a) Comunidade internacional e valores
433 A centralidade da pessoa humana e da aptidão natural das pessoas e dos povos a estreitar relações entre si são elementos fundamentais para construir uma verdadeira Comunidade internacional, cuja organização deve tender ao efetivo bem comum universal [880] . Não obstante seja amplamente difusa a aspiração por uma autêntica comunidade internacional, a unidade da família humana não encontra ainda realização, porque é obstaculizada por ideologias materialistas e nacionalistas que contradizem os valores de que é portadora a pessoa considerada integralmente, em todas as suas dimensões, materiais e espirituais, individuais e comunitários. De modo particular, é moralmente inaceitável qualquer teoria ou comportamento caracterizado pelo racismo ou pela discriminação racial [881] .
A convivência entre as nações funda-se nos mesmos valores que devem orientar aquele entre os seres humanos: a verdade, a justiça, a solidariedade e a liberdade [882] . O ensinamento da Igreja, acerca dos princípios constitutivos da Comunidade Internacional, exige que as relações entre os povos e as comunidades políticas encontrem a sua justa regulamentação na razão, na eqüidade, no direito, no acordo , enquanto que exclui o recurso à violência e à guerra, a formas de discriminação, de intimidação e de engano [883] .
434 O direito se coloca como instrumento de garantia da ordem internacional [884] ,a saber, da convivência entre as comunidades políticas que singularmente perseguem o bem comum dos próprios cidadãos e que coletivamente devem tender ao bem comum de todos os povos [885] , na convicção de que o bem comum de uma nação é inseparável do bem da família humana inteira [886] .
A Comunidade Internacional é uma comunidade jurídica fundada sobre a soberania de cada Estado membro, sem vínculos de subordinação que lhes neguem ou limitem a sua independência [887] . Conceber deste modo a comunidade internacional não significa de maneira alguma relativizar e esvaecer as diferentes e peculiares características de um povo, mas favorecer-lhes a expressão [888] . A valorização das diferentes identidades ajuda a superar as várias formas de divisão que tendem a separar os povos e a torná-los portadores de um egoismo com efeitos desestabilizadores.
435 O Magistério reconhece a importância da soberania nacional, concebida antes de tudo como expressão da liberdade que deve regular as relações entre os Estados [889] .A soberania representa a subjetividade [890] de uma nação sob o aspecto político, econômico e também cultural. A dimensão cultural adquire um valor particular como ponto de força para a resistência aos atos de agressão ou às formas de domínio que condicionam a liberdade de um País: a cultura constitui a garantia de conservação da identidade de um povo, exprime e promove a sua soberania espiritual [891] .
A soberania nacional não é porém um absoluto. As nações podem renunciar livremente ao exercício de alguns de seus direitos, em vista de um objetivo comum, com a consciência de formar uma única «família» [892] , na qual devem reinar a confiança recíproca, o apoio e o respeito mútuo. Nessa perspectiva, merece uma consideração atenta a falta de um acordo internacional que enfrente de modo adequado «os direitos das nações» [893] , cuja preparação poderia enfrentar oportunamente questões acerca da justiça e da liberdade no mundo contemporâneo.
b) Relações fundadas na harmonia entre ordem jurídica e ordem moral
436 Para realizar e consolidar uma ordem internacional que garanta eficazmente a convivência pacífica entre os povos, a mesma lei moral, que rege a vida dos homens, deve regular também as relações entre os Estados: «lei moral cuja observância deve ser inculcada e promovida pela opinião pública de todas as nações e de todos os Estados com tal unanimidade de voz e de força, que ninguém se possa atrever a pô-la em dúvida ou atenuar-lhe o vínculo obrigatório» [894] . É necessário que a lei moral universal, inscrita no coração do homem seja considerada efetiva e inderrogável como viva expressão da consciência que a humanidade tem em comum, uma «gramática» [895] capaz de orientar o diálogo sobre o futuro do mundo.
437 O respeito universal dos princípios que inspiram um «ordinamento giuridico in armonia con l’ordine morale» [896] é uma condição necessária para a estabilidade da vida internacional. A busca de uma tal estabilidade favoreceu a elaboração gradual de um direito das nações [897] («ius gentium»), que pode ser considerado como o «antepassado do direito internacional» [898] . A reflexão jurídica e teológica, ancorada no direito natural, formulou «princípios universais que são anteriores e superiores ao direito interno dos Estados» [899] , como a unidade do gênero humano, a igualdade em dignidade de todos os povos, a recusa da guerra para superar as controvérsias, a obrigação de cooperar para o bem comum, a exigência de manter fé aos compromissos subscritos («pacta sunt servanda»). Este último princípio deve ser particularmente ressaltado para evitar «a tentação de apelar para o direito da força antes que para a força do direito» [900] .
438 Para resolver os conflitos que insurgem entre as diversas comunidades políticas e que comprometem a estabilidade das nações e a segurança internacional, é indispensável referir-se a regras comuns confiadas à negociação, renunciando definitivamente à idéia de buscar a justiça mediante o recurso à guerra [901] : «a guerra pode terminar sem vencedores nem vencidos num suicídio da humanidade, e então é necessário rejeitar a lógica que a ela conduz, ou seja, a idéia de que a luta pela destruição do adversário, a contradição e a própria guerra são fatores de progresso e avanço da história» [902] .
A Carta das Nações Unidas interditou não somente o recurso à força, como também a simples ameaça de usá-la [903] : tal disposição nasceu da trágica experiência da Segunda Guerra Mundial. O Magistério, durante aquele conflito, não deixou de individuar alguns fatores indispensáveis para edificar uma renovada ordem internacional: a liberdade e a integridade territorial de cada nação; a tutela dos direitos das minorias; uma divisão eqüitativa dos recursos da terra; a rejeição da guerra e a atuação do desarme; a observância dos pactos concordados; a cessação da perseguição religiosa [904] .
439 Para consolidar o primado do direito, vale acima de tudo o princípio da confiança recíproca [905] . Nesta perspectiva, os instrumentos normativos para a solução pacífica das controvérsias devem ser repensadas de tal modo que lhe sejam reforçadas o alcance e a obrigatoriedade. Os institutos da negociação, da mediação, da conciliação, da arbitragem, que são expressões da legalidade internacional devem ser apoiadas pela criação de «uma autoridade jurídica plenamente eficiente em um mundo pacificado» [906] . Um avanço nesta direção consentirá à Comunidade Internacional propor-se não mais como simples momento de agregação da vida dos Estados, mas como uma estrutura em que os conflitos possam ser pacificamente resolvidos: «Como dentro dos Estados (...) o sistema da vingança privada e da represália foi substituído pelo império da lei, do mesmo modo é agora urgente que um progresso semelhante tenha lugar na Comunidade internacional» [907] . Finalmente, o direito internacional «deve evitar que prevaleça a lei do mais forte» [908] .