346. Uma das questões prioritárias na economia é o emprego dos recursos [725] , isto é, de todos aqueles bens e serviços cujos sujeitos econômicos, produtores e consumidores privados e públicos, atribuem um valor para a utilidade destes inerentes no campo da produção e do consumo. Na natureza os recursos são quantitativamente escassos e isto implica, necessariamente, que cada sujeito econômico, assim como cada sociedade, deva elaborar alguma estratégia para empregá-los do modo mais racional possível, seguindo a lógica ditada pelo princípio de economia. Disto dependem seja a efetiva solução do problema econômico mais geral, e fundamentalmente, da limitação dos meios em relação às necessidades individuais e sociais, privados e públicos, seja a eficiência completiva, estrutural e funcional, de todo o sistema econômico. Tal eficiência chama diretamente em causa a responsabilidade e a capacidade de vários sujeitos, como o mercado, o Estado e os corpos sociais intermediários.
347 O livre mercado é uma instituição socialmente importante para a sua capacidade de garantir resultados eficientes na produção de bens e serviços. Historicamente, o mercado deu provas de saber impulsionar e manter, por longo período, o desenvolvimento econômico. Existem boas razões para acreditar que, em muitas circunstâncias, «o livre mercado seja o instrumento mais eficaz para colocar os recursos e responder eficazmente as necessidades» [726] . A doutrina social da Igreja aprecia as vantagens seguras que os mecanismos do livre mercado oferecem, seja para uma melhor utilização dos recursos, seja para facilitar a troca de produtos; estes mecanismos « sobretudo, colocam no centro a vontade e as preferências da pessoa que no contrato se encontram com aqueles de uma outra pessoa» [727] .
Um verdadeiro mercado concorrencial é um instrumento eficaz para alcançar importantes objetivos de justiça: moderar os excessos de lucros das empresas singulares; responder às exigências dos consumidores; realizar uma melhor utilização e economia dos recursos; premiar os esforços empresariais e a habilidade de inovação; fazer circular a informação, em modo que seja verdadeiramente possível confrontar e adquirir os produtos em um contexto de saudável concorrência.
348 O livre mercado não pode ser julgado prescindindo dos fins que persegue e doa valores que transmite em nível social. O mercado, de fato, não pode encontrar em si mesmo o princípio da própria legitimação. Cabe à consciência individual e à responsabilidade pública estabelecer uma justa relação entre meios e fim [728] . O benefício individual do operador econômico, se bem que legítimo, jamais deve tornar-se o único objetivo. Ao lado deste, existe um outro, também fundamental e superior, aquele da utilidade social, que deve encontrar realização não em contraste, mas em coerência com a lógica de mercado. Quando desempenha as importantes funções acima recordadas, o livre mercado torna-se funcional ao bem e ao desenvolvimento integral do homem, enquanto a inversão da relação entre meios e fins pode fazê-lo degenerar em uma instituição desumana e alienante, com repercussões incontroláveis.
349 A doutrina social da Igreja, ainda que reconhecendo ao mercado a função de instrumento insubstituível de regulação no interior do sistema econômico, coloca em evidência a necessidade de ancorá-lo à finalidade moral, que assegurem e, ao mesmo tempo, circunscrevam adequadamente o espaço de sua autonomia [729] . A idéia de que se possa confiar tão-somente ao mercado o fornecimento de todas as categorias de bens não é admissível, porque baseada numa visão redutiva da pessoa e da sociedade [730] . Diante do concreto risco de uma « idolatria » do mercado, a doutrina social da Igreja lhe ressalta o limite, facilmente reveláveis em a sua constatada incapacidade de satisfazer as exigências humanas importantes, pelas quais há a necessidade de bens que, «por sua natureza, não são e não podem ser simples mercadorias» [731] , bens não negociáveis segundo a regra da «troca de equivalentes» e a lógica do contrato, típicas do mercado.
350 O mercado assume uma função social e relevante nas sociedades contemporâneas, por isso é importante individuar as potencialidades mais positivas e criar condições que permitam a sua concreta expansão. Os operadores devem ser efetivamente livres para confrontar, avaliar e escolher entre as várias opções, todavia a liberdade, no âmbito econômico, deve ser regulada por um apropriado quadro jurídico tal da colocá-la a serviço da liberdade humana integral: «a liberdade econômica é apenas um elemento da liberdade humana. Quando aquela se torna autônoma, isto é, quando o homem é visto mais como um produtor ou um consumidor de bens do que como um sujeito que produz e consome para viver, então ela perde a sua necessária relação com a pessoa humana e acaba por a alienar e oprimir» [732] .
351 A ação do estado e dos outros poderes públicos deve conformar-se com o princípio da subsidiariedade para criar situações favoráveis ao livre exercício da atividade econômica; esta deve inspirar-se também no princípio de solidariedade e estabelecer os limites da autonomia das partes para defender a parte mais frágeis [733] . A solidariedade sem subsidiariedade pode, de fato, degenerar facilmente em assistencialismo, ao passo que a subsidiariedade sem a solidariedade se expõe ao risco de alimentar formas de localismo egoísta. Para respeitar estes dois fundamentais princípios, a intervenção do Estado em âmbito econômico não deve ser nem açambarcadora, nem remissiva, mas sim apropriada às reais exigências da sociedade: «O Estado tem o dever de secundar a atividades das empresas, criando as condições que garantam ocasiões de trabalho, estimulando-a onde for insuficiente e apoiando-a nos momentos de crise. O Estado tem também o direito de intervir quando situações particulares de monopólio criem atrasos ou obstáculos ao desenvolvimento. Mas, além destas tarefas de harmonização e condução do progresso, pode desempenhar funções de suplência em situações excepcionais» [734] .
352 A tarefa fundamental do Estado em âmbito econômico é o de definir um quadro jurídico apto a regular as relações econômicas, com a finalidade de «salvaguardar ... as condições primárias de uma livre economia, que pressupõe uma certa igualdade entre as partes, de modo que uma delas não seja de tal maneira mais poderosa que a outra que praticamente a possa reduzir à escravidão» [735] . A atividade econômica, sobretudo num contexto de livre mercado, não pode desenrolar-se num vazio institucional, jurídico e político: «Pelo contrário, supõe segurança no referente às garantias da liberdade individual e da propriedade, além de uma moeda estável e serviços públicos eficientes» [736] . Para cumprir a sua tarefa, o Estado deve elaborar uma legislação apropriada, mas também orientar cuidadosamente as políticas econômicas, de modo a não se tornar prevaricador nas várias atividades de mercado, cuja atuação deve permanecer livre de superestruturas e coerções autoritárias ou, pior, totalitárias.
353 É necessário que mercado e Estado ajam de concerto um com o outro e se tornem complementares. O livre mercado pode produzir efeitos benéficos para a coletividade somente em presença de uma organização do Estado que defina e oriente a direção do desenvolvimento econômico, que faça respeitar regras eqüitativas e transparentes, que intervenha também de modo direto, pelo tempo estritamente necessário [737] , nos casos em que o mercado não consegue obter os resultados de eficiência desejados e quando se trata de traduzir em ato o princípio redistributivo. Na realidade, em alguns âmbitos, o mercado, apoiando-se nos próprios mecanismos, não é capaz de garantir uma distribuição eqüitativa de alguns bens e serviços essenciais ao crescimento humano dos cidadãos: neste caso a complementaridade entre Estado e mercado é sobremaneira necessária.
354 O Estado pode concitar os cidadãos e as empresas na promoção do bem comum cuidando de atuar uma política econômica que favoreça a participação de todos os seus cidadãos nas atividades produtivas. O respeito do princípio de subsidiariedade deve mover as autoridades públicas a buscar condições favoráveis ao desenvolvimento das capacidades de iniciativa individuais, da autonomia e da responsabilidade pessoais dos cidadãos, abstendo-se de qualquer intervenção que possa constituir um condicionamento indébito das forças empresariais.
Em vista do bem comum, se deve sempre perseguir com constante determinação o objetivo de um justo equilíbrio entre liberdade privada e ação pública, entendida quer como intervenção direta na economia, quer como atividade de suporte ao desenvolvimento econômico. Em todo o caso, a intervenção pública deverá ater-se a critérios de eqüidade, racionalidade e eficiência, e não substituir a ação dos indivíduos, contra o seu direito à liberdade de iniciativa econômica. O Estado, neste caso, se torna deletério para a sociedade: uma intervenção direta excessivamente açambarcadora acaba por desresponsabilizar os cidadãos e produz um crescimento excessivo de aparatos públicos guiados mais por lógicas burocráticas do que pela preocupação de satisfazer as necessidades das pessoas [738] .
355 A coleta fiscal e a despesa pública assumem uma importância econômica crucial para qualquer comunidade civil e política: o objetivo para o qual tender é uma finança pública capaz de se propor como instrumento de desenvolvimento e de solidariedade. Uma finança pública eqüitativa, eficiente, eficaz, produz efeitos virtuosos sobre a economia, porque consegue favorecer o crescimento do emprego, amparar as atividades empresariais e as iniciativas sem fins lucrativos, e contribui a aumentar a credibilidade do Estado enquanto garante dos sistemas de previdência e de proteção social destinados em particular a proteger os mais fracos.
As finanças públicas se orientam para o bem comum quando se atêm a alguns princípios fundamentais: o pagamento dos impostos [739] como especificação do dever de solidariedade; racionalidade e eqüidade na imposição dos tributos [740] ; rigor e integridade na administração e na destinação dos recursos públicos [741] . Ao redistribuir as riquezas, a finança pública deve seguir os princípios da solidariedade, da igualdade, da valorização dos talentos, e prestar grande atenção a amparar as famílias, destinando a tal fim uma adequada quantidade de recursos [742] .
c) O papel dos corpos intermédios
356 O sistema econômico-social deve ser caracterizado pela compresença de ação pública e privada, incluída a ação privada sem finalidade de lucro. Configura-se de tal modo uma pluralidade de centros decisórios e de lógicas de ação. Há algumas categorias de bens, coletivos e de uso comum, cuja utilização não pode depender dos mecanismos do mercado [743] e não é nem mesmo de exclusiva competência do Estado. O dever do Estado, em relação a estes bens, é antes o de valorizar todas as iniciativas sociais e econômicas que têm efeitos públicos, promovidos pelas formações intermédias. A sociedade civil, organizada nos seus corpos intermédios, é capaz de contribuir para a consecução do bem comum pondo-se em uma relação de colaboração e de eficaz complementaridade em relação ao Estado e ao mercado, favorecendo assim o desenvolvimento de uma oportuna democracia econômica. Em um semelhante contexto, a intervenção do Estado deve ser caracterizada pelo exercício de uma verdadeira solidariedade, que como tal nunca deve ser separada da subsidiariedade.
357 As organizações privadas sem fins lucrativos têm um espaço específico em âmbito econômico: nos serviços sociais, na instrução, na saúde, na cultura. Caracteriza tais organizações a corajosa tentativa de unir harmoniosamente eficiência produtiva e solidariedade. Constituem-se, geralmente, em base a um pacto associativo e são expressão de uma tensão ideal comum aos sujeitos que livremente decidem aderir às mesmas. O Estado é chamado a respeitar a natureza destas organizações e a valorizar as características, dando concreta atuação ao princípio de subsidiariedade, que postula precisamente um respeito e uma promoção da dignidade e da autônoma responsabilidade do sujeito «subsidiado».
358 Os consumidores, que em muitos casos dispõem de amplas margens de poder aquisitivo, bem além do limiar da subsistência, e podem influenciar consideravelmente a realidade econômica com a sua livre escolha entre consumo e poupança. A possibilidade de influir nas escolhas do sistema econômico está nas mãos de quem deve decidir sobre o destino dos próprios recursos financeiros. Hoje mais do que no passado, é possível avaliar as alternativas disponíveis não somente em base ao rendimento previsto ou ao seu grau de risco, mas também exprimindo um juízo de valor sobre os projetos de investimento que os recursos irão financiar, na consciência de que «a opção de investir num lugar em vez de outro, neste sector produtivo e não naquele, é sempre uma escolha moral e cultural» [744] .
359 O uso do próprio poder aquisitivo há de ser exercido no contexto das exigências morais da justiça e da solidariedade e de responsabilidades sociais precisas: é preciso não esquecer que «o dever da caridade, isto é, o dever de acorrer com o “supérfluo”, e às vezes até com o “necessário” para garantir o indispensável à vida do pobre» [745] . Tal responsabilidade confere aos consumidores a possibilidade de dirigir, graças à maior circulação de informações, o comportamento dos produtores, mediante a decisão ―individual ou coletiva― de preferir os produtos de algumas empresas em lugar de outras, levando em conta não apenas os preços e a qualidadedos produtos, mas também a existência de corretas condições de trabalho nas empresas, bem como o grau de tutela assegurado para o ambiente natural que o circunda.
360 O fenômeno do consumismo mantém uma persistente orientação para o «ter» mais que para o «ser». Ele impede de «distinguir corretamente as formas novas e mais elevadas de satisfação das necessidades humanas, das necessidades artificialmente criadas que se opõem à formação de uma personalidade madura» [746] . Para contrastar este fenômeno é necessário esforçar-se por construir «estilos de vida, nos quais a busca do verdadeiro, do belo e do bom, e a comunhão com os outros homens, em ordem ao crescimento comum, sejam os elementos que determinam as opções do consumo, da poupança e do investimento» [747] . É inegável que as influências do contexto social sobre os estilos de vida são notáveis: por isso o desafio cultural que hoje o consumismo põe deve ser enfrentado com maior incisividade, sobretudo se se consideram as gerações futuras, as quais arriscam ter de viver num ambiente saqueado por causa de um consumo excessivo e desordenado [748] .