246 A subjetividade social das famílias, tanto singularmente tomadas como associadas, exprime-se ademais com múltiplas manifestações de solidariedade e de partilha, não somente entre as próprias famílias, como também mediante várias formas de participação na vida social e política. Trata-se da conseqüência da realidade familiar fundada no amor: nascendo do amor e crescendo no amor, a solidariedade pertence à família como dado constitutivo e estrutural.
É uma solidariedade que pode assumir o rosto do serviço e da atenção a quantos vivem na pobreza e na indigência, aos órfãos, aos deficientes, aos enfermos, aos anciães, a quem está em luto, a todos os que estão na dúvida, na solidão ou no abandono; uma solidariedade que se abre ao acolhimento, à guarda ou à adoção; que sabe fazer-se voz de toda a situação de mal-estar junto das instituições, para que estas intervenham de acordo com as próprias finalidades específicas.
247 As famílias, longe de ser somente objeto de ação política, podem e devem ser sujeito de tal atividade, diligenciando «para que as leis e as instituições do Estado não só não ofendam, mas sustentem e defendam positivamente os seus direitos e deveres. Em tal sentido as famílias devem crescer na consciência de serem “protagonistas” da chamada «política familiar» e assumir a responsabilidade de transformar a sociedade» [559] . Para tanto, deve ser corroborado o associacionismo familiar: «As famílias têm o direito de formar associações com outras famílias e instituições, para desempenhar o papel da família de modo conveniente e efetivo, como também para proteger os direitos, promover o bem e representar os interesses da família. No plano econômico, social, jurídico e cultural, deve ser reconhecido o legítimo papel das famílias e das associações familiares na elaboração e na atuação dos programas que dizem respeito à vida da família» [560] .
b) Família, vida econômica e trabalho
248 A relação que intercorre entre a família e a vida econômica é particularmente significativa. Por uma parte, com efeito, a «eco-nomia» nasceu do trabalho doméstico: a casa foi por longo tempo, e ainda ― em muitos lugares — continua a ser, unidade de produção e centro de vida. O dinamismo da vida econômica, por outra parte, se desenvolve com a iniciativa das pessoas e se realiza, segundo círculos concêntricos, em redes cada vez mais vastas de produção e de troca de bens e de serviços, que envolvem em medida crescente as famílias. A família, portanto, há de ser considerada, com todo o direito, como protagonista essencial da vida econômica, orientada não pela lógica do mercado, mas segundo a lógica da partilha e da solidariedade entre as gerações.
249 Uma relação absolutamente particular liga a família e o trabalho: «a família constitui um dos mais importantes termos de referência, segundo os quais tem de ser formada a ordem sócio-ética do trabalho humano» [561] .Tal relação tem suas raízes na relação que intercorre entre a pessoa e o seu direito a possuir o fruto do próprio trabalho, e diz respeito não somente ao indivíduo enquanto tal, mas também como membro de uma família, concebida como «sociedade doméstica» [562] .
O trabalho é essencial enquanto representa a condição que torna possível a fundação de uma família, cujos meios de subsistência se obtêm mediante o trabalho. O trabalho condiciona também o processo de crescimento das pessoas, pois uma família vítima do desemprego corre o risco de não realizar plenamente as suas finalidades [563] .
O contributo que a família pode oferecer à realidade do trabalho é precioso e, sob muitos aspectos, insubstituível. É um contributo que se expressa quer em termos econômicos quer mediante os grandes recursos de solidariedade que a família possui e que constituem um importante apoio para quem, dentro dela, se acha sem trabalho ou está à procura de um emprego. Sobretudo e mais radicalmente, é um contributo que se realiza com a educação para o sentido do trabalho e mediante a oferta de orientações e apoios em face das mesmas opções profissionais.
250 Para tutelar esta relação essencial entre família e trabalho, um elemento a estimar e salvaguardar é o salário-família, ou seja, um salário suficiente para manter e fazer viver dignamente a família [564] . Tal salário deve também permitir a realização de uma poupança que favoreça a aquisição de uma certa propriedade, como garantia de liberdade: o direito à propriedade é estreitamente ligado à existência das famílias, que se põem ao abrigo da necessidade também graças à poupança e à constituição de uma propriedade familiar [565] . Vários podem ser os modos para concretizar o salário familiar. Concorrem para determiná-lo algumas importantes medidas sociais, como os abonos familiares e outros contributos para as pessoas que dependem da família, como também a remuneração do trabalho doméstico de um dos genitores [566] .
251 Nas relações entre família e trabalho, uma atenção particular deve ser reservada ao trabalho da mulher em família, o assim chamado trabalho de atenção, que chama em causa também as responsabilidades do homem como marido e como pai. O trabalho de atenção, a começar daquele da mãe, precisamente porque finalizado e dedicado ao serviço da qualidade da vida, constitui um tipo de atividade laboral eminentemente pessoal e personalizante, que deve ser socialmente reconhecida e valorizada [567] , também através de uma remuneração econômica pelo menos equivalente à de outros trabalhos [568] . Ao mesmo tempo, é necessário eliminar todos os obstáculos que impedem aos esposos exercer livremente a sua responsabilidade procriadora e, em particular, os que constrangem a mulher a não realizar plenamente as suas funções maternas [569] .
252 O ponto de partida para uma relação correta e construtiva entre a família e a sociedade é o reconhecimento da subjetividade e da prioridade social da família. A sua íntima relação impõe que «a sociedade não abandone o seu dever fundamental de respeitar e de promover a família» [570] . A sociedade e, em particular, as instituições estatais — no respeito da prioridade e «antecedência» da família — são chamadas a garantir e a favorecer a genuína identidade da vida familiar e a evitar e combater tudo o que a altere ou fira. Isto requer que a ação política e legislativa salvaguarde os valores da família, desde a promoção da intimidade e da convivência familiar, até ao respeito da vida nascente, à efetiva liberdade de opção na educação dos filhos. A sociedade e o Estado não podem, portanto, nem absorver, nem substituir, nem reduzir a dimensão social da família mesma; deve antes honrá-la, reconhecê-la, respeitá-la e promovê-la segundo o princípio de subsidiariedade [571] .
253 O serviço da sociedade à família se concretiza no reconhecimento, no respeito e na promoção dos direitos da família [572] . Tudo isto requer a realização de políticas familiares autênticas e eficazes com intervenções precisas aptas para responder às necessidades que derivam dos direitos da família como tal. Nesse sentido, é necessário o pré-requisito, essencial e irrenunciável, do reconhecimento — que comporta a tutela, a valorização e a promoção — da identidade da família, sociedade natural fundada sobre o matrimônio. Tal reconhecimento traça uma linha de demarcação clara entre a família propriamente entendida e as outras convivências, que da família — pela sua natureza — não podem merecer nem o nome nem o estatuto.
254 O reconhecimento, por parte das instituições civis e do Estado, da prioridade da família sobre qualquer outra comunidade e sobre a própria realidade estatal, leva a superar as concepções meramente individualistas e a assumir a dimensão familiar como perspectiva, cultural e política, irrenunciável na consideração das pessoas. Isto não se põe como alternativa, mas como suporte e tutela dos direitos mesmos que as pessoas têm individualmente. Tal perspectiva torna possível elaborar critérios normativos para uma solução correta dos diversos problemas sociais, pois as pessoas não devem ser consideradas só singularmente, como também em relação aos núcleos familiares em que estão inseridas, cujos valores específicos e exigências se devem ter na devida conta.