2 NOS BUISSONNETS (1877 - 1881)

2 NOS BUISSONNETS (1877 - 1881)
Como acima referi, foi a partir desta época da minha vida que tive de entrar no segundo período da minha existência, o mais doloroso dos três, sobretudo depois da entrada no Carmelo daquela que escolhera para minha segunda «Mamã». Este período vai dos quatros anos e meio até aos meus catorze anos, época em que reencontrei o meu carácter de criança, ao entrar na seriedade da vida.  Devo dizer-vos, minha Madre, que, desde a morte da mamã, o meu carácter alegre mudou completamente; eu, tão viva, tão expansiva, tornei-me tímida e calma, excessivamente sensível. Bastava um olhar para me fazer derreter em lágrimas; era preciso que ninguém se ocupasse de mim, para estar contente; não podia suportar a companhia de pessoas estranhas e não reecontrava a minha alegria senão na intimidade da família... No entanto, continuava a ser rodeada da mais delicada ternura. O coração tão terno do Papá tinha unido ao amor que já de si possuía um amor verdadeiramente maternal!... Vós, minha Madre, e a Maria,  não éreis para mim as mães mais ternas e as mais desinteressadas?... Ah! se Deus não tivesse prodigalizado os seus rais banfazejos à sua Florzinha, nunca ele se teria podido aclimatar à terra; era ainda demasiado frágil para suportar as chuvas e as tempestades; precisava de calor, de suave orvalho e das brisas primaveris. Nunca lhe faltaram [13 vº] esses benefícios: Jesus fez-lhos encontrar, mesmo sob a neve da provação!
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Não senti nenhuma pena ao deixar Alençon; as crianças gostam de mudança, e foi com gosto que vim para Liseux. Lembro-me da viagem, da chegada, à noite, a casa da tia; vejo ainda a Joana e a Maria à porta, à nossa espera...
Sentia-me muito feliz por ter priminhas tão gentis. Amava-as muito, bem como à tia e, sobretudo o tio; só que este me metia medo e não estava tão à vontade em casa dele como nos Buissonnets. Lá é que a minha vida era verdadeiramente feliz... Logo de manhã, vós vinheis ter comigo e perguntáveis-me se tinha oferecido o meu coração a Deus; depois vestíeis-me, falando-me d ´Ele e, em seguida, ao vosso lado, fazia a minha oração. Depois vinha a lição de leitura. A primeira palavra que consegui ler sozinha foi: «Céus». A minha querida madrinha encarregava-se  das lições de escrita, e vós, minha Madre, de todas as outras.  Não tinha lá muita facilidade para aprender, mas tinha muita memória. As minhas preferências iam para o catecismo e, sobretudo, para a História Sagrada; estudava-os com alegria; mas a gramática fez-me muitas vezes correr as lágrimas... Lembrai-vos do masculino e do feminino!
Uma vez terminada a minha aula, subia ao belveder, para levar ao Papá a minha condecoração e a nota. Como era feliz quando lhe podia dizer: - «Tenho 5 redondos, foi a Paulina a primeira a dizê-lo!...» Porque, quando era eu a perguntar-vos se tinha 5 redondos e me dizíeis que sim, aos meus olhos valia um ponto a menos. Geralmente dáveis-me senhas de bónus e, quando juntava um determinado número, tinha um prémio e um dia feriado. Lembro-me que esses dias [14 rº] me pareciam muito mais longos do que os outros, o que vos agradava, pois indicava que eu não gostava de estar sem fazer nada. 
Todas as tardes ia dar um pequeno passeio com o Papá; fazíamos juntos a visita ao Santíssimo Sacramento, visitando cada dia uma nova igreja. Foi assim que entrei, pela primeira vez, na capela do Carmelo. O Papá mostrou-me a grade do coro, dizendo-me que, por detrás, estavam religiosas. Estava bem longe de imaginar que, nove anos mais tarde, eu estaria entre elas!...
Depois do passeio (durante o qual o Papá me comprava sempre um pequeno presente de um ou dois soldos), voltava para casa. Então fazia os deveres e, durante todo o resto do tempo andava a saltitar no jardim à volta do Papá, porque não sabia brincar com as bonecas. Era uma grande alegria para mim preparar tisanas com grãozinhos e cascas de árvores que encontrava no chão; levava-as depois ao Papá numa linda chavenazinha, e o pobre paizinho largava o trabalho e depois, sorrindo, fingia beber. Antes de me voltar a dar a chávena, perguntava-me (como que em segredo) se devia deitar o conteúdo fora. Algumas vezes eu dizia que sim, mas, quase sempre eu voltava a levar a preciosa tisana para servir mais deveres...
Gostava de cultivar as minhas flores no jardim que o Papá me dera; divertia-me a erguer pequenos altares na cavidade que havia no meio da parede; depois de acabar, corria para o Papá e, puxando-o, dizia-lhe que fechasse bem os olhos e que os abrisse só no momento em que eu lhe dissesse para o fazer. Ele fazia tudo o que eu queria e deixava-se conduzir até ao meu jardinzinho. Então eu exclamava: «Papá, abre os olhos!» Abria-os [14 vº] e extasiava-se, para me dar satisfação, admirando o que eu julgava ser uma obra-prima!...
Nunca acabaria, se quisesse contar mil pequenos episódios deste género que me ocorrem em multidão à memória... Ah! como poderei relatar todas as ternuras que o «Papá» prodigalizava à sua rainhazinha? Há coisas que o coração sente, mas que nem a palavra, nem sequer o pensamento conseguem transmitir...
Eram dias belos para mim, aqueles em que o meu querido rei me levava à pesca com ele. Gostava tanto do campo, das flores e das aves! Às vezes tentava pescar com a minha pequena cana; mas preferia ir sentar-me, sozinha, na erva florida.  Então os meus pensamentos eram bem profundos e, sem saber o que era meditar, a minha alma mergulhava numa verdadeira oração... Ouvia os ruídos longíquos... o murmúrio do vento e até a música vaga dos soldados, cujo som chegava até mim, melancolizavam ternamente o meu coração... A terra parecia-me um lugar de exílio e sonhava com o Céu...
A tarde passava depressa; em breve era preciso voltar para os Buissonnets; mas, antes de partir, comia a merenda que tinha levado no meu cestinho. A bela fatia de pão com doce de fruta que me tínheis preparado, tinha mudado de aspecto: em vez da cor viva, não via mais que uma leve cor rosada, toda velha e sumida... Então a terra parecia-me ainda mais triste e compreendia que só no Céu a alegria seria sem nuvens...
A propósito de nuvens, lembro-me de que um dia o belo céu azul do campo se cobriu delas, e que dali a pouco a tempestade começou a bramir; os relâmpagos rasgavam as nuvens sombrias, e vi cair uma faísca a pouca distância. Longe de ficar assustada, estava encantada; parecia-me que Deus [15 rº] estava muito perto de mim!... O Papá não estava tão contente como a sua rainhazinha, não por a trevoada lhe meter medo, mas a erva e as grandes margaridas (que eram mais altas do que eu) cintilavam de pedras preciosas. Tínhamos de atravessar vários prados antes de encontrar um caminho, e o meu querido paizinho, temendo que os diamantes molhassem a sua menina, pegou nela, apesar da sua bagagem de canas, e levou-a aos ombros.
Durante os passeios que dava com o Papá, ele gostava de me mandar dar a esmola aos pobres que encontrávamos. Um dia vimos um que se arrastava penosamente com muletas; aproximei-me para lhe dar um soldo, mas, não se considerando bastante pobre para receber a esmola, olhou-me, sorrindo tristemente, e recusou aceitar o que lhe oferecia. Não consigo exprimir o que se passou no meu coração. Quisera consolá-lo, aliviá-lo; em vez disso, julgava tê-lo magoado. Certamente o pobre doente adivinhou o meu pensamento, pois vi-o voltar-se e sorrir-me. O Papá acabava de me comprar um bolo; tinha muita vontade de lho dar, mas não me atrevi. Porém, queria dar-lhe qualquer coisa que ele não me pudesse recusar, pois sentia por ele uma simpatia muito grande. Então lembrei-me de ter ouvido dizer que, no dia da Primeira Comunhão se obtinha tudo quanto se pedisse; este pensamente consolou-me e, apesar de ter então apenas seis anos, disse para comigo: - «Rezarei pelo meu pobre, no dia da minha Primeira Comunhão». Cumpri a promessa cinco anos mais tarde, e espero que Deus tenha atendido a oração que Ele me inspirou fazer-Lhe por um dos seus membros sofredores...
[15 vº] Amava muito a Deus e oferecia-Lhe muitas vezes o meu coração servindo-me da formulazinha que a mamã me tinha ensinado. No entanto, um dia, ou antes, uma noite do belo mês de Maio, cometi uma falta que vale bem a pena contar; deu-me grande motivo para me humilhar e creio ter tido dela contrição perfeita.  - Sendo muito pequena para ir ao mês de Maria, ficava com a Vitória e fazia com ela as minhas devoções diante do meu pequeno mês de Maria que preparava à minha maneira; era tudo tão pequeno: castiçais e vasos de flores, que dois  fósforos de cera o iluminavam perfeitamente. Algumas vezes a Vitória fazia-me a surpresa de me dar dois bocaditos de pavio, mas era raro. Uma noite estava tudo pronto para começarmos a rezar, disse-lhe: - «Vitória, quer começar o 'Lembrai-vos', eu vou acender». Ela fingiu começar, mas não disse nada e olhou para mim a rir-se; eu, que via os meus preciosos fósforos a consumirem-se rapidamente, supliquei-lhe que fizesse a oração, mas ela continuou calada. Então, levantando-me, pus-me a dizer-lhe muito alto que ela era má e, saindo da minha calma habitual, bati com o pé com todas as minhas forças... A pobre Vitória já não tinha vontade de rir; olhou para mim espantada, e mostrou-me o pavio que me tinha trazido... Depois de ter derramado lágrimas de raiva, derramei lágrimas de sincero arrependimento, com o firme propósito de nunca mais voltar a proceder assim!...
Outra ocasião, aconteceu-me outra aventura com a Vitória, mas desta vez não tive nenhum arrependimento, pois conservei perfeitamente a calma. - Eu queria um tinteiro que estava sobre a chaminé da cozinha. Como era muito pequena para o tirar, pedi muito amavelmente à Vitória que [16 rº] mo desse, mas ela recusou-se, dizendo-me que subisse a uma cadeira. Fui buscar uma cadeira, sem dizer nada, mas a pensar que ela não era amável; querendo fazer-lho sentir, procurei na minha cabecinha o que é que mais me ofendia. Ela chamava-me muitas vezes, quando estava aborrecida comigo: «fedelhito», o que muito me humilhava. Então, antes de saltar abaixo da minha cadeira, voltei-me com dignidade e disse-lhe: - «Vitória, você é um fedelho!» Depois escapei-me, deixando-a a meditar a palavra forte que acabava de lhe dirigir...
O resultado não se fez esperar; daí a pouco ouvi-a gritar: «A m´nina Mâri Terasse acaba de me d´zer que ê sô um fedelho!» A Maria acorreu e fez-me pedir perdão, mas fi-lo sem contrição, achando que, já que a Vitória não quis estender o seu grande braço para me prestar um pequeno serviço, ela merecia o título de fedelho...
Não obstante, ela amava-me muito e eu também a amava muito; um dia tirou-me de um grande perigo em que caíra por minha culpa. A Vitória estava a passar a ferro, tendo ao lado um balde com água; eu olhava para ela baloiçando-me (como era meu costume) numa cadeira; de repente a cadeira foge-me, e eu caio, não no chão, mas no funfo do balde!!!... Os pés tocavam-me na cabeça, e eu enchia o balde como um pintainho enche o ovo! ... A pobre Vitória olhava-me extremamente surpreendida, nunca tendo visto semelhante coisa. Eu bem tinha vontade de sair o mais depressa possível do meu balde, mas impossível: a minha prisão era tão estreita que não podia fazer nenhum movimento. Com alguma dificuldade, salvou-me do meu grande perigo, mas não o vestido e tudo o resto que se viu obrigada a mudar-me, pois estava toda encharcada. 
Outra ocasião caí na lareira. Felizmente o lume não estava [16 vº] aceso. A Vitória só teve o incómodo de me levantar e de sacudir a cinza de que fiquei cheia. Era na Quarta-Feira, quando vós estáveis para o ensaio do canto com a Maria, que me aconteciam todas estas aventuras. Foi também numa Quarta-Feira que o P. Ducellier veio para nos visitar. Como a Vitória lhe disse que não estava ninguém em casa a não ser a Teresinha, ele entrou na cozinha para me ver e olhou para os meus deveres. Senti-me muito orgulhosa por receber o meu confessor, pois tinha-me confessado pela primeira vez pouco tempo antes. Que doce recordação para mim!...
Com que cuidado me tínheis preparado, minha querida Madre, dizendo-me que não era a um homem, mas a Deus, que eu ia dizer os meus pecados! Estava realmente bem convencida disso mesmo, e assim, confessei-me com um grande espírito de fé, e até vos perguntei se não seria preciso dizer ao P. Ducellier que o amava de todo o meu coração, pois era a Deus que eu ia falar, na sua pessoa...
Tendo sido bem ensinada acerca de tudo quanto devia dizer e fazer, entrei no confessionário e pus-me de joelhos; mas ao abrir a janelinha, o P. Ducellier não viu ninguém. Eu era tão pequena que a minha cabeça ficava por baixo da tabuazinha onde se apoiam as mãos; então disse-me que ficasse de pé. Obedecendo imediatamente, levantei-me e, pondo-me mesmo diante dele para o ver bem, fiz a minha confissão como uma menina grande e recebi a sua bênção com uma grande devoção, porque me tínheis dito que nesse momento as lágrimas do pequeno Jesus iam purificar a minha alma. 
Lembro-me de que a primeira exortação que me foi dirigida me convidou sobretudo à devoção para com a Santíssima Virgem, e fiz o propósito de redobrar de ternura para com ela. Ao sair do confessionário estava tão contente e tão leve, que nunca tinha sentido tanta alegria na minha [17 rº] alma. Desde então voltei a confessar-me sempre nas grandes festas e era para mim uma verdadeira festa cada vez que lá ia.
As festas!... Ah! quantas recordações me traz esta palavra!... Gostava tanto delas! ... Vós sabíeis explicar-me tão bem, minha querida Madre, todos os mistérios escondidos em cada uma delas, que eram para mim autênticos dias do Céu. Gostava, sobretudo, das procissões do Santíssimo Sacramento! Qua alegria espalhar flores sob os passos de Deus!... Mas antes de as deixar cair, lançava-as o mais alto que podia, e nunca ficava tão contente como quando via as minhas rosas desfolhadas tocarem no Ostensório sagrado...
As festas! Ah! se as grandes eram raras, cada semana havia uma bem querida para o meu coração: «o domingo»! Que dia, o de domingo!... Era a festa de Deus, a festa do descanso. Primeiro ficava no óó mais tempo que nos outros dias, e depois a mamã Paulina mimava a filhinha, trazendo-lhe o chocolate à caminha; em seguida vestia-a como uma pequena rainha... A madrinha vinha fazer os caracóis à afilhada que nem sempre era amável quando lhe puxavam os cabelos; mas depois ficava bem contente por ir dar a mão ao seu Rei que, nesse dia, a beijava ainda mais ternamente que de costume. 
Depois toda a família saía para a missa. Durante todo o caminho, e mesmo na igreja, a pequena rainha do Papá dava-lhe a mão; o seu lugar era ao lado dele, e quando tínhamos que descer para o sermão, era preciso encontrar ainda duas cadeiras, uma ao pé da outra.  Não era muito difícil: toda a gente parecia achar tão encantador ver um tão belo Ancião com uma filhinha tão pequena, que as pessoas ofereciam-se para ceder os seus lugares. O meu tio, que ficava nos bancos dos mordomos, alegrava-se ao ver-nos chegar. Dizia que eu era o seu [17 vº] raiozinho de sol...
Quanto a mim, não me preocupava nada que olhassem para mim, escutando muito atenta os sermões dos quais, no entanto, não compreendia grande coisa. O primeiro que compreendi e que me impressionou profundamente foi um sermão sobre a Paixão pregado pelo P. Ducellier e, desde então compreendi todos os outros sermões. Quando o pregador falava sobre S. Teresa, o papá inclinava-se para mim e dizia-me baixinho: - «Escuta bem, minha rainhazinha, estão a falar da tua Santa Padroeira». Ouvia bem, com efeito, mas olhava mais vezes para o Papá que para o pregador; o seu belo rosto dizia-me tantas coisas!... Às vezes os olhos enchiam-se-lhe de lágrimas que em vão se esforçava por conter. Parecia já nada o prender à terra, tanto a sua alma gostava de mergulhar nas verdades eternas... Porém, a sua carreira estava bem longe de estar terminada; longos anos deviam ainda decorrer antes que o belo Céu se abrisse aos seus olhos extasiados e que o Senhor enxugasse as lágrimas do seu bom e fiel servidor!...
Mas volto ao meu dia de domingo. Este alegre dia, que passava tão rapidamente, tinha, na verdade, notas de melancolia. Lembro-me de que a minha felicidade era absoluta até completas. Durante este ofício pensava que o dia de descanso ia terminar...; que no dia seguinte era preciso recomeçar a vida, trabalhar, estudar as lições; e o meu coração sentia o exílio da terra...; suspirava pelo repouso eterno do Céu, pelo Domingo sem ocaso da Pátria!...
Até os passeios que dávamos antes de voltarmos para os Buissonnets deixavam um sentimento de tristeza na minha alma. Então a família já não estava completa porque, para agradar ao nosso tio, o Papá no fim da tarde de cada domingo deixava-lhe a Maria ou a Paulina. [18 rº] Só me sentia muito contente quando também ficava. Gostava mais assim do que ser convidada sozinha, porque me davam menos atenção. O meu maior prazer era ouvir tudo quanto o nosso tio dizia, mas não gostava que me interrogasse e tinha muito medo quando me sentava só num joelho cantando o Barba-azul com uma voz pavorosa...
Era com alegria que via o Papá vir-nos buscar. Ao regressar contemplava as estrelas que cintilavam suavemente, e essa visão encantava-me... Havia sobretudo um grupo de pérolas de ouro que eu observava com alegria, achando que tinha a forma de um T. (Eis mais ou menos a sua forma T). Mostrava-o ao Papá, dizendo-lhe que o meu nome estava escrito no céu e depois, não querendo ver nada desta vil terra, pedia-lhe que me guiasse. Então, sem ver onde punha os pés, levantava bem a cabecita, não me cansando de contemplar o azul estrelado!...
Que poderei dizer dos serões de Inverno, sobretudo dos de domingo? Ah! como era agradável, depois da partida de damas, ir sentar-me com a Celina nos joelhos do Papá!... Com a sua bela voz cantava melodias que enchiam a alma de pensamentos profundos... Ou então, embalando-nos suavemente, recitava poesias impregnadas das verdades eternas... Em seguida subíamos para fazer a oração em comum, e a rainhazinha ficava sozinha ao pé dos seu Rei, não tendo senão que olhar para ele para saber como rezam os santos... Por fim, íamos todas por ordem de idade, dar as boas noites ao Papá e receber um beijo; a rainha, naturalmente, era a última. O rei, para a beijar, [18 vº] pegava-lhe pelos cotovelos, e ela exclamava muito alto: «Boa noite, Papá! Boa noite, dorme bem». Era todas as noites a mesma cena... Depois a minha mãezinha pegava em mim ao colo e levava-me para a cama da Celina. Então eu dizia: - «Paulina, hoje fui boazinha?... Será que os anjinhos irão rº voar à minha volta?» A resposta era sempre sim, senão passaria a noite inteira a chorar... Depois de me ter beijado, bem como a minha querida madrinha, a Paulina voltava a descer, e a pobre Teresinha ficava sozinha na escuridão. Em vão se esforçava por imaginar os anjinhos a voar à volta dela: o terror depressa a acometia. As trevas metiam-lhe medo, pois da cama não via as estrelas que cintilavam suavemente...
Considero uma verdadeira graça ter sido habituada por vós, minha querida Madre, a vencer os meus temores. Às vezes mandáveis-me sozinha, à noite, buscar um objecto a um quarto afastado. Se não tivesse sido bem orientada, ter-me-ia tornado muito medrosa, enquanto que agora sou muito difícil de assustar... Às vezes pergunto a mim própria como conseguistes educar-me com tanto amor e delicadeza, sem me estragares com mimo, pois a verdade é que não deixáveis passar uma única imperfeição. Nunca me ralháveis sem razão; mas nunca voltáveis atrás após haverdes tomado uma decisão. Eu sabia-o tão bem que não teria podido nem querido dar um passo se vós mo tivésseis proibido. O próprio Papá era obrigado a conformar-se com a vossa vontade. Sem o consentimento da Paulina eu não ia passear; e quando o Papá me dizia para ir, eu respondia: - «A Paulina não quer». [19 rº] Então ele intercedia por mim. Algumas vezes, para lhe fazer a vontade, a Paulina dizia que sim; mas a Teresinha via bem pela cara dela que não era de bom grado; punha-se a chorar, sem aceitar consolações, até a Paulina dizer que sim e a beijar de bom grado!
Quando a Teresinha estava doente, o que lhe acontecia todos os Invernos, não é possível descrever com que ternura maternal era tratada. A Paulina deitava-a na sua cama (favor incomparável) e depois dava-lhe tudo quanto desejava. Um dia a Paulina tirou debaixo do travesseiro uma linda navalhinha dela dando-a à sua filhinha e fazendo-a mergulhar num entusiasmo impossível de descrever: - «Ah, Paulina! exclamou, então gostas tanto de mim que te privas, por minha causa, da tua linda navalhinha que tem uma estrela em madre-pérola? Já que gostas tanto de mim, serias capaz de sacrificar o teu relógio para não me deixares morrer?...» - «Não apenas para não te deixar morrer, daria o meu relógio, mas até para te ver boa depressa sacrificá-lo-ia imediatamente». Ao ouvir estas palavras da Paulina, a minha admiração e o meu reconhecimento foram tão grandes que nem consigo exprimi-los...
No Verão, algumas vezes sentia náuseas. A Paulina tratava-me, como sempre, com ternura. Para me distrair, o que era o melhor dos remédios, passeava-me no carrinho de mão à volta do jardim, e depois, fazendo-me descer, punha no meu lugar um lindo pezinho de margaridas que passeava com muita precaução até ao meu jardim, onde ele tomava lugar com grande pompa...
Era a Paulina que recebia todas as minhas confidências íntimas, que esclarecia todas as minhas dúvidas... Uma vez, admirava-me por Deus não [19 rº] dar uma glória igual no Céu a todos os eleitos e tinha receio de que não fossem todos felizes. Então a Paulina disse-me para ir buscar o grande «copo do Papá» e para o pôr ao lado do meu pequeno dedal; depois [disse-me] para os encher de água. Em seguida perguntou-me qual deles estava mais cheio. Disse-lhe que tão cheio estava um como o outro, e que era impossível deitar-lhes mais água do que a que podiam conter. A minha querida Madre fez-me então compreender que, no Céu, Deus daria aos seus eleitos tanta glória quanta eles pudessem receber, e que assim, o último nada teria a invejar ao primeiro. Era assim que, pondo ao meu alcance os mais sublimes mistérios, vós sabíeis, minha Madre, dar à minha alma o alimento que lhe era necessário...
Com que alegria via, todos os anos, chegar a distribuição dos prémios!... Nisso, como em tudo, a justiça era respeitada, e não tinha senão as recompensas merecidas.  Sozinha, de pé, no meio da nobre assembleia, ouvia a minha sentença lida pelo «Rei da França e de Navarra». O coração batia-me com muita força ao receber os prémios e a coroa... Era para mim como que uma imagem do juízo final! Imediatamente depois da distribuição, a Rainha-zinha tirava o seu vestido branco; depois iam depressa mascará-la para tomar parte na grande representação!...
Ah! como eram alegres estas festas da família... Como estava longe então, ao ver o meu querido Rei tão radiante, de prever as provações que o viriam visitar!...
Um dia, porém, Deus mostrou-me, numa visão verdadeiramente extraordinária, a imagem viva da provação para a qual Ele se dignou preparar-nos antecipadamente. 
O Papá andava em viagem  havia alguns dias, e faltariam ainda dois [20 rº] para regressar. Eram umas duas ou três horas da tarde. O sol brilhava em todo o esplendor, e a natureza inteira parecia em festa. Estava sozinha à janela de uma mansarda que dava para o jardim grande. Olhava em frente, com o espírito ocupado com alegres pensamentos, quando vi, diante da lavandaria que ficava mesmo em frente, um homem vestido tal e qual como o Papá, da mesma estatura e com a mesma maneira de andar, apenas era muito mais curvado... A cabeça estava coberta com uma espécie de avental de cor indefinida, de maneira que não lhe pude ver o rosto. Trazia um chapéu parecido com os do Papá. Vi-o avançar com um passo regular, ladeando o meu jardinzinho... Imediatamente um sentimento de espanto sobrenatural invadiu-me a alma; mas, num momento reflecti que, sem dúvida, o Papá tinha voltado e se escondia para me fazer surpresa. Então chamei bem alto, com uma voz trémula de emoção: - «Papá, Papá...». Mas o misterioso personagem, não parecendo ouvir-me, continuou no seu andar regular, sem sequer se voltar. Seguindo-o com os olhos, vi-o dirigir-se para o bosquezinho que dividia em duas a grande alameda. Esperava vê-lo reaparecer do outro lado das árvores altas, mas a visão profética desvanecera-se!... Tudo isto não demorou mais que um instante, mas gravou-se tão profundamente no meu coração que hoje, passados 15 anos... a recordação está-me tão presente como se a visão estivesse ainda diante dos meus olhos...
A Maria estava convosco, minha Madre, num quarto que comunicava com aquele em que me encontrava. Ouvindo-me chamar pelo Papá experimentou uma impressão de espanto, sentindo, como depois me disse, que se devia passar algo de extraordinário. Sem me deixar ver a sua emoção, acorreu para o pé de mim, perguntando-me o que me levava a chamar pelo Papá que estava em Alençon. [20 rº] Contei então quanto acabava de ver. Para me tranquilizar, a Maria disse-me que era concerteza a Vitória que, para me meter medo, tinha escondido a cabeça com o avental; mas, interrogada, a Vitória garantiu não ter saído da cozinha; além disso, eu tinha a certeza de ter visto um homem e de que esse homem tinha o aspecto do Papá. Então fomos todas três ao outro lado do arvoredo; mas não tendo encontrado nenhum sinal que indicasse a passagem de alguém, vós disseste-me para não pensar mais nisso...
Não pensar mais nisso não estava em meu poder. Muitas vezes a imaginação me representou a cena misteriosa que tinha visto... Muitas vezes procurei levantar o véu que me encobria o seu significado, pois no fundo do coração conservava a íntima convicção de que essa visão tinha um sentido que havia de me ser revelado um dia... Esse dia fez-se esperar muito tempo, mas, passados 14 anos, o próprio Deus rasgou o véu misterioso. Estando em licença com a Ir. Maria do Sagrado Coração, falávamos, como sempre, das coisas da outra vida e das nossas recordações da infância, quando lhe lembrei a visão que tinha tido aos 6 ou 7 anos de idade. De repente, ao referir os pormenores dessa cena estranha, compreendemos ao mesmo tempo o que ela significava... Foi mesmo o Papá que eu vira, avançando curvado pela idade... Era mesmo ele, trazendo no rosto venerável, na cabeça embranquecida o sinal da sua gloriosa provação... Como a Face Adorável de Jesus que foi vendada durante a sua Paixão, assim a face do seu fiel servidor devia ser vendada nos dias das suas dores, a fim de poder resplandecer na Celeste Pátria ao pé do seu Senhor, o Verbo Eterno!...
Foi no seio dessa glória inefável, quando reinava já no Céu, que o nosso querido Pai nos obteve a graça de compreender a visão [21 rº] que a sua rainhazinha tivera numa idade em que não há risco de ilusão. Foi do seio da glória que nos obteve a doce consolação de compreendermos que, 10 anos antes da nossa grande provação, Deus já no-la mostrava, como um pai deixa entrever aos seus filhos o futuro glorioso que lhes prepara e se compraz em considerar antecipadamente as riquezas sem preço que virão a ser a herança deles... Ah! porque é que foi a mim que Deus deu esta luz? Porque mostrou a uma criança tão pequena uma coisa que ela não podia compreender, uma coisa que, se ela a tivesse compreendido, a teria feito morrer de dor; porquê?... É um dos tais mistérios que, sem dúvida, compreenderemos no Céu e que será motivo da nossa eterna admiração!...
Como Deus é bom!... Como proporciona as provações com as forças que nos dá! Nunca, como acabo de dizer, teria podido suportar sequer o pensamento dos sofrimentos amargos que o futuro me reservava. Não podia sequer pensar, sem estremecer, que o Papá podia morrer...
Uma vez ele tinha subido ao cimo de uma escada e, como eu estava mesmo por baixo, gritou-me: - «Afasta-te, p´querrucha! Se caio, esmago-te».  Ouvindo aquilo, senti uma revolta interior; em vez de me afastar, agarrei-me à escada, pensando: - «Ao menos, se o Papá cair, não terei a mágoa de o ver morrer, pois morrerei com ele!».
Não consigo dizer quanto amava o Papá. Tudo nele me causava admiração. Quando me explicava os seus pensamentos (como se eu fosse uma menina crescida), eu dizia-lhe ingenuamente que, se ele dissesse [21 vº] aquilo tudo aos grandes homens do governo, com certeza que o levariam para o fazerem Rei, e então a França seria feliz como nunca o tinha sido... Mas, no fundo, estava contente (e censurava-me, como sendo um pensamento egoísta)  por não haver ninguém que conhecesse bem o Papá a não ser eu, porque se ele se tornasse Rei de França e de Navarra sabia que iria ser infeliz, pois é essa a sorte de todos os monarcas; e, sobretudo, já não seria o meu Rei, só meu!...
Tinha 6 ou 7 anos, quando o Papá nos levou a Trouville. Nunca esquecerei a impressão que me fez o mar. Não conseguia deixar de o olhar constantemente: a sua majestade, o bramido das suas ondas, tudo falava à minha alma da grandeza e do poder de Deus. 
Lembro-me de que, enquanto passeávamos na praia, um senhor e uma senhora viram-me correr alegremente à volta do Papá e, aproximando-se, perguntaram se eu era dele, e disseram que eu era uma menina muito bonita. O Papá respondeu-lhes que sim, mas apercebi-me que lhes fez sinal para não me elogiarem...
Era a primeira vez que ouvia dizer que era bonita, o que me agradou muito, pois eu não me julgava tal. Vós, minha querida Madre, estáveis muito atenta a que ao pé de mim não houvesse nada que pudesse manchar a minha inocência, sobretudo, a não me deixar ouvir nenhuma palavra capaz de insinuar a vaidade no meu coração. Como não dava atenção senão às vossas palavras e às de Maria (e vós nunca me tínheis dirigido um único elogio), não dei muita importância às palavras nem ao olhar admirado da senhora. [22 rº] À tardinha, à hora em que o sol parece mergulhar na imensidade das ondas, deixando atrás de si um sulco luminoso, fui sentar-me num rochedo sozinha com a Paulina... Então recordei a comovedora história de «O sulco de oiro!...».  Contemplei demoradamente esse sulco luminoso, imagem da graça iluminando o caminho que há-de percorrer o barquinho da graciosa vela branca... Junto da Paulina tomei a resolução de nunca afastar da minha alma do olhar de Jesus, para que ela vogue em paz para a Pátria dos Céus!...
A minha vida decorria tranquila e feliz. O afecto com que era rodeada nos Buissonnets fazia-me, por assim dizer, crescer, mas eu já era sem dúvida bastante grande para começar a lutar, para começar a conhecer o mundo e as misérias de que está feito...
Como acima referi, foi a partir desta época da minha vida que tive de entrar no segundo período da minha existência, o mais doloroso dos três, sobretudo depois da entrada no Carmelo daquela que escolhera para minha segunda «Mamã». Este período vai dos quatros anos e meio até aos meus catorze anos, época em que reencontrei o meu carácter de criança, ao entrar na seriedade da vida.  Devo dizer-vos, minha Madre, que, desde a morte da mamã, o meu carácter alegre mudou completamente; eu, tão viva, tão expansiva, tornei-me tímida e calma, excessivamente sensível. Bastava um olhar para me fazer derreter em lágrimas; era preciso que ninguém se ocupasse de mim, para estar contente; não podia suportar a companhia de pessoas estranhas e não reecontrava a minha alegria senão na intimidade da família... No entanto, continuava a ser rodeada da mais delicada ternura. O coração tão terno do Papá tinha unido ao amor que já de si possuía um amor verdadeiramente maternal!... Vós, minha Madre, e a Maria,  não éreis para mim as mães mais ternas e as mais desinteressadas?... Ah! se Deus não tivesse prodigalizado os seus rais banfazejos à sua Florzinha, nunca ele se teria podido aclimatar à terra; era ainda demasiado frágil para suportar as chuvas e as tempestades; precisava de calor, de suave orvalho e das brisas primaveris. Nunca lhe faltaram [13 vº] esses benefícios: Jesus fez-lhos encontrar, mesmo sob a neve da provação!
 
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Não senti nenhuma pena ao deixar Alençon; as crianças gostam de mudança, e foi com gosto que vim para Liseux. Lembro-me da viagem, da chegada, à noite, a casa da tia; vejo ainda a Joana e a Maria à porta, à nossa espera...
Sentia-me muito feliz por ter priminhas tão gentis. Amava-as muito, bem como à tia e, sobretudo o tio; só que este me metia medo e não estava tão à vontade em casa dele como nos Buissonnets. Lá é que a minha vida era verdadeiramente feliz... Logo de manhã, vós vinheis ter comigo e perguntáveis-me se tinha oferecido o meu coração a Deus; depois vestíeis-me, falando-me d ´Ele e, em seguida, ao vosso lado, fazia a minha oração. Depois vinha a lição de leitura. A primeira palavra que consegui ler sozinha foi: «Céus». A minha querida madrinha encarregava-se  das lições de escrita, e vós, minha Madre, de todas as outras.  Não tinha lá muita facilidade para aprender, mas tinha muita memória. As minhas preferências iam para o catecismo e, sobretudo, para a História Sagrada; estudava-os com alegria; mas a gramática fez-me muitas vezes correr as lágrimas... Lembrai-vos do masculino e do feminino!
 
Uma vez terminada a minha aula, subia ao belveder, para levar ao Papá a minha condecoração e a nota. Como era feliz quando lhe podia dizer: - «Tenho 5 redondos, foi a Paulina a primeira a dizê-lo!...» Porque, quando era eu a perguntar-vos se tinha 5 redondos e me dizíeis que sim, aos meus olhos valia um ponto a menos. Geralmente dáveis-me senhas de bónus e, quando juntava um determinado número, tinha um prémio e um dia feriado. Lembro-me que esses dias [14 rº] me pareciam muito mais longos do que os outros, o que vos agradava, pois indicava que eu não gostava de estar sem fazer nada. 
 
Todas as tardes ia dar um pequeno passeio com o Papá; fazíamos juntos a visita ao Santíssimo Sacramento, visitando cada dia uma nova igreja. Foi assim que entrei, pela primeira vez, na capela do Carmelo. O Papá mostrou-me a grade do coro, dizendo-me que, por detrás, estavam religiosas. Estava bem longe de imaginar que, nove anos mais tarde, eu estaria entre elas!...
Depois do passeio (durante o qual o Papá me comprava sempre um pequeno presente de um ou dois soldos), voltava para casa. Então fazia os deveres e, durante todo o resto do tempo andava a saltitar no jardim à volta do Papá, porque não sabia brincar com as bonecas. Era uma grande alegria para mim preparar tisanas com grãozinhos e cascas de árvores que encontrava no chão; levava-as depois ao Papá numa linda chavenazinha, e o pobre paizinho largava o trabalho e depois, sorrindo, fingia beber. Antes de me voltar a dar a chávena, perguntava-me (como que em segredo) se devia deitar o conteúdo fora. Algumas vezes eu dizia que sim, mas, quase sempre eu voltava a levar a preciosa tisana para servir mais deveres...
 
Gostava de cultivar as minhas flores no jardim que o Papá me dera; divertia-me a erguer pequenos altares na cavidade que havia no meio da parede; depois de acabar, corria para o Papá e, puxando-o, dizia-lhe que fechasse bem os olhos e que os abrisse só no momento em que eu lhe dissesse para o fazer. Ele fazia tudo o que eu queria e deixava-se conduzir até ao meu jardinzinho. Então eu exclamava: «Papá, abre os olhos!» Abria-os [14 vº] e extasiava-se, para me dar satisfação, admirando o que eu julgava ser uma obra-prima!...
Nunca acabaria, se quisesse contar mil pequenos episódios deste género que me ocorrem em multidão à memória... Ah! como poderei relatar todas as ternuras que o «Papá» prodigalizava à sua rainhazinha? Há coisas que o coração sente, mas que nem a palavra, nem sequer o pensamento conseguem transmitir...
 
Eram dias belos para mim, aqueles em que o meu querido rei me levava à pesca com ele. Gostava tanto do campo, das flores e das aves! Às vezes tentava pescar com a minha pequena cana; mas preferia ir sentar-me, sozinha, na erva florida.  Então os meus pensamentos eram bem profundos e, sem saber o que era meditar, a minha alma mergulhava numa verdadeira oração... Ouvia os ruídos longíquos... o murmúrio do vento e até a música vaga dos soldados, cujo som chegava até mim, melancolizavam ternamente o meu coração... A terra parecia-me um lugar de exílio e sonhava com o Céu...
 
A tarde passava depressa; em breve era preciso voltar para os Buissonnets; mas, antes de partir, comia a merenda que tinha levado no meu cestinho. A bela fatia de pão com doce de fruta que me tínheis preparado, tinha mudado de aspecto: em vez da cor viva, não via mais que uma leve cor rosada, toda velha e sumida... Então a terra parecia-me ainda mais triste e compreendia que só no Céu a alegria seria sem nuvens...
A propósito de nuvens, lembro-me de que um dia o belo céu azul do campo se cobriu delas, e que dali a pouco a tempestade começou a bramir; os relâmpagos rasgavam as nuvens sombrias, e vi cair uma faísca a pouca distância. Longe de ficar assustada, estava encantada; parecia-me que Deus [15 rº] estava muito perto de mim!... O Papá não estava tão contente como a sua rainhazinha, não por a trevoada lhe meter medo, mas a erva e as grandes margaridas (que eram mais altas do que eu) cintilavam de pedras preciosas. Tínhamos de atravessar vários prados antes de encontrar um caminho, e o meu querido paizinho, temendo que os diamantes molhassem a sua menina, pegou nela, apesar da sua bagagem de canas, e levou-a aos ombros.
 
Durante os passeios que dava com o Papá, ele gostava de me mandar dar a esmola aos pobres que encontrávamos. Um dia vimos um que se arrastava penosamente com muletas; aproximei-me para lhe dar um soldo, mas, não se considerando bastante pobre para receber a esmola, olhou-me, sorrindo tristemente, e recusou aceitar o que lhe oferecia. Não consigo exprimir o que se passou no meu coração. Quisera consolá-lo, aliviá-lo; em vez disso, julgava tê-lo magoado. Certamente o pobre doente adivinhou o meu pensamento, pois vi-o voltar-se e sorrir-me. O Papá acabava de me comprar um bolo; tinha muita vontade de lho dar, mas não me atrevi. Porém, queria dar-lhe qualquer coisa que ele não me pudesse recusar, pois sentia por ele uma simpatia muito grande. Então lembrei-me de ter ouvido dizer que, no dia da Primeira Comunhão se obtinha tudo quanto se pedisse; este pensamente consolou-me e, apesar de ter então apenas seis anos, disse para comigo: - «Rezarei pelo meu pobre, no dia da minha Primeira Comunhão». Cumpri a promessa cinco anos mais tarde, e espero que Deus tenha atendido a oração que Ele me inspirou fazer-Lhe por um dos seus membros sofredores...
 
[15 vº] Amava muito a Deus e oferecia-Lhe muitas vezes o meu coração servindo-me da formulazinha que a mamã me tinha ensinado. No entanto, um dia, ou antes, uma noite do belo mês de Maio, cometi uma falta que vale bem a pena contar; deu-me grande motivo para me humilhar e creio ter tido dela contrição perfeita.  - Sendo muito pequena para ir ao mês de Maria, ficava com a Vitória e fazia com ela as minhas devoções diante do meu pequeno mês de Maria que preparava à minha maneira; era tudo tão pequeno: castiçais e vasos de flores, que dois  fósforos de cera o iluminavam perfeitamente. Algumas vezes a Vitória fazia-me a surpresa de me dar dois bocaditos de pavio, mas era raro. Uma noite estava tudo pronto para começarmos a rezar, disse-lhe: - «Vitória, quer começar o 'Lembrai-vos', eu vou acender». Ela fingiu começar, mas não disse nada e olhou para mim a rir-se; eu, que via os meus preciosos fósforos a consumirem-se rapidamente, supliquei-lhe que fizesse a oração, mas ela continuou calada. Então, levantando-me, pus-me a dizer-lhe muito alto que ela era má e, saindo da minha calma habitual, bati com o pé com todas as minhas forças... A pobre Vitória já não tinha vontade de rir; olhou para mim espantada, e mostrou-me o pavio que me tinha trazido... Depois de ter derramado lágrimas de raiva, derramei lágrimas de sincero arrependimento, com o firme propósito de nunca mais voltar a proceder assim!...
 
Outra ocasião, aconteceu-me outra aventura com a Vitória, mas desta vez não tive nenhum arrependimento, pois conservei perfeitamente a calma. - Eu queria um tinteiro que estava sobre a chaminé da cozinha. Como era muito pequena para o tirar, pedi muito amavelmente à Vitória que [16 rº] mo desse, mas ela recusou-se, dizendo-me que subisse a uma cadeira. Fui buscar uma cadeira, sem dizer nada, mas a pensar que ela não era amável; querendo fazer-lho sentir, procurei na minha cabecinha o que é que mais me ofendia. Ela chamava-me muitas vezes, quando estava aborrecida comigo: «fedelhito», o que muito me humilhava. Então, antes de saltar abaixo da minha cadeira, voltei-me com dignidade e disse-lhe: - «Vitória, você é um fedelho!» Depois escapei-me, deixando-a a meditar a palavra forte que acabava de lhe dirigir...
 
O resultado não se fez esperar; daí a pouco ouvi-a gritar: «A m´nina Mâri Terasse acaba de me d´zer que ê sô um fedelho!» A Maria acorreu e fez-me pedir perdão, mas fi-lo sem contrição, achando que, já que a Vitória não quis estender o seu grande braço para me prestar um pequeno serviço, ela merecia o título de fedelho...
Não obstante, ela amava-me muito e eu também a amava muito; um dia tirou-me de um grande perigo em que caíra por minha culpa. A Vitória estava a passar a ferro, tendo ao lado um balde com água; eu olhava para ela baloiçando-me (como era meu costume) numa cadeira; de repente a cadeira foge-me, e eu caio, não no chão, mas no funfo do balde!!!... Os pés tocavam-me na cabeça, e eu enchia o balde como um pintainho enche o ovo! ... A pobre Vitória olhava-me extremamente surpreendida, nunca tendo visto semelhante coisa. Eu bem tinha vontade de sair o mais depressa possível do meu balde, mas impossível: a minha prisão era tão estreita que não podia fazer nenhum movimento. Com alguma dificuldade, salvou-me do meu grande perigo, mas não o vestido e tudo o resto que se viu obrigada a mudar-me, pois estava toda encharcada. 
 
Outra ocasião caí na lareira. Felizmente o lume não estava [16 vº] aceso. A Vitória só teve o incómodo de me levantar e de sacudir a cinza de que fiquei cheia. Era na Quarta-Feira, quando vós estáveis para o ensaio do canto com a Maria, que me aconteciam todas estas aventuras. Foi também numa Quarta-Feira que o P. Ducellier veio para nos visitar. Como a Vitória lhe disse que não estava ninguém em casa a não ser a Teresinha, ele entrou na cozinha para me ver e olhou para os meus deveres. Senti-me muito orgulhosa por receber o meu confessor, pois tinha-me confessado pela primeira vez pouco tempo antes. Que doce recordação para mim!...
Com que cuidado me tínheis preparado, minha querida Madre, dizendo-me que não era a um homem, mas a Deus, que eu ia dizer os meus pecados! Estava realmente bem convencida disso mesmo, e assim, confessei-me com um grande espírito de fé, e até vos perguntei se não seria preciso dizer ao P. Ducellier que o amava de todo o meu coração, pois era a Deus que eu ia falar, na sua pessoa...
Tendo sido bem ensinada acerca de tudo quanto devia dizer e fazer, entrei no confessionário e pus-me de joelhos; mas ao abrir a janelinha, o P. Ducellier não viu ninguém. Eu era tão pequena que a minha cabeça ficava por baixo da tabuazinha onde se apoiam as mãos; então disse-me que ficasse de pé. Obedecendo imediatamente, levantei-me e, pondo-me mesmo diante dele para o ver bem, fiz a minha confissão como uma menina grande e recebi a sua bênção com uma grande devoção, porque me tínheis dito que nesse momento as lágrimas do pequeno Jesus iam purificar a minha alma. 
 
Lembro-me de que a primeira exortação que me foi dirigida me convidou sobretudo à devoção para com a Santíssima Virgem, e fiz o propósito de redobrar de ternura para com ela. Ao sair do confessionário estava tão contente e tão leve, que nunca tinha sentido tanta alegria na minha [17 rº] alma. Desde então voltei a confessar-me sempre nas grandes festas e era para mim uma verdadeira festa cada vez que lá ia.
As festas!... Ah! quantas recordações me traz esta palavra!... Gostava tanto delas! ... Vós sabíeis explicar-me tão bem, minha querida Madre, todos os mistérios escondidos em cada uma delas, que eram para mim autênticos dias do Céu. Gostava, sobretudo, das procissões do Santíssimo Sacramento! Qua alegria espalhar flores sob os passos de Deus!... Mas antes de as deixar cair, lançava-as o mais alto que podia, e nunca ficava tão contente como quando via as minhas rosas desfolhadas tocarem no Ostensório sagrado...
As festas! Ah! se as grandes eram raras, cada semana havia uma bem querida para o meu coração: «o domingo»! Que dia, o de domingo!... Era a festa de Deus, a festa do descanso. Primeiro ficava no óó mais tempo que nos outros dias, e depois a mamã Paulina mimava a filhinha, trazendo-lhe o chocolate à caminha; em seguida vestia-a como uma pequena rainha... A madrinha vinha fazer os caracóis à afilhada que nem sempre era amável quando lhe puxavam os cabelos; mas depois ficava bem contente por ir dar a mão ao seu Rei que, nesse dia, a beijava ainda mais ternamente que de costume. 
 
Depois toda a família saía para a missa. Durante todo o caminho, e mesmo na igreja, a pequena rainha do Papá dava-lhe a mão; o seu lugar era ao lado dele, e quando tínhamos que descer para o sermão, era preciso encontrar ainda duas cadeiras, uma ao pé da outra.  Não era muito difícil: toda a gente parecia achar tão encantador ver um tão belo Ancião com uma filhinha tão pequena, que as pessoas ofereciam-se para ceder os seus lugares. O meu tio, que ficava nos bancos dos mordomos, alegrava-se ao ver-nos chegar. Dizia que eu era o seu [17 vº] raiozinho de sol...
 
Quanto a mim, não me preocupava nada que olhassem para mim, escutando muito atenta os sermões dos quais, no entanto, não compreendia grande coisa. O primeiro que compreendi e que me impressionou profundamente foi um sermão sobre a Paixão pregado pelo P. Ducellier e, desde então compreendi todos os outros sermões. Quando o pregador falava sobre S. Teresa, o papá inclinava-se para mim e dizia-me baixinho: - «Escuta bem, minha rainhazinha, estão a falar da tua Santa Padroeira». Ouvia bem, com efeito, mas olhava mais vezes para o Papá que para o pregador; o seu belo rosto dizia-me tantas coisas!... Às vezes os olhos enchiam-se-lhe de lágrimas que em vão se esforçava por conter. Parecia já nada o prender à terra, tanto a sua alma gostava de mergulhar nas verdades eternas... Porém, a sua carreira estava bem longe de estar terminada; longos anos deviam ainda decorrer antes que o belo Céu se abrisse aos seus olhos extasiados e que o Senhor enxugasse as lágrimas do seu bom e fiel servidor!...
 
Mas volto ao meu dia de domingo. Este alegre dia, que passava tão rapidamente, tinha, na verdade, notas de melancolia. Lembro-me de que a minha felicidade era absoluta até completas. Durante este ofício pensava que o dia de descanso ia terminar...; que no dia seguinte era preciso recomeçar a vida, trabalhar, estudar as lições; e o meu coração sentia o exílio da terra...; suspirava pelo repouso eterno do Céu, pelo Domingo sem ocaso da Pátria!...
 
Até os passeios que dávamos antes de voltarmos para os Buissonnets deixavam um sentimento de tristeza na minha alma. Então a família já não estava completa porque, para agradar ao nosso tio, o Papá no fim da tarde de cada domingo deixava-lhe a Maria ou a Paulina. [18 rº] Só me sentia muito contente quando também ficava. Gostava mais assim do que ser convidada sozinha, porque me davam menos atenção. O meu maior prazer era ouvir tudo quanto o nosso tio dizia, mas não gostava que me interrogasse e tinha muito medo quando me sentava só num joelho cantando o Barba-azul com uma voz pavorosa...
 
Era com alegria que via o Papá vir-nos buscar. Ao regressar contemplava as estrelas que cintilavam suavemente, e essa visão encantava-me... Havia sobretudo um grupo de pérolas de ouro que eu observava com alegria, achando que tinha a forma de um T. (Eis mais ou menos a sua forma T). Mostrava-o ao Papá, dizendo-lhe que o meu nome estava escrito no céu e depois, não querendo ver nada desta vil terra, pedia-lhe que me guiasse. Então, sem ver onde punha os pés, levantava bem a cabecita, não me cansando de contemplar o azul estrelado!...
Que poderei dizer dos serões de Inverno, sobretudo dos de domingo? Ah! como era agradável, depois da partida de damas, ir sentar-me com a Celina nos joelhos do Papá!... Com a sua bela voz cantava melodias que enchiam a alma de pensamentos profundos... Ou então, embalando-nos suavemente, recitava poesias impregnadas das verdades eternas... Em seguida subíamos para fazer a oração em comum, e a rainhazinha ficava sozinha ao pé dos seu Rei, não tendo senão que olhar para ele para saber como rezam os santos... Por fim, íamos todas por ordem de idade, dar as boas noites ao Papá e receber um beijo; a rainha, naturalmente, era a última. O rei, para a beijar, [18 vº] pegava-lhe pelos cotovelos, e ela exclamava muito alto: «Boa noite, Papá! Boa noite, dorme bem». Era todas as noites a mesma cena... Depois a minha mãezinha pegava em mim ao colo e levava-me para a cama da Celina. Então eu dizia: - «Paulina, hoje fui boazinha?... Será que os anjinhos irão rº voar à minha volta?» A resposta era sempre sim, senão passaria a noite inteira a chorar... Depois de me ter beijado, bem como a minha querida madrinha, a Paulina voltava a descer, e a pobre Teresinha ficava sozinha na escuridão. Em vão se esforçava por imaginar os anjinhos a voar à volta dela: o terror depressa a acometia. As trevas metiam-lhe medo, pois da cama não via as estrelas que cintilavam suavemente...
Considero uma verdadeira graça ter sido habituada por vós, minha querida Madre, a vencer os meus temores. Às vezes mandáveis-me sozinha, à noite, buscar um objecto a um quarto afastado. Se não tivesse sido bem orientada, ter-me-ia tornado muito medrosa, enquanto que agora sou muito difícil de assustar... Às vezes pergunto a mim própria como conseguistes educar-me com tanto amor e delicadeza, sem me estragares com mimo, pois a verdade é que não deixáveis passar uma única imperfeição. Nunca me ralháveis sem razão; mas nunca voltáveis atrás após haverdes tomado uma decisão. Eu sabia-o tão bem que não teria podido nem querido dar um passo se vós mo tivésseis proibido. O próprio Papá era obrigado a conformar-se com a vossa vontade. Sem o consentimento da Paulina eu não ia passear; e quando o Papá me dizia para ir, eu respondia: - «A Paulina não quer». [19 rº] Então ele intercedia por mim. Algumas vezes, para lhe fazer a vontade, a Paulina dizia que sim; mas a Teresinha via bem pela cara dela que não era de bom grado; punha-se a chorar, sem aceitar consolações, até a Paulina dizer que sim e a beijar de bom grado!
 
Quando a Teresinha estava doente, o que lhe acontecia todos os Invernos, não é possível descrever com que ternura maternal era tratada. A Paulina deitava-a na sua cama (favor incomparável) e depois dava-lhe tudo quanto desejava. Um dia a Paulina tirou debaixo do travesseiro uma linda navalhinha dela dando-a à sua filhinha e fazendo-a mergulhar num entusiasmo impossível de descrever: - «Ah, Paulina! exclamou, então gostas tanto de mim que te privas, por minha causa, da tua linda navalhinha que tem uma estrela em madre-pérola? Já que gostas tanto de mim, serias capaz de sacrificar o teu relógio para não me deixares morrer?...» - «Não apenas para não te deixar morrer, daria o meu relógio, mas até para te ver boa depressa sacrificá-lo-ia imediatamente». Ao ouvir estas palavras da Paulina, a minha admiração e o meu reconhecimento foram tão grandes que nem consigo exprimi-los...
 
No Verão, algumas vezes sentia náuseas. A Paulina tratava-me, como sempre, com ternura. Para me distrair, o que era o melhor dos remédios, passeava-me no carrinho de mão à volta do jardim, e depois, fazendo-me descer, punha no meu lugar um lindo pezinho de margaridas que passeava com muita precaução até ao meu jardim, onde ele tomava lugar com grande pompa...
Era a Paulina que recebia todas as minhas confidências íntimas, que esclarecia todas as minhas dúvidas... Uma vez, admirava-me por Deus não [19 rº] dar uma glória igual no Céu a todos os eleitos e tinha receio de que não fossem todos felizes. Então a Paulina disse-me para ir buscar o grande «copo do Papá» e para o pôr ao lado do meu pequeno dedal; depois [disse-me] para os encher de água. Em seguida perguntou-me qual deles estava mais cheio. Disse-lhe que tão cheio estava um como o outro, e que era impossível deitar-lhes mais água do que a que podiam conter. A minha querida Madre fez-me então compreender que, no Céu, Deus daria aos seus eleitos tanta glória quanta eles pudessem receber, e que assim, o último nada teria a invejar ao primeiro. Era assim que, pondo ao meu alcance os mais sublimes mistérios, vós sabíeis, minha Madre, dar à minha alma o alimento que lhe era necessário...
 
Com que alegria via, todos os anos, chegar a distribuição dos prémios!... Nisso, como em tudo, a justiça era respeitada, e não tinha senão as recompensas merecidas.  Sozinha, de pé, no meio da nobre assembleia, ouvia a minha sentença lida pelo «Rei da França e de Navarra». O coração batia-me com muita força ao receber os prémios e a coroa... Era para mim como que uma imagem do juízo final! Imediatamente depois da distribuição, a Rainha-zinha tirava o seu vestido branco; depois iam depressa mascará-la para tomar parte na grande representação!...
Ah! como eram alegres estas festas da família... Como estava longe então, ao ver o meu querido Rei tão radiante, de prever as provações que o viriam visitar!...
 
Um dia, porém, Deus mostrou-me, numa visão verdadeiramente extraordinária, a imagem viva da provação para a qual Ele se dignou preparar-nos antecipadamente. 
O Papá andava em viagem  havia alguns dias, e faltariam ainda dois [20 rº] para regressar. Eram umas duas ou três horas da tarde. O sol brilhava em todo o esplendor, e a natureza inteira parecia em festa. Estava sozinha à janela de uma mansarda que dava para o jardim grande. Olhava em frente, com o espírito ocupado com alegres pensamentos, quando vi, diante da lavandaria que ficava mesmo em frente, um homem vestido tal e qual como o Papá, da mesma estatura e com a mesma maneira de andar, apenas era muito mais curvado... A cabeça estava coberta com uma espécie de avental de cor indefinida, de maneira que não lhe pude ver o rosto. Trazia um chapéu parecido com os do Papá. Vi-o avançar com um passo regular, ladeando o meu jardinzinho... Imediatamente um sentimento de espanto sobrenatural invadiu-me a alma; mas, num momento reflecti que, sem dúvida, o Papá tinha voltado e se escondia para me fazer surpresa. Então chamei bem alto, com uma voz trémula de emoção: - «Papá, Papá...». Mas o misterioso personagem, não parecendo ouvir-me, continuou no seu andar regular, sem sequer se voltar. Seguindo-o com os olhos, vi-o dirigir-se para o bosquezinho que dividia em duas a grande alameda. Esperava vê-lo reaparecer do outro lado das árvores altas, mas a visão profética desvanecera-se!... Tudo isto não demorou mais que um instante, mas gravou-se tão profundamente no meu coração que hoje, passados 15 anos... a recordação está-me tão presente como se a visão estivesse ainda diante dos meus olhos...
 
A Maria estava convosco, minha Madre, num quarto que comunicava com aquele em que me encontrava. Ouvindo-me chamar pelo Papá experimentou uma impressão de espanto, sentindo, como depois me disse, que se devia passar algo de extraordinário. Sem me deixar ver a sua emoção, acorreu para o pé de mim, perguntando-me o que me levava a chamar pelo Papá que estava em Alençon. [20 rº] Contei então quanto acabava de ver. Para me tranquilizar, a Maria disse-me que era concerteza a Vitória que, para me meter medo, tinha escondido a cabeça com o avental; mas, interrogada, a Vitória garantiu não ter saído da cozinha; além disso, eu tinha a certeza de ter visto um homem e de que esse homem tinha o aspecto do Papá. Então fomos todas três ao outro lado do arvoredo; mas não tendo encontrado nenhum sinal que indicasse a passagem de alguém, vós disseste-me para não pensar mais nisso...
 
Não pensar mais nisso não estava em meu poder. Muitas vezes a imaginação me representou a cena misteriosa que tinha visto... Muitas vezes procurei levantar o véu que me encobria o seu significado, pois no fundo do coração conservava a íntima convicção de que essa visão tinha um sentido que havia de me ser revelado um dia... Esse dia fez-se esperar muito tempo, mas, passados 14 anos, o próprio Deus rasgou o véu misterioso. Estando em licença com a Ir. Maria do Sagrado Coração, falávamos, como sempre, das coisas da outra vida e das nossas recordações da infância, quando lhe lembrei a visão que tinha tido aos 6 ou 7 anos de idade. De repente, ao referir os pormenores dessa cena estranha, compreendemos ao mesmo tempo o que ela significava... Foi mesmo o Papá que eu vira, avançando curvado pela idade... Era mesmo ele, trazendo no rosto venerável, na cabeça embranquecida o sinal da sua gloriosa provação... Como a Face Adorável de Jesus que foi vendada durante a sua Paixão, assim a face do seu fiel servidor devia ser vendada nos dias das suas dores, a fim de poder resplandecer na Celeste Pátria ao pé do seu Senhor, o Verbo Eterno!...
 
Foi no seio dessa glória inefável, quando reinava já no Céu, que o nosso querido Pai nos obteve a graça de compreender a visão [21 rº] que a sua rainhazinha tivera numa idade em que não há risco de ilusão. Foi do seio da glória que nos obteve a doce consolação de compreendermos que, 10 anos antes da nossa grande provação, Deus já no-la mostrava, como um pai deixa entrever aos seus filhos o futuro glorioso que lhes prepara e se compraz em considerar antecipadamente as riquezas sem preço que virão a ser a herança deles... Ah! porque é que foi a mim que Deus deu esta luz? Porque mostrou a uma criança tão pequena uma coisa que ela não podia compreender, uma coisa que, se ela a tivesse compreendido, a teria feito morrer de dor; porquê?... É um dos tais mistérios que, sem dúvida, compreenderemos no Céu e que será motivo da nossa eterna admiração!...
 
Como Deus é bom!... Como proporciona as provações com as forças que nos dá! Nunca, como acabo de dizer, teria podido suportar sequer o pensamento dos sofrimentos amargos que o futuro me reservava. Não podia sequer pensar, sem estremecer, que o Papá podia morrer...
Uma vez ele tinha subido ao cimo de uma escada e, como eu estava mesmo por baixo, gritou-me: - «Afasta-te, p´querrucha! Se caio, esmago-te».  Ouvindo aquilo, senti uma revolta interior; em vez de me afastar, agarrei-me à escada, pensando: - «Ao menos, se o Papá cair, não terei a mágoa de o ver morrer, pois morrerei com ele!».
 
Não consigo dizer quanto amava o Papá. Tudo nele me causava admiração. Quando me explicava os seus pensamentos (como se eu fosse uma menina crescida), eu dizia-lhe ingenuamente que, se ele dissesse [21 vº] aquilo tudo aos grandes homens do governo, com certeza que o levariam para o fazerem Rei, e então a França seria feliz como nunca o tinha sido... Mas, no fundo, estava contente (e censurava-me, como sendo um pensamento egoísta)  por não haver ninguém que conhecesse bem o Papá a não ser eu, porque se ele se tornasse Rei de França e de Navarra sabia que iria ser infeliz, pois é essa a sorte de todos os monarcas; e, sobretudo, já não seria o meu Rei, só meu!...
 
Tinha 6 ou 7 anos, quando o Papá nos levou a Trouville. Nunca esquecerei a impressão que me fez o mar. Não conseguia deixar de o olhar constantemente: a sua majestade, o bramido das suas ondas, tudo falava à minha alma da grandeza e do poder de Deus. 
Lembro-me de que, enquanto passeávamos na praia, um senhor e uma senhora viram-me correr alegremente à volta do Papá e, aproximando-se, perguntaram se eu era dele, e disseram que eu era uma menina muito bonita. O Papá respondeu-lhes que sim, mas apercebi-me que lhes fez sinal para não me elogiarem...
 
Era a primeira vez que ouvia dizer que era bonita, o que me agradou muito, pois eu não me julgava tal. Vós, minha querida Madre, estáveis muito atenta a que ao pé de mim não houvesse nada que pudesse manchar a minha inocência, sobretudo, a não me deixar ouvir nenhuma palavra capaz de insinuar a vaidade no meu coração. Como não dava atenção senão às vossas palavras e às de Maria (e vós nunca me tínheis dirigido um único elogio), não dei muita importância às palavras nem ao olhar admirado da senhora. [22 rº] À tardinha, à hora em que o sol parece mergulhar na imensidade das ondas, deixando atrás de si um sulco luminoso, fui sentar-me num rochedo sozinha com a Paulina... Então recordei a comovedora história de «O sulco de oiro!...».  Contemplei demoradamente esse sulco luminoso, imagem da graça iluminando o caminho que há-de percorrer o barquinho da graciosa vela branca... Junto da Paulina tomei a resolução de nunca afastar da minha alma do olhar de Jesus, para que ela vogue em paz para a Pátria dos Céus!...
 
A minha vida decorria tranquila e feliz. O afecto com que era rodeada nos Buissonnets fazia-me, por assim dizer, crescer, mas eu já era sem dúvida bastante grande para começar a lutar, para começar a conhecer o mundo e as misérias de que está feito...