QUARTA MORADA - CAPÍTULO 2

QUARTA MORADA - CAPÍTULO 2
Prossegue no mesmo e declara por uma comparação o que são gostos e como se hão-de alcançar não os procurando.
1. Valha-me Deus! Onde me meti! Já tinha esquecido o que tratava, porque os negócios e a saúde me fazem deixá-lo na melhor altura. E, como tenho pouca memória, irá tudo desconcertado por não o poder tornar a ler. E mesmo talvez seja tudo desconcerto quanto digo; ao menos é o que sinto. Parece-me que fica dito das consolações espirituais, como algumas vezes vão envoltos com as nossas paixões, trazem consigo uns alvorotos de soluços, e até ouvi a pessoas que se lhes aperta o peito e mesmo lhes vêm movimentos exteriores, a que não podem ir à mão; e é tal a força, que lhes faz sair sangue do nariz, e coisas assim penosas. Disto não sei dizer nada, porque não passei por isso, mas deve ficar consolação; porque, como digo, tudo vai pararem desejar contentar a Deus e gozar da Sua Majestade.
2. Os que eu chamo gostos de Deus - que em outra parte chamei "oração de quietude" são mui de outra maneira, como entendereis as que os tendes experimentado, pela misericórdia de Deus. Façamos de conta, para o entender melhor, que vemos duas fontes com dois tanques que se enchem de água, que não acho coisa mais a propósito para declarar algumas coisas de espírito que isto de água. Como sei pouco, e o engenho não ajuda e sou tão amiga deste elemento, tenho olhado para ele com mais advertência, que para outras coisas; pois em todas as que criou tão grande Deus, tão sábio, deve haver muitos segredos de que nos podemos aproveitar, e assim fazem os que os entendem, embora eu creia que, em cada coisinha que Deus criou, há mais do que se entende, ainda que seja uma formiguita.
3. Estas dois tanques enchem-se de água de diferentes maneiras; para uma, vem de mais longe, por muitos aquedutos e artifícios; a outra está feita na mesma nascente da água e vai-se enchendo sem nenhum ruído. E se o manancial é caudaloso como este de que falamos, depois de cheio o tanque, segue um grande arroio; não é preciso artifício; nem mesmo se acaba o edifício dos aquedutos, que sempre está correndo dali água. A diferença está em que a água que vem por aquedutos, a meu parecer, são os contentos que tenho dito que se tiram da meditação; porque os trazemos com os pensamentos, ajudando-nos das criaturas na meditação e cansando o entendimento; e como vem, afinal, com as nossas diligências, faz ruído quando houver alguma enchente de proveitos que traz à alma, como fica dito.
4. A esta outra fonte, vem a água da sua mesma nascente, que é Deus; e assim, como e quando Sua Majestade quer e é servido de fazer alguma mercê sobrenatural, Ele produz esta água com grandíssima paz e quietação e suavidade no mui interior de nós mesmos, eu não sei até onde, nem como, nem mesmo aquele contento e deleite se sente como os de cá no coração - digo no seu princípio, que depois tudo enche -; vai-se derramando esta água por todas as moradas e potências, até chegar ao corpo; por isso disse e que começa em Deus e acaba em nós; e é certo, como verá quem o tiver experimentado, todo o homem interior goza deste gosto e suavidade.
5. Estava eu agora vendo - ao escrever isto -, que no versículo que diz: «Dilatasti cor meum», disse que se dilatou o coração; e - como digo - não me parece que seja coisa que nasce do coração, mas sim de outra parte ainda mais interior, como uma coisa profunda. Penso que deve ser o centro da alma, como depois entendi e direi no fim, que certo é, vejo segredos em nós mesmos que me trazem espantada muitas vezes. E quantos mais deve haver! Ó Senhor meu e Deus meu, que grandes são Vossas grandezas! E andamos por cá como uns pastorinhos tontos, parecendo-nos que enxergamos alguma coisa de Vós e deve ser tanto como nada, pois em nós mesmos há grandes segredos que não entendemos. Digo tanto como nada, para o muito, muitíssimo que há em Vós; e não porque não sejam muito grandes as grandezas que vemos, mesmo no que podemos alcançar das Vossas obras.
6. Voltando ao versículo, o que ele me pode aqui aproveitar, a meu parecer, é aquela dilatação; pois parece que, assim que se começa a produzir aquela água celestial deste manancial que digo, do profundo de nós mesmos, parece que se vai dilatando e alargando todo o nosso interior e produzindo uns bens que não se podem dizer, nem mesmo a alma sabe entender o que é aquilo que ali se lhe dá. Sente uma fragrância interior - digamos agora - como se naquela profundidade interior estivesse um braseiro onde se lançassem olorosos perfumes; nem se vê o lume nem onde está; mas o calor e o fumo perfumado penetram toda a alma e até bastantes vezes - como já disse -, participa o corpo. Olhai e entendei-me: nem se sente calor nem se aspira perfume, pois isto é coisa mais delicada que estas coisas; é apenas para vo-lo dar a entender. E entendam as pessoas que não passaram por isto, que é verdade isto passar-se assim e que se entende, e que o entende a alma mais claramente do que eu o digo agora. Não é isto coisa que se possa imaginar, porque, por diligências que façamos, não o podemos adquirir e nisto mesmo se vê não ser do nosso metal, senão daquele puríssimo oiro da sabedoria divina. Aqui não estão as potências unidas, a meu parecer, mas embebidas e olhando como espantadas o que será aquilo.
7. Poderá ser que nestas coisas interiores me contradiga um tanto do que tenho dito em outras partes, Não é maravilha, porque em quase quinze anos desde que o escrevi, talvez me tenha dado o Senhor mais claridade nestas coisas do que então entendia e, agora como então, posso errar em tudo mas não mentir, que, por misericórdia de Deus, antes passaria mil mortes. Digo o que entendo. 
8. A vontade bem me parece que deve estar unida, de certa maneira, com a de Deus; mas, nos efeitos e obras que depois se seguem, é que se conhecem estas verdades da oração, pois não há melhor crisol para as provar. É bem grande mercê de Nosso Senhor, se a conhece quem a recebe, e muito grande se não volta atrás. Logo querereis, minhas filhas, procurar ter esta oração, e tendes razão; pois - como disse - a alma não acaba de entender as mercês que ali lhe faz o Senhor e o amor com que a vai achegando mais a Si. De certo está, desejando saber como alcançaremos esta mercê. Eu vos direi o que nisto tenho entendido. 
9. Deixemos o Senhor fazê-la quando é servido, por Sua Majestade o querer e não por mais nada. Ele sabe o porquê; não nos havemos de meter nisso. Depois de fazermos o mesmo que fazem os das moradas anteriores, humildade, humildade! Por ela se deixa render o Senhor a tudo quanto d'Ele queremos. E a primeira coisa em que vereis se a tendes, é em não pensar que mereceis estas mercês e gostos do Senhor, nem que os haveis de ter em vossa vida. Direis: desta maneira, como se hão-de alcançar não os procurando? A isto respondo, não há outra melhor do que esta que vos, disse, e não os procurar pelas razões seguintes: Primeiro, porque a primeira coisa, que para isto é mister, é amar a Deus sem interesse. Segundo, porque não deixa de ser um pouco de falta de humildade pensar que, por nossos serviços miseráveis, se há-de alcançar coisa tão grande. Terceiro, porque a verdadeira preparação para isto é o desejo de padecer e de imitar ao Senhor e não o ter gostos, nós que, enfim, O temos ofendido. Quarto,, porque Sua Majestade não está obrigado a dar-nos gostos, como o está a dar-nos a Glória se guardarmos os Seus mandamentos, pois, sem isto, nos poderemos salvar, e Ele sabe melhor que nós o que nos convém e quem O ama de verdade. Assim é coisa certa, eu sei-o, e conheço pessoas que vão, pelo caminho do amor como se deve ir, só para servir a seu Cristo crucificado, que não só não Lhe pedem gostos nem os desejam, mas Lhe suplicam que não lhos dê nesta vida. Isto é verdade. A quinta, porque trabalharemos debalde, pois, como não se há-de trazer esta água por aquedutos como a precedente, se o manancial não a quer produzir, pouco aproveita que nos cansemos. Quero dizer que, por mais meditação que tenhamos e por mais que nos apoquentemos e tenhamos lágrimas, não é por aqui, que esta água vem. Só se dá a quem Deus quer e, muitas vezes, quando mais descuidada está a alma.
10. Suas somos, irmãs; faça de nós o que quiser, leve-nos por onde for servido. Creio bem que, a quem de verdade se humilhar e desapegar (digo de verdade, porque não o há-de ser só em nosso pensamento, que muitas vezes nos engana, senão que estejamos desapegadas de todo), não deixará o Senhor de nos fazer esta mercê, e outras muitas que não saberemos desejar. Seja Ele para sempre bendito. Amen.
Prossegue no mesmo e declara por uma comparação o que são gostos e como se hão-de alcançar não os procurando.
 
1. Valha-me Deus! Onde me meti! Já tinha esquecido o que tratava, porque os negócios e a saúde me fazem deixá-lo na melhor altura. E, como tenho pouca memória, irá tudo desconcertado por não o poder tornar a ler. E mesmo talvez seja tudo desconcerto quanto digo; ao menos é o que sinto. Parece-me que fica dito das consolações espirituais, como algumas vezes vão envoltos com as nossas paixões, trazem consigo uns alvorotos de soluços, e até ouvi a pessoas que se lhes aperta o peito e mesmo lhes vêm movimentos exteriores, a que não podem ir à mão; e é tal a força, que lhes faz sair sangue do nariz, e coisas assim penosas. Disto não sei dizer nada, porque não passei por isso, mas deve ficar consolação; porque, como digo, tudo vai pararem desejar contentar a Deus e gozar da Sua Majestade.
 
2. Os que eu chamo gostos de Deus - que em outra parte chamei "oração de quietude" são mui de outra maneira, como entendereis as que os tendes experimentado, pela misericórdia de Deus. Façamos de conta, para o entender melhor, que vemos duas fontes com dois tanques que se enchem de água, que não acho coisa mais a propósito para declarar algumas coisas de espírito que isto de água. Como sei pouco, e o engenho não ajuda e sou tão amiga deste elemento, tenho olhado para ele com mais advertência, que para outras coisas; pois em todas as que criou tão grande Deus, tão sábio, deve haver muitos segredos de que nos podemos aproveitar, e assim fazem os que os entendem, embora eu creia que, em cada coisinha que Deus criou, há mais do que se entende, ainda que seja uma formiguita.
 
3. Estas dois tanques enchem-se de água de diferentes maneiras; para uma, vem de mais longe, por muitos aquedutos e artifícios; a outra está feita na mesma nascente da água e vai-se enchendo sem nenhum ruído. E se o manancial é caudaloso como este de que falamos, depois de cheio o tanque, segue um grande arroio; não é preciso artifício; nem mesmo se acaba o edifício dos aquedutos, que sempre está correndo dali água. A diferença está em que a água que vem por aquedutos, a meu parecer, são os contentos que tenho dito que se tiram da meditação; porque os trazemos com os pensamentos, ajudando-nos das criaturas na meditação e cansando o entendimento; e como vem, afinal, com as nossas diligências, faz ruído quando houver alguma enchente de proveitos que traz à alma, como fica dito.
 
4. A esta outra fonte, vem a água da sua mesma nascente, que é Deus; e assim, como e quando Sua Majestade quer e é servido de fazer alguma mercê sobrenatural, Ele produz esta água com grandíssima paz e quietação e suavidade no mui interior de nós mesmos, eu não sei até onde, nem como, nem mesmo aquele contento e deleite se sente como os de cá no coração - digo no seu princípio, que depois tudo enche -; vai-se derramando esta água por todas as moradas e potências, até chegar ao corpo; por isso disse e que começa em Deus e acaba em nós; e é certo, como verá quem o tiver experimentado, todo o homem interior goza deste gosto e suavidade.
 
5. Estava eu agora vendo - ao escrever isto -, que no versículo que diz: «Dilatasti cor meum», disse que se dilatou o coração; e - como digo - não me parece que seja coisa que nasce do coração, mas sim de outra parte ainda mais interior, como uma coisa profunda. Penso que deve ser o centro da alma, como depois entendi e direi no fim, que certo é, vejo segredos em nós mesmos que me trazem espantada muitas vezes. E quantos mais deve haver! Ó Senhor meu e Deus meu, que grandes são Vossas grandezas! E andamos por cá como uns pastorinhos tontos, parecendo-nos que enxergamos alguma coisa de Vós e deve ser tanto como nada, pois em nós mesmos há grandes segredos que não entendemos. Digo tanto como nada, para o muito, muitíssimo que há em Vós; e não porque não sejam muito grandes as grandezas que vemos, mesmo no que podemos alcançar das Vossas obras.
 
6. Voltando ao versículo, o que ele me pode aqui aproveitar, a meu parecer, é aquela dilatação; pois parece que, assim que se começa a produzir aquela água celestial deste manancial que digo, do profundo de nós mesmos, parece que se vai dilatando e alargando todo o nosso interior e produzindo uns bens que não se podem dizer, nem mesmo a alma sabe entender o que é aquilo que ali se lhe dá. Sente uma fragrância interior - digamos agora - como se naquela profundidade interior estivesse um braseiro onde se lançassem olorosos perfumes; nem se vê o lume nem onde está; mas o calor e o fumo perfumado penetram toda a alma e até bastantes vezes - como já disse -, participa o corpo. Olhai e entendei-me: nem se sente calor nem se aspira perfume, pois isto é coisa mais delicada que estas coisas; é apenas para vo-lo dar a entender. E entendam as pessoas que não passaram por isto, que é verdade isto passar-se assim e que se entende, e que o entende a alma mais claramente do que eu o digo agora. Não é isto coisa que se possa imaginar, porque, por diligências que façamos, não o podemos adquirir e nisto mesmo se vê não ser do nosso metal, senão daquele puríssimo oiro da sabedoria divina. Aqui não estão as potências unidas, a meu parecer, mas embebidas e olhando como espantadas o que será aquilo.
 
7. Poderá ser que nestas coisas interiores me contradiga um tanto do que tenho dito em outras partes, Não é maravilha, porque em quase quinze anos desde que o escrevi, talvez me tenha dado o Senhor mais claridade nestas coisas do que então entendia e, agora como então, posso errar em tudo mas não mentir, que, por misericórdia de Deus, antes passaria mil mortes. Digo o que entendo. 
 
8. A vontade bem me parece que deve estar unida, de certa maneira, com a de Deus; mas, nos efeitos e obras que depois se seguem, é que se conhecem estas verdades da oração, pois não há melhor crisol para as provar. É bem grande mercê de Nosso Senhor, se a conhece quem a recebe, e muito grande se não volta atrás. Logo querereis, minhas filhas, procurar ter esta oração, e tendes razão; pois - como disse - a alma não acaba de entender as mercês que ali lhe faz o Senhor e o amor com que a vai achegando mais a Si. De certo está, desejando saber como alcançaremos esta mercê. Eu vos direi o que nisto tenho entendido. 
 
9. Deixemos o Senhor fazê-la quando é servido, por Sua Majestade o querer e não por mais nada. Ele sabe o porquê; não nos havemos de meter nisso. Depois de fazermos o mesmo que fazem os das moradas anteriores, humildade, humildade! Por ela se deixa render o Senhor a tudo quanto d'Ele queremos. E a primeira coisa em que vereis se a tendes, é em não pensar que mereceis estas mercês e gostos do Senhor, nem que os haveis de ter em vossa vida. Direis: desta maneira, como se hão-de alcançar não os procurando? A isto respondo, não há outra melhor do que esta que vos, disse, e não os procurar pelas razões seguintes: Primeiro, porque a primeira coisa, que para isto é mister, é amar a Deus sem interesse. Segundo, porque não deixa de ser um pouco de falta de humildade pensar que, por nossos serviços miseráveis, se há-de alcançar coisa tão grande. Terceiro, porque a verdadeira preparação para isto é o desejo de padecer e de imitar ao Senhor e não o ter gostos, nós que, enfim, O temos ofendido. Quarto,, porque Sua Majestade não está obrigado a dar-nos gostos, como o está a dar-nos a Glória se guardarmos os Seus mandamentos, pois, sem isto, nos poderemos salvar, e Ele sabe melhor que nós o que nos convém e quem O ama de verdade. Assim é coisa certa, eu sei-o, e conheço pessoas que vão, pelo caminho do amor como se deve ir, só para servir a seu Cristo crucificado, que não só não Lhe pedem gostos nem os desejam, mas Lhe suplicam que não lhos dê nesta vida. Isto é verdade. A quinta, porque trabalharemos debalde, pois, como não se há-de trazer esta água por aquedutos como a precedente, se o manancial não a quer produzir, pouco aproveita que nos cansemos. Quero dizer que, por mais meditação que tenhamos e por mais que nos apoquentemos e tenhamos lágrimas, não é por aqui, que esta água vem. Só se dá a quem Deus quer e, muitas vezes, quando mais descuidada está a alma.
 
10. Suas somos, irmãs; faça de nós o que quiser, leve-nos por onde for servido. Creio bem que, a quem de verdade se humilhar e desapegar (digo de verdade, porque não o há-de ser só em nosso pensamento, que muitas vezes nos engana, senão que estejamos desapegadas de todo), não deixará o Senhor de nos fazer esta mercê, e outras muitas que não saberemos desejar. Seja Ele para sempre bendito. Amen.