QUINTA MORADA - CAPÍTULO 1

QUINTA MORADA - CAPÍTULO 1
Começa a tratar como na oração se une a alma com Deus. Diz em que se conhecerá não ser engano. 
1. Ó irmãs! como vos poderei eu dizer a riqueza e tesouros e deleites que há nas quintas moradas? Creio será melhor não dizer nada das que faltam, pois não se háde saber dizer, nem o entendimento o sabe entender, nem as comparações podem servir para o declarar; porque são muito baixas as coisas da terra para este fim. Enviai do Céu, Senhor meu, a luz para que eu possa dar alguma a estas Vossas servas, pois sois servido que gozem algumas delas tão habitualmente destes gozos, para que não sejam enganadas, transfigurando-se o demónio em anjo de luz, pois elas empregam todos os seus desejos em desejar contentar-Vos.
2. E ainda que disse "algumas", bem poucas há que não entrem nesta morada que agora direi. Há mais e menos, e por isso digo que são mais as que entram nelas. Em algumas coisas das que direi que há neste aposento, creio bem que são poucas as que entram; mas, embora não seja senão chegar à porta, é grande a misericórdia que Deus lhes faz; porque, ainda que são muitos os chamados, são poucos os escolhidos. Assim digo agora que, embora todas as que trazemos este hábito sagrado do Carmo somos chamadas à oração e contemplação (porque este foi nosso princípio, desta casta vimos, daqueles nossos santos Padres do Monte Carmelo, que em tão grande solidão e com tanto desprezo do mundo buscavam este tesouro, esta preciosa margarita de que falamos), poucas nos dispomos para que o Senhor no-la faça encontrar. Porque quanto ao exterior, vamos bem para chegar ao que é preciso nas virtudes; mas para chegar aqui, temos muita necessidade, e não nos descuidar nem pouco nem muito. Por isso, minhas irmãs, agora é pedir ao Senhor, já que de alguma maneira podemos gozar do Céu na terra, que nos dê Seu favor para que não falhe por nossa culpa e nos mostre o caminho e dê forças na alma para cavar até achar este tesouro escondido, pois é verdade que está em nós mesmas, e isto queria eu dar a entender, se o Senhor for servido que o saiba fazer.
3. Disse «forças na alma», para que entendais que não fazem falta as do corpo a quem Deus Nosso Senhor não as dá; não impossibilita ninguém de adquirir Suas riquezas; contanto que cada um dê o que tiver, já se contenta. Bendito seja tão grande Deus. Mas olhai, filhas, que, para isto de que tratamos, não quer que vos fiqueis com nada: pouco ou muito, tudo o quer para Si, e conforme ao que entenderdes que tendes dado, ser-vos-ão feitas maiores ou menores mercês. Não há maior prova para entender se a nossa oração chega ou não à união. Não penseis que é coisa sonhada, como a oração passada. Digo sonhada, porque assim parece que está a alma como que adormecida, que nem parece que está bem a dormir nem se sente desperta. Aqui, estão todas adormecidas e bem adormecidas às coisas do mundo e a nós mesmas (porque, na verdade, fica-se como sem sentidos durante o pouco tempo que dura, nem se pode pensar, ainda que se queira), aqui não é preciso artifício para suspender o pensamento; 
4. até o amar - se o faz -, não entende como, nem o que é que ama, nem o que queria; enfim; como quem de todo está morto ao mundo para viver mais em Deus. E assim é uma morte saborosa, um arrancar de alma de todas as operações que pode ter, estando no corpo; deleitosa porque, ainda que de verdade pareça que a alma se aparta dele, é para melhor estar em Deus, e de tal maneira que até não sei se lhe fica vida para respirar (agora o estava pensando e parece-me que não, ao menos se o faz não se entende que o faz), todo o seu entendimento se quereria empregar em entender algo do que sente e, como não chegam suas forças, fica-se espantado de maneira que, se não se perde de todo, não meneia pé nem mão, como se costuma dizer duma pessoa que está tão desmaiada, que nos parece morta. Oh! segredos de Deus! Não me cansaria de procurar como vo-lo dar a entender, se pensasse acertar em alguma coisa, e assim direi mil desatinos, para se alguma vez atinar, louvemos muito ao Senhor.
5. Disse que não era coisa sonhada, porque na morada que fica dita, até que a experiência seja muita, fica a alma duvidosa do que foi aquilo: se foi ilusão, se estaria sonhando, se foi dado por Deus, ou se o demónio se transfigurou em anjo de luz. Fica com mil suspeitas e é bem que as tenha; porque - como disse -, até a própria natureza nos pode enganar ali alguma vez; pois, embora não haja tanto lugar para entrarem as coisas peçonhentas, umas lagartixas sim, porque são delgadas e por onde quer que seja se metem; e conquanto não façam dano, em especial se não fazem caso delas - como disse -, porque são pensamentos que procedem da imaginação e do que fica dito, importunam muitas vezes. Aqui, por delgadas que sejam as lagartixas não podem entrar nesta morada; porque nem há imaginação, nem memória nem entendimento que possa impedir este bem. E ousarei afirmar que, se é verdadeiramente união de Deus, não pode entrar o demónio nem fazer nenhum dano; porque está Sua Majestade tão junto e unido com a essência da alma, que ele não ousará aproximar-se, nem mesmo deve entender este segredo. E é claro; pois, se dizem que não entende o nosso pensamento, menos entenderia coisa tão secreta, que Deus nem a fia do nosso pensamento. Oh! grande bem, situação onde este maldito não nos faz mal! Assim fica a alma com tão grandes lucros, por Deus trabalhar nela sem que ninguém O estorve, nem nós mesmos! Que vos não dará Quem é tão amigo de dar e pode dar tudo o que quer?
6. Parece que vos deixo confusas dizendo se é união de Deus e que há outras uniões. E... se as há! Ainda que sejam em coisas vãs, quando cá se amam muito, também os transportará o demónio; mas não da maneira que Deus o faz nem com o deleite e satisfação e paz e gozo da alma. É sobre todos os gozos da terra, sobre todos os deleites e sobre todos os contentos, e mais ainda; pois, considerando onde se engendram, nada têm que ver estes contentos com os da terra, que é muito diferente seu sentir, como o tereis experimentado. Disse eu uma vez que é como se fosse nesta grosseria do corpo ou na medula e atinei bem, pois não sei como dizê-lo melhor.
7. Parece-me que ainda não vos vejo satisfeitas porque vos parecerá que vos podeis enganar, que este interior é coisa difícil de examinar; e, ainda que, para quem tenha passado por isto, basta o que fica dito, porque é grande a diferença, quero dar-vos um sinal claro, pelo qual não vos podeis enganar nem duvidar se foi de Deus, que Sua Majestade mo trouxe hoje à memória, e, a meu parecer, é o sinal certo. Sempre em coisas dificultosas, ainda que me pareça que entendo e digo a verdade, uso esta linguagem de que «me parece»; porque, se me enganar, estou bem preparada a acreditar no que disseram os que têm muitas letras. Porque, ainda que não tenham passado por estas coisas, têm um não sei quê, os grandes letrados, que, como Deus os tem para luz da Sua Igreja, quando é uma verdade, dá-lhes luz para que as admitam; e se não são dissipados, mas servos de Deus, nunca se espantam de Suas grandezas, pois bem têm entendido que Ele pode muito e muito mais. E, enfim, embora algumas coisas não sejam tão declaradas, outras devem achar escritas, por onde vêem que estas também podem suceder.
8. Disto tenho grandíssima experiência, e também a tenho de uns meios letrados espantadiços, que me custaram muito caro. Pelo menos, creio que, quem não crer que Deus pode muito mais e que teve e tem por bem de o comunicar algumas vezes às Suas criaturas, tem bem cerrada a porta para receber tais mercês. Por isso, irmãs, nunca isto vos aconteça, mas crede de Deus muito mais e mais e não ponhais os olhos em se são ruins ou bons aqueles a quem Deus as faz, pois Sua Majestade o sabe, como vos disse. Não temos de nos meter nisso, senão com simplicidade de coração e humildade servir a Sua Majestade e louvá-lO por suas obras e maravilhas.
9. Pois, voltando ao sinal que digo ser o verdadeiro, já vedes esta alma a quem Deus fez tonta de todo para melhor imprimir nela a verdadeira sabedoria, que nem vê, nem ouve, nem entende o tempo em que está assim, que sempre é breve, e até muito mais breve lhe parece a ela do que deve ser. Fixa-Se Deus a Si mesmo no interior daquela alma de modo que, quando volta a si, de nenhuma maneira pode duvidar que esteve em Deus e Deus nela. Com tanta firmeza lhe fica esta verdade, que, ainda que passem anos sem Deus voltar e fazer-lhe aquela mercê, nem lhe esquece nem pode duvidar que esteve assim. Isto, sem falar dos efeitos com que fica, dos quais falarei depois; isto é o que faz muito ao caso. 
10. Pois dir-me-eis: como viu e como entendeu isto, se não se vê nem se entende? Não digo que o viu então, senão que o vê depois claramente; e não porque seja visão, mas sim uma certeza que fica na alma, que só Deus a pode dar. Eu sei duma pessoa que não tinha chegado ao conhecimento que Deus estava em todas as coisas por presença e potência e essência e, por uma mercê que Deus lhe fez desta sorte, o veio a crer de tal maneira, que embora um meio letrado dos que tenho dito, a quem perguntou o modo como estava Deus em nós (ele sabia tão pouco como ela antes de Deus lho dar a entender), lhe disse que estava somente pela graça, ela tinha já tão fixa a verdade, que não acreditou e perguntou a outros que lhe disseram a verdade, com o que se consolou muito.
11. Não vos haveis de enganar parecendo-vos que esta certeza fica em forma corporal, como o Corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo está no Santíssimo Sacramento, ainda que não O vejamos; porque aqui não fica assim, mas só a Divindade. Pois, se o que não vimos, como nos fica com essa certeza? Isso não o sei eu, são obras Suas; mas sei que digo a verdade, e quem não ficar com esta certeza, não diria eu que é união de toda a alma com Deus, senão de alguma potência, ou outras muitas maneiras de mercês que Deus faz à alma. Em todas estas coisas não havemos de buscar razões para ver como foi; pois, se não chega o nosso entendimento a entendê-lo, para que nos queremos desvanecer? Basta ver que é todo poderoso Quem o faz, pois nada podemos, por mais diligências que façamos para o alcançar, senão que é Deus que o faz, não o queiramos entender.
12. Agora me lembro, acerca disto que digo, de nada contribuirmos da nossa parte, do que tendes ouvido que diz a Esposa nos Cantares: «Levou-me o Rei à adega do vinho» ou «meteu-me», creio que diz. E não diz que foi ela. E diz também que "andava buscando a seu Amado, por uma e outra parte". Esta, entendo eu é a adega onde nos quer meter o Senhor, quando quer e como quer; mas, por mais diligências  que façamos, não podemos entrar. Sua Majestade é Quem nos há-de meter e entrar Ele no centro da nossa alma; e, para melhor mostrar Suas maravilhas, não quer; que nisto tenhamos mais parte do que a da vontade que de todo se Lhe rendeu, nem que se Lhe abra a porta das potências e dos sentidos, pois todos estão adormecidos; mas entrar no centro da alma sem porta alguma, como entrou onde estavam Seus discípulos quando disse: « Pax vobis», e saiu do sepulcro sem levantar a pedra. Adiante vereis como Sua Majestade quer que O goze a alma em seu mesmo centro, e ainda muito mais do que aqui, na última morada.
13. Ó filhas! muito veremos se não quisermos ver mais que a nossa baixeza e miséria, e entender que não somos dignas de ser servas de um Senhor tão grande, que nem podemos alcançar Suas maravilhas! Seja Ele para sempre louvado, amen
Começa a tratar como na oração se une a alma com Deus. Diz em que se conhecerá não ser engano. 
 
1. Ó irmãs! como vos poderei eu dizer a riqueza e tesouros e deleites que há nas quintas moradas? Creio será melhor não dizer nada das que faltam, pois não se háde saber dizer, nem o entendimento o sabe entender, nem as comparações podem servir para o declarar; porque são muito baixas as coisas da terra para este fim. Enviai do Céu, Senhor meu, a luz para que eu possa dar alguma a estas Vossas servas, pois sois servido que gozem algumas delas tão habitualmente destes gozos, para que não sejam enganadas, transfigurando-se o demónio em anjo de luz, pois elas empregam todos os seus desejos em desejar contentar-Vos.
 
2. E ainda que disse "algumas", bem poucas há que não entrem nesta morada que agora direi. Há mais e menos, e por isso digo que são mais as que entram nelas. Em algumas coisas das que direi que há neste aposento, creio bem que são poucas as que entram; mas, embora não seja senão chegar à porta, é grande a misericórdia que Deus lhes faz; porque, ainda que são muitos os chamados, são poucos os escolhidos. Assim digo agora que, embora todas as que trazemos este hábito sagrado do Carmo somos chamadas à oração e contemplação (porque este foi nosso princípio, desta casta vimos, daqueles nossos santos Padres do Monte Carmelo, que em tão grande solidão e com tanto desprezo do mundo buscavam este tesouro, esta preciosa margarita de que falamos), poucas nos dispomos para que o Senhor no-la faça encontrar. Porque quanto ao exterior, vamos bem para chegar ao que é preciso nas virtudes; mas para chegar aqui, temos muita necessidade, e não nos descuidar nem pouco nem muito. Por isso, minhas irmãs, agora é pedir ao Senhor, já que de alguma maneira podemos gozar do Céu na terra, que nos dê Seu favor para que não falhe por nossa culpa e nos mostre o caminho e dê forças na alma para cavar até achar este tesouro escondido, pois é verdade que está em nós mesmas, e isto queria eu dar a entender, se o Senhor for servido que o saiba fazer.
 
3. Disse «forças na alma», para que entendais que não fazem falta as do corpo a quem Deus Nosso Senhor não as dá; não impossibilita ninguém de adquirir Suas riquezas; contanto que cada um dê o que tiver, já se contenta. Bendito seja tão grande Deus. Mas olhai, filhas, que, para isto de que tratamos, não quer que vos fiqueis com nada: pouco ou muito, tudo o quer para Si, e conforme ao que entenderdes que tendes dado, ser-vos-ão feitas maiores ou menores mercês. Não há maior prova para entender se a nossa oração chega ou não à união. Não penseis que é coisa sonhada, como a oração passada. Digo sonhada, porque assim parece que está a alma como que adormecida, que nem parece que está bem a dormir nem se sente desperta. Aqui, estão todas adormecidas e bem adormecidas às coisas do mundo e a nós mesmas (porque, na verdade, fica-se como sem sentidos durante o pouco tempo que dura, nem se pode pensar, ainda que se queira), aqui não é preciso artifício para suspender o pensamento; 
 
4. até o amar - se o faz -, não entende como, nem o que é que ama, nem o que queria; enfim; como quem de todo está morto ao mundo para viver mais em Deus. E assim é uma morte saborosa, um arrancar de alma de todas as operações que pode ter, estando no corpo; deleitosa porque, ainda que de verdade pareça que a alma se aparta dele, é para melhor estar em Deus, e de tal maneira que até não sei se lhe fica vida para respirar (agora o estava pensando e parece-me que não, ao menos se o faz não se entende que o faz), todo o seu entendimento se quereria empregar em entender algo do que sente e, como não chegam suas forças, fica-se espantado de maneira que, se não se perde de todo, não meneia pé nem mão, como se costuma dizer duma pessoa que está tão desmaiada, que nos parece morta. Oh! segredos de Deus! Não me cansaria de procurar como vo-lo dar a entender, se pensasse acertar em alguma coisa, e assim direi mil desatinos, para se alguma vez atinar, louvemos muito ao Senhor.
 
5. Disse que não era coisa sonhada, porque na morada que fica dita, até que a experiência seja muita, fica a alma duvidosa do que foi aquilo: se foi ilusão, se estaria sonhando, se foi dado por Deus, ou se o demónio se transfigurou em anjo de luz. Fica com mil suspeitas e é bem que as tenha; porque - como disse -, até a própria natureza nos pode enganar ali alguma vez; pois, embora não haja tanto lugar para entrarem as coisas peçonhentas, umas lagartixas sim, porque são delgadas e por onde quer que seja se metem; e conquanto não façam dano, em especial se não fazem caso delas - como disse -, porque são pensamentos que procedem da imaginação e do que fica dito, importunam muitas vezes. Aqui, por delgadas que sejam as lagartixas não podem entrar nesta morada; porque nem há imaginação, nem memória nem entendimento que possa impedir este bem. E ousarei afirmar que, se é verdadeiramente união de Deus, não pode entrar o demónio nem fazer nenhum dano; porque está Sua Majestade tão junto e unido com a essência da alma, que ele não ousará aproximar-se, nem mesmo deve entender este segredo. E é claro; pois, se dizem que não entende o nosso pensamento, menos entenderia coisa tão secreta, que Deus nem a fia do nosso pensamento. Oh! grande bem, situação onde este maldito não nos faz mal! Assim fica a alma com tão grandes lucros, por Deus trabalhar nela sem que ninguém O estorve, nem nós mesmos! Que vos não dará Quem é tão amigo de dar e pode dar tudo o que quer?
 
6. Parece que vos deixo confusas dizendo se é união de Deus e que há outras uniões. E... se as há! Ainda que sejam em coisas vãs, quando cá se amam muito, também os transportará o demónio; mas não da maneira que Deus o faz nem com o deleite e satisfação e paz e gozo da alma. É sobre todos os gozos da terra, sobre todos os deleites e sobre todos os contentos, e mais ainda; pois, considerando onde se engendram, nada têm que ver estes contentos com os da terra, que é muito diferente seu sentir, como o tereis experimentado. Disse eu uma vez que é como se fosse nesta grosseria do corpo ou na medula e atinei bem, pois não sei como dizê-lo melhor.
 
7. Parece-me que ainda não vos vejo satisfeitas porque vos parecerá que vos podeis enganar, que este interior é coisa difícil de examinar; e, ainda que, para quem tenha passado por isto, basta o que fica dito, porque é grande a diferença, quero dar-vos um sinal claro, pelo qual não vos podeis enganar nem duvidar se foi de Deus, que Sua Majestade mo trouxe hoje à memória, e, a meu parecer, é o sinal certo. Sempre em coisas dificultosas, ainda que me pareça que entendo e digo a verdade, uso esta linguagem de que «me parece»; porque, se me enganar, estou bem preparada a acreditar no que disseram os que têm muitas letras. Porque, ainda que não tenham passado por estas coisas, têm um não sei quê, os grandes letrados, que, como Deus os tem para luz da Sua Igreja, quando é uma verdade, dá-lhes luz para que as admitam; e se não são dissipados, mas servos de Deus, nunca se espantam de Suas grandezas, pois bem têm entendido que Ele pode muito e muito mais. E, enfim, embora algumas coisas não sejam tão declaradas, outras devem achar escritas, por onde vêem que estas também podem suceder.
 
8. Disto tenho grandíssima experiência, e também a tenho de uns meios letrados espantadiços, que me custaram muito caro. Pelo menos, creio que, quem não crer que Deus pode muito mais e que teve e tem por bem de o comunicar algumas vezes às Suas criaturas, tem bem cerrada a porta para receber tais mercês. Por isso, irmãs, nunca isto vos aconteça, mas crede de Deus muito mais e mais e não ponhais os olhos em se são ruins ou bons aqueles a quem Deus as faz, pois Sua Majestade o sabe, como vos disse. Não temos de nos meter nisso, senão com simplicidade de coração e humildade servir a Sua Majestade e louvá-lO por suas obras e maravilhas.
 
9. Pois, voltando ao sinal que digo ser o verdadeiro, já vedes esta alma a quem Deus fez tonta de todo para melhor imprimir nela a verdadeira sabedoria, que nem vê, nem ouve, nem entende o tempo em que está assim, que sempre é breve, e até muito mais breve lhe parece a ela do que deve ser. Fixa-Se Deus a Si mesmo no interior daquela alma de modo que, quando volta a si, de nenhuma maneira pode duvidar que esteve em Deus e Deus nela. Com tanta firmeza lhe fica esta verdade, que, ainda que passem anos sem Deus voltar e fazer-lhe aquela mercê, nem lhe esquece nem pode duvidar que esteve assim. Isto, sem falar dos efeitos com que fica, dos quais falarei depois; isto é o que faz muito ao caso. 
 
10. Pois dir-me-eis: como viu e como entendeu isto, se não se vê nem se entende? Não digo que o viu então, senão que o vê depois claramente; e não porque seja visão, mas sim uma certeza que fica na alma, que só Deus a pode dar. Eu sei duma pessoa que não tinha chegado ao conhecimento que Deus estava em todas as coisas por presença e potência e essência e, por uma mercê que Deus lhe fez desta sorte, o veio a crer de tal maneira, que embora um meio letrado dos que tenho dito, a quem perguntou o modo como estava Deus em nós (ele sabia tão pouco como ela antes de Deus lho dar a entender), lhe disse que estava somente pela graça, ela tinha já tão fixa a verdade, que não acreditou e perguntou a outros que lhe disseram a verdade, com o que se consolou muito.
 
11. Não vos haveis de enganar parecendo-vos que esta certeza fica em forma corporal, como o Corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo está no Santíssimo Sacramento, ainda que não O vejamos; porque aqui não fica assim, mas só a Divindade. Pois, se o que não vimos, como nos fica com essa certeza? Isso não o sei eu, são obras Suas; mas sei que digo a verdade, e quem não ficar com esta certeza, não diria eu que é união de toda a alma com Deus, senão de alguma potência, ou outras muitas maneiras de mercês que Deus faz à alma. Em todas estas coisas não havemos de buscar razões para ver como foi; pois, se não chega o nosso entendimento a entendê-lo, para que nos queremos desvanecer? Basta ver que é todo poderoso Quem o faz, pois nada podemos, por mais diligências que façamos para o alcançar, senão que é Deus que o faz, não o queiramos entender.
 
12. Agora me lembro, acerca disto que digo, de nada contribuirmos da nossa parte, do que tendes ouvido que diz a Esposa nos Cantares: «Levou-me o Rei à adega do vinho» ou «meteu-me», creio que diz. E não diz que foi ela. E diz também que "andava buscando a seu Amado, por uma e outra parte". Esta, entendo eu é a adega onde nos quer meter o Senhor, quando quer e como quer; mas, por mais diligências  que façamos, não podemos entrar. Sua Majestade é Quem nos há-de meter e entrar Ele no centro da nossa alma; e, para melhor mostrar Suas maravilhas, não quer; que nisto tenhamos mais parte do que a da vontade que de todo se Lhe rendeu, nem que se Lhe abra a porta das potências e dos sentidos, pois todos estão adormecidos; mas entrar no centro da alma sem porta alguma, como entrou onde estavam Seus discípulos quando disse: « Pax vobis», e saiu do sepulcro sem levantar a pedra. Adiante vereis como Sua Majestade quer que O goze a alma em seu mesmo centro, e ainda muito mais do que aqui, na última morada.
 
13. Ó filhas! muito veremos se não quisermos ver mais que a nossa baixeza e miséria, e entender que não somos dignas de ser servas de um Senhor tão grande, que nem podemos alcançar Suas maravilhas! Seja Ele para sempre louvado, amen