QUARTA MORADA - CAPÍTULO 3

QUARTA MORADA - CAPÍTULO 3
Trata do que é oração de recolhimento. Na maior parte das vezes, a dá o Senhor antes da oração acima dita. Diz seus efeitos e os que ficam da oração anterior em que tratou dos gostos que dá o Senhor. 
1. São muitos os efeitos desta oração; apenas direi alguns. Mas direi primeiro outra maneira de oração que começa quase sempre antes desta, e, por tê-la dito em outras partes, direi pouco. É um recolhimento que também me parece sobrenatural, porque não é estar às escuras nem cerrar os olhos, nem consiste em coisa alguma exterior, posto que, sem o querer, se faça isto de cerrar os olhos e desejar soledade; e sem artifício, parece que se vai lavrando o edifício para a oração que fica dita;  porque estes sentidos e coisas exteriores parecem ir perdendo de seu direito, para que a alma vá cobrando o seu que tinha perdido.
2. Dizem que a alma entra dentro de si e outras vezes que "sobe sobre si". Por esta linguagem não saberei eu esclarecer nada, que isto tenho de mau: penso que por aquilo que eu sei dizer de uma coisa o haveis de entender e talvez seja só claro para mim. Façamos de conta que estes sentidos e potências são, como já disse, a gente deste castelo - a comparação que tomei para saber dizer alguma coisa-, que saíram fora e andam com gente estranha, inimiga do bem deste castelo, dias e anos; e que, vendo sua perdição, já se têm vindo acercando dele, embora não cheguem a entrar - porque este costume é coisa dura -, mas não são já traidores e andam ao redor. Vendo já o grande Rei que está na morada deste castelo sua boa vontade, por Sua grande misericórdia quer trazê-los de novo a Si e, como bom pastor, com um silvo tão suave que até quase eles mesmos o não ouvem, faz com que conheçam Sua voz e não andem tão perdidos, mas voltem à sua morada. E tem tanta força este silvo do pastor, que desamparam as coisas exteriores em que andavam alheados e se metem no castelo.
3. Parece-me que nunca o dei a entender como agora, porque, para buscar a Deus no interior da alma (onde melhor O encontramos e com mais proveito para nós que nas criaturas, como disse Santo Agostinho que aí O achou, depois de O ter procurado em muitas partes), é grande a ajuda quando Deus faz essa mercê. E não penseis que isto é adquirido pelo entendimento, procurando pensar que têm dentro de si a Deus, nem pela imaginação, imaginando-O dentro de si. Bom é isto, e excelente maneira de meditação, porque se funda sobre esta verdade: o estar Deus dentro de nós mesmos; mas não é isto, pois cada um o pode fazer (com o favor do Senhor, bem se entende). Mas o que digo é de maneira diferente, e algumas vezes, antes que se comece a pensarem Deus, já esta gente está no castelo, que não sei por onde nem como ouviu o silvo do pastor. E não foi pelos ouvidos, que não se ouve nada, mas sente-se notavelmente um recolhimento suave para o interior, como verá quem passa por isto, que eu não o sei aclarar melhor. Parece-me ter lido que é como um ouriço ou tartaruga, quando se escondem em si mesmos; e devia entendêlo bem quem o escreveu. Mas estes entram em si quando querem; aqui isto não está no nosso querer, senão quando Deus nos quer fazer esta mercê. Tenho para mim que, quando Sua Majestade a faz, é a pessoas que já vão dando de mão às coisas do mundo. Não digo que seja pondo-o por obra aqueles que têm estado, que não podem, mas sim pelo desejo, pois chama-os particularmente para que estejam atentos às coisas interiores; e assim creio que, se queremos dar lugar a Sua Majestade, Ele não dará só isto a quem já começou a chamar para mais.
4. Louve-O muito quem reconhecer isto em si, porque é muitíssimo justo que se entenda a mercê, e a acção de graças que se dá por ela fará com que a alma se disponha para outras maiores. E é também disposição para poder escutar a Deus, como se aconselha em alguns livros, procurar não discorrer, mas estar-se atentos a ver o que o Senhor opera na alma; e, se Sua Majestade não começou a embebernos, não posso acabar de entender como se possa deter o pensamento de maneira que não faça mais dano que proveito, ainda que isto tenha sido contenda bem pleiteada entre algumas pessoas espirituais. Eu por mim confesso a minha pouca humildade: nunca me deram razões para que eu me renda ao que dizem. Um me alegou certo livro do santo Frei Pedro de Alcântara - que eu creio que o é -, a quem eu me renderia, porque sei que o sabia; e lemo-lo e diz o mesmo que eu, ainda que por outras palavras; g mas entende-se no que disse que há-de estar já desperto o amor. Bem pode ser que eu me engane, mas vou por estas razões:
5. A primeira, é que nesta obra de espírito, quem menos pensa e quer fazer, é que faz mais. O que devemos fazer é pedir como pobres necessitados diante dum rico imperador e logo baixar os olhos e esperar com humildade. Quando por seus secretos caminhos parece que entendemos que nos ouve, então é bom calar, pois nos deixou estar junto d'Ele e não será mau procurar não trabalhar com o entendimento - se podemos, digo -. Mas, se ainda não entendemos que este Rei nos ouviu e nos vê, não havemos de ficar pasmados, e não pouco o fica a alma quando isto procurou; e fica muito mais seca e porventura mais inquieta a imaginação com a força que se fez para não pensar em nada. Mas quer o Senhor que Lhe peçamos e consideremos estar em Sua presença, que Ele sabe o que nos convém. Eu não posso persuadir-me a recorrer a destrezas humanas em coisas a que a Sua Majestade parece ter posto o limite e quis guardar para Si, o que não fez a outras muitas, que podemos fazer com Sua ajuda, tanto de penitências, como de obras, e de oração, até onde pode nossa miséria.
6. A segunda razão é que estas obras interiores são todas suaves e pacíficas, e fazer coisa penosa mais prejudica que aproveita. Chamo coisa penosa a qualquer esforço que se quisesse fazer, como seria o de conter o fôlego; e não é isso o que convém, mas sim abandonar-se a alma nas mãos de Deus; faça dela o que Ele quiser, com o maior desprendimento que puder de seu proveito e maior resignação à vontade de Deus. A terceira é que o mesmo cuidado que se põe em não pensar nada talvez despertará o pensamento para pensar muito. A quarta é, que o mais substancial e agradável a Deus é que nos lembremos de Sua honra e glória e nos esqueçamos de nós mesmos e do nosso proveito, regalo e  gosto. Pois, como estará esquecido de si aquele que está com tanto cuidado, que nem ousa bulir nem sequer deixa que seu entendimento e desejos se movam a desejar a maior glória de Deus nem se alegrem por aquela que Deus tem? Quando Sua Majestade quer que o entendimento cesse, ocupa-o de outra maneira e dá ao conhecimento uma luz tão acima da que podemos alcançar, que o faz ficar absorto; e então, sem saber como, fica muito melhor ensinado do que com todas as nossas diligências que mais o deitariam a perder. Pois, se Deus nos deu as potências para que com elas trabalhássemos e tudo tem o seu valor, não há para que tê-las encantadas, mas deixá-las fazer seu ofício, até que Deus as ponha noutro maior. 
7. O que entendo que mais convém à alma a quem o Senhor quis meter nesta morada é fazer o que fica dito, e que, sem nenhum esforço nem ruído, procure atalhar o discorrer do entendimento, mas não suspendê-lo, nem ao pensamento; mas sim é bom que se lembre que está diante de Deus e Quem é este Deus. Se aquilo mesmo que sente em si o embeber, tanto melhor; mas não procure entender o que é, porque é dom feito à vontade. Deixe-a gozar sem nenhuma indústria, além de algumas palavras amorosas porque, embora não procuremos estar aqui sem pensar em nada, está-se assim muitas vezes, ainda que por muito breve tempo.
8. Mas, - como disse noutra parte -, a causa por que nesta maneira de oração (falo naquela pela qual comecei esta morada, pois meti com esta oração a de recolhimento de que devia ter falado primeiro, porque é muito menos que a dos gostos de Deus de que falei mas que é princípio para chegar a ela; que na de recolhimento não se há-de deixar a meditação, nem o trabalho do entendimento) ... nesta fonte manancial, que não vem por alcatruzes, o entendimento se contém ou o faz conter, ao ver que não entende o que quer, e assim anda de um lado para outro como tonto que em nada toma assento. Quanto à vontade, ela está tão assente em seu Deus, que lhe dá grande pesar o bulício do entendimento; e assim, não há que fazer caso dele, pois a fará perder muito do que goza, mas deixá-lo e deixar-se a si nos braços do amor que Sua Majestade lhe ensinará o que há-de fazer naquele ponto, que quase tudo é achar-se indigna de tanto bem e empregar-se em acção de graças.
9. Por tratar da oração de recolhimento, deixei os efeitos ou sinais que têm as almas a quem Deus Nosso Senhor dá esta oração. Assim, entende-se claramente urna dilatação ou alargamento na alma, tal como se a água, que mana duma fonte, não tivesse para onde correr, mas a mesma fonte fosse duma coisa que, quanto mais água manasse, maior ela se fizesse: assim parece acontecer nesta oração, e outras muitas maravilhas que Deus faz na alma, que a habilita e vai dispondo para que tudo caiba nela. Assim, esta suavidade e dilatação interior se vê na liberdade que lhe fica para não estar tão atada como antes nas coisas do serviço de Deus, mas sim com muito mais largueza de espírito. Assim, em não se tolher com temor do inferno, porque embora lhe fique maior de ofender a Deus, o temor servil perde-se aqui, fica com grande confiança que O há-de gozar. Já não tem o temor que costumava ter de fazer penitência e de perder a saúde; já lhe parece que tudo poderá em Deus, tem mais desejos de a fazer que até ali. O temor que costumava ter aos trabalhos já vai mais moderado, porque está mais viva a fé e entende que, se os passar por Deus, Sua Majestade lhe dará graça para os sofrer com paciência; e até mesmo algumas vezes os deseja, porque fica também uma grande vontade de fazer alguma coisa por Deus. Como vai conhecendo melhor Suas grandezas, temse já por mais miserável; como já provou dos gostos de Deus, vê que os do mundo são lixo, vai-se apartando deles, pouco a pouco, e é mais senhora de si para o fazer. Enfim, em todas as virtudes fica melhorada e não deixará de ir crescendo, se nãovolta atrás a ofender a Deus, porque então tudo se perde, por mais que uma alma tenha subido ao cume. Tão-pouco se deve entender que, por uma vez ou duas que Deus faça esta mercê a uma alma, fiquem feitas todas estas que dissemos, se ela não vai perseverando em as receber, pois nesta perseverança está todo o nosso bem.
10. De uma coisa aviso muito a quem se vir neste estado: que se guarde muito e muito de se pôr em ocasião de ofender a Deus; porque aqui não está ainda a alma criada, senão como menino que começa a mamar; se se aparta do peito de sua mãe, que se pode esperar dele senão a morte? Eu temo muito que, a quem Deus tiver feito esta mercê e se aparta da oração, acontecerá assim; não sendo por gravíssimo motivo, ou se não voltar logo a ela, porque irá de mal a pior. Eu sei que há muito que temer neste caso, e conheço algumas pessoas que me trazem muito pesarosa e tenho visto o que digo, por se terem apartado de Quem, com tanto amor, se lhes queria dar por Amigo, e o mostrar por obras. E assim aviso tanto que se não metam em ocasiões, porque muito mais faz o demónio por uma alma destas do que por muitas e muitas a quem o Senhor não fizer estas mercês; pois lhe podem fazer grande dano com o levar outras consigo e fazer porventura grande proveito na Igreja de Deus. E ainda que não haja outra coisa senão ver que Sua Majestade lhes mostra amor particular, isto basta para que o demónio se desfaça para que se percam; e assim são muito combatidas e ficam muito mais perdidas do que outras, se se perdem. Vós, irmãs, estais livres destes perigos, tanto quanto podemos entender. Deus vos livre da soberba e vanglória; e de que o demónio queira contrafazer estas mercês, conhecer-se-á porque não fará estes efeitos, mas sim tudo ao revés.
11. De um perigo vos quero avisar (ainda que vo-lo disse já noutra parte) em que vi cair pessoas de oração, em especial mulheres, porque, como somos mais fracas, há mais lugar para o que vou dizer. É que algumas, de muita penitência, oração e vigílias e ainda sem isto, são fracas de compleição; em tendo algum consolo, sujeita-as o natural; e, como sentem algum contento interior e quebrantamento exterior e uma fraqueza, quando há um sono a que chamam espiritual, que é um pouco mais do que fica dito,"parece-lhes que é igual ao outro e deixam-se embevecer. E, quanto mais a isso se entregam, mais se embevecem, porque se enfraquece mais a natureza e, a seu juízo, lhes parece arroubamento; e chamo-lhe eu pasmaceira, pois não é outra coisa senão estar ali perdendo tempo e gastando a saúde.
12. A uma lhe acontecia estar assim oito horas, que nem estão sem sentido nem sentem coisa alguma de Deus. Com dormir e comer e não fazer tanta penitência, tirou-se-lhe isto a esta pessoa, porque houve quem a entendesse; que a seu confessor trazia enganado e a outras pessoas e a si mesma, ainda que ela não queria enganar. Creio bem que o demónio fazia alguma diligência para tirar algum lucro e não começava a tirar pouco.
13. Há-de-se entender que, quando é coisa verdadeiramente de Deus, embora haja decaimento interior e exterior, não o há na alma; antes tem grandes sentimentos ao ver-se tão junto de Deus, e também não dura tanto, mas sim muito pouco tempo, bem que se torne a embevecer; mas nesta oração, se não é fraqueza - como disse -,não chega a tanto que derrube o corpo nem faça nele algum sinal exterior. Por isso, estejam de sobreaviso para que, quando isto sentirem em si, o digam à prelada e distraiam-se quanto puderem, e ela faça com que não tenham tantas horas de oração, senão muito pouco tempo, e procure que durmam bem e comam até que lhes torne a vir a força natural, se se perdeu por isto. Se é de tão fraco natural que não baste isto, creiam-me que não a quer Deus senão para a vida activa, pois de tudo tem de haver nos mosteiros; ocupem-na em ofícios e sempre se tenha conta em que não tenha muita soledade, porque virá a perder de todo a saúde. Grande mortificação será para ela; o Senhor quer aqui provar o amor que ela Lhe tem, no modo como sofre esta ausência e será servido de lhe tornar a dar as forças depois de algum tempo e, se não, com oração vocal e com obedecer, ganhará e merecerá o que deveria merecer por aqui, ou porventura mais.
14. Também poderia haver algumas tão fracas de cabeça e de imaginação, -como eu conheci -, que lhes parece ver tudo quanto pensam; é muito perigoso. Como talvez se venha a tratar disto mais adiante, não direi aqui mais nada, pois alongueime muito nesta morada, porque é nela que creio entram mais almas. E, como também entra o natural juntamente com os sobrenatural, o demónio pode fazer mais dano; pois, nas moradas que estão por dizer, não lhe dá o Senhor tanto lugar. Seja Ele para sempre louvado, amen. 
Trata do que é oração de recolhimento. Na maior parte das vezes, a dá o Senhor antes da oração acima dita. Diz seus efeitos e os que ficam da oração anterior em que tratou dos gostos que dá o Senhor. 
 
1. São muitos os efeitos desta oração; apenas direi alguns. Mas direi primeiro outra maneira de oração que começa quase sempre antes desta, e, por tê-la dito em outras partes, direi pouco. É um recolhimento que também me parece sobrenatural, porque não é estar às escuras nem cerrar os olhos, nem consiste em coisa alguma exterior, posto que, sem o querer, se faça isto de cerrar os olhos e desejar soledade; e sem artifício, parece que se vai lavrando o edifício para a oração que fica dita;  porque estes sentidos e coisas exteriores parecem ir perdendo de seu direito, para que a alma vá cobrando o seu que tinha perdido.
 
2. Dizem que a alma entra dentro de si e outras vezes que "sobe sobre si". Por esta linguagem não saberei eu esclarecer nada, que isto tenho de mau: penso que por aquilo que eu sei dizer de uma coisa o haveis de entender e talvez seja só claro para mim. Façamos de conta que estes sentidos e potências são, como já disse, a gente deste castelo - a comparação que tomei para saber dizer alguma coisa-, que saíram fora e andam com gente estranha, inimiga do bem deste castelo, dias e anos; e que, vendo sua perdição, já se têm vindo acercando dele, embora não cheguem a entrar - porque este costume é coisa dura -, mas não são já traidores e andam ao redor. Vendo já o grande Rei que está na morada deste castelo sua boa vontade, por Sua grande misericórdia quer trazê-los de novo a Si e, como bom pastor, com um silvo tão suave que até quase eles mesmos o não ouvem, faz com que conheçam Sua voz e não andem tão perdidos, mas voltem à sua morada. E tem tanta força este silvo do pastor, que desamparam as coisas exteriores em que andavam alheados e se metem no castelo.
 
3. Parece-me que nunca o dei a entender como agora, porque, para buscar a Deus no interior da alma (onde melhor O encontramos e com mais proveito para nós que nas criaturas, como disse Santo Agostinho que aí O achou, depois de O ter procurado em muitas partes), é grande a ajuda quando Deus faz essa mercê. E não penseis que isto é adquirido pelo entendimento, procurando pensar que têm dentro de si a Deus, nem pela imaginação, imaginando-O dentro de si. Bom é isto, e excelente maneira de meditação, porque se funda sobre esta verdade: o estar Deus dentro de nós mesmos; mas não é isto, pois cada um o pode fazer (com o favor do Senhor, bem se entende). Mas o que digo é de maneira diferente, e algumas vezes, antes que se comece a pensarem Deus, já esta gente está no castelo, que não sei por onde nem como ouviu o silvo do pastor. E não foi pelos ouvidos, que não se ouve nada, mas sente-se notavelmente um recolhimento suave para o interior, como verá quem passa por isto, que eu não o sei aclarar melhor. Parece-me ter lido que é como um ouriço ou tartaruga, quando se escondem em si mesmos; e devia entendêlo bem quem o escreveu. Mas estes entram em si quando querem; aqui isto não está no nosso querer, senão quando Deus nos quer fazer esta mercê. Tenho para mim que, quando Sua Majestade a faz, é a pessoas que já vão dando de mão às coisas do mundo. Não digo que seja pondo-o por obra aqueles que têm estado, que não podem, mas sim pelo desejo, pois chama-os particularmente para que estejam atentos às coisas interiores; e assim creio que, se queremos dar lugar a Sua Majestade, Ele não dará só isto a quem já começou a chamar para mais.
 
4. Louve-O muito quem reconhecer isto em si, porque é muitíssimo justo que se entenda a mercê, e a acção de graças que se dá por ela fará com que a alma se disponha para outras maiores. E é também disposição para poder escutar a Deus, como se aconselha em alguns livros, procurar não discorrer, mas estar-se atentos a ver o que o Senhor opera na alma; e, se Sua Majestade não começou a embebernos, não posso acabar de entender como se possa deter o pensamento de maneira que não faça mais dano que proveito, ainda que isto tenha sido contenda bem pleiteada entre algumas pessoas espirituais. Eu por mim confesso a minha pouca humildade: nunca me deram razões para que eu me renda ao que dizem. Um me alegou certo livro do santo Frei Pedro de Alcântara - que eu creio que o é -, a quem eu me renderia, porque sei que o sabia; e lemo-lo e diz o mesmo que eu, ainda que por outras palavras; g mas entende-se no que disse que há-de estar já desperto o amor. Bem pode ser que eu me engane, mas vou por estas razões:
 
5. A primeira, é que nesta obra de espírito, quem menos pensa e quer fazer, é que faz mais. O que devemos fazer é pedir como pobres necessitados diante dum rico imperador e logo baixar os olhos e esperar com humildade. Quando por seus secretos caminhos parece que entendemos que nos ouve, então é bom calar, pois nos deixou estar junto d'Ele e não será mau procurar não trabalhar com o entendimento - se podemos, digo -. Mas, se ainda não entendemos que este Rei nos ouviu e nos vê, não havemos de ficar pasmados, e não pouco o fica a alma quando isto procurou; e fica muito mais seca e porventura mais inquieta a imaginação com a força que se fez para não pensar em nada. Mas quer o Senhor que Lhe peçamos e consideremos estar em Sua presença, que Ele sabe o que nos convém. Eu não posso persuadir-me a recorrer a destrezas humanas em coisas a que a Sua Majestade parece ter posto o limite e quis guardar para Si, o que não fez a outras muitas, que podemos fazer com Sua ajuda, tanto de penitências, como de obras, e de oração, até onde pode nossa miséria.
 
6. A segunda razão é que estas obras interiores são todas suaves e pacíficas, e fazer coisa penosa mais prejudica que aproveita. Chamo coisa penosa a qualquer esforço que se quisesse fazer, como seria o de conter o fôlego; e não é isso o que convém, mas sim abandonar-se a alma nas mãos de Deus; faça dela o que Ele quiser, com o maior desprendimento que puder de seu proveito e maior resignação à vontade de Deus. A terceira é que o mesmo cuidado que se põe em não pensar nada talvez despertará o pensamento para pensar muito. A quarta é, que o mais substancial e agradável a Deus é que nos lembremos de Sua honra e glória e nos esqueçamos de nós mesmos e do nosso proveito, regalo e  gosto. Pois, como estará esquecido de si aquele que está com tanto cuidado, que nem ousa bulir nem sequer deixa que seu entendimento e desejos se movam a desejar a maior glória de Deus nem se alegrem por aquela que Deus tem? Quando Sua Majestade quer que o entendimento cesse, ocupa-o de outra maneira e dá ao conhecimento uma luz tão acima da que podemos alcançar, que o faz ficar absorto; e então, sem saber como, fica muito melhor ensinado do que com todas as nossas diligências que mais o deitariam a perder. Pois, se Deus nos deu as potências para que com elas trabalhássemos e tudo tem o seu valor, não há para que tê-las encantadas, mas deixá-las fazer seu ofício, até que Deus as ponha noutro maior. 
 
7. O que entendo que mais convém à alma a quem o Senhor quis meter nesta morada é fazer o que fica dito, e que, sem nenhum esforço nem ruído, procure atalhar o discorrer do entendimento, mas não suspendê-lo, nem ao pensamento; mas sim é bom que se lembre que está diante de Deus e Quem é este Deus. Se aquilo mesmo que sente em si o embeber, tanto melhor; mas não procure entender o que é, porque é dom feito à vontade. Deixe-a gozar sem nenhuma indústria, além de algumas palavras amorosas porque, embora não procuremos estar aqui sem pensar em nada, está-se assim muitas vezes, ainda que por muito breve tempo.
 
8. Mas, - como disse noutra parte -, a causa por que nesta maneira de oração (falo naquela pela qual comecei esta morada, pois meti com esta oração a de recolhimento de que devia ter falado primeiro, porque é muito menos que a dos gostos de Deus de que falei mas que é princípio para chegar a ela; que na de recolhimento não se há-de deixar a meditação, nem o trabalho do entendimento) ... nesta fonte manancial, que não vem por alcatruzes, o entendimento se contém ou o faz conter, ao ver que não entende o que quer, e assim anda de um lado para outro como tonto que em nada toma assento. Quanto à vontade, ela está tão assente em seu Deus, que lhe dá grande pesar o bulício do entendimento; e assim, não há que fazer caso dele, pois a fará perder muito do que goza, mas deixá-lo e deixar-se a si nos braços do amor que Sua Majestade lhe ensinará o que há-de fazer naquele ponto, que quase tudo é achar-se indigna de tanto bem e empregar-se em acção de graças.
 
9. Por tratar da oração de recolhimento, deixei os efeitos ou sinais que têm as almas a quem Deus Nosso Senhor dá esta oração. Assim, entende-se claramente urna dilatação ou alargamento na alma, tal como se a água, que mana duma fonte, não tivesse para onde correr, mas a mesma fonte fosse duma coisa que, quanto mais água manasse, maior ela se fizesse: assim parece acontecer nesta oração, e outras muitas maravilhas que Deus faz na alma, que a habilita e vai dispondo para que tudo caiba nela. Assim, esta suavidade e dilatação interior se vê na liberdade que lhe fica para não estar tão atada como antes nas coisas do serviço de Deus, mas sim com muito mais largueza de espírito. Assim, em não se tolher com temor do inferno, porque embora lhe fique maior de ofender a Deus, o temor servil perde-se aqui, fica com grande confiança que O há-de gozar. Já não tem o temor que costumava ter de fazer penitência e de perder a saúde; já lhe parece que tudo poderá em Deus, tem mais desejos de a fazer que até ali. O temor que costumava ter aos trabalhos já vai mais moderado, porque está mais viva a fé e entende que, se os passar por Deus, Sua Majestade lhe dará graça para os sofrer com paciência; e até mesmo algumas vezes os deseja, porque fica também uma grande vontade de fazer alguma coisa por Deus. Como vai conhecendo melhor Suas grandezas, temse já por mais miserável; como já provou dos gostos de Deus, vê que os do mundo são lixo, vai-se apartando deles, pouco a pouco, e é mais senhora de si para o fazer. Enfim, em todas as virtudes fica melhorada e não deixará de ir crescendo, se nãovolta atrás a ofender a Deus, porque então tudo se perde, por mais que uma alma tenha subido ao cume. Tão-pouco se deve entender que, por uma vez ou duas que Deus faça esta mercê a uma alma, fiquem feitas todas estas que dissemos, se ela não vai perseverando em as receber, pois nesta perseverança está todo o nosso bem.
 
10. De uma coisa aviso muito a quem se vir neste estado: que se guarde muito e muito de se pôr em ocasião de ofender a Deus; porque aqui não está ainda a alma criada, senão como menino que começa a mamar; se se aparta do peito de sua mãe, que se pode esperar dele senão a morte? Eu temo muito que, a quem Deus tiver feito esta mercê e se aparta da oração, acontecerá assim; não sendo por gravíssimo motivo, ou se não voltar logo a ela, porque irá de mal a pior. Eu sei que há muito que temer neste caso, e conheço algumas pessoas que me trazem muito pesarosa e tenho visto o que digo, por se terem apartado de Quem, com tanto amor, se lhes queria dar por Amigo, e o mostrar por obras. E assim aviso tanto que se não metam em ocasiões, porque muito mais faz o demónio por uma alma destas do que por muitas e muitas a quem o Senhor não fizer estas mercês; pois lhe podem fazer grande dano com o levar outras consigo e fazer porventura grande proveito na Igreja de Deus. E ainda que não haja outra coisa senão ver que Sua Majestade lhes mostra amor particular, isto basta para que o demónio se desfaça para que se percam; e assim são muito combatidas e ficam muito mais perdidas do que outras, se se perdem. Vós, irmãs, estais livres destes perigos, tanto quanto podemos entender. Deus vos livre da soberba e vanglória; e de que o demónio queira contrafazer estas mercês, conhecer-se-á porque não fará estes efeitos, mas sim tudo ao revés.
 
11. De um perigo vos quero avisar (ainda que vo-lo disse já noutra parte) em que vi cair pessoas de oração, em especial mulheres, porque, como somos mais fracas, há mais lugar para o que vou dizer. É que algumas, de muita penitência, oração e vigílias e ainda sem isto, são fracas de compleição; em tendo algum consolo, sujeita-as o natural; e, como sentem algum contento interior e quebrantamento exterior e uma fraqueza, quando há um sono a que chamam espiritual, que é um pouco mais do que fica dito,"parece-lhes que é igual ao outro e deixam-se embevecer. E, quanto mais a isso se entregam, mais se embevecem, porque se enfraquece mais a natureza e, a seu juízo, lhes parece arroubamento; e chamo-lhe eu pasmaceira, pois não é outra coisa senão estar ali perdendo tempo e gastando a saúde.
 
12. A uma lhe acontecia estar assim oito horas, que nem estão sem sentido nem sentem coisa alguma de Deus. Com dormir e comer e não fazer tanta penitência, tirou-se-lhe isto a esta pessoa, porque houve quem a entendesse; que a seu confessor trazia enganado e a outras pessoas e a si mesma, ainda que ela não queria enganar. Creio bem que o demónio fazia alguma diligência para tirar algum lucro e não começava a tirar pouco.
 
13. Há-de-se entender que, quando é coisa verdadeiramente de Deus, embora haja decaimento interior e exterior, não o há na alma; antes tem grandes sentimentos ao ver-se tão junto de Deus, e também não dura tanto, mas sim muito pouco tempo, bem que se torne a embevecer; mas nesta oração, se não é fraqueza - como disse -,não chega a tanto que derrube o corpo nem faça nele algum sinal exterior. Por isso, estejam de sobreaviso para que, quando isto sentirem em si, o digam à prelada e distraiam-se quanto puderem, e ela faça com que não tenham tantas horas de oração, senão muito pouco tempo, e procure que durmam bem e comam até que lhes torne a vir a força natural, se se perdeu por isto. Se é de tão fraco natural que não baste isto, creiam-me que não a quer Deus senão para a vida activa, pois de tudo tem de haver nos mosteiros; ocupem-na em ofícios e sempre se tenha conta em que não tenha muita soledade, porque virá a perder de todo a saúde. Grande mortificação será para ela; o Senhor quer aqui provar o amor que ela Lhe tem, no modo como sofre esta ausência e será servido de lhe tornar a dar as forças depois de algum tempo e, se não, com oração vocal e com obedecer, ganhará e merecerá o que deveria merecer por aqui, ou porventura mais.
 
14. Também poderia haver algumas tão fracas de cabeça e de imaginação, -como eu conheci -, que lhes parece ver tudo quanto pensam; é muito perigoso. Como talvez se venha a tratar disto mais adiante, não direi aqui mais nada, pois alongueime muito nesta morada, porque é nela que creio entram mais almas. E, como também entra o natural juntamente com os sobrenatural, o demónio pode fazer mais dano; pois, nas moradas que estão por dizer, não lhe dá o Senhor tanto lugar. Seja Ele para sempre louvado, amen.