SEGUNDA MORADA - CAPÍTULO ÚNICO

SEGUNDA MORADA - CAPÍTULO ÚNICO
Trata do muito que importa a perseverança para chegar às últimas moradas, e a grande guerra que dá o demónio, e quanto convém não errar o caminho no princípio para acertar. Dá um meio que experimentou ser muito eficaz.
1. Agora, vejamos quais serão as almas que entram nas segundas moradas e o que fazem nelas. Quereria dizer-vos pouco, porque já disse bastante em outras partes e será impossível deixar de tornar a dizer outra vez muito sobre isso, porque não me lembra nada do que já foi dito; se o pudesse guisar de diferentes maneiras, bem sei que não vos enfastiaríeis, como nunca nos cansamos dos livros que tratam disto, apesar de serem muitos.
2. É esta morada a dos que já começaram a ter oração e entendido quanto lhes importa não se ficarem nas primeiras moradas, mas não têm ainda determinação para deixar de estar nela muitas vezes, porque não deixam as ocasiões, o que é grande perigo. Mas já é grande misericórdia que, mesmo por pouco tempo, procurem fugir das cobras e coisas peçonhentas e entendam que é bom deixá-las. Estes, em parte, têm muito mais trabalho que os primeiros, ainda que não tenham tanto perigo; pois parece que já os entendem, e há grande esperança que entrem mais adentro. Digo que têm mais trabalho, porque os primeiros são como mudos que não ouvem, e assim passam melhor o trabalho de não falar; mas não o passariam assim, senão muito maior, os que ouvissem e não pudessem falar. Mas, nem por isso é mais de desejar o trabalho dos que não ouvem, porque enfim, grande coisa é entender o que nos dizem. Assim estes entendem os chamamentos que lhes faz o Senhor, porque vão entrando mais perto onde está Sua Majestade, é muito bom vizinho e tão grande a Sua misericórdia e bondade que, mesmo estando nós em nosso passatempo, negócios, contentamentos e bagatelas do mundo, e até caindo e levantando-nos em pecados (porque estas alimárias são tão peçonhentas e perigosa sua companhia e buliçosas que, só por maravilha deixarão de tropeçar nelas para cair), com tudo isto, tem em tanto este Senhor nosso que O amemos e procuremos a Sua companhia que, uma vez ou outra, não deixa de nos chamar para que nos acerquemos d'Ele. E é esta voz tão doce, que se desfaz a pobre alma por não fazer logo o que lhe manda; e assim - como digo - é muito mais trabalho do que não O ouvir.
3. Não digo que estas vozes e chamamentos sejam como outros que direi depois, mas são com palavras que se ouvem a gente boa, ou sermões ou com o que se lê em bons livros e outras muitas coisas que tendes ouvido, com as quais Deus chama; ou enfermidades, trabalhos e também com uma ou outra verdade que Ele ensina naqueles instantes em que estamos em oração que, seja quão frouxamente quiserdes, os tem Deus em muito. E vós, irmãs, não tenhais em pouco esta primeira mercê, nem vos desconsoleis, ainda mesmo que não respondais logo ao Senhor. Bem sabe Sua Majestade aguardar muitos dias e anos, em especial quando vê perseverança e bons desejos. Esta perseverança é aqui o mais necessário, porque com ela jamais se deixa de ganhar muito. Mas é terrível a violência que aqui usam os demónios de mil maneiras, com mais tormento da alma que na morada anterior; porque ali, estava muda e surda, pelo menos ouvia muito pouco e resistia menos, como quem tem, em parte, perdida a esperança de vencer; aqui está o entendimento mais vivo e as potências mais hábeis; e são os golpes e a artilharia de tal modo, que a alma não pode deixar de ouvir. Porque aqui é o representarem os demónios estas cobras das coisas do mundo e fazerem os seus contentos quase eternos, a estima em que nele se é tido, os amigos e parentes, a saúde que se pode perder nas coisas de penitência (pois sempre começa a alma que entra nesta morada a desejar fazer alguma), e outras mil maneiras de impedimentos.
4. Ó Jesus, que barafunda a que põem aqui os demónios e as aflições da pobre alma, que não sabe se há-de passar adiante ou voltar ao primeiro aposento! É que a razão, por outra parte, representa-lhe o engano que é pensar que tudo isto vale alguma coisa em comparação do que pretende. A fé ensina-lhe o que é que lhe cumpre fazer; a memória representa-lhe em que vão parar todas estas coisas, tornando-lhe presente a morte, e algumas súbitas, dos que muito gozaram destas coisas que viu; quão depressa são esquecidos de todos, como viu pisar debaixo da terra alguns que conheceu em grande prosperidade - e até mesmo ter ela passado sobre suas sepulturas muitas vezes - e pensar que naquele corpo estão fervilhando muitos vermes e muitas outras coisas que podem ocorrer; a vontade inclina-se a amar Aquele em quem tem visto tão inumeráveis coisas e mostras de amor, e quereria pagar alguma; em especial, põe-se-lhe diante como nunca se aparta dela este verdadeiro Amador, acompanhando-a, dando-lhe vida e ser. Logo o entendimento acode dando-lhe a entender que não pode encontrar melhor amigo, ainda que viva muitos anos; que todo o mundo está cheio de falsidade, e estes contentos que lhe representa o demónio, estão cheios de trabalhos e cuidados e contradições; e lhe diz que está certo que, fora deste castelo, não encontrará segurança nem paz; que se deixe de andar por casas alheias, pois a sua está cheia de bens, se a quiser gozar; que ninguém acha tudo que há mister senão em sua casa, em especial tendo tal Hóspede, que a fará senhora de todos os bens; se ela quiser não andará perdida, como o filho pródigo, comendo manjar de porcos.
5. Razões são estas para vencer os demónios. Mas, ó Senhor e Deus meu! Os costumes das coisas de vaidade e o ver que toda a gente trata disso, estraga tudo! Porque está tão morta a fé, queremos mais o que vemos do que aquilo que ela nos diz. E, na verdade, não vemos senão excessiva má ventura nos que se deixam ir atrás destas coisas visíveis. Mas isso fizeram estas coisas peçonhentas que tratamos; como alguém que é mordido por uma víbora se empeçonha e incha todo, assim aqui, se não nos acautelamos; claro está que para sarar são precisas muitas curas; e grande mercê nos faz Deus, se não morremos disso. É certo que a alma passa aqui grandes trabalhos, em especial se o demónio entende que ela tem disposições de sua condição e costumes para ir muito adiante: todo o inferno se juntará para fazê-la tornar a sair para fora.
6. Ah! Senhor meu!, aqui é mister a Vossa ajuda, pois, sem ela, não se pode fazer nada. Por Vossa misericórdia não consintais que esta alma seja enganada para deixar o que começou. Dai-lhe luz para ver como está nisto todo o seu bem e para se apartar das más companhias. Grandíssima coisa é tratar com os que tratam disto e achegar-se, não só aos que vir nestes aposentos em que está, mas também aos que entender que já entraram nos mais interiores; porque lhe será grande ajuda, e tanto poderá conversar com estes, que ali a metam consigo. Esteja sempre de sobreaviso para não se deixar vencer; porque, se o demónio a vê com uma grande determinação de que, antes perderá a vida, o descanso e tudo o que ele lhe oferece, do que voltar ao primeiro aposento, muito mais depressa a deixará. Seja varão e não dos que se deitavam a beber de bruços, quando iam para a batalha, não me lembro com quem, mas determine-se: vai pelejar com todos os demónios e não há melhores armas do que as da Cruz.
7. Ainda que de outras vezes tenha dito isto, importa tanto, que o torno a dizer aqui; é que não se lembre que há regalos nisto que principia, porque é maneira muito baixa de começar a construir tão precioso e grande edifício; e, se começam sobre areia, darão com tudo em terra; nunca deixarão de andar desgostosos e tentados. Porque não são estas moradas onde chove o maná; estão mais adiante, onde tudo sabe ao que uma alma quer, porque não quer senão o que Deus quer. É coisa muito engraçada que ainda estejamos com mil embaraços e imperfeições e as virtudes que ainda não sabem andar, pois só há pouco começaram a nascer, e mesmo praza a Deus que estejam começadas; e não temos vergonha de querer gostos na oração e de nos queixarmos de aridez? Nunca isto vos aconteça, irmãs; abraçai-os com a cruz que vosso Esposo tomou sobre Si e entendei que esta deve ser a vossa empresa. A que mais puder padecer, que padeça mais por Ele e será a que melhor se liberta. O resto, como coisa acessória, se vo-lo der o Senhor, dai-Lhe muitas graças. 
8. Parecer-vos-á que, para os trabalhos exteriores, estais bem determinadas, conquanto vos regale Deus no interior. Sua Majestade sabe melhor, o que nos convém; não temos de Lhe aconselhar o que nos há-de dar, poi. pode com razão dizer-nos que não sabemos o que pedimos. Toda a pretensão de quem começa a ter oração (e não vos esqueça isto, pois importa muito) há-de ser trabalhar e determinar-se e dispor-se, com quanta diligência puder, a fazer conformar a sua vontade com a de Deus; e - como direi depois -, estai bem certas que nisto consiste toda a maior perfeição, que se pode alcançar no caminho espiritual. Quem mais perfeitamente tiver isto, mais receberá do Senhor e mais adiante estará neste caminho. Não penseis que há aqui muitas algaravias nem coisas não sabidas e compreendidas: nisto consiste todo o nosso bem. Pois, se erramos no princípio, querendo logo que o Senhor faça a nossa vontade e que nos leve como imaginamos, que firmeza pode levar este edifício? Procuremos fazer o que está em nossa mão e guardemo-nos das sevandijas peçonhentas; que muitas vezes quer o Senhor que haja securas e nos persigam maus pensamentos e nos aflijam, sem os podermos afastar de nós, e até algumas vezes permite que nos mordam, para que nós nos saibamos melhor guardar depois e para ver se nos pesa muito de O ter ofendido.
9. Por isso, não vos desanimeis, se alguma vez cairdes, para deixar de ir por diante; pois, dessa mesma queda, tirará Deus bem, como faz aquele que vende a mezinha que, para provar se é boa, bebe o veneno primeiro. Se não víssemos em outra coisa a nossa miséria e o grande dano que nos faz o andarmos dissipados, só esta luta que se passa para nos tornarmos a recolher, bastava. Poderá haver maior mal do que não nos acharmos em nossa própria casa? Que esperança podemos ter de encontrar sossego em outras coisas, se nas próprias não podemos sossegar? Mas tão grandes e verdadeiros amigos e parentes, com quem embora não o queiramos, sempre havemos de viver, como são as nossas potências, parece fazerem-nos guerra, como que sentidas da que lhes fizeram os nossos vícios. Paz, paz, minhas irmãs, disse o Senhor e admoestou os Seus Apóstolos tantas vezes. Pois, crede-me que, se não a temos e não a procuramos em nossa casa, não a acharemos na dos estranhos. Acabe-se já esta guerra; pelo Sangue que Ele derramou por nós o peço eu aos que não começaram a entrar em si; e os que já começaram, que nada seja bastante para os fazer voltar atrás. Olhem que é pior a recaída que a queda; já vêem sua perda; confiem na misericórdia de Deus e nada em si mesmas, e verão como Sua Majestade leva a alma de umas moradas a outras e a mete naquela terra onde estas feras não a podem tocar nem cansar; mas ela as sujeita a todas e faz troça delas, e goza de muitos mais bens do que poderia desejar, ainda mesmo nesta vida, digo.
10. Porque - como disse ao principio -, escrevi como vos haveis de comportar nestas perturbações que aqui apresenta o demónio, e como começar a recolher-se não há-de ir à força de braços, mas sim com suavidade, para que o possais estar mais continuamente, só direi aqui que, a meu parecer, faz muito ao caso tratar com pessoas experimentadas; porque em coisas que é necessário fazer, podereis pensar que há grande quebra. Contanto que não se deixe este começo de recolhimento, tudo guiará o Senhor em nosso proveito, embora não encontremos quem nos ensine; que para este mal de deixar a oração, não há remédio, se não se torna a começar, senão que, pouco a pouco, a alma vai perdendo cada dia mais, e ainda praza a Deus que o entenda.
11. Poderia alguma pensar que, se tão grande mal é voltar atrás, melhor será nunca começar, mas antes iscar-se fora do castelo. Já vos disse ao princípio,- e o mesmo Senhor o diz que, quem anda no perigo, nele perece e que a porta para entrar neste castelo é a oração. Ora, pensar que havemos de entrar no Céu e não entrar em nós, conhecendo-nos e considerando nossa miséria e o que devemos a Deus e pedindoLhe muitas vezes misericórdia, é desatino. O mesmo Senhor diz: «Ninguém subirá a meu Pai, senão por Mim». Não sei se disse assim, creio que sim; e «quem Me vê a Mim vê a Meu Pai». Pois, se nunca olhamos para Ele, nem consideramos o que Lhe devemos e a morte que sofreu por nós, não sei como O podemos conhecer nem fazer obras em Seu serviço. Porque a fé, sem elas, e sem irem unidas ao valor dos merecimentos de Jesus Cristo, nosso Bem, que valor pode ter? E quem nos despertará a amar este Senhor? 
Praza a Sua Majestade nos dê a entender o muito que Lhe custámos e como o servo não é mais que o Senhor; e que precisamos fazer obras para gozar da Sua glória; para isto é necessário orar para não andar sempre em tentação. 
Trata do muito que importa a perseverança para chegar às últimas moradas, e a grande guerra que dá o demónio, e quanto convém não errar o caminho no princípio para acertar. Dá um meio que experimentou ser muito eficaz.
 
1. Agora, vejamos quais serão as almas que entram nas segundas moradas e o que fazem nelas. Quereria dizer-vos pouco, porque já disse bastante em outras partes e será impossível deixar de tornar a dizer outra vez muito sobre isso, porque não me lembra nada do que já foi dito; se o pudesse guisar de diferentes maneiras, bem sei que não vos enfastiaríeis, como nunca nos cansamos dos livros que tratam disto, apesar de serem muitos.
 
2. É esta morada a dos que já começaram a ter oração e entendido quanto lhes importa não se ficarem nas primeiras moradas, mas não têm ainda determinação para deixar de estar nela muitas vezes, porque não deixam as ocasiões, o que é grande perigo. Mas já é grande misericórdia que, mesmo por pouco tempo, procurem fugir das cobras e coisas peçonhentas e entendam que é bom deixá-las. Estes, em parte, têm muito mais trabalho que os primeiros, ainda que não tenham tanto perigo; pois parece que já os entendem, e há grande esperança que entrem mais adentro. Digo que têm mais trabalho, porque os primeiros são como mudos que não ouvem, e assim passam melhor o trabalho de não falar; mas não o passariam assim, senão muito maior, os que ouvissem e não pudessem falar. Mas, nem por isso é mais de desejar o trabalho dos que não ouvem, porque enfim, grande coisa é entender o que nos dizem. Assim estes entendem os chamamentos que lhes faz o Senhor, porque vão entrando mais perto onde está Sua Majestade, é muito bom vizinho e tão grande a Sua misericórdia e bondade que, mesmo estando nós em nosso passatempo, negócios, contentamentos e bagatelas do mundo, e até caindo e levantando-nos em pecados (porque estas alimárias são tão peçonhentas e perigosa sua companhia e buliçosas que, só por maravilha deixarão de tropeçar nelas para cair), com tudo isto, tem em tanto este Senhor nosso que O amemos e procuremos a Sua companhia que, uma vez ou outra, não deixa de nos chamar para que nos acerquemos d'Ele. E é esta voz tão doce, que se desfaz a pobre alma por não fazer logo o que lhe manda; e assim - como digo - é muito mais trabalho do que não O ouvir.
 
3. Não digo que estas vozes e chamamentos sejam como outros que direi depois, mas são com palavras que se ouvem a gente boa, ou sermões ou com o que se lê em bons livros e outras muitas coisas que tendes ouvido, com as quais Deus chama; ou enfermidades, trabalhos e também com uma ou outra verdade que Ele ensina naqueles instantes em que estamos em oração que, seja quão frouxamente quiserdes, os tem Deus em muito. E vós, irmãs, não tenhais em pouco esta primeira mercê, nem vos desconsoleis, ainda mesmo que não respondais logo ao Senhor. Bem sabe Sua Majestade aguardar muitos dias e anos, em especial quando vê perseverança e bons desejos. Esta perseverança é aqui o mais necessário, porque com ela jamais se deixa de ganhar muito. Mas é terrível a violência que aqui usam os demónios de mil maneiras, com mais tormento da alma que na morada anterior; porque ali, estava muda e surda, pelo menos ouvia muito pouco e resistia menos, como quem tem, em parte, perdida a esperança de vencer; aqui está o entendimento mais vivo e as potências mais hábeis; e são os golpes e a artilharia de tal modo, que a alma não pode deixar de ouvir. Porque aqui é o representarem os demónios estas cobras das coisas do mundo e fazerem os seus contentos quase eternos, a estima em que nele se é tido, os amigos e parentes, a saúde que se pode perder nas coisas de penitência (pois sempre começa a alma que entra nesta morada a desejar fazer alguma), e outras mil maneiras de impedimentos.
 
4. Ó Jesus, que barafunda a que põem aqui os demónios e as aflições da pobre alma, que não sabe se há-de passar adiante ou voltar ao primeiro aposento! É que a razão, por outra parte, representa-lhe o engano que é pensar que tudo isto vale alguma coisa em comparação do que pretende. A fé ensina-lhe o que é que lhe cumpre fazer; a memória representa-lhe em que vão parar todas estas coisas, tornando-lhe presente a morte, e algumas súbitas, dos que muito gozaram destas coisas que viu; quão depressa são esquecidos de todos, como viu pisar debaixo da terra alguns que conheceu em grande prosperidade - e até mesmo ter ela passado sobre suas sepulturas muitas vezes - e pensar que naquele corpo estão fervilhando muitos vermes e muitas outras coisas que podem ocorrer; a vontade inclina-se a amar Aquele em quem tem visto tão inumeráveis coisas e mostras de amor, e quereria pagar alguma; em especial, põe-se-lhe diante como nunca se aparta dela este verdadeiro Amador, acompanhando-a, dando-lhe vida e ser. Logo o entendimento acode dando-lhe a entender que não pode encontrar melhor amigo, ainda que viva muitos anos; que todo o mundo está cheio de falsidade, e estes contentos que lhe representa o demónio, estão cheios de trabalhos e cuidados e contradições; e lhe diz que está certo que, fora deste castelo, não encontrará segurança nem paz; que se deixe de andar por casas alheias, pois a sua está cheia de bens, se a quiser gozar; que ninguém acha tudo que há mister senão em sua casa, em especial tendo tal Hóspede, que a fará senhora de todos os bens; se ela quiser não andará perdida, como o filho pródigo, comendo manjar de porcos.
 
5. Razões são estas para vencer os demónios. Mas, ó Senhor e Deus meu! Os costumes das coisas de vaidade e o ver que toda a gente trata disso, estraga tudo! Porque está tão morta a fé, queremos mais o que vemos do que aquilo que ela nos diz. E, na verdade, não vemos senão excessiva má ventura nos que se deixam ir atrás destas coisas visíveis. Mas isso fizeram estas coisas peçonhentas que tratamos; como alguém que é mordido por uma víbora se empeçonha e incha todo, assim aqui, se não nos acautelamos; claro está que para sarar são precisas muitas curas; e grande mercê nos faz Deus, se não morremos disso. É certo que a alma passa aqui grandes trabalhos, em especial se o demónio entende que ela tem disposições de sua condição e costumes para ir muito adiante: todo o inferno se juntará para fazê-la tornar a sair para fora.
 
6. Ah! Senhor meu!, aqui é mister a Vossa ajuda, pois, sem ela, não se pode fazer nada. Por Vossa misericórdia não consintais que esta alma seja enganada para deixar o que começou. Dai-lhe luz para ver como está nisto todo o seu bem e para se apartar das más companhias. Grandíssima coisa é tratar com os que tratam disto e achegar-se, não só aos que vir nestes aposentos em que está, mas também aos que entender que já entraram nos mais interiores; porque lhe será grande ajuda, e tanto poderá conversar com estes, que ali a metam consigo. Esteja sempre de sobreaviso para não se deixar vencer; porque, se o demónio a vê com uma grande determinação de que, antes perderá a vida, o descanso e tudo o que ele lhe oferece, do que voltar ao primeiro aposento, muito mais depressa a deixará. Seja varão e não dos que se deitavam a beber de bruços, quando iam para a batalha, não me lembro com quem, mas determine-se: vai pelejar com todos os demónios e não há melhores armas do que as da Cruz.
 
7. Ainda que de outras vezes tenha dito isto, importa tanto, que o torno a dizer aqui; é que não se lembre que há regalos nisto que principia, porque é maneira muito baixa de começar a construir tão precioso e grande edifício; e, se começam sobre areia, darão com tudo em terra; nunca deixarão de andar desgostosos e tentados. Porque não são estas moradas onde chove o maná; estão mais adiante, onde tudo sabe ao que uma alma quer, porque não quer senão o que Deus quer. É coisa muito engraçada que ainda estejamos com mil embaraços e imperfeições e as virtudes que ainda não sabem andar, pois só há pouco começaram a nascer, e mesmo praza a Deus que estejam começadas; e não temos vergonha de querer gostos na oração e de nos queixarmos de aridez? Nunca isto vos aconteça, irmãs; abraçai-os com a cruz que vosso Esposo tomou sobre Si e entendei que esta deve ser a vossa empresa. A que mais puder padecer, que padeça mais por Ele e será a que melhor se liberta. O resto, como coisa acessória, se vo-lo der o Senhor, dai-Lhe muitas graças. 
 
8. Parecer-vos-á que, para os trabalhos exteriores, estais bem determinadas, conquanto vos regale Deus no interior. Sua Majestade sabe melhor, o que nos convém; não temos de Lhe aconselhar o que nos há-de dar, poi. pode com razão dizer-nos que não sabemos o que pedimos. Toda a pretensão de quem começa a ter oração (e não vos esqueça isto, pois importa muito) há-de ser trabalhar e determinar-se e dispor-se, com quanta diligência puder, a fazer conformar a sua vontade com a de Deus; e - como direi depois -, estai bem certas que nisto consiste toda a maior perfeição, que se pode alcançar no caminho espiritual. Quem mais perfeitamente tiver isto, mais receberá do Senhor e mais adiante estará neste caminho. Não penseis que há aqui muitas algaravias nem coisas não sabidas e compreendidas: nisto consiste todo o nosso bem. Pois, se erramos no princípio, querendo logo que o Senhor faça a nossa vontade e que nos leve como imaginamos, que firmeza pode levar este edifício? Procuremos fazer o que está em nossa mão e guardemo-nos das sevandijas peçonhentas; que muitas vezes quer o Senhor que haja securas e nos persigam maus pensamentos e nos aflijam, sem os podermos afastar de nós, e até algumas vezes permite que nos mordam, para que nós nos saibamos melhor guardar depois e para ver se nos pesa muito de O ter ofendido.
 
9. Por isso, não vos desanimeis, se alguma vez cairdes, para deixar de ir por diante; pois, dessa mesma queda, tirará Deus bem, como faz aquele que vende a mezinha que, para provar se é boa, bebe o veneno primeiro. Se não víssemos em outra coisa a nossa miséria e o grande dano que nos faz o andarmos dissipados, só esta luta que se passa para nos tornarmos a recolher, bastava. Poderá haver maior mal do que não nos acharmos em nossa própria casa? Que esperança podemos ter de encontrar sossego em outras coisas, se nas próprias não podemos sossegar? Mas tão grandes e verdadeiros amigos e parentes, com quem embora não o queiramos, sempre havemos de viver, como são as nossas potências, parece fazerem-nos guerra, como que sentidas da que lhes fizeram os nossos vícios. Paz, paz, minhas irmãs, disse o Senhor e admoestou os Seus Apóstolos tantas vezes. Pois, crede-me que, se não a temos e não a procuramos em nossa casa, não a acharemos na dos estranhos. Acabe-se já esta guerra; pelo Sangue que Ele derramou por nós o peço eu aos que não começaram a entrar em si; e os que já começaram, que nada seja bastante para os fazer voltar atrás. Olhem que é pior a recaída que a queda; já vêem sua perda; confiem na misericórdia de Deus e nada em si mesmas, e verão como Sua Majestade leva a alma de umas moradas a outras e a mete naquela terra onde estas feras não a podem tocar nem cansar; mas ela as sujeita a todas e faz troça delas, e goza de muitos mais bens do que poderia desejar, ainda mesmo nesta vida, digo.
 
10. Porque - como disse ao principio -, escrevi como vos haveis de comportar nestas perturbações que aqui apresenta o demónio, e como começar a recolher-se não há-de ir à força de braços, mas sim com suavidade, para que o possais estar mais continuamente, só direi aqui que, a meu parecer, faz muito ao caso tratar com pessoas experimentadas; porque em coisas que é necessário fazer, podereis pensar que há grande quebra. Contanto que não se deixe este começo de recolhimento, tudo guiará o Senhor em nosso proveito, embora não encontremos quem nos ensine; que para este mal de deixar a oração, não há remédio, se não se torna a começar, senão que, pouco a pouco, a alma vai perdendo cada dia mais, e ainda praza a Deus que o entenda.
 
11. Poderia alguma pensar que, se tão grande mal é voltar atrás, melhor será nunca começar, mas antes iscar-se fora do castelo. Já vos disse ao princípio,- e o mesmo Senhor o diz que, quem anda no perigo, nele perece e que a porta para entrar neste castelo é a oração. Ora, pensar que havemos de entrar no Céu e não entrar em nós, conhecendo-nos e considerando nossa miséria e o que devemos a Deus e pedindoLhe muitas vezes misericórdia, é desatino. O mesmo Senhor diz: «Ninguém subirá a meu Pai, senão por Mim». Não sei se disse assim, creio que sim; e «quem Me vê a Mim vê a Meu Pai». Pois, se nunca olhamos para Ele, nem consideramos o que Lhe devemos e a morte que sofreu por nós, não sei como O podemos conhecer nem fazer obras em Seu serviço. Porque a fé, sem elas, e sem irem unidas ao valor dos merecimentos de Jesus Cristo, nosso Bem, que valor pode ter? E quem nos despertará a amar este Senhor? 
Praza a Sua Majestade nos dê a entender o muito que Lhe custámos e como o servo não é mais que o Senhor; e que precisamos fazer obras para gozar da Sua glória; para isto é necessário orar para não andar sempre em tentação.