próprio e também amor do bem, logo que comecei a pensar a sério (o que fiz de bem pequena), bastava que me dissessem que uma coisa não estava bem, para não ter vontade que mo repetissem duas vezes...
Vejo com alegria nas cartas da mamã que, à medida que ia crescendo, lhe dava mais consolação. Não tendo à minha volta senão bons exemplos, queria, naturalmente, imitá-los. Eis o que ela escrevia em 1876:
- «Até a Teresa, por vezes, se que pôr a fazer práticas... É uma criança encantadora; é perspicaz, muito viva, mas de coração sensível. A Celina e ela gostam muito uma da outra. Bastam-se a si próprias para se entreterem. Todos os dias, depois do jantar, a Celina vai buscar o seu galito. Agarra logo à primeira a galinha de Teresa. Eu não consigo, mas ela é tão ágil que a agarra ao primeiro salto. Depois vêm as duas, com os seus bichos, sentar-se ao canto [9rº] da lareira, e brincam assim durante muito tempo. (Foi a Rosinha que me ofereceu a galinha e o galo; e eu tinha dado o galo à Celina). 
 
Outro dia, a Celina dormiu comigo; a Teresa dormiu no segundo andar, na cama de Celina. Ela tinha pedido à Luísa para a levar para baixo para a vestirem. A Luísa subiu à procura dela, mas encontrou a cama vazia. A Teresa tinha ouvido a Celina e tinha descido com ela. A Luíza diz-lhe: - 'Então, não queres vir para baixo para te vestires?' - 'Oh! não, minha pobre Luisinha, nós somos como duas pombinhas, não nos podemos separar!' E ao dizer isto abraçavam-se e apertavam-se uma contra a outra...
 
Depois, à noite, a Luísa, a Celina e a Leónia foram ao círculo católico e deixaram, em casa, esta pobre Teresa, que compreendia bem que era muito pequena para também ir; então dizia: - 'Se ao menos me quisessem deitar na cama da Celina!...' Mas não; não quiseram... Ela não disse nada e ficou sozinha com a sua lamparina. Um quarto de hora depois, dormia um sono profundo...».
Noutro dia a mamã escrevia ainda: - «A Celina e a Teresa são inseparáveis. Não há crianças que se amem tanto. Quando a Maria vem buscar a Celina para lhe dar lição, a pobre Teresa fica banhada em lágrimas. Coitada! Que irá ser dela? A sua amiguinha vai-se embora!... Maria tem pena dela; leva-a também, e a pobre pequena fica sentada numa cadeira durante duas ou três horas. Dão-lhe contas para enfiar ou um pano para cozer; não ousa mexer-se e dá muitas vezes grandes suspiros. Quando a agulha se desenfia, tenta voltar a enfiá-la. É engraçado vê-la, pois não consegue enfiá-la e não se atreve a incomodar a Maria. Pouco depois, duas grossas lágrimas escorrem-lhe pelas faces... A Maria [9vº] consola-a imediatamente; volta a enfiar-lhe a agulha, e o pobre anjinho sorri, banhado em lágrimas...».
 
Lembro-me de que, com efeito, não podia passar sem a Celina. Preferia sair da mesa sem acabar de comer a sobremesa, para ir com ela, logo que se levantava. Virava-me na minha cadeira alta, pedia que me pusessem no chão, e depois íamos brincar as duas. Algumas vezes íamos brincar com a pequena prefeita, o que me agradava muito, por causa do parque e de todos os lindos jogos que ela nos mostrava. Mas era sobretudo para dar prazer à Celina que eu lá ia, preferindo ficar no nosso jardinzinho a raspar as paredes, pois tirávamos todas as pequenas lantejoulas brilhantes que lá havia e depois íamos vendê-las ao Papá, que no-las comprava com um ar muito sério.
 
Ao domingo, como era muito pequena para ir aos ofícios, a mamã ficava a tomar conta de mim. Portava-me muito bem e andava só em bicos de pés durante a missa. Mas, logo que via a porta a abrir-se, era uma enorme explusão de alegria: precipitava-me ao encontro da minha bela irmãzinha que, então, estava enfeitada como uma capela... e dizia-lhe: - «Oh! minha Celininha, dá-me depressa do pão bento!» Ás vezes não tinha, porque chegara tarde... Que fazer então? Era-me impossível passar sem ele; era essa «a minha missa»... A solução depressa foi encontrada. - «Não tens pão bento, então fá-lo tu!» Dito e feito; a Celina pega numa cadeira, abre o armário, agarra o pão, parte um bocado e, com muita seriedade, recita sobre ele uma Ave-Maria. A seguir oferece-mo, e eu, depois de fazer com ele o sinal da cruz, como-o com uma grande devoção, achando-lhe exactamente o gosto [10rº] do pão bento...
 
Muitas vezes fazíamos juntas conferências espirituais, eis um exemplo que tiro das cartas da mamã: - «As nossas duas pequenas, Celina e Teresa, são anjos abençoados, pequenas naturezas angélicas. Teresa é a alegria, a felicidade de Maria e a sua glória; é incrível como se orgulha dela. É verdade que dá respostas prontas, bem raras para a sua idade; faz ver à Celina, que tem o dobro da sua idade. A Celina dizia outro dia: 'Como é possível Deus estar numa hóstia tão pequena?' A pequena disse: - 'Não tem de que admirar, pois Deus é Todo-Poderoso'. - 'O que quer dizer Todo-Poderoso?' - 'Ora, é fazer tudo o que Ele quer!'...»
 
Um dia, a Leónia, pensando ser grande demais para brincar com bonecas, veio ter com nós as duas com um açafate cheio de vestidos e de lindos retalhos para fazer outros; por cima estava deitada a boneca dela. - «Tome lá minhas irmãzinhas, disse-nos, escolham, dou-lhes isto tudo». A Celina estendeu a mão e pegou num pequeno molho de cordões de que gostou. Após um momento de reflexão, estendi, por minha vez a mão dizendo: - « Eu escolho tudo!» e peguei no açafate sem mais cerimónias. As testemunhas da cena acharam muito bem; a própria Celina não pensou em se queixar (aliás não lhe faltavam brinquedos; o padrinho dela cumulava-a de presentes e a Luíza arranjava maneira de lhe conseguir tudo quanto desejava). 
 
Este pormenor da minha infância é o resumo de toda a minha vida. Mais tarde quando encarei a perfeição, compreendi que para se vir a ser santa era preciso sofrer muito, procurar sempre o mais perfeito e esquecer-se de si mesma; compreendi que havia muitos graus na perfeição e que cada alma [10 vº] era livre de responder aos apelos de Nosso Senhor, de fazer pouco ou muito por Ele, numa palavra, de escolher entre os sacrifícios que Ele pede. Então, como nos dias da minha primeira infância, exclamei: - «Meu Deus, eu escolho tudo. Não quero ser uma santa a meias; não tenho medo de sofrer por vós; só tenho medo de uma coisa, é de conservar a minha vontade, tomai-a, porque 'Eu escolho tudo' o que vós quereis!...» Tenho de parar; não devo falar ainda da minha juventude, mas do pequeno Diabrete de quatro anos. Lembro-me de um sonho que tive, creio que por esta idade, e que se gravou profundamente na minha imaginação. Uma noite, sonhei que saía para ir passear sozinha no jardim. Tende chegado ao fundo dos degraus, que era preciso subir para lá chegar, parei aterrorizada. Diante de mim, ao pé do caramanchão, estava um barril de cal e, em cima do barril, dois horrorosos diabinhos dançavam com uma agilidade  surpreendente, apesar dos ferros de engomar que tinham nos pés; de repente lançaram sobre mim os seus olhos flamejantes, e logo no mesmo instante, parecendo muito mais assustados do que eu, precipitaram-se abaixo do barril e foram esconder-se na rouparia que ficava em frente. Vendo-os tão pouco valentes, quis saber o que iam fazer e aproximei-me da janela. Os pobres diabinhos andavam por lá, a correr em cima das mesas, e sem saber o que fazer para fugir ao meu olhar; algumas vezes aproximavam-se da janela, verificando, com ar inquieto, se eu ainda lá estaria e, vendo-me ainda, recomeçavam a correr como desesperados. 
 
- Sem dúvida, este sonho nada tem de extraordinário; contudo, creio que Deus permitiu que me lembre dele para me provar que uma alma em estado de graça nada tem a temer aos demónios, que são uns cobardes, capazes de fugir diante do olhar de uma criança... 
 
[11 rº] Eis mais uma passagem que encontro nas cartas da mamã. A pobre mãezinha pressentia já o fim do seu exílio: - «As duas pequenas nada me preocupam; as duas estão muito bem; são naturezas de eleição; com certeza, hão-de ser boas. A Maria e tu podereis educá-las perfeitamente. A Celina nunca comete a mais pequena falta voluntária. A pequena também será boa; não mentiria por todo o ouro do mundo; tem um espírito como nunca vi em nenhuma de vós».
 
«Outro dia foi à mercearia com a Celina e a Luíza; falava das suas práticas e discutia muito com a Celina; a senhora disse à Luíza: O que quer ela dizer, quando brinca no jardim, pois não se ouve falar senão em práticas? A Srª Gaucherin deita a cabeça de fora pela janela, para tentar compreender o que significa essa discussão de práticas... Esta pobre pequena faz a nossa felicidade; há-de ser boa; vê-se já o germe. Não fala senão de Deus; não deixaria por nada, de fazer as suas orações. Queria que tu a visses a recitar pequenas fábulas; nunca vi nada tão encantador; encontra sozinha a expressão precisa e o tom; mas é, sobretudo, quando ela diz: - 'Criancinha de cabeça loira, onde julgas tu que está Deus?' Quando ela chega a: 'Está lá em cima, no Céu azul', volta o rosto para o alto com uma expressão angélica; não nos cansamos de lho fazer repetir, de tão belo que é; há qualquer coisa de tão celestial no seu olhar, que ficamos encantados!...».
 
Ó minha Madre! Como era feliz nessa idade! Já começava a gozar a vida; a virtude tinha encantos para mim, e estava, parece-me, nas mesmas disposições em que estou agora, tendo já um grande [11 vº] domínio sobre as minhas ações. Ah! como passaram rapidamente os anos cheios de sol da minha primeira infância, mas que, doce rasto deixaram na minha alma! Recordo-me com satisfação dos dias em que o Papá nos levava ao pavilhão; no meu coração ficaram gravados os mais pequenos pormenores... Recordo sobretudo os passeios de domingo, em que a mamã nos acompanhava sempre... Sinto ainda as impressões profundas e poéticas que me brotavam na alma à vista dos campos de trigo, esmaltados de escovinhas e flores campestres. Gostava já dos largos horizontes... O espaço e os abetos gigantescos, cujos ramos tocavam a terra, deixavam no meu coração uma impressão semelhante à que ainda hoje sinto à vista da natureza... Muitas vezes, durante esses longos passeios, encontrávamos pobres, e era sempre a Teresinha a encarregada de lhes dar a esmola, com o que ela ficava muito contente; mas muitas vezes, também, o Papá, achando o caminho demasiado longo para a sua rainhazinha, regressava com ela mais cedo a casa (para seu grande desgosto). Então. para a consolar, a Celina enchia o seu lindo cestinho e oferecia-lho ao chegar; mas, pouca sorte! a vóvó achava que a neta tinha flores a mais e tirava uma boa parte delas para a sua Santíssima Virgem... Isto não agradava à Teresinha, mas esta acautelava-se bem para não dizer nada, tendo adquirido o bom hábito de nunca se queixar, mesmo quando tiravam o que era dela; ou então, quando era acusada injustamente, preferia calar-se e não se desculpar, o que não era mérito seu, mas virtude natural... Que pena, que esta boa disposição tenha desaparecido!...
 
[12 rº] Oh! na verdade, tudo me sorria na terra: encontrava flores sob cada um dos meus passos, e o meu carácter alegre contribuía também para tornar a minha vida agradável. Mas, um novo período ia começar para a minha alma: tinha de passar pelo crisol da provação e sofrer, desde a infância, para mais cedo ser oferecida a Jesus. Assim como as flores da Primavera começam a germinar sob a neve e desabrocham aos primeiros raios de sol, assim a Florzinha de que escrevo as recordações, teve de passar pelo Inverno da provação... Todos os pormenores da doença da nossa querida mãe estão aqui presentes no meu coração; lembro-me sobretudo, das últimas semanas que passou na terra; a Celina e eu éramos como pobres pequenas exiladas, todas as manhãs, a Srª Leriche vinha buscar-nos, e nós passávamos o dia em casa dela. Um dia não tivemos tempo de fazer a nossa oração antes de sair e, pelo caminho, a Celina disse-me baixinho: - «Temos de dizer que não fizemos a nossa oração?...» - «Ah, sim!», respondi. Então muito timidamente, ela disse-o à Sr.ª Leriche, e esta respondeu-nos: - «Então, minhas meninas, ides fazê-la»: e, depois de nos meter as duas num grande quarto, foi-se embora... Então, a Celina olhou para mim e dissemos: - «Ah! não é como a mamã... ela sempre nos ajudava a fazer as nossas orações!...» Ao brincar com as crianças, o pensamento da nossa querida mãe perseguia-nos sempre. Uma vez tendo a Celina recebido um belo damasco, inclinou-se e disse-me baixinho: - «Não vamos comê-lo, vou dá-lo à mamã». Ai de nós! A pobre mãezinha estava já demasiado doente para comer os frutos da terra; não deveria já saciar-se senão no Céu, da glória de Deus, e beber com Jesus o vinho misterioso de que Ele falou na última Ceia, dizendo que o partilharia connosco no reino de seu Pai.
 
A comovedora cerimónia da extema unção ficou também gravada na minha alma; vejo ainda o lugar onde eu estava, ao lado da Celina; nós as cinco estávamos por [12 vº] ordem de idades, e o pobrezinho Paizinho também lá estava a soluçar...
No mesmo dia, ou no dia seguinte à partida da mamã, ele pegou em mim ao colo, dizendo-me: - «Vem beijar pela última vez a tua pobre mãezinha». E eu, sem dizer nada, aproximei os lábios da testa da minha querida mãe... Não me lembro de ter chorado muito; não dizia a ninguém os sentimentos profundos que experimentava... Olhava e ouvia em silêncio... ninguém tinha tempo de se ocupar de mim, de modo que eu vi muitas coisas que teriam querido ocultar-me. Uma vez encontrei-me diante da tampa do caixão... fiquei muito tempo a observá-lo; nunca tinha visto nenhum, contudo, eu compreendia... era tão pequena que, apesar de a mamã ser de baixa estatura, tinha de levantar a cabeça para ver o cimo e pareceu-me muito grande... muito triste... Quinze anos mais tarde, encontrei-me diante de outro caixão, o da Madre Genovena; era do mesmo tamanho que o da mamã e pensei estar ainda nos dias da minha infância... Todas as minhas recordações me voltaram em catadupa; era a mesmíssima Teresinha que olhava, mas tinha crescido e o caixão parecia pequeno,  já não precisava de levantar a cabeça para o ver; já não a levantava senão para contemplar o Céu, que lhe parecia muito alegre, porque todas as provações tinham chegado ao fim e o Inverno da sua alma tinha passado para sempre...
 
No dia em que a Igreja abençoou os restos mortais da nossa mãezinha do Céu, Deus quis dar-me outra na terra, e quis que a escolhesse livremente. Estávamos as cinco todas juntas, olhando, com tristeza, umas para as outras; a Luísa também lá estava e, vendo a Celina e a mim, disse: - «Pobres pequenas, já não tendes mãe!...» Então a Celina lançou-se nos braços da Maria, dizendo: - «Pois bem! Tu serás a mamã». Eu estava habituada a fazer [13 rº] como ela mas voltei-me para vós, minha Madre, e, como se o futuro tivesse já rasgado o seu véu, lançei-me nos vossos braços, exclamando: - «Pois bem! para mim a Paulina será mamã!»