377 O povo de Israel, na fase inicial da sua história, não tem reis, como os demais povos, porque reconhece tão-somente o senhorio de Iahweh. É Deus que intervém na história através de homens carismáticos, conforme testemunha o Livro dos Juízes. Ao último destes homens, Samuel, o povo pedirá um rei semelhante (cf. 1 Sam 8, 5; 10, 18-19). Samuel põe os Israelitas de sobreaviso acerca das conseqüências de um exercício despótico da realeza (cf. 1 Sam 8, 11-18); contudo, o poder régio pode ser experimentado como dom de Iahweh que como dom de Iahweh que vem em socorro de seu povo (cfr 1 Sam 9, 16). Finalmente, Saul receberá a unção real (cf. 1 Sam 10, 1-12). O episódio evidencia as tensões que levaram Israel a uma concepção de realeza diferente da dos povos vizinhos: o rei, escolhido por Iahweh (cf. Dt 17, 15: 1 Sam 9, 16) e por Ele consagrado (cf. 1 Sam 16, 12-13) será visto como Seu filho (cf. Sal 2, 7) e deverá tornar visível o senhorio e o desígnio de salvação (cf. Sal 72). Deverá ainda fazer-se defensor dos fracos e assegurar ao povo a justiça: as denúncias dos profetas apontarão precisamente para as inadimplências dos reis (cfr 1 Re 21; Am 2, 6-8; Mi 3, 1-4).
378 O protótipo de rei escolhido por Iahweh é Davi, cuja condição humilde o relato bíblico ressalta com complacência (cf. 1 Sam 16, 1-13). Davi é o depositário da promessa (cf. 2 Sam 7, 13 ss; Sal 89, 2-38; 132, 11-18), que o coloca na origem de uma tradição real, precisamente a tradição «messiânica», a qual não obstante todos os pecados e as infidelidades do mesmo Davi e de seus sucessores, culmina em Jesus Cristo, o «ungido de Iahweh» (isto é, «consagrado do Senhor» cf. 1 Sam 2, 35; 24, 7.11; 26, 9.16; Ex. 30, 22-32) por excelência, filho de Davi (cf. as duas genealogias em Mt 1, 1-17 e Lc 3, 23-38; ver também Rm 1, 3).
O fracasso, no plano histórico, da realeza não ocasionará o desaparecimento do ideal de um rei que, em fidelidade a Iahweh, governe com sabedoria e exerça a justiça. Esta esperança reaparece repetidas vezes nos Salmos (cf. Sal 2; 18; 20; 21; 72). Nos oráculos messiânicos é esperado, para um tempo escatológico, a figura de um rei dotado do Espírito do Senhor, pleno de sapiência e em condição de trazer justiça aos pobres (cf. Is 11, 2-5; Jr 23, 5-6). Verdadeiro pastor do povo de Israel (cf. Ez 34, 23-24; 37, 24) levará a paz aos povos (cf. Zc 9, 9-10). Na literatura sapiencial, o rei é apresentado como aquele que emite justos juízos e aborrece a iniqüidade (cf. Pr 16, 12), julga os pobres com equidade (cf. Pr 29, 14) e é amigo do homem de coração puro (cf. Pr 22, 11). Torna mais explícito o anúncio de tudo quanto os Evangelhos e os demais autores do Novo Testamento vêem realizado em Jesus de Nazaré, encarnação definitiva da figura do rei descrita no Antigo Testamento.
b) Jesus e a autoridade política
379 Jesus rejeita o poder opressivo e despótico dos grandes sobre nações (cf. Mc 10, 42) e suas pretensões de fazerem-se chamar benfeitores (cf. Lc 21, 25), mas nunca contesta diretamente as autoridades de seu tempo. Na diatribe sobre o tributo a ser pago a César (cf. Mc 12, 13-17; Mt 22, 15-22; Lc 20, 20-26), Ele afirma que se deve dar a Deus o que é de Deus, condenando implicitamente toda tentativa de divinizar e de absolutizar o poder temporal: somente Deus pode exigir tudo do homem. Ao mesmo tempo o poder temporal tem o direito àquilo que lhe é devido: Jesus não considera injusto o tributo a César.
Jesus, o Messias prometido, combateu e desbaratou a tentação de um messianismo político, caracterizado pelo domínio sobre as nações (cf. Mt 4, 8-11; Lc 4, 5-8). Ele é o Filho do Homem que veio «para servir e entregar a própria vida» (Mc 10, 45; cf. Mt 20, 24-28; Lc 22, 24-27). Aos discípulos que discutem sobre qual é o maior, Jesus ensina a fazer-se último e a servir a todos (cf. Mc 9, 33-35), indicando aos filhos de Zebedeu, Tiago e João, que ambicionam sentar-se à Sua direita, o caminho da cruz (cf. Mc 10, 35-40; Mt 20, 20-23).
c) As primeiras comunidades cristãs
380 A submissão, não passiva, mas por razões de consciência(Rm 13, 5) ao poder constituído corresponde à ordem estabelecida por Deus. São Paulo define as relações e os deveres dos cristãos para com as autoridades (cf. Rm 13, 1-7). Insiste no dever cívico de pagar os tributos: «Pagai a cada um o que lhe compete: o imposto, a quem deveis o imposto; o tributo, a quem deveis o tributo; o temor e o respeito, a quem deveis o temor e o respeito» (Rm 13, 7). O Apóstolo certamente não pretende legitimar todo poder, pretende antes ajudar os cristãos a «fazer o bem diante de todos os homens» (Rm 12, 7), também nas relações com a autoridade, na medida em que esta está ao serviço de Deus para o bem da pessoa (cf. Rm 13, 4; 1 Tm 2, 1-1; Tt 3, 1) e «para fazer justiça e exercer a ira contra aquele que pratica o mal» (Rm 13, 4).
São Pedro exorta os cristãos a submeter-se «a toda autoridade humana por amor a Deus» (1 Pe 2, 13). O rei e os seus governadores têm a função de «punir os malfeitores e premiar os bons» (cf. 1 Pe 2, 14). A sua autoridade deve ser «honrada», isto é, reconhecida, porque Deus exige um comportamento reto, que «emudeça a ignorância dos insensatos» (1 Pe 2, 15). A liberdade não pode ser usada para cobrir a própria malícia, mas para servir a Deus (cf. ibidem). Trata-se portanto de uma obediência livre e responsável a uma autoridade que faz respeitar a justiça, assegurando o bem comum.
381 A oração pelos governantes, recomendada por São Paulo durante as perseguições, indica explicitamente o que a autoridade política deve garantir: uma vida calma e tranqüila a transcorrer com toda a piedade e dignidade (cf. 1 Tm 2, 1-2). Os cristãos devem estar «prontos para qualquer boa obra» (Tt 3, 1), sabendo «dar provas de toda mansidão para com todos os homens» (Tt 3, 2), conscientes de ter sido salvos não pelas suas obras, mas pela misericórdia de Deus. Sem «o batismo da regeneração e renovação, pelo Espírito Santo, que nos foi concedido em profusão, por meio de Cristo, nosso Salvador» (Tt 3, 5-6), todos os homens são «insensatos, rebeldes, transviados, escravos de paixões de toda a espécie, vivendo na malícia e na inveja, detestáveis, odiando-nos uns aos outros» (Tt 3, 3). Não se deve esquecer a miséria da condição humana, marcada pelo pecado e resgatada pelo amor de Deus.
382 Quando o poder humano sai dos limites da vontade de Deus, se autodiviniza e exige submissão absoluta, torna-se a Besta do Apocalipse, imagem do poder imperial perseguidor, ébrio «do sangue dos santos e dos mártires de Jesus» (Ap. 17, 6). A Besta tem a seu serviço o «falso profeta» (Ap. 19, 20), que impele os homens a adorá-la com portentos que seduzem. Esta visão indica profeticamente todas as insídias usadas por Satanás para governar os homens, insinuando-se no seu espírito com a mentira. Mas Cristo é o Cordeiro Vencedor de todo poder que se absolutiza no curso da história humana. Em face de tais poderes, São João recomenda a resistência dos mártires: dessa maneira, os fiéis testemunham que o poder corrupto e satânico é vencido, porque já não tem ascendência alguma sobre eles.
383 A Igreja proclama que Cristo, vencedor da morte, reina sobre o universo que Ele mesmo resgatou. O Seu reino se estende a todo o tempo presente e terá fim somente quando tudo for entregue ao Pai e a história humana se consumar com o juízo final(cf. 1 Cor 15, 20-28). Cristo revela à autoridade humana, sempre tentada ao domínio, o seu significado autêntico e completo de serviço. Deus é o único Pai e Cristo o único mestre para todos os homens, que são irmãos. A soberania pertence a Deus. O Senhor, todavia, «não quis reter para Si o exercício de todos os poderes. Confia a cada criatura as funções que esta é capaz de exercer, segundo as capacidades da própria natureza. Este modo de governo deve ser imitado na vida social. O comportamento de Deus no governo do mundo, que demonstra tão grande consideração pela liberdade humana, deveria inspirar a sabedoria dos que governam as comunidades humanas. Estes devem comportar-se como ministros da providência divina» [773] .
A mensagem bíblica inspira incessantemente o pensamento cristão sobre o poder político, recordando que esse tem sua origem em Deus e, como tal, é parte integrante da ordem por Ele criada. Tal ordem é percebida pelas consciências e se realiza na vida social mediante a verdade, a justiça e a solidariedade, que conduzem à paz [774] .