QUINTA MORADA - CAPÍTULO 3

QUINTA MORADA - CAPÍTULO 3
Continua a mesma matéria. Fala de outra maneira de união que pode alcançar a alma com o favor de Deus e quanto importa para isto o amor do próximo. É muito proveitoso. 
1. Pois voltemos à nossa pombinha e vejamos alguma coisa do que Deus dá neste estado. Sempre se entende que há-de procurar ir adiante no serviço de Nosso Senhor e no  conhecimento próprio; porque, se não faz mais do que receber esta mercê e, como coisa já segura, se descuida em sua vida e torce o caminho do Céu, que são os Mandamentos, acontecer-lhe-á como à borboleta que sai do bicho da seda: que deita a semente para que se produzam outras e ela fica morta para sempre. Digo que deita a semente, porque tenho para mim que Deus quer que uma mercê tão grande não seja dada debalde; mas, já que a alma não se aproveita dela para si, aproveite a outros. Porque, como fica com estes desejos e virtudes todo o tempo em que perdura no bem, faz aproveitar a outras almas e de seu calor lhes comunica calor; e ainda quando o tem já perdido, acontece ficar com essa ânsia de que aproveitem outros, e gosta de dar a entender as mercês que Deus faz a quem O ama e serve.
2. Eu conheci uma pessoa a quem lhe acontecia assim; que estando muito perdida, gostava de que se aproveitassem outras com as mercês que Deus lhe tinha feito e mostrar o caminho de oração às que não o entendiam, e fez-lhes muito e muito proveito. Depois voltou o Senhor a dar luz. Verdade é que ainda não tinha os efeitos que ficam ditos. Mas, quantos deve haver, que os chama o Senhor ao apostolado, como a Judas, comunicando com eles, e os chama para os fazer reis, como a Saul e depois, por sua culpa se perdem! Donde tiraremos, irmãs, que, para ir merecendo mais e mais e não nos perdermos como estes, a segurança que podemos ter é a obediência e não se desviar da lei de Deus; digo, aqueles a quem Ele fizer semelhantes mercês, e mesmo a todos.
3. Parece-me que fica um tanto obscuro, apesar de tudo quanto tenho dito desta morada. Pois há tanto lucro em entrar nela, bom será que não pareça ficarem sem esperança aqueles a quem o Senhor não dá coisas tão sobrenaturais; pois a verdadeira união se pode muito bem alcançar, com o favor de Nosso Senhor, se nós nos esforçamos em procurá-la, não tendo a vontade senão atada com o que for a vontade de Deus. Oh! Quantos haverá que digamos isto e nos pareça que não queremos outra coisa e morreríamos por esta verdade, como creio já ter dito! Pois, eu vos digo e di-lo-ei muitas vezes, que, quando assim for, haveis alcançado esta mercê do Senhor e nada se vos dê desta outra união regalada que fica dita; pois o que há de maior preço nela, é o proceder desta que agora digo; nem tenhais pena por não poder chegar à que fica dita, se não é muito certa a união da nossa vontade estar resignada na de Deus. Oh! que união esta para desejar! Venturosa a alma que a tiver alcançado, pois viverá nesta vida com descanso e na outra também; porque nenhuma coisa dos sucessos da terra a afligirá, a não ser que se veja em algum perigo de perder a Deus ou ver que Ele é ofendido: nem enfermidade, nem pobreza, nem mortes, a não ser de quem há-de fazer falta na Igreja de Deus, pois bem vê esta alma que Ele sabe melhor o que faz, do que ela o deseja.
4. Deveis notar que há penas e penas; porque há algumas penas produzidas de súbito pela natureza, e do mesmo modo os contentamentos, e até da caridade apiedando-se dos próximos, como fez Nosso Senhor quando ressuscitou a Lázaro; e estas não impedem a união com a vontade de Deus, nem tão-pouco perturbam a alma com uma paixão inquieta, desassossegada, que dura muito. Estas penas passam depressa; pois, como disse dos gozos na oração, parece que não chegam ao fundo da alma, senão a estes sentidos e potências. Andam por estas moradas anteriores, mas não entram na que está por dizer em último lugar, pois, para isto é preciso o que fica dito A da suspensão das potências. Poderoso é o Senhor para enriquecer as almas por muitos caminhos e trazê-las a estas moradas, e sem ser pelo atalho que fica dito. 
5. Mas adverti bem nisto, filhas: é necessário que morra a lagarta, e mais à vossa custa; porque ali ajuda muito para morrer o ver-se em vida tão nova; aqui é mister que, vivendo nesta, a matemos nós mesmas. Eu vos confesso que será com muito mais trabalho, mas tem-se o seu preço, e assim será maior o galardão, se sairdes com vitória; quanto a ser possível, não há que duvidar, logo que haja união verdadeira com a vontade de Deus. Esta é a união que toda a minha vida tenho desejado; esta é a que peço sempre a Nosso Senhor e a mais clara e segura.
6. Mas, ai de nós, que poucos devemos chegar a ela!, embora quem se guarda de ofender ao Senhor e entrou em religião lhe pareça que tudo está feito. Oh! ainda ficam umas lagartas que não se dão a conhecer, até que, como a que roeu a hera de Jonas, nos roam as virtudes com um amor próprio, uma própria estimação, um julgar os próximos, embora seja em poucas coisas, uma falta de caridade com eles não lhes querendo como a nós mesmos: ainda que, arrastando-nos, cumprimos com a obrigação, para não ser pecado, não chegamos nem de longe ao que deve ser para estarmos de todo unidas com a vontade de Deus.
7. O que pensais, filhas, que é a Sua vontade? Que sejamos perfeitas, para sermos um com Ele e com o Pai, como Sua Majestade o pediu. Olhai quanto nos falta para chegarmos a isto! Digo-vos que estou escrevendo isto com grande pena de me ver tão longe e tudo por minha culpa. E não é preciso o Senhor fazer-nos grandes regalos para isso; basta o que nos deu, dando-nos o Seu Filho, para nos ensinar o caminho. Não penseis que está a coisa em que, se morre meu pai ou irmão, eu me conforme tanto com a vontade de Deus que o não sinta; e se me vierem trabalhos e enfermidades, sofrê-los com contentamento. Bom é, e às vezes consiste em discrição, Iporque mais não podemos e fazemos da necessidade virtude. Quantas coisas destas faziam os filósofos, ou ainda que não seja destas, outras, por terem muito saber! Aqui, só estas duas nos pede o Senhor: amor de Sua Majestade e do próximo; é no que temos de trabalhar. Guardando-as com perfeição, fazemos a Sua vontade, e assim estaremos unidas com Ele. Mas, quão longe estamos de fazer como devemos a tão grande Deus estas duas coisas, como disse! Praza a Sua Majestade nos dê graça, para que mereçamos chegar a este estado, que em nossa mão está, se quisermos.
8. O sinal mais certo que há, a meu parecer, para ver se guardamos estas duas coisas, é guardar bem a do amor ao próximo; porque, se amamos a Deus não se pode saber, embora haja grandes indícios para entender que O amamos, mas o amor do próximo, sim. E estai certas que, quanto mais neste vos virdes aproveitadas, mais o estais no amor de Deus; porque é tão grande o que Sua Majestade nos tem, que em paga do que temos ao próximo, fará crescer o que temos a Sua Majestade por mil maneiras. Disto não posso eu duvidar.
9. Importa-nos muito andar com grande advertência, vendo como andamos nisto, que, se é com muita perfeição, temos tudo feito; porque eu creio que, segundo é mau o nosso natural, não chegaremos a ter com perfeição o amor do próximo, se não nascer de raiz do amor de Deus. Pois tanto nos importa isto, irmãs, procuremos ir entendendo como vamos neste ponto, mesmo em coisas pequenas, não fazendo caso de umas muito grandes, que assim por junto nos vêm na oração, parecendonos que faremos e aconteceremos por amor dos próximos e por uma só alma que se salve; porque, se as obras não correspondem, não é de crer que o faremos. Assim digo também da humildade e de todas as virtudes. São grandes os ardis do demónio que, para nos fazer crer que temos alguma, não a tendo, dará mil voltas ao inferno. E tem razão, porque fará muito dano, pois estas virtudes fingidas nunca vêm sem alguma vanglória, como são de tal raiz; assim como as que Deus dá, estão livres dela e de soberba.
10. Eu gosto, algumas vezes, de ver umas almas que, quando estão em oração, lhes parece que quereriam ser abatidas e publicamente afrontadas por Deus, e depois encobririam uma falta pequena, se pudessem, ou, se não a fizeram, lha atribuem; Deus nos livre! Pois veja bem quem isto não sofre, para não fazer caso do que. a sós determinou a seu parecer; que de verdade não foi determinação de vontade, pois quando esta é verdadeira, é outra coisa; mas sim alguma imaginação, pois nesta faz o demónio seus assaltos e enganos; e a mulheres, ou gente sem letras, poderá fazer muitos, porque não sabemos entender as diferenças entre as potências e a imaginação e outras mil coisas que há interiores. Ó irmãs, como se vê claramente onde está deveras o amor do próximo, em algumas de vós, e naquelas em que não está com esta perfeição! Se entendêsseis o que nos importa esta virtude, não faríeis outro estudo.
11. Quando vejo algumas muito diligentes em entender a oração que têm e muito encapotadas quando estão nela, que parece não ousam bulir nem menear o pensamento, para que não se lhes vá um pouquito do gosto e devoção que tiveram, faz-me ver quão pouco entendem do caminho por onde se alcança a união. E pensam que ali está todo o negócio. Mas não, irmãs, não; obras quer o Senhor; e, se vês uma enferma a quem podes dar algum alívio, não se te dê nada de perder essa devoção e te compadeças dela; e se tem alguma dor, te doa a ti também; e se for preciso, jejua, para que ela coma, não tanto por ela, mas porque sabes que teu Senhor quer isso. Esta é a verdadeira união com Sua vontade; e se vires louvar muito a uma pessoa, te alegres muito mais do que se te louvassem a ti. Isto, na verdade, fácil é; pois se há humildade, antes terá pena de se ver louvada. E esta alegria por se conhecerem as virtudes das irmãs é grande coisa, e quando virmos alguma falta em alguma, senti-la como se fosse em nós e encobri-la.
12. Muito disse noutras partes sobre isto, porque vejo, irmãs, que, se nisto houver quebra, estamos perdidas. Praza ao Senhor nunca a haja; logo que assim seja, eu vos digo que não deixareis de alcançar de Sua Majestade a união que fica dita. Quanto vos virdes carecidas nisto, ainda que tenhais devoção e regalos e alguma suspensãozita na oração de quietude, e vos pareça que já haveis chegado (que a algumas logo lhes parecerá que está tudo feito), crede-me que não chegastes à união e pedi a Nosso Senhor que vos dê com perfeição este amor do próximo e deixai fazer a Sua Majestade, que Ele vos dará mais do que sabeis desejar, desde que vos esforceis e procureis isto em tudo o que puderdes; e forçar vossa vontade para que se faça em tudo a das irmãs, embora percais do vosso direito, ou esquecer o vosso bem pelo delas, por mais contradições que vos faça o vosso natural; e procurar tomar para vós o trabalho para o tirar ao próximo, quando se oferecer. Não penseis que isto não vos há-de custar e que o haveis de achar já feito. Olhai o que custou a nosso Esposo o amor que nos teve: para nos livrar da morte, a padeceu tão penosa como a morte na Cruz. 
Continua a mesma matéria. Fala de outra maneira de união que pode alcançar a alma com o favor de Deus e quanto importa para isto o amor do próximo. É muito proveitoso. 
 
1. Pois voltemos à nossa pombinha e vejamos alguma coisa do que Deus dá neste estado. Sempre se entende que há-de procurar ir adiante no serviço de Nosso Senhor e no  conhecimento próprio; porque, se não faz mais do que receber esta mercê e, como coisa já segura, se descuida em sua vida e torce o caminho do Céu, que são os Mandamentos, acontecer-lhe-á como à borboleta que sai do bicho da seda: que deita a semente para que se produzam outras e ela fica morta para sempre. Digo que deita a semente, porque tenho para mim que Deus quer que uma mercê tão grande não seja dada debalde; mas, já que a alma não se aproveita dela para si, aproveite a outros. Porque, como fica com estes desejos e virtudes todo o tempo em que perdura no bem, faz aproveitar a outras almas e de seu calor lhes comunica calor; e ainda quando o tem já perdido, acontece ficar com essa ânsia de que aproveitem outros, e gosta de dar a entender as mercês que Deus faz a quem O ama e serve.
 
2. Eu conheci uma pessoa a quem lhe acontecia assim; que estando muito perdida, gostava de que se aproveitassem outras com as mercês que Deus lhe tinha feito e mostrar o caminho de oração às que não o entendiam, e fez-lhes muito e muito proveito. Depois voltou o Senhor a dar luz. Verdade é que ainda não tinha os efeitos que ficam ditos. Mas, quantos deve haver, que os chama o Senhor ao apostolado, como a Judas, comunicando com eles, e os chama para os fazer reis, como a Saul e depois, por sua culpa se perdem! Donde tiraremos, irmãs, que, para ir merecendo mais e mais e não nos perdermos como estes, a segurança que podemos ter é a obediência e não se desviar da lei de Deus; digo, aqueles a quem Ele fizer semelhantes mercês, e mesmo a todos.
 
3. Parece-me que fica um tanto obscuro, apesar de tudo quanto tenho dito desta morada. Pois há tanto lucro em entrar nela, bom será que não pareça ficarem sem esperança aqueles a quem o Senhor não dá coisas tão sobrenaturais; pois a verdadeira união se pode muito bem alcançar, com o favor de Nosso Senhor, se nós nos esforçamos em procurá-la, não tendo a vontade senão atada com o que for a vontade de Deus. Oh! Quantos haverá que digamos isto e nos pareça que não queremos outra coisa e morreríamos por esta verdade, como creio já ter dito! Pois, eu vos digo e di-lo-ei muitas vezes, que, quando assim for, haveis alcançado esta mercê do Senhor e nada se vos dê desta outra união regalada que fica dita; pois o que há de maior preço nela, é o proceder desta que agora digo; nem tenhais pena por não poder chegar à que fica dita, se não é muito certa a união da nossa vontade estar resignada na de Deus. Oh! que união esta para desejar! Venturosa a alma que a tiver alcançado, pois viverá nesta vida com descanso e na outra também; porque nenhuma coisa dos sucessos da terra a afligirá, a não ser que se veja em algum perigo de perder a Deus ou ver que Ele é ofendido: nem enfermidade, nem pobreza, nem mortes, a não ser de quem há-de fazer falta na Igreja de Deus, pois bem vê esta alma que Ele sabe melhor o que faz, do que ela o deseja.
 
4. Deveis notar que há penas e penas; porque há algumas penas produzidas de súbito pela natureza, e do mesmo modo os contentamentos, e até da caridade apiedando-se dos próximos, como fez Nosso Senhor quando ressuscitou a Lázaro; e estas não impedem a união com a vontade de Deus, nem tão-pouco perturbam a alma com uma paixão inquieta, desassossegada, que dura muito. Estas penas passam depressa; pois, como disse dos gozos na oração, parece que não chegam ao fundo da alma, senão a estes sentidos e potências. Andam por estas moradas anteriores, mas não entram na que está por dizer em último lugar, pois, para isto é preciso o que fica dito A da suspensão das potências. Poderoso é o Senhor para enriquecer as almas por muitos caminhos e trazê-las a estas moradas, e sem ser pelo atalho que fica dito. 
 
5. Mas adverti bem nisto, filhas: é necessário que morra a lagarta, e mais à vossa custa; porque ali ajuda muito para morrer o ver-se em vida tão nova; aqui é mister que, vivendo nesta, a matemos nós mesmas. Eu vos confesso que será com muito mais trabalho, mas tem-se o seu preço, e assim será maior o galardão, se sairdes com vitória; quanto a ser possível, não há que duvidar, logo que haja união verdadeira com a vontade de Deus. Esta é a união que toda a minha vida tenho desejado; esta é a que peço sempre a Nosso Senhor e a mais clara e segura.
 
6. Mas, ai de nós, que poucos devemos chegar a ela!, embora quem se guarda de ofender ao Senhor e entrou em religião lhe pareça que tudo está feito. Oh! ainda ficam umas lagartas que não se dão a conhecer, até que, como a que roeu a hera de Jonas, nos roam as virtudes com um amor próprio, uma própria estimação, um julgar os próximos, embora seja em poucas coisas, uma falta de caridade com eles não lhes querendo como a nós mesmos: ainda que, arrastando-nos, cumprimos com a obrigação, para não ser pecado, não chegamos nem de longe ao que deve ser para estarmos de todo unidas com a vontade de Deus.
 
7. O que pensais, filhas, que é a Sua vontade? Que sejamos perfeitas, para sermos um com Ele e com o Pai, como Sua Majestade o pediu. Olhai quanto nos falta para chegarmos a isto! Digo-vos que estou escrevendo isto com grande pena de me ver tão longe e tudo por minha culpa. E não é preciso o Senhor fazer-nos grandes regalos para isso; basta o que nos deu, dando-nos o Seu Filho, para nos ensinar o caminho. Não penseis que está a coisa em que, se morre meu pai ou irmão, eu me conforme tanto com a vontade de Deus que o não sinta; e se me vierem trabalhos e enfermidades, sofrê-los com contentamento. Bom é, e às vezes consiste em discrição, Iporque mais não podemos e fazemos da necessidade virtude. Quantas coisas destas faziam os filósofos, ou ainda que não seja destas, outras, por terem muito saber! Aqui, só estas duas nos pede o Senhor: amor de Sua Majestade e do próximo; é no que temos de trabalhar. Guardando-as com perfeição, fazemos a Sua vontade, e assim estaremos unidas com Ele. Mas, quão longe estamos de fazer como devemos a tão grande Deus estas duas coisas, como disse! Praza a Sua Majestade nos dê graça, para que mereçamos chegar a este estado, que em nossa mão está, se quisermos.
 
8. O sinal mais certo que há, a meu parecer, para ver se guardamos estas duas coisas, é guardar bem a do amor ao próximo; porque, se amamos a Deus não se pode saber, embora haja grandes indícios para entender que O amamos, mas o amor do próximo, sim. E estai certas que, quanto mais neste vos virdes aproveitadas, mais o estais no amor de Deus; porque é tão grande o que Sua Majestade nos tem, que em paga do que temos ao próximo, fará crescer o que temos a Sua Majestade por mil maneiras. Disto não posso eu duvidar.
 
9. Importa-nos muito andar com grande advertência, vendo como andamos nisto, que, se é com muita perfeição, temos tudo feito; porque eu creio que, segundo é mau o nosso natural, não chegaremos a ter com perfeição o amor do próximo, se não nascer de raiz do amor de Deus. Pois tanto nos importa isto, irmãs, procuremos ir entendendo como vamos neste ponto, mesmo em coisas pequenas, não fazendo caso de umas muito grandes, que assim por junto nos vêm na oração, parecendonos que faremos e aconteceremos por amor dos próximos e por uma só alma que se salve; porque, se as obras não correspondem, não é de crer que o faremos. Assim digo também da humildade e de todas as virtudes. São grandes os ardis do demónio que, para nos fazer crer que temos alguma, não a tendo, dará mil voltas ao inferno. E tem razão, porque fará muito dano, pois estas virtudes fingidas nunca vêm sem alguma vanglória, como são de tal raiz; assim como as que Deus dá, estão livres dela e de soberba.
 
10. Eu gosto, algumas vezes, de ver umas almas que, quando estão em oração, lhes parece que quereriam ser abatidas e publicamente afrontadas por Deus, e depois encobririam uma falta pequena, se pudessem, ou, se não a fizeram, lha atribuem; Deus nos livre! Pois veja bem quem isto não sofre, para não fazer caso do que. a sós determinou a seu parecer; que de verdade não foi determinação de vontade, pois quando esta é verdadeira, é outra coisa; mas sim alguma imaginação, pois nesta faz o demónio seus assaltos e enganos; e a mulheres, ou gente sem letras, poderá fazer muitos, porque não sabemos entender as diferenças entre as potências e a imaginação e outras mil coisas que há interiores. Ó irmãs, como se vê claramente onde está deveras o amor do próximo, em algumas de vós, e naquelas em que não está com esta perfeição! Se entendêsseis o que nos importa esta virtude, não faríeis outro estudo.
 
11. Quando vejo algumas muito diligentes em entender a oração que têm e muito encapotadas quando estão nela, que parece não ousam bulir nem menear o pensamento, para que não se lhes vá um pouquito do gosto e devoção que tiveram, faz-me ver quão pouco entendem do caminho por onde se alcança a união. E pensam que ali está todo o negócio. Mas não, irmãs, não; obras quer o Senhor; e, se vês uma enferma a quem podes dar algum alívio, não se te dê nada de perder essa devoção e te compadeças dela; e se tem alguma dor, te doa a ti também; e se for preciso, jejua, para que ela coma, não tanto por ela, mas porque sabes que teu Senhor quer isso. Esta é a verdadeira união com Sua vontade; e se vires louvar muito a uma pessoa, te alegres muito mais do que se te louvassem a ti. Isto, na verdade, fácil é; pois se há humildade, antes terá pena de se ver louvada. E esta alegria por se conhecerem as virtudes das irmãs é grande coisa, e quando virmos alguma falta em alguma, senti-la como se fosse em nós e encobri-la.
 
12. Muito disse noutras partes sobre isto, porque vejo, irmãs, que, se nisto houver quebra, estamos perdidas. Praza ao Senhor nunca a haja; logo que assim seja, eu vos digo que não deixareis de alcançar de Sua Majestade a união que fica dita. Quanto vos virdes carecidas nisto, ainda que tenhais devoção e regalos e alguma suspensãozita na oração de quietude, e vos pareça que já haveis chegado (que a algumas logo lhes parecerá que está tudo feito), crede-me que não chegastes à união e pedi a Nosso Senhor que vos dê com perfeição este amor do próximo e deixai fazer a Sua Majestade, que Ele vos dará mais do que sabeis desejar, desde que vos esforceis e procureis isto em tudo o que puderdes; e forçar vossa vontade para que se faça em tudo a das irmãs, embora percais do vosso direito, ou esquecer o vosso bem pelo delas, por mais contradições que vos faça o vosso natural; e procurar tomar para vós o trabalho para o tirar ao próximo, quando se oferecer. Não penseis que isto não vos há-de custar e que o haveis de achar já feito. Olhai o que custou a nosso Esposo o amor que nos teve: para nos livrar da morte, a padeceu tão penosa como a morte na Cruz.