Prossegue no mesmo. Declara a oração de união por uma comparação delicada. Diz os efeitos com que fica a alma. É muito para ter em conta.
1. Parecer-vos-á que já está dito tudo o que há a ver nesta morada, mas falta muito, porque - como disse - há mais e menos. Quanto ao que é união, não creio que saberei dizer mais; mas quando a alma a quem Deus faz estas mercês se dispõe, há muitas coisas a dizer do que o Senhor opera nelas. Algumas direi e do modo como ela fica. Para melhor o dar a entender, quero aproveitar-me duma comparação que é boa para este fim; e também para vermos como, embora nesta obra que faz o Senhor não possamos fazer nada, podemos fazer muito, dispondo-nos para que Sua Majestade nos faça esta mercê.
2. Já tereis ouvido as maravilhas de Deus no modo corno se cria a seda, que só Ele pode fazer semelhante invenção, e como, de uma semente, que é à maneira de pequenos grãos de pimenta (que eu nunca vi, mas ouvi-o dizer, e assim, se algo for torcido, não é minha a culpa), com o calor, em começando a haver folhas nas amoreiras, começa esta semente a viver; até que haja este mantimento de que se sustenta, está como morta. E com folhas de amoreira se criam, até que, depois de grandes, lhes põem uns ramitos e aí, com as boquitas, vão por si mesmas fiando a seda, e fazem uns casulos muito apertados onde se encerram e acabam esta larva, que é grande e feia, e sai do mesmo casulo uma borboletazinha branca, muito graciosa. Mas, se isto não se visse e no-lo contassem de outros tempos, quem o poderia crer? E com que razões poderíamos concluir que uma coisa tão sem razão como é uma lagarta ou uma abelha, seja tão diligente em trabalhar para nosso proveito e com tanta indústria, e a pobre lagartixa perca a vida na demanda? Para um pouco de meditação basta isto, irmãs, ainda que não vos diga mais, pois nisto podeis considerar as maravilhas e sabedoria do nosso Deus. Pois, que seria se conhecêssemos a propriedade de todas as coisas? De grande proveito é ocuparmo-nos em pensar estas grandezas alegrarmo-nos em ser esposas de Rei tão sábio e poderoso.
3. Tornemos ao que dizia. Então começa a ter vida esta lagarta quando, com o calor do Espírito Santo, se começa a aproveitar do auxilio geral que Deus nos dá a todas, e quando começa a aproveitar-se dos remédios que deixou na Sua Igreja, assim de como continuar com as confissões, como também com boas leituras e sermões, que são o remédio que pode ter uma alma que está morta em seu descuido e pecados e metida em ocasiões. Então começa a viver e vai-se sustentando nisto e em boas meditações, até estar crescida, que é o que a mim me faz ao caso, pois o resto pouco importa.
4. Crescida, pois, esta lagarta - que é o que fica dito no principio disto que escrevi - , começa a fabricar a seda e a edificar a casa onde há-de morrer. Esta casa quereria eu dar a entender aqui, que é Cristo. Em qualquer parte me parece ter lido ou ouvido que nossa vida está escondida em Cristo ou em Deus, o que é tudo um, ou que nossa vida é Cristo. Que isto seja ou não, pouco faz ao meu propósito.
5. Pois vedes aqui, filhas, o que podemos fazer com o favor de Deus: que Sua Majestade mesmo seja nossa morada, como o é na oração de união, edificando-a nós mesmas! Parece que quero dizer que podemos tirar e pôr alguma coisa em Deus, pois digo que Ele é a morada, e que a podemos fabricar para nos metermos nela. Oh! se o podemos! Não tirar ou acrescentar em Deus, mas sim tirar e acrescentar em nós, como fazem estas lagartixas; que não teremos ainda acabado de fazer nisto tudo quanto podemos, quando este trabalhito que não é nada, junte Deus com Sua grandeza, e lhe dê tão grande valor, que o mesmo Senhor seja o prémio desta obra. E assim como foi Ele quem fez quase tudo à Sua custa, assim também quer juntar nossos trabalhinhos com os grandes trabalhos que padeceu Sua Majestade; e que tudo seja uma só coisa.
6. Eia, pois, minhas filhas! demo-nos pressa em fazer este trabalho e a tecer este casulo, despojando-nos do nosso amor próprio e da nossa vontade, deixando de estar presas a qualquer coisa da terra, fazendo obras de penitência, oração, mortificação, obediência e tudo o mais que sabeis; assim fizéssemos como sabemos e somos ensinadas naquilo que havemos de fazer! Morra, morra este verme tal como o da seda em acabando de fazer aquilo para que foi criado, e vereis como vemos a Deus, e nos vemos tão metidas em Sua grandeza como está esta lagartita em seu casulo. Olhai que digo ver a Deus, assim como deixo dito que Ele se dá a sentir nesta maneira de união.
7. Vejamos, pois, o que sucede a esta lagarta, pois para isto é que tenho dito tudo o mais quando está nesta oração, bem morta está ao mundo, sai uma borboleta branca. Oh! grandeza de Deus! E como sai daqui uma alma por haver estado um pouquinho metida na grandeza de Deus e tão junta com Ele, que, a meu parecer, nunca chega a meia hora! Eu vos digo de verdade, que a mesma alma não se conhece a si mesma, porque a diferença que há de uma lagarta feia para uma borboletazinha branca, a mesma diferença há aqui. Não sabe como pode merecer tanto bem - de onde lhe pôde vir, quero dizer, que bem sabe que o não merece -; vê-se com um desejo de louvar ao Senhor que queria desfazer-se e morrer por Ele mil mortes. Logo começa a ter o de padecer grandes trabalhos, sem poder fazer outra coisa. Os desejos de penitência grandíssimos, o de solidão, o de que todos conheçam a Deus; e daqui lhe vem uma grande pena de ver que é ofendido. E, ainda que na morada que segue se tratará mais destas coisas em particular, embora o que há nesta morada e na que segue depois seja quase tudo um, é mui diferente a força dos efeitos; porque - como disse -, se depois que Deus faz chegar uma alma até aqui, ela se esforça a ir por diante, verá grandes coisas.
8. Oh! Ver o desassossego desta borboletazinha, apesar de nunca ter estado mais quieta e sossegada em sua vida, é coisa para louvar a Deus! Não sabe onde poisar e tomar assento. Depois de o ter tido tal, tudo, da terra a descontenta, em especial quando são muitas as vezes que Deus lhe dá deste vinho; quase de cada vez fica com novos. lucros. Já não tem em nada as obras que fazia sendo lagarta, que era tecer a pouco e pouco o casulo; nasceram-lhe asas. Como se há-de contentar, podendo voar, andando passo a passo? Tudo lhe parece pouco de quanto pode fazer por Deus, segundo os seus desejos. Não tem por muito o que passaram os santos, entendendo já por experiência como ajuda o Senhor e transforma uma alma que já não parece ela, nem ainda sua figura. Pois a fraqueza que antes parecia ter para fazer penitência, já a encontra forte; o apego que tinha aos parentes, amigos ou fazenda (que nem lhe bastavam actos, nem determinações, nem o querer apartar-se, pois antes lhe parecia então que se achava mais presa), já é de maneira que lhe pesa ver-se obrigada àquilo que, para não ir contra Deus, é preciso fazer. Tudo a cansa, porque provou que o verdadeiro descanso não o podem dar as criaturas.
9. Parece que me alongo, e muito mais poderia dizer, e a quem Deus tiver feito esta mercê verá que fico aquém; e assim não é de admirar que esta borboleta busque novo assento, assim como se acha nova e estranha às coisas da terra. Mas, aonde irá a pobrezita? Voltar a donde saiu, não pode, que - como está dito -, não está na nossa mão, por mais que façamos, até que Deus seja servido de nos tornar a fazer esta mercê. Oh! Senhor, e que novos trabalhos começam para esta alma! Quem dissera tal, depois de mercê tão subida? Enfim, de uma maneira ou de outra, há-de haver cruz enquanto vivemos. E quem disser que, depois que chegou aqui, sempre está com descanso e regalo, diria eu que nunca chegou, e não foi senão algum gosto, se é que entrou na morada anterior, e ajudado pela fraqueza natural; e até, talvez, pelo demônio, que lhe dá paz para lhe fazer depois muito maior guerra.
10. Não quero dizer que não tenham paz os que chegam aqui, que atêm, e muito grande; porque os mesmos trabalhos são de tanto valor e de tão boa raiz, que, embora muito grandes, deles mesmos sai a paz e o contentamento. Do mesmo descontentamento que dão as coisas do mundo, nasce um desejo tão penoso de sair dele, que, se algum alívio tem, é pensar que Deus quer que viva neste desterro; e não basta, porque ainda a alma, com todos os lucros, não está tão rendida à vontade de Deus, como se verá adiante, conquanto não deixe de se conformar; mas é com um grande sentimento, porque não pode mais, pois mais não lhe foi dado, e com muitas lágrimas. Cada vez que tem oração é esta a sua pena, que procede, talvez em certo modo, da bem grande pena que lhe dá o ver que é Deus ofendido e pouco estimado neste mundo e as muitas almas que se perdem, tanto de hereges, como de mouros. Conquanto as que mais a lastimam sejam as dos cristãos, pois ainda que vê que é grande a misericórdia de Deus, e por mal que vivam se podem emendar e salvar, teme todavia que se condenem muitos.
11. Oh! grandeza de Deus! Poucos anos antes, e ainda talvez há dias, estava esta alma que não se lembrava senão de si! Quem a meteu em tão penosos cuidados? Embora queiramos ter sobre isto muitos anos de meditação, tão penosamente como o sente agora esta alma, não o poderemos sentir. Mas, valha-me Deus! se muitos dias e anos eu procuro exercitar-me a pensar no grande mal que é o ser Deus ofendido e que estes que se condenam são filhos Seus e irmãos meus, e os perigos em que vivemos, e quão bem nos vai sair desta miserável vida, não bastará? Ai não, filhas; pois não é a pena que se sente aqui como as de cá da terra. Esta bem a poderíamos ter com o favor do Senhor, pensando muito nisto; mas não chega ao íntimo das entranhas, como aqui, que parece despedaça uma alma e o mói, sem ela o procurar, e ainda às vezes sem o querer. Pois que é isto? Donde procede? Eu vo-lo direi.
12. Não tendes ouvido -pois já o disse aqui de outra vez, embora não a este propósito - da Esposa, que «a meteu Deus na adega do vinho, e ordenou nela a caridade?». Pois assim é isto: como aquela alma já se entrega em Suas mãos, e o grande amor a tem tão rendida, não sabe nem quer mais senão que Deus faça dela o que quiser (que jamais fará Deus esta mercê, penso eu, a não ser à alma a quem já toma por muito Sua), e quer que, sem que ela entenda como, saia dali marcada com o Seu selo. Porque verdadeiramente a alma ali não faz mais do que a cera quando alguém lhe imprime o selo, pois a cera não o imprime em si mesma; somente está disposta, digo, branda; e ainda, para esta disposição, tão-pouco é ela que se abranda, mas fica quieta e o consente. Oh! bondade de Deus, que tudo há-de ser à Vossa custa! Só quereis a nossa vontade e que não haja impedimento na cera.
13. Pois vede, irmãs, o que o nosso Deus faz aqui para que esta alma já se conheça por Sua; dá-lhe do que tem, que é o que teve Seu Filho nesta vida: não nos pode fazer maior mercê. Quem, mais do que Ele, devia querer sair desta vida? E assim o disse Sua Majestade na Ceia: «Com desejo desejei». - Pois como, Senhor, não se Vos pôs diante a trabalhosa morte de que havíeis de morrer, tão penosa e espantosa? - Não, porque o grande amor que tenho e o desejo de que se salvem as almas sobrepuja, sem comparação, essas penas; e as grandíssimas que padeci e padeço, desde que estou no mundo, são bastantes para ter as outras em nada, em sua comparação.
14. É assim que muitas vezes tenho meditado nisto, e sabendo eu o tormento que passa e tem passado certa alma que conheço de ver ofender a Nosso Senhor, tormento que lhe é tão insofrível, que muito mais quisera ela morrer que sofrê-lo, e pensa, se uma alma com tão pouquíssima caridade, comparada com a de Cristo, que se podia dizer quase nenhuma em comparação, sentia este tormento tão insofrível, qual não seria o sentimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, e que vida não deveria Ele passar, pois todas as coisas Lhe eram presentes e estava sempre vendo as grandes ofensas que se faziam a Seu Pai? Sem dúvida alguma, eu creio que foram muito maiores que as da Sua Sacratíssima Paixão, porque então já via o fim destes trabalhos, e com isto, e com o contento de ver o nosso remédio com Sua morte e mostrar o amor que tinha a Seu Pai em padecer tanto por Ele; se moderariam as dores, tal como acontece cá na terra aos que, com a força do amor, fazem grandes penitências, que quase não as sentem, antes quereriam fazer mais e mais, e tudo lhes parece pouco. Pois, que seria este sentimento em Sua Majestade, vendo-se em tão grande ocasião de mostrar a Seu Pai quão perfeitamente cumpria em obedecer-Lhe, e com o amor do próximo? Oh! grande deleite, padecer em fazer a vontade de Deus! Mas, o ver tão de contínuo tantas ofensas feitas a Sua Majestade, e tantas almas irem ao inferno, tenho-o por coisa tão dura que, creio, se não fora mais que homem, um dia daquela pena bastava para acabar muitas vidas, quanto mais uma.
Prossegue no mesmo. Declara a oração de união por uma comparação delicada. Diz os efeitos com que fica a alma. É muito para ter em conta.
1. Parecer-vos-á que já está dito tudo o que há a ver nesta morada, mas falta muito, porque - como disse - há mais e menos. Quanto ao que é união, não creio que saberei dizer mais; mas quando a alma a quem Deus faz estas mercês se dispõe, há muitas coisas a dizer do que o Senhor opera nelas. Algumas direi e do modo como ela fica. Para melhor o dar a entender, quero aproveitar-me duma comparação que é boa para este fim; e também para vermos como, embora nesta obra que faz o Senhor não possamos fazer nada, podemos fazer muito, dispondo-nos para que Sua Majestade nos faça esta mercê.
2. Já tereis ouvido as maravilhas de Deus no modo corno se cria a seda, que só Ele pode fazer semelhante invenção, e como, de uma semente, que é à maneira de pequenos grãos de pimenta (que eu nunca vi, mas ouvi-o dizer, e assim, se algo for torcido, não é minha a culpa), com o calor, em começando a haver folhas nas amoreiras, começa esta semente a viver; até que haja este mantimento de que se sustenta, está como morta. E com folhas de amoreira se criam, até que, depois de grandes, lhes põem uns ramitos e aí, com as boquitas, vão por si mesmas fiando a seda, e fazem uns casulos muito apertados onde se encerram e acabam esta larva, que é grande e feia, e sai do mesmo casulo uma borboletazinha branca, muito graciosa. Mas, se isto não se visse e no-lo contassem de outros tempos, quem o poderia crer? E com que razões poderíamos concluir que uma coisa tão sem razão como é uma lagarta ou uma abelha, seja tão diligente em trabalhar para nosso proveito e com tanta indústria, e a pobre lagartixa perca a vida na demanda? Para um pouco de meditação basta isto, irmãs, ainda que não vos diga mais, pois nisto podeis considerar as maravilhas e sabedoria do nosso Deus. Pois, que seria se conhecêssemos a propriedade de todas as coisas? De grande proveito é ocuparmo-nos em pensar estas grandezas alegrarmo-nos em ser esposas de Rei tão sábio e poderoso.
3. Tornemos ao que dizia. Então começa a ter vida esta lagarta quando, com o calor do Espírito Santo, se começa a aproveitar do auxilio geral que Deus nos dá a todas, e quando começa a aproveitar-se dos remédios que deixou na Sua Igreja, assim de como continuar com as confissões, como também com boas leituras e sermões, que são o remédio que pode ter uma alma que está morta em seu descuido e pecados e metida em ocasiões. Então começa a viver e vai-se sustentando nisto e em boas meditações, até estar crescida, que é o que a mim me faz ao caso, pois o resto pouco importa.
4. Crescida, pois, esta lagarta - que é o que fica dito no principio disto que escrevi - , começa a fabricar a seda e a edificar a casa onde há-de morrer. Esta casa quereria eu dar a entender aqui, que é Cristo. Em qualquer parte me parece ter lido ou ouvido que nossa vida está escondida em Cristo ou em Deus, o que é tudo um, ou que nossa vida é Cristo. Que isto seja ou não, pouco faz ao meu propósito.
5. Pois vedes aqui, filhas, o que podemos fazer com o favor de Deus: que Sua Majestade mesmo seja nossa morada, como o é na oração de união, edificando-a nós mesmas! Parece que quero dizer que podemos tirar e pôr alguma coisa em Deus, pois digo que Ele é a morada, e que a podemos fabricar para nos metermos nela. Oh! se o podemos! Não tirar ou acrescentar em Deus, mas sim tirar e acrescentar em nós, como fazem estas lagartixas; que não teremos ainda acabado de fazer nisto tudo quanto podemos, quando este trabalhito que não é nada, junte Deus com Sua grandeza, e lhe dê tão grande valor, que o mesmo Senhor seja o prémio desta obra. E assim como foi Ele quem fez quase tudo à Sua custa, assim também quer juntar nossos trabalhinhos com os grandes trabalhos que padeceu Sua Majestade; e que tudo seja uma só coisa.
6. Eia, pois, minhas filhas! demo-nos pressa em fazer este trabalho e a tecer este casulo, despojando-nos do nosso amor próprio e da nossa vontade, deixando de estar presas a qualquer coisa da terra, fazendo obras de penitência, oração, mortificação, obediência e tudo o mais que sabeis; assim fizéssemos como sabemos e somos ensinadas naquilo que havemos de fazer! Morra, morra este verme tal como o da seda em acabando de fazer aquilo para que foi criado, e vereis como vemos a Deus, e nos vemos tão metidas em Sua grandeza como está esta lagartita em seu casulo. Olhai que digo ver a Deus, assim como deixo dito que Ele se dá a sentir nesta maneira de união.
7. Vejamos, pois, o que sucede a esta lagarta, pois para isto é que tenho dito tudo o mais quando está nesta oração, bem morta está ao mundo, sai uma borboleta branca. Oh! grandeza de Deus! E como sai daqui uma alma por haver estado um pouquinho metida na grandeza de Deus e tão junta com Ele, que, a meu parecer, nunca chega a meia hora! Eu vos digo de verdade, que a mesma alma não se conhece a si mesma, porque a diferença que há de uma lagarta feia para uma borboletazinha branca, a mesma diferença há aqui. Não sabe como pode merecer tanto bem - de onde lhe pôde vir, quero dizer, que bem sabe que o não merece -; vê-se com um desejo de louvar ao Senhor que queria desfazer-se e morrer por Ele mil mortes. Logo começa a ter o de padecer grandes trabalhos, sem poder fazer outra coisa. Os desejos de penitência grandíssimos, o de solidão, o de que todos conheçam a Deus; e daqui lhe vem uma grande pena de ver que é ofendido. E, ainda que na morada que segue se tratará mais destas coisas em particular, embora o que há nesta morada e na que segue depois seja quase tudo um, é mui diferente a força dos efeitos; porque - como disse -, se depois que Deus faz chegar uma alma até aqui, ela se esforça a ir por diante, verá grandes coisas.
8. Oh! Ver o desassossego desta borboletazinha, apesar de nunca ter estado mais quieta e sossegada em sua vida, é coisa para louvar a Deus! Não sabe onde poisar e tomar assento. Depois de o ter tido tal, tudo, da terra a descontenta, em especial quando são muitas as vezes que Deus lhe dá deste vinho; quase de cada vez fica com novos. lucros. Já não tem em nada as obras que fazia sendo lagarta, que era tecer a pouco e pouco o casulo; nasceram-lhe asas. Como se há-de contentar, podendo voar, andando passo a passo? Tudo lhe parece pouco de quanto pode fazer por Deus, segundo os seus desejos. Não tem por muito o que passaram os santos, entendendo já por experiência como ajuda o Senhor e transforma uma alma que já não parece ela, nem ainda sua figura. Pois a fraqueza que antes parecia ter para fazer penitência, já a encontra forte; o apego que tinha aos parentes, amigos ou fazenda (que nem lhe bastavam actos, nem determinações, nem o querer apartar-se, pois antes lhe parecia então que se achava mais presa), já é de maneira que lhe pesa ver-se obrigada àquilo que, para não ir contra Deus, é preciso fazer. Tudo a cansa, porque provou que o verdadeiro descanso não o podem dar as criaturas.
9. Parece que me alongo, e muito mais poderia dizer, e a quem Deus tiver feito esta mercê verá que fico aquém; e assim não é de admirar que esta borboleta busque novo assento, assim como se acha nova e estranha às coisas da terra. Mas, aonde irá a pobrezita? Voltar a donde saiu, não pode, que - como está dito -, não está na nossa mão, por mais que façamos, até que Deus seja servido de nos tornar a fazer esta mercê. Oh! Senhor, e que novos trabalhos começam para esta alma! Quem dissera tal, depois de mercê tão subida? Enfim, de uma maneira ou de outra, há-de haver cruz enquanto vivemos. E quem disser que, depois que chegou aqui, sempre está com descanso e regalo, diria eu que nunca chegou, e não foi senão algum gosto, se é que entrou na morada anterior, e ajudado pela fraqueza natural; e até, talvez, pelo demônio, que lhe dá paz para lhe fazer depois muito maior guerra.
10. Não quero dizer que não tenham paz os que chegam aqui, que atêm, e muito grande; porque os mesmos trabalhos são de tanto valor e de tão boa raiz, que, embora muito grandes, deles mesmos sai a paz e o contentamento. Do mesmo descontentamento que dão as coisas do mundo, nasce um desejo tão penoso de sair dele, que, se algum alívio tem, é pensar que Deus quer que viva neste desterro; e não basta, porque ainda a alma, com todos os lucros, não está tão rendida à vontade de Deus, como se verá adiante, conquanto não deixe de se conformar; mas é com um grande sentimento, porque não pode mais, pois mais não lhe foi dado, e com muitas lágrimas. Cada vez que tem oração é esta a sua pena, que procede, talvez em certo modo, da bem grande pena que lhe dá o ver que é Deus ofendido e pouco estimado neste mundo e as muitas almas que se perdem, tanto de hereges, como de mouros. Conquanto as que mais a lastimam sejam as dos cristãos, pois ainda que vê que é grande a misericórdia de Deus, e por mal que vivam se podem emendar e salvar, teme todavia que se condenem muitos.
11. Oh! grandeza de Deus! Poucos anos antes, e ainda talvez há dias, estava esta alma que não se lembrava senão de si! Quem a meteu em tão penosos cuidados? Embora queiramos ter sobre isto muitos anos de meditação, tão penosamente como o sente agora esta alma, não o poderemos sentir. Mas, valha-me Deus! se muitos dias e anos eu procuro exercitar-me a pensar no grande mal que é o ser Deus ofendido e que estes que se condenam são filhos Seus e irmãos meus, e os perigos em que vivemos, e quão bem nos vai sair desta miserável vida, não bastará? Ai não, filhas; pois não é a pena que se sente aqui como as de cá da terra. Esta bem a poderíamos ter com o favor do Senhor, pensando muito nisto; mas não chega ao íntimo das entranhas, como aqui, que parece despedaça uma alma e o mói, sem ela o procurar, e ainda às vezes sem o querer. Pois que é isto? Donde procede? Eu vo-lo direi.
12. Não tendes ouvido -pois já o disse aqui de outra vez, embora não a este propósito - da Esposa, que «a meteu Deus na adega do vinho, e ordenou nela a caridade?». Pois assim é isto: como aquela alma já se entrega em Suas mãos, e o grande amor a tem tão rendida, não sabe nem quer mais senão que Deus faça dela o que quiser (que jamais fará Deus esta mercê, penso eu, a não ser à alma a quem já toma por muito Sua), e quer que, sem que ela entenda como, saia dali marcada com o Seu selo. Porque verdadeiramente a alma ali não faz mais do que a cera quando alguém lhe imprime o selo, pois a cera não o imprime em si mesma; somente está disposta, digo, branda; e ainda, para esta disposição, tão-pouco é ela que se abranda, mas fica quieta e o consente. Oh! bondade de Deus, que tudo há-de ser à Vossa custa! Só quereis a nossa vontade e que não haja impedimento na cera.
13. Pois vede, irmãs, o que o nosso Deus faz aqui para que esta alma já se conheça por Sua; dá-lhe do que tem, que é o que teve Seu Filho nesta vida: não nos pode fazer maior mercê. Quem, mais do que Ele, devia querer sair desta vida? E assim o disse Sua Majestade na Ceia: «Com desejo desejei». - Pois como, Senhor, não se Vos pôs diante a trabalhosa morte de que havíeis de morrer, tão penosa e espantosa? - Não, porque o grande amor que tenho e o desejo de que se salvem as almas sobrepuja, sem comparação, essas penas; e as grandíssimas que padeci e padeço, desde que estou no mundo, são bastantes para ter as outras em nada, em sua comparação.
14. É assim que muitas vezes tenho meditado nisto, e sabendo eu o tormento que passa e tem passado certa alma que conheço de ver ofender a Nosso Senhor, tormento que lhe é tão insofrível, que muito mais quisera ela morrer que sofrê-lo, e pensa, se uma alma com tão pouquíssima caridade, comparada com a de Cristo, que se podia dizer quase nenhuma em comparação, sentia este tormento tão insofrível, qual não seria o sentimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, e que vida não deveria Ele passar, pois todas as coisas Lhe eram presentes e estava sempre vendo as grandes ofensas que se faziam a Seu Pai? Sem dúvida alguma, eu creio que foram muito maiores que as da Sua Sacratíssima Paixão, porque então já via o fim destes trabalhos, e com isto, e com o contento de ver o nosso remédio com Sua morte e mostrar o amor que tinha a Seu Pai em padecer tanto por Ele; se moderariam as dores, tal como acontece cá na terra aos que, com a força do amor, fazem grandes penitências, que quase não as sentem, antes quereriam fazer mais e mais, e tudo lhes parece pouco. Pois, que seria este sentimento em Sua Majestade, vendo-se em tão grande ocasião de mostrar a Seu Pai quão perfeitamente cumpria em obedecer-Lhe, e com o amor do próximo? Oh! grande deleite, padecer em fazer a vontade de Deus! Mas, o ver tão de contínuo tantas ofensas feitas a Sua Majestade, e tantas almas irem ao inferno, tenho-o por coisa tão dura que, creio, se não fora mais que homem, um dia daquela pena bastava para acabar muitas vidas, quanto mais uma.