Trata de quão feia coisa é a alma que está em pecado mortal, e como quis Deus dar a entender algo disto a uma pessoa. - Trata também alguma coisa sobre o próprio conhecimento. - Diz como se hão-de entender essas moradas.
1. Antes de passar adiante, quero dizer-vos que considereis o que será ver este castelo tão resplandecente e formoso, esta pérola oriental, esta árvore da vida que está plantada nas mesmas águas vivas da Vida, que é Deus, quando cai em pecado mortal. Não há trevas mais tenebrosas, nem coisa tão escura e negra que ela o não esteja muito mais. Basta saber que, estando até mesmo o Sol, que lhe dava tanto resplendor e formosura no centro da sua alma, todavia é como se ali não estivesse, para participar d´Ele, apesar de ser tão capaz de gozar de Sua Majestade, como o cristal o é para nele resplandecer o sol. Nenhuma coisa lhe aproveita; e daqui vem que todas as boas obras que fizer, estando assim em pecado mortal, são de nenhum fruto para alcançar glória: porque, não procedendo daquele princípio que é Deus, do qual vem que a nossa virtude é virtude, e apartando-nos d´Ele, não pode a obra ser agradável a Seus olhos; porque, enfim, o intento de quem faz um pecado mortal, não é contentar Deus, senão dar prazer ao demónio o qual, como é as mesmas trevas, assim a pobre alma fica feita uma mesma treva.
2. Eu sei de uma pessoa a quem Nosso Senhor quis mostrar como ficava uma alma quando pecava mortalmente. Diz aquela pessoa que lhe parece que, se o entendessem, não seria possível que alguém pecasse, ainda que se pusesse nos maiores trabalhos que se possam pensar para fugir das ocasiões. E assim, deu-lhe um grande desejo de que todos o entendessem. Assim vo-lo dê a vós, filhas, de rogar a Deus pelos que estão neste estado, todos feitos uma escuridão, e tais são suas obras; porque, assim como duma fonte muito clara, claros são os arroiozitos que dela emanam, assim é uma alma que está em graça, pois daqui lhe vem serem suas obras tão agradáveis aos olhos de Deus e dos homens, porque procedem desta fonte de vida, onde a alma está como uma árvore plantada; nem ela teria frescura e fruto, se não lhe viesse dali; é isto que a sustenta e faz que não seque, e que dê bom fruto. Assim a alma que, por sua culpa se aparta desta fonte e se transplanta a outra de uma negríssima água e de muito mau odor, tudo o que dela sai é a mesma desventura e sujidade.
3. É de considerar aqui que a fonte e aquele Sol resplandecente que está no centro da alma, não perde seu resplendor e formosura, que está sempre dentro dela, e não há coisa que lhe possa tirar a sua formosura. Mas, se sobre um cristal que está ao sol, se pusesse um pano muito negro, claro está que, embora o sol dê nele, a sua claridade não fará o seu efeito no cristal.
4. Ó almas remidas pelo Sangue de Jesus Cristo! Entendei-Vos e tende dó de vós mesmas! Como é possível que, entendendo isto, não procureis tirar este pez deste cristal? Olhai que, se a vida se vos acaba, jamais tornareis a gozar desta luz. Ó Jesus! O que é ver uma alma apartada dela! Como ficam os pobres aposentos do castelo? Que perturbados andam os sentidos, que é a gente que vive neles! E as potências, que são os alcaides, mordomos e mestres-salas, com que cegueira, com que mau governo! Enfim, como onde está plantada a árvore é o demónio, que fruto pode dar?
5. Ouvi uma vez a um homem espiritual, que não se espantava do que fazia quem está em pecado mortal, mas sim do que não fazia. Deus, por Sua misericórdia, nos livre de tão grande mal, que não há outra coisa, enquanto vivemos, que mereça este nome de mal, senão esta; pois acarreta males eternos para sempre. É disto, filhas, que devemos andar temerosas e o que temos de pedir a Deus em nossas orações; porque, se Ele não guarda a cidade, em vão trabalharemos, pois somos a própria vaidade.
Dizia aquela pessoa que tinha aproveitado duas coisas da mercê que Deus lhe fez: uma, um temor grandíssimo de O ofender, e assim sempre Lhe andava suplicando que não a deixasse cair, vendo tão terríveis danos; a segunda, um espelho para a humildade, vendo que, coisa boa que façamos, não tem seu princípio em nós mesmos, mas naquela fonte onde está plantada esta árvore das nossas almas, e neste Sol que dá calor às nossas obras. Disse que se lhe representou isto tão calr que, em fazendo alguma coisa boa ou vendo-a fazer, acudia ao seu princípio e entendia como, sem esta ajuda, não podíamos nada; e daqui lhe procedia ir logo a louvar a Deus, e, habitualmente, não se lembrava de si em coisa boa que fizesse.
6. Não seria tempo perdido, irmãs, o que gastásseis a ler isto, nem eu a escrevê-lo, se ficássemos com estas duas coisas, que os letrados e entendidos muito bem sabem; mas a nossa ignorância de mulheres de tudo precisa; e assim, porventura, quer o Senhor que nos venham à lembrança semelhantes comparações. Praza a Sua Majestade dar-nos graça para isso.
7. São tão obscuras de entender estas coisas interiores que, a quem tão pouco sabe como eu, forçoso é dizer muitas coisas supérfluas e até desatinadas, para que haja alguma em que acerte. É necessário terem paciência quando isto lerem, pois eu a tenho para escrever o que não sei; e certo é algumas vezes tomar o papel, como uma pessoa tonta, sem saber que dizer nem mesmo começar. Bem entendo que é coisa importante para vós declarar-vos algumas coisas interiores, como puder; porque sempre ouvimos quão boa é a oração e temos na Constituição tê-la tantas horas. Não se nos declara mais do que podemos e, de coisas que o Senhor opera numa alma, declara-se pouco, digo de coisas sobrenaturais. Dizendo-se e dando-se a entender de muitas maneiras, ser-nos-á grande consolação considerar este artifício celestial interior, tão pouco entendido dos mortais, embora passem muitos por ele. E, ainda que em outras coisas que escrevi, o Senhor me tenha dado algo a entender, creio que algumas não as tinha entendido como de então para cá, em especial das mais dificultosas. O trabalho é que, para as chegar a declarar - como disse -, será preciso dizer muitas coisas muito sabidas, porque não pode ser por menos para meu rude talento.
8. Pois voltemos ao nosso castelo de muitas moradas. Não haveis de imaginar estas moradas uma após outra, como coisa alinhada; mas ponde os olhos no centro que é a casa ou palácio onde está o Rei, e considerai-a como um palmito, que, para chegar ao que é de comer, tem muitas coberturas que cercam tudo quanto é saboroso. Assim aqui, em redor desta morada, há outras muitas e também por cima. Porque as coisas da alma devem-se considerar com amplidão, largueza e grandeza, e nisto não há demasia, pois tem maior capacidade do que nós poderemos considerar, e a todas as partes dela se comunica este Sol que está no palácio. Isto importa muito a qualquer alma que tenha oração, pouca ou muita: que não a tolha nem a aperte. Deixe-a andar por estas moradas, em cima, em baixo e aos lados, pois Deus lhe deu tão grande dignidade; não se obrigue a estar muito tempo num só aposento! Oh! mas se é no próprio conhecimento! E quão necessário é isto (vejam se me entendem), mesmo aquelas que o Senhor tem na mesma morada em que Ele está, pois - por mais elevada que esteja a alma -, não lhe cumpre outra coisa, nem poderá, ainda que queira que a humildade sempre fabrica o seu mel, como a abelha na colmeia; sem isto, tudo vai perdido. Mas consideremos que a abelha não deixa de sair e voar para trazer flores; assim a alma no próprio conhecimento: creia-me e voe algumas vezes a considerar a grandeza e a majestade do seu Deus. Aqui achará a sua baixeza, melhor que em si mesma, e mais livre das sevandijas, que entram nas primeiras moradas, que são as do próprio conhecimento; ainda que, como digo, é grande misericórdia de Deus que a alma se exercite nisto, pois tanto se peca por excesso como por defeito, - costuma-se dizer-. E creiam-me que, com a virtude de Deus, praticaremos muito melhor a virtude do que muito presas à nossa terra.
9. Não sei se fica bem dado a entender, porque é coisa tão importante este conhecermo-nos, que não quereria que nisso houvesse nunca relaxação, por muito subidas que estejais nos céus; pois, enquanto estamos nesta terra, não há coisa que mais nos importe que a humildade. E assim volto a dizer que é muito bom e muito melhor tratar de entrar primeiro no aposento onde se trata disto, que voar aos demais, porque este é o caminho; e, se podemos ir pelo seguro e plano, para que havemos de querer asas para voar? Mas procure-se como aproveitar mais nisto; e a meu ver, jamais acabamos de nos conhecer se não procurarmos conhecer a Deus; olhando à Sua grandeza, acudamos à nossa baixeza; e olhando à Sua pureza, veremos nossa sujidade; considerando a Sua humildade, veremos como estamoslonge de ser humildes.
10. Há dois proveitos nisto: o primeiro, está claro que uma coisa branca parece muito mais branca ao pé duma negra e, ao contrário, a negra ao pé da branca. O segundo é, porque o nosso entendimento e nossa vontade se tornam mais nobres e mais dispostos para todo o bem, quando, às voltas consigo mesmos, tratam com Deus. E se nunca saímos do nosso lodo de misérias, é coisa muito inconveniente. Assim como dizíamos dos que estão em pecado mortal quão negras e de mau odor são seus cursos de água, assim aqui (ainda. que não são como aqueles, Deus nos livre, que isto é só comparação), metidos sempre na miséria da nossa terra, nunca o curso sairá do lodo de temores, de pusilanimidade e cobardia: de olhar a se me olham, se me não olham; se indo por este caminho, me sucederá mal; se ousarei começar aquela obra, se será soberba; se é bom que uma pessoa tão miserável trate de coisa tão alta como a oração; se me hão-de ter por melhor não indo pelo caminho de toda a gente; que não são bons os extremos, mesmo em virtude; que, como sou tão pecadora, será cair de mais alto; não irei talvez por diante e fareidano aos bons; uma como eu não precisa de singularidades.
11. Oh! valha-me Deus, filhas, quantas almas deve o demónio ter feito perder muito por este meio! Tudo isto lhes parece humildade e outras muitas coisas que pudera dizer, vem de nunca acabarmos de nos entender; rende-se o próprio conhecimento, e, se nunca saímos de nós mesmos, não me espanto, que isto e mais se possa temer. Por isso digo, filhas, que ponhamos os olhos em Cristo, nosso Bem, e ali aprenderemos a verdadeira humildade, e em seus santos, e enobrecer-seá o entendimento - como disse -, e não ficará o próprio conhecimento rasteiro e cobarde; pois que, embora esta seja a primeira morada, é muito rica e de tão grande preço e, se se escapa das sevandijas que nela há, não se ficará sem passar adiante. Terríveis são os ardis e manhas do demónio para que as almas não se conheçam a si mesmas nem entendam Seus caminhos.
12. Destas primeiras moradas posso eu dar sinais muito certos, por experiência. Por isso digo que não considerem poucos aposentos, senão um milhão deles; porque, de muitas maneiras, entram aqui almas, umas e outras com boa intenção. Mas, como o demónio sempre a tem tão má, deve terem cada um muitas legiões de demónios a combater para que não passem de uns a outros. Como a pobre alma não o entende, por mil maneiras nos engana, o que não pode fazer já tanto às que estão mais perto onde está o Rei Aqui, porém, como ainda estão embebidas no mundo e engolfadas em seus contentos e desvanecidas com suas honras e pretensões, não têm força os vassalos da alma (que são os sentidos e potências naturais que Deus lhe deu), e facilmente estas almas são vencidas, embora andem com desejos de não ofender a Deus, e façam boas obras. As que se virem neste estado precisam de recorrer amiúde, como puderem, a Sua Majestade, tomar a Sua bendita Mãe por intercessora e a Seus santos, para que pelejem por elas, pois os seus criados pouca força têm para se defender. E, na verdade, em todos os estados é necessário que ela nos venha de Deus. Sua Majestade no-la dê por Sua misericórdia, amen.
13. Que miserável é a vida em que vivemos! Porque, em outra parte, disse muito do dano que nos faz, filhas, não entender bem isto da humildade e do próprio conhecimento, nada mais vos digo aqui, ainda que seja o que mais importa, e praza a Deus tenha dito alguma coisa que vos aproveite.
14. Haveis de notar que, nestas primeiras moradas, ainda não chega quase nada da luz que sai do palácio onde está o Rei; porque, embora não estejam obscurecidas e negras como quando a alma está em pecado, estão de alguma maneira obscurecidas para poderem ver quem está nelas e não por culpa do aposento - não me sei dar a entender -, mas porque entraram com a alma tantas coisas más de cobras e víboras e coisas peçonhentas que não a deixam reparar na luz. É como se alguém entrasse em um lugar aonde entra muito sol e levasse terra nos olhos, que quase os não pudesse abrir. O aposento está claro, mas ela não o goza pelo impedimento destas feras e alimárias que lhe fazem cerrar os olhos para não ver senão a elas. Assim me parece deve ser uma alma que, embora não esteja em mau estado, está tão metida em coisas do mundo e tão embebida com sua fazenda ou honra ou negócios - como disse - que, ainda que de facto e verdade queira ver e gozar da Sua formosura, não a deixam nem parece que possa desembaraçar-se de tantos impedimentos. E convém muito, para entrar nas segundas moradas, que procure dar de mão às coisas e negócios não necessários, cada um conforme à seu estado; é coisa que lhe importa tanto para chegar à morada principal, que, se não começa a fazer isto, o tenho por impossível; e até mesmo o estar sem muito perigo naquela em que está, embora já tenha entrado no castelo, porque entre coisas tão peçonhentas, uma vez ou outra é impossível que deixem de lhe morder.
15. Pois que seria, filhas, se às que já estão livres destes tropeços, como nós, e entrámos já muito mais adentro de outras moradas secretas do castelo, se por nossa culpa tornássemos a sair para estas barafundas, como por nossos pecados deve haver muitas pessoas a quem Deus faz mercês, e por sua culpa se lançam nesta miséria? Aqui estamos livres quanto ao exterior; no interior, praza ao Senhor que o estejamos e que Ele nos livre. Guardai-vos, filhas minhas, de cuidados alheios. Olhai que em poucas moradas deste castelo deixam de combater os demónios. É verdade que em algumas têm força os guardas para pelejar, que são as potências - como creio ter dito -; mas é muito necessário não nos descuidarmos para entender seus ardis e não nos engane o demónio feito anjo de luz; pois há uma multidão de coisas com que ele nos pode fazer dano, pouco a pouco, e, até que o faça, não o entendemos.
16. Já vos disse de outra vez que ele é como uma lima surda, que é preciso entendê-lo nos princípios. Quero dizer alguma coisa para vo-lo dar melhor a entender. Dá ele a uma irmã vários ímpetos de penitência, e a esta lhe parece que não tem descanso senão quando se está atormentando. Este princípio é bom; mas, se a prioresa mandou que não façam penitências sem licença e o demónio lhe faz parecer que a coisa tão boa bem se pode atrever, e às escondidas se dá a tal vida que vem a perder a saúde e não poder fazer o que manda a sua Regra, já vedes em que vai parar tal bem. Dá a outra um zelo de perfeição muito grande. Isto é muito bom; mas poderá vir daqui, que qualquer faltita das irmãs lhe pareça uma grande quebra e assim vir-lhe o cuidado de ver se as fazem, e de recorrer à prioresa; e até, às vezes, poderá ser ela não ver as suas próprias faltas pelo grande zelo que tem da Religião; como as outras não vêem o interior, e vêem o cuidado exterior, poderia ser que o não tomassem tanto a bem.
17. O que aqui pretende o demónio não é pouco; é esfriar a caridade e o amor de umas para com as outras, o que seria grande dano. Entendamos, minhas filhas, que a perfeição verdadeira é amor de Deus e do próximo e, com quanto mais perfeição guardarmos estes dois mandamentos, seremos mais perfeitas. Toda a nossa Regra e Constituições não servem para outra coisa, senão de meios para guardar isto com mais perfeição. Deixemo-nos de zelos indiscretos, que nos podem fazer muito dano. Cada uma olhe para si mesma. Porque noutra parte vos falei largamente sobre isto, não me alongarei.
18. Importa tanto este amor de umas para com as outras, que eu nunca quereria que dele vos esquecêsseis; porque, de andar olhando nas outras a umas ninharias que às vezes não será imperfeição, mas, como sabemos pouco, talvez o lançaremos à pior parte, pode a alma perder a paz e ainda inquietar a das outras. Vede como custaria caro a perfeição! Também poderia o demónio trazer esta tentação para com a prioresa e seria mais perigosa. Para isto é mister muita discrição: porque, se forem coisas que vão contra a Regra e Constituição, é preciso que nem sempre se lancem à boa parte, mas sim avisá-la; e, se não se emendar, ao Prelado: isto é caridade. E também para com as irmãs, se fosse alguma coisa grave; deixar passar tudo com medo de que seja tentação, seria a mesma tentação. Mas é preciso ponderar muito (não nos engane o demónio) não o tratar umas com as outras, pois disso pode o demónio tirar grande proveito e começar o costume da murmuração; mas apenas tratá-lo com quem há-de aproveitar, como já disse. Aqui, glória a Deus, não há tanta ocasião para isso, porque se guarda tão contínuo silêncio; mas é bom que estejamos de sobreaviso.
Trata de quão feia coisa é a alma que está em pecado mortal, e como quis Deus dar a entender algo disto a uma pessoa. - Trata também alguma coisa sobre o próprio conhecimento. - Diz como se hão-de entender essas moradas.
1. Antes de passar adiante, quero dizer-vos que considereis o que será ver este castelo tão resplandecente e formoso, esta pérola oriental, esta árvore da vida que está plantada nas mesmas águas vivas da Vida, que é Deus, quando cai em pecado mortal. Não há trevas mais tenebrosas, nem coisa tão escura e negra que ela o não esteja muito mais. Basta saber que, estando até mesmo o Sol, que lhe dava tanto resplendor e formosura no centro da sua alma, todavia é como se ali não estivesse, para participar d´Ele, apesar de ser tão capaz de gozar de Sua Majestade, como o cristal o é para nele resplandecer o sol. Nenhuma coisa lhe aproveita; e daqui vem que todas as boas obras que fizer, estando assim em pecado mortal, são de nenhum fruto para alcançar glória: porque, não procedendo daquele princípio que é Deus, do qual vem que a nossa virtude é virtude, e apartando-nos d´Ele, não pode a obra ser agradável a Seus olhos; porque, enfim, o intento de quem faz um pecado mortal, não é contentar Deus, senão dar prazer ao demónio o qual, como é as mesmas trevas, assim a pobre alma fica feita uma mesma treva.
2. Eu sei de uma pessoa a quem Nosso Senhor quis mostrar como ficava uma alma quando pecava mortalmente. Diz aquela pessoa que lhe parece que, se o entendessem, não seria possível que alguém pecasse, ainda que se pusesse nos maiores trabalhos que se possam pensar para fugir das ocasiões. E assim, deu-lhe um grande desejo de que todos o entendessem. Assim vo-lo dê a vós, filhas, de rogar a Deus pelos que estão neste estado, todos feitos uma escuridão, e tais são suas obras; porque, assim como duma fonte muito clara, claros são os arroiozitos que dela emanam, assim é uma alma que está em graça, pois daqui lhe vem serem suas obras tão agradáveis aos olhos de Deus e dos homens, porque procedem desta fonte de vida, onde a alma está como uma árvore plantada; nem ela teria frescura e fruto, se não lhe viesse dali; é isto que a sustenta e faz que não seque, e que dê bom fruto. Assim a alma que, por sua culpa se aparta desta fonte e se transplanta a outra de uma negríssima água e de muito mau odor, tudo o que dela sai é a mesma desventura e sujidade.
3. É de considerar aqui que a fonte e aquele Sol resplandecente que está no centro da alma, não perde seu resplendor e formosura, que está sempre dentro dela, e não há coisa que lhe possa tirar a sua formosura. Mas, se sobre um cristal que está ao sol, se pusesse um pano muito negro, claro está que, embora o sol dê nele, a sua claridade não fará o seu efeito no cristal.
4. Ó almas remidas pelo Sangue de Jesus Cristo! Entendei-Vos e tende dó de vós mesmas! Como é possível que, entendendo isto, não procureis tirar este pez deste cristal? Olhai que, se a vida se vos acaba, jamais tornareis a gozar desta luz. Ó Jesus! O que é ver uma alma apartada dela! Como ficam os pobres aposentos do castelo? Que perturbados andam os sentidos, que é a gente que vive neles! E as potências, que são os alcaides, mordomos e mestres-salas, com que cegueira, com que mau governo! Enfim, como onde está plantada a árvore é o demónio, que fruto pode dar?
5. Ouvi uma vez a um homem espiritual, que não se espantava do que fazia quem está em pecado mortal, mas sim do que não fazia. Deus, por Sua misericórdia, nos livre de tão grande mal, que não há outra coisa, enquanto vivemos, que mereça este nome de mal, senão esta; pois acarreta males eternos para sempre. É disto, filhas, que devemos andar temerosas e o que temos de pedir a Deus em nossas orações; porque, se Ele não guarda a cidade, em vão trabalharemos, pois somos a própria vaidade.
Dizia aquela pessoa que tinha aproveitado duas coisas da mercê que Deus lhe fez: uma, um temor grandíssimo de O ofender, e assim sempre Lhe andava suplicando que não a deixasse cair, vendo tão terríveis danos; a segunda, um espelho para a humildade, vendo que, coisa boa que façamos, não tem seu princípio em nós mesmos, mas naquela fonte onde está plantada esta árvore das nossas almas, e neste Sol que dá calor às nossas obras. Disse que se lhe representou isto tão calr que, em fazendo alguma coisa boa ou vendo-a fazer, acudia ao seu princípio e entendia como, sem esta ajuda, não podíamos nada; e daqui lhe procedia ir logo a louvar a Deus, e, habitualmente, não se lembrava de si em coisa boa que fizesse.
6. Não seria tempo perdido, irmãs, o que gastásseis a ler isto, nem eu a escrevê-lo, se ficássemos com estas duas coisas, que os letrados e entendidos muito bem sabem; mas a nossa ignorância de mulheres de tudo precisa; e assim, porventura, quer o Senhor que nos venham à lembrança semelhantes comparações. Praza a Sua Majestade dar-nos graça para isso.
7. São tão obscuras de entender estas coisas interiores que, a quem tão pouco sabe como eu, forçoso é dizer muitas coisas supérfluas e até desatinadas, para que haja alguma em que acerte. É necessário terem paciência quando isto lerem, pois eu a tenho para escrever o que não sei; e certo é algumas vezes tomar o papel, como uma pessoa tonta, sem saber que dizer nem mesmo começar. Bem entendo que é coisa importante para vós declarar-vos algumas coisas interiores, como puder; porque sempre ouvimos quão boa é a oração e temos na Constituição tê-la tantas horas. Não se nos declara mais do que podemos e, de coisas que o Senhor opera numa alma, declara-se pouco, digo de coisas sobrenaturais. Dizendo-se e dando-se a entender de muitas maneiras, ser-nos-á grande consolação considerar este artifício celestial interior, tão pouco entendido dos mortais, embora passem muitos por ele. E, ainda que em outras coisas que escrevi, o Senhor me tenha dado algo a entender, creio que algumas não as tinha entendido como de então para cá, em especial das mais dificultosas. O trabalho é que, para as chegar a declarar - como disse -, será preciso dizer muitas coisas muito sabidas, porque não pode ser por menos para meu rude talento.
8. Pois voltemos ao nosso castelo de muitas moradas. Não haveis de imaginar estas moradas uma após outra, como coisa alinhada; mas ponde os olhos no centro que é a casa ou palácio onde está o Rei, e considerai-a como um palmito, que, para chegar ao que é de comer, tem muitas coberturas que cercam tudo quanto é saboroso. Assim aqui, em redor desta morada, há outras muitas e também por cima. Porque as coisas da alma devem-se considerar com amplidão, largueza e grandeza, e nisto não há demasia, pois tem maior capacidade do que nós poderemos considerar, e a todas as partes dela se comunica este Sol que está no palácio. Isto importa muito a qualquer alma que tenha oração, pouca ou muita: que não a tolha nem a aperte. Deixe-a andar por estas moradas, em cima, em baixo e aos lados, pois Deus lhe deu tão grande dignidade; não se obrigue a estar muito tempo num só aposento! Oh! mas se é no próprio conhecimento! E quão necessário é isto (vejam se me entendem), mesmo aquelas que o Senhor tem na mesma morada em que Ele está, pois - por mais elevada que esteja a alma -, não lhe cumpre outra coisa, nem poderá, ainda que queira que a humildade sempre fabrica o seu mel, como a abelha na colmeia; sem isto, tudo vai perdido. Mas consideremos que a abelha não deixa de sair e voar para trazer flores; assim a alma no próprio conhecimento: creia-me e voe algumas vezes a considerar a grandeza e a majestade do seu Deus. Aqui achará a sua baixeza, melhor que em si mesma, e mais livre das sevandijas, que entram nas primeiras moradas, que são as do próprio conhecimento; ainda que, como digo, é grande misericórdia de Deus que a alma se exercite nisto, pois tanto se peca por excesso como por defeito, - costuma-se dizer-. E creiam-me que, com a virtude de Deus, praticaremos muito melhor a virtude do que muito presas à nossa terra.
9. Não sei se fica bem dado a entender, porque é coisa tão importante este conhecermo-nos, que não quereria que nisso houvesse nunca relaxação, por muito subidas que estejais nos céus; pois, enquanto estamos nesta terra, não há coisa que mais nos importe que a humildade. E assim volto a dizer que é muito bom e muito melhor tratar de entrar primeiro no aposento onde se trata disto, que voar aos demais, porque este é o caminho; e, se podemos ir pelo seguro e plano, para que havemos de querer asas para voar? Mas procure-se como aproveitar mais nisto; e a meu ver, jamais acabamos de nos conhecer se não procurarmos conhecer a Deus; olhando à Sua grandeza, acudamos à nossa baixeza; e olhando à Sua pureza, veremos nossa sujidade; considerando a Sua humildade, veremos como estamoslonge de ser humildes.
10. Há dois proveitos nisto: o primeiro, está claro que uma coisa branca parece muito mais branca ao pé duma negra e, ao contrário, a negra ao pé da branca. O segundo é, porque o nosso entendimento e nossa vontade se tornam mais nobres e mais dispostos para todo o bem, quando, às voltas consigo mesmos, tratam com Deus. E se nunca saímos do nosso lodo de misérias, é coisa muito inconveniente. Assim como dizíamos dos que estão em pecado mortal quão negras e de mau odor são seus cursos de água, assim aqui (ainda. que não são como aqueles, Deus nos livre, que isto é só comparação), metidos sempre na miséria da nossa terra, nunca o curso sairá do lodo de temores, de pusilanimidade e cobardia: de olhar a se me olham, se me não olham; se indo por este caminho, me sucederá mal; se ousarei começar aquela obra, se será soberba; se é bom que uma pessoa tão miserável trate de coisa tão alta como a oração; se me hão-de ter por melhor não indo pelo caminho de toda a gente; que não são bons os extremos, mesmo em virtude; que, como sou tão pecadora, será cair de mais alto; não irei talvez por diante e fareidano aos bons; uma como eu não precisa de singularidades.
11. Oh! valha-me Deus, filhas, quantas almas deve o demónio ter feito perder muito por este meio! Tudo isto lhes parece humildade e outras muitas coisas que pudera dizer, vem de nunca acabarmos de nos entender; rende-se o próprio conhecimento, e, se nunca saímos de nós mesmos, não me espanto, que isto e mais se possa temer. Por isso digo, filhas, que ponhamos os olhos em Cristo, nosso Bem, e ali aprenderemos a verdadeira humildade, e em seus santos, e enobrecer-seá o entendimento - como disse -, e não ficará o próprio conhecimento rasteiro e cobarde; pois que, embora esta seja a primeira morada, é muito rica e de tão grande preço e, se se escapa das sevandijas que nela há, não se ficará sem passar adiante. Terríveis são os ardis e manhas do demónio para que as almas não se conheçam a si mesmas nem entendam Seus caminhos.
12. Destas primeiras moradas posso eu dar sinais muito certos, por experiência. Por isso digo que não considerem poucos aposentos, senão um milhão deles; porque, de muitas maneiras, entram aqui almas, umas e outras com boa intenção. Mas, como o demónio sempre a tem tão má, deve terem cada um muitas legiões de demónios a combater para que não passem de uns a outros. Como a pobre alma não o entende, por mil maneiras nos engana, o que não pode fazer já tanto às que estão mais perto onde está o Rei Aqui, porém, como ainda estão embebidas no mundo e engolfadas em seus contentos e desvanecidas com suas honras e pretensões, não têm força os vassalos da alma (que são os sentidos e potências naturais que Deus lhe deu), e facilmente estas almas são vencidas, embora andem com desejos de não ofender a Deus, e façam boas obras. As que se virem neste estado precisam de recorrer amiúde, como puderem, a Sua Majestade, tomar a Sua bendita Mãe por intercessora e a Seus santos, para que pelejem por elas, pois os seus criados pouca força têm para se defender. E, na verdade, em todos os estados é necessário que ela nos venha de Deus. Sua Majestade no-la dê por Sua misericórdia, amen.
13. Que miserável é a vida em que vivemos! Porque, em outra parte, disse muito do dano que nos faz, filhas, não entender bem isto da humildade e do próprio conhecimento, nada mais vos digo aqui, ainda que seja o que mais importa, e praza a Deus tenha dito alguma coisa que vos aproveite.
14. Haveis de notar que, nestas primeiras moradas, ainda não chega quase nada da luz que sai do palácio onde está o Rei; porque, embora não estejam obscurecidas e negras como quando a alma está em pecado, estão de alguma maneira obscurecidas para poderem ver quem está nelas e não por culpa do aposento - não me sei dar a entender -, mas porque entraram com a alma tantas coisas más de cobras e víboras e coisas peçonhentas que não a deixam reparar na luz. É como se alguém entrasse em um lugar aonde entra muito sol e levasse terra nos olhos, que quase os não pudesse abrir. O aposento está claro, mas ela não o goza pelo impedimento destas feras e alimárias que lhe fazem cerrar os olhos para não ver senão a elas. Assim me parece deve ser uma alma que, embora não esteja em mau estado, está tão metida em coisas do mundo e tão embebida com sua fazenda ou honra ou negócios - como disse - que, ainda que de facto e verdade queira ver e gozar da Sua formosura, não a deixam nem parece que possa desembaraçar-se de tantos impedimentos. E convém muito, para entrar nas segundas moradas, que procure dar de mão às coisas e negócios não necessários, cada um conforme à seu estado; é coisa que lhe importa tanto para chegar à morada principal, que, se não começa a fazer isto, o tenho por impossível; e até mesmo o estar sem muito perigo naquela em que está, embora já tenha entrado no castelo, porque entre coisas tão peçonhentas, uma vez ou outra é impossível que deixem de lhe morder.
15. Pois que seria, filhas, se às que já estão livres destes tropeços, como nós, e entrámos já muito mais adentro de outras moradas secretas do castelo, se por nossa culpa tornássemos a sair para estas barafundas, como por nossos pecados deve haver muitas pessoas a quem Deus faz mercês, e por sua culpa se lançam nesta miséria? Aqui estamos livres quanto ao exterior; no interior, praza ao Senhor que o estejamos e que Ele nos livre. Guardai-vos, filhas minhas, de cuidados alheios. Olhai que em poucas moradas deste castelo deixam de combater os demónios. É verdade que em algumas têm força os guardas para pelejar, que são as potências - como creio ter dito -; mas é muito necessário não nos descuidarmos para entender seus ardis e não nos engane o demónio feito anjo de luz; pois há uma multidão de coisas com que ele nos pode fazer dano, pouco a pouco, e, até que o faça, não o entendemos.
16. Já vos disse de outra vez que ele é como uma lima surda, que é preciso entendê-lo nos princípios. Quero dizer alguma coisa para vo-lo dar melhor a entender. Dá ele a uma irmã vários ímpetos de penitência, e a esta lhe parece que não tem descanso senão quando se está atormentando. Este princípio é bom; mas, se a prioresa mandou que não façam penitências sem licença e o demónio lhe faz parecer que a coisa tão boa bem se pode atrever, e às escondidas se dá a tal vida que vem a perder a saúde e não poder fazer o que manda a sua Regra, já vedes em que vai parar tal bem. Dá a outra um zelo de perfeição muito grande. Isto é muito bom; mas poderá vir daqui, que qualquer faltita das irmãs lhe pareça uma grande quebra e assim vir-lhe o cuidado de ver se as fazem, e de recorrer à prioresa; e até, às vezes, poderá ser ela não ver as suas próprias faltas pelo grande zelo que tem da Religião; como as outras não vêem o interior, e vêem o cuidado exterior, poderia ser que o não tomassem tanto a bem.
17. O que aqui pretende o demónio não é pouco; é esfriar a caridade e o amor de umas para com as outras, o que seria grande dano. Entendamos, minhas filhas, que a perfeição verdadeira é amor de Deus e do próximo e, com quanto mais perfeição guardarmos estes dois mandamentos, seremos mais perfeitas. Toda a nossa Regra e Constituições não servem para outra coisa, senão de meios para guardar isto com mais perfeição. Deixemo-nos de zelos indiscretos, que nos podem fazer muito dano. Cada uma olhe para si mesma. Porque noutra parte vos falei largamente sobre isto, não me alongarei.
18. Importa tanto este amor de umas para com as outras, que eu nunca quereria que dele vos esquecêsseis; porque, de andar olhando nas outras a umas ninharias que às vezes não será imperfeição, mas, como sabemos pouco, talvez o lançaremos à pior parte, pode a alma perder a paz e ainda inquietar a das outras. Vede como custaria caro a perfeição! Também poderia o demónio trazer esta tentação para com a prioresa e seria mais perigosa. Para isto é mister muita discrição: porque, se forem coisas que vão contra a Regra e Constituição, é preciso que nem sempre se lancem à boa parte, mas sim avisá-la; e, se não se emendar, ao Prelado: isto é caridade. E também para com as irmãs, se fosse alguma coisa grave; deixar passar tudo com medo de que seja tentação, seria a mesma tentação. Mas é preciso ponderar muito (não nos engane o demónio) não o tratar umas com as outras, pois disso pode o demónio tirar grande proveito e começar o costume da murmuração; mas apenas tratá-lo com quem há-de aproveitar, como já disse. Aqui, glória a Deus, não há tanta ocasião para isso, porque se guarda tão contínuo silêncio; mas é bom que estejamos de sobreaviso.