287 O trabalho é um direito fundamental e é um bem para o homem [619] : um bem útil, digno dele porque apto a exprimir e a acrescer a dignidade humana. A Igreja ensina o valor do trabalho não só porque este é sempre pessoal, mas também pelo caráter de necessidade [620] . O trabalho é necessário para formar e manter uma família [621] , para ter direito à propriedade [622] , para contribuir para o bem comum da família humana [623] . A consideração das implicações morais que a questão do trabalho comporta na vida social induz a Igreja a qualificar o desemprego como uma « verdadeira calamidade social » [624] , sobretudo em relação às jovens gerações.
288 O trabalho é um bem de todos, que deve ser disponível para todos aqueles que são capazes de trabalhar. O « pleno emprego » é, portanto, um objetivo obrigado para todo o ordenamento econômico orientado para a justiça e para o bem comum. Uma sociedade em que o direito ao trabalho seja esvaecido ou sistematicamente negado e no qual as medidas de política econômica não consintam aos trabalhadores alcançar níveis satisfatórios de emprego, « não pode conseguir nem a sua legitimação ética nem a paz social » [625] . Um papel importante e, portanto, uma responsabilidade específica e grave, pertencem, neste âmbito, ao « empregador indireto » [626] , ou seja àqueles sujeitos ― pessoas ou instituições de vário tipo ― que estão aptas a orientar, no plano nacional ou internacional, a política do trabalho e da economia.
289 A capacidade de fazer projetos de uma sociedade orientada para o bem comum e projetada para o futuro se mede também e sobretudo em base às perspectivas de trabalho que ela é capaz de oferecer. O alto índice de desemprego, a presença de sistemas de instrução obsoletos e de dificuldades duradouras no acesso à formação e ao mercado do trabalho constituem, para muitos jovens sobretudo, um forte obstáculo na estrada da realização humana e profissional. Quem é desempregado ou subempregado, com efeito, sofre as conseqüências profundamente negativas que tal condição determina na personalidade e corre o risco de ser posto à margem da sociedade, de se tornar uma vítima da exclusão social [627] . Este é um drama que afeta, em geral, além dos jovens, as mulheres, os trabalhadores menos especializados, os deficientes, os imigrantes, os ex-carcerários, os analfabetos, todos os sujeitos que encontram maiores dificuldades na busca de uma colocação no mundo do trabalho.
290 A manutenção do emprego depende cada vez mais das capacidades profissionais [628] . O sistema de instrução e de educação não deve descurar a formação humana, tão necessária para desempenhar com proveito as tarefas requeridas. A necessidade cada vez maior de mudar várias vezes de emprego no arco da vida, obriga o sistema educativo a favorecer a disponibilidade das pessoas para a uma permanente atualização e requalificação. Os jovens devem aprender a agir autonomamente, a tornar-se capazes de assumir responsavelmente a tarefa de enfrentar com competências adequadas os riscos ligados a um contexto econômico mutável e não raro imprevisível nos seus cenários evolutivos [629] . É igualmente indispensável a oferta de oportunas ocasiões formativas aos adultos em busca de requalificação e aos desempregados. Cada vez mais , o percurso de trabalho das pessoas deve encontrar novas formas concretas de apoio, a começar precisamente do sistema formativo, de modo que seja menos difícil atravessar fases de mudança, de incerteza, de precariedade.
b) O papel do Estado e da sociedade civil na promoção do direito ao trabalho
291 Os problemas do emprego chamam em causa as responsabilidades do Estado, ao qual compete o dever de promover políticas ativas do trabalho tais que favoreçam a criação de oportunidades trabalhistas no território nacional, incentivando para tal fim o mundo produtivo. O dever do Estado não consiste tanto em assegurar diretamente o direito ao trabalho de todos os cidadãos, regulando toda a vida econômica e mortificando a livre iniciativa de cada indivíduo, quanto em « secundar a atividades das empresas, criando as condições que garantam ocasiões de trabalho, estimulando-a onde for insuficiente e apoiando-a nos momentos de crise » [630] .
292 Defronte às dimensões planetárias rapidamente assumidas pelas relações econômico-financeiras e pelo mercado do trabalho, se deve promover uma colaboração internacional eficaz entre os Estados, mediante tratados, acordos e planos de ação comuns que salvaguardem o direito ao trabalho também nas fases mais criticas do ciclo econômico, em âmbito nacional e internacional. É necessário estar cientes do fato de que o trabalho humano é um direito do qual dependem diretamente a promoção da justiça social e da paz civil. Importantes tarefas nesta direção cabem às Organizações internacionais e às sindicais: coligando-se nas formas mais oportunas, elas devem empenhar-se, antes de tudo, a tecer «uma trama sempre mais espessa de disposições jurídicas que protegem o trabalho dos homens, das mulheres, dos jovens, e lhe asseguram, conveniente retribuição» [631] .
293 Para a promoção do direito ao trabalho, é importante, hoje como nos tempos da «Rerum Novarum», que haja um « processo livre de auto-organização da sociedade » [632] . Testemunhos significativos e exemplos de auto-organização podem ser encontradas nas numerosas iniciativas, empresariais e sociais, caracterizadas por formas de participação, de cooperação e de auto-gestão, que revelam a fusão das energias solidárias. Eles se oferecem ao mercado como um variegado setor de atividades trabalhistas que se distinguem por uma atenção particular à componente relacional dos bens produzidos e dos serviços dispensados em multíplices âmbitos: instrução, tutela da saúde, serviços sociais de base, cultura. As iniciativas do chamado «terceiro setor» constituem uma oportunidade sempre mais relevante de desenvolvimento do trabalho e da economia.
c) A família e o direito ao trabalho
294 O trabalho é « o fundamento sobre o qual se edifica a vida familiar, que é um direito fundamental e uma vocação do homem » [633] : ele assegura os meios de subsistência e garante o processo educativo dos filhos [634] . Família e trabalho, assim estreitamente interdependentes na experiência da grande maioria das pessoas, merecem finalmente uma consideração mais adequada à realidade, uma atenção que as compreenda juntas, sem os limites de uma concepção privatista da família e economicista do trabalho. A tal propósito, é necessário que as empresas, as organizações profissionais, os sindicatos e o Estado se tornem promotores de políticas do trabalho que não penalizem, mas favoreçam o núcleo familiar do ponto de vista do emprego. A vida de família e o trabalho, efetivamente, se condicionam reciprocamente de vário modo. O pendularismo, a dupla jornada de trabalho e a fadiga física e psicológica reduzem o tempo dedicado à vida familiar [635] ; as situações de desemprego têm repercussões materiais e espirituais sobre as famílias, assim como as tensões e as crises familiares influem negativamente sobre as atitudes e sobre o rendimento no campo do trabalho.
d) As mulheres e o direito ao trabalho
295 O gênio feminino é necessário em todas as expressões da vida social, por isso deve ser garantida a presença das mulheres também no âmbito do trabalho. O primeiro e indispensável passo em tal direção é a concreta possibilidade de acesso a uma formação profissional. O reconhecimento e a tutela dos direitos das mulheres no contexto do trabalho dependem, em geral, da organização do trabalho, que deve levar em conta a dignidade e a vocação da mulher, cuja « verdadeira promoção ... exige que o trabalho seja estruturado de tal maneira que ela não se veja obrigada a pagar a própria promoção com o ter de abandonar a sua especificidade e com detrimento da sua família, na qual ela, como mãe, tem um papel insubstituível » [636] . É uma questão sobre a qual se medem a qualidade da sociedade e a efetiva tutela do direito das mulheres ao trabalho.
A persistência de muitas formas de discriminação ofensivas da dignidade e vocação da mulher na esfera do trabalho é devida a uma longa série de condicionamentos penalizantes para a mulher, que foi e ainda é « deturpada nas suas prerrogativas, não raro marginalizada e, até mesmo, reduzida à escravidão» [637] . Estas dificuldades, lamentavelmente, não estão superadas, como bem mostram por toda parte as várias situações que aviltam as mulheres, sujeitando-as também a formas de verdadeira e própria exploração. A urgência de um efetivo reconhecimento dos direitos das mulheres no trabalho se adverte especialmente sob o aspecto retributivo, assegurativo e previdenciário [638] .
296 O trabalho infantil, nas suas formas intoleráveis, constitui um tipo de violência menos evidente do que outros, mas nem por isso menos terrível [639] . Uma violência que, para além de todas as implicações políticas, econômicas e jurídicas, é sempre essencialmente um problema moral. Eis a advertência de Leão XIII: «Quanto aos infantes, cuide-se não os admitir nas oficinas antes da a idade lhes tenha desenvolvido suficientemente as forças físicas, intelectuais e morais. As forças, que na puerícia brotam semelhantemente à erva em flor, um movimento precoce as dissipa, tornando portanto impossível a própria educação dos infantes» [640] . A chaga do trabalho infantil, a mais de cem anos de distância não foi ainda debelada.
Mesmo com a consciência de que, ao menos por ora, em certos países o contributo dado pelo trabalho das crianças ao orçamento familiar e às economias nacionais é irrenunciável e que, em todo caso, algumas formas de trabalho realizadas a tempo parcial, podem ser frutuosas para as próprias crianças, a doutrina social denuncia o aumento da «exploração trabalhista dos menores em condições de verdadeira escravidão» [641] . Tal exploração constitui uma grave violação da dignidade humana de que todo indivíduo, «por pequeno ou aparentemente insignificante que seja em termos de utilidade» [642] , é portador.
297 A imigração pode ser antes um recurso que um obstáculo para o desenvolvimento. No mundo atual, em que se agrava o desequilíbrio entre países ricos e países pobres e nos quais o progresso das comunicações reduz rapidamente as distâncias, crescem as migrações das pessoas em busca de melhores condições de vida, provenientes das zonas menos favorecidas da terra: a sua chegada nos países desenvolvidos é não raro percebido como uma ameaça para os elevados níveis de bem-estar alcançados graças a decênios de crescimento econômico. Os imigrados, todavia, na maioria dos casos, respondem a uma demanda de trabalho que, do contrário, ficaria insatisfeita, em setores e em territórios nos quais a mão-de-obra local é insuficiente ou não está disposta a fornecer o próprio contributo em trabalho.
298 As instituições dos países anfitriões devem vigiar cuidadosamente para que não se difunda a tentação de explorar a mão-de-obra estrangeira, privando-a dos direitos garantidos aos trabalhadores nacionais, que devem ser assegurados a todos sem discriminação. A regulamentação dos fluxos migratórios segundo critérios de eqüidade e de equilíbrio [643] é uma das condições indispensáveis para conseguir que as inserções sejam feitas com as garantias exigidas pela dignidade da pessoa humana. Os imigrantes devem ser acolhidos enquanto pessoas e ajudados, junto com as suas famílias, a integrar-se na vida social [644] . Em tal perspectiva deve ser respeitado e promovido o direito a ver reunida a família [645] . Ao mesmo tempo, na medida do possível, devem ser favorecidas todas as condições que consentem o aumento das possibilidades de trabalho nas próprias regiões de origem [646] .
g) O mundo agrícola e o direito ao trabalho
299 Uma particular atenção merece o trabalho agrícola, pelo papel social, cultural e econômico que detém nos sistemas econômicos de muitos países, pelos numerosos problemas que deve enfrentar no contexto de uma economia cada vez mais globalizada, pela sua crescente importância na salvaguarda do ambiente natural: «portanto, são necessárias mudanças radicais e urgentes, para restituir à agricultura — e aos homens dos campos — o seu justo valor como base de uma sã economia, no conjunto do desenvolvimento da comunidade social» [647] .
As profundas e radicais transformações em curso no plano social e cultural, também na agricultura e no vasto mundo rural, repropõem com urgência um aprofundamento sobre o significado do trabalho agrícola nas suas multíplices dimensões. Trata-se de um desafio de notável importância, que deve ser enfrentado com políticas agrícolas e ambientais capazes de superar uma certa concepção residual e assistencial e de elaborar novas perspectivas para uma agricultura moderna, apta a cumprir um papel significativo na vida social e econômica.
300 Em alguns países é indispensável uma redistribuição da terra, no âmbito de eficazes políticas de reforma agrária, a fim de superar o impedimento que o latifúndio improdutivo, condenado pela doutrina social da Igreja [648] ,representa a um autêntico desenvolvimento econômico: «Os países em via de desenvolvimento podem combater eficazmente o atual processo de concentração da propriedade da terra, se afrontarem algumas situações que se podem classificar como verdadeiros e próprios nós estruturais. Tais são as carências e os atrasos a nível legislativo quanto ao reconhecimento do título de propriedade da terra e em relação ao mercado de crédito; o desinteresse pela investigação e formação em agricultura; a negligência a propósito de serviços sociais e de infra-estruturas nas áreas rurais» [649] . Areforma agrária torna-se, portanto, além de uma necessidade política, uma obrigação moral, dado que a sua não atuação obstaculiza nestes países os efeitos benéficos derivantes da abertura dos mercados e, em geral, daquelas ocasiões profícuas de crescimento que a globalização em curso pode oferecer [650] .