SÉTIMA MORADA - CAPÍTULO 2

SÉTIMA MORADA - CAPÍTULO 2
Prossegue no mesmo. Diz a diferença que há entre união espiritual e matrimónio espiritual. Declara-o com delicadas comparações. 
1. Pois, venhamos agora a tratar do divino e espiritual matrimónio, ainda que esta grande mercê não se deve realizar com perfeição enquanto vivermos, pois, se nos apartássemos de Deus, perder-se-ia este tão grande bem. A primeira vez que Deus faz esta mercê, quer Sua Majestade mostrar-Se à alma por visão imaginária de Sua sacratíssima Humanidade, para que o entenda bem e não esteja ignorante de que recebe tão soberano dom. A outras pessoas será por outra forma; a esta de quem falamos, represen tou-se-lhe o Senhor, acabando de comungar, em forma de grande resplendor e formosura e majestade, como depois de ressuscitado, e lhe disse que já era tempo dela tomar as coisas d'Ele por suas, e Ele teria cuidado das coisas dela, e outras palavras que são mais para se sentir do que para se dizer.
2. Parecer-vos-á que isto não era novidade, pois já de outras vezes o Senhor tinha se representado a esta alma desta maneira. Mas foi tão diferente, que a deixou bem desatinada e espantada; primeiro, porque foi com grande força esta visão; segundo, pelas palavras que lhe disse, e também porque no interior da sua alma, onde esta visão se lhe representou, não tinha visto outras, a não ser a visão passada. E emendei que há grandíssima diferença entre todas as visões passadas e as desta morada, e tão. grande entre o desposório espiritual e o matrimónio espiritual, como a que há entre dois desposados, e os que já não se podem apartar. 
3. Já disse que, embora se dêem estas comparações, porque não há outras mais a propósito, entenda-se que aqui não há mais memória de corpo de que se a alma já não estivesse nele, mas só de espírito; e no matrimónio espiritual muito menos, porque esta secreta união passa-se no centro mais interior da alma, que deve ser onde está o mesmo Deus, e, a meu parecer, não é preciso porta para entrar. Digo que não é preciso porta, porque em tudo o que se tem dito até aqui, parece que é por meio dos sentidos e potências e este aparecimento da Humanidade do Senhor assim devia ser; mas o que se passa na união do matrimónio espiritual é muito diferente. Aparece o Senhor neste centro da alma sem visão imaginária, mas intelectual, ainda que mais delicada que as ditas, como apareceu aos Apóstolos, sem entrar pela porta, quando lhes disse: "Pax vobis". É um segredo tão grande e uma mercê tão subida o que Deus ali comunica à alma num instante, e o grandíssimo deleite que a alma sente, que eu não sei a que o comparar: mas o Senhor quer-lhe manifestar, por aquele momento, a glória que há no Céu, por uma maneira mais subida que nenhuma outra visão e gosto espiritual. Não se pode dizer mais senão que - tanto quanto se pode entender - fica a alma, digo, o espírito desta alma, feito uma coisa com Deus; pois, como Ele é também espírito, Sua Majestade quis mostrar o amor que nos tem, dando a entender a algumas pessoas até onde chega, para que louvemos Sua grandeza, porque de tal maneira se quis juntar com a criatura, que, assim como os que já se não podem apartar, não se quer Ele apartar dela.
4. O desposório espiritual é diferente, pois muitas vezes se apartam, e a união também o é; porque, embora união seja juntarem-se duas coisas numa só, enfim, podem-se apartar e ficar cada coisa de per si, como vemos ordinariamente que passa depressa esta mercê do Senhor, e depois fica a alma sem aquela companhia, digo de modo que ela o entenda. Nesta outra mercê do Senhor, não; porque sempre fica a alma com o seu Deus naquele centro. Digamos que a união é como se duas velas de cera se juntassem em tal extremo, que toda a luz fosse uma, ou que o pavio, a luz e a cera fosse tudo um; mas depois pode-se apartar muito bem uma vela da outra, e ficam duas velas, e o pavio da cera. Aqui, é como se caísse água do céu num rio ou numa fonte, onde fica tudo feito água e não se poderá já dividir nem apartar o que é água do rio e a que caiu do céu; ou se um pequeno arroiozito entra no mar, não haverá meio de os apartar; ou como, se num aposento houvesse duas janelas por onde entrasse muita luz; ainda que entra dividida, se faz toda uma luz.
5. Talvez seja isto o que disse São Paulo: «O que se arrima e chega a Deus, faz-se um espírito com Ele», tocante a este soberano matrimónio, que pressupõe Sua Majestade já ter chegado a Si a alma por união. E também disse: «Mihi vivere Christus est, mori lucrum»; assim me parece pode dizer aqui a alma, porque é onde a borboletazinha que dissemos; morre, e com grandíssimo gozo, porque a sua vida é já Cristo. 
6. Isto entende-se melhor, com o andar do tempo, pelos efeitos, porque se entende claramente, por umas secretas aspirações, ser Deus o que dá vida à nossa alma, e muitas vezes tão vivas, que de maneira nenhuma se pode duvidar, porque as sente muito bem a alma, ainda que não se sabem dizer, mas é tanto este sentimento que produzem algumas vezes umas palavras regaladas; que parece que não se pode deixar de dizer: «ó vida da minha vida, e sustento que me sustentas»! e coisas deste género. Porque, daqueles peitos divinos, onde parece Deus estar sempre sustentando a alma, saem uns veios de leite, que conforta toda a gente do castelo; parece querer o Senhor que de algum modo gozem do muito que goza a alma, e que daquele rio caudaloso, onde se absorve esta fontezita pequenina, saia algumas vezes algum jacto daquela água para sustentar aqueles que no corporal hão-de servir a estes dois desposados. E, assim como sentiria esta água uma pessoa que está descuidada, se a banhassem de repente nela, e não podia deixar de o sentir, da mesma maneira, e ainda com mais certeza, se entendem estas operações que digo. Porque, assim como não nos poderia sobrevir um grande jacto de água, se não tivesse seu princípio - como disse -, assim também se entende claramente que há no interior da alma Quem arroje estas setas e dê vida a esta vida, e que há sol donde procede uma grande luz, enviada do interior da alma às potências. Ela - como já disse - não se muda daquele centro, nem perde a paz; porque o mesmo Senhor que a deu aos Apóstolos, quando estavam juntos, lha pode dar a ela. 
7. Tenho-me lembrado que esta saudação do Senhor devia ser muito mais do que soa, assim como o dizer à gloriosa Madalena que fosse em paz; porque, como as palavras do Senhor são em nós como obras feitas, tde tal modo deviam operar naquelas almas já dispostas, que apartasse nelas tudo o que é corpóreo na alma, e a deixasse como puro espírito, para que se pudesse juntar nessa união celestial com o Espírito incriado, pois é muito certo que, em nos esvaziando de tudo o que é criatura, e desapegando-nos dela por amor de Deus, o mesmo Senhor a há-de encher de Si mesmo. E assim, orando uma vez Jesus Cristo Nosso Senhor por Seus Apóstolos - não sei onde é -, disse que fossem uma coisa com o Pai e com Ele, como Jesus Cristo está no Pai e o Pai está n'Ele. Não sei que maior amor pode haver do que este! E aqui não deixamos todos de entrar, pois assim o disse Sua Majestade: «Não rogo só por eles, senão por todos aqueles que hão-de crer também em Mim», e diz ainda: «Eu estou neles». 
8.Oh! valha-me Deus! que palavras tão verdadeiras, e como as entende a alma, que nesta oração o vê por si mesma! E como o entenderíamos todas, se não fosse por nossa culpa! Porque as palavras de Jesus Cristo, nosso Rei e Senhor, não podem falhar!" Mas, como nós faltamos em nos dispor e desviar de tudo o que pode embaraçar esta luz, não nos vemos neste espelho que contemplamos, onde está esculpida a nossa imagem.
9. Voltando pois ao que dizíamos, em o Senhor metendo á alma nesta Sua morada, que é o centro da mesma alma, assim como dizem que o céu empíreo, onde está Nosso Senhor, não se move como os demais, assim parece que, em entrando aqui, já não há nesta alma os movimentos que costuma haver nas potências e imaginação, de modo que a prejudiquem e lhe tirem a paz. Parece que quero dizer que, chegando a alma a ponto de Deus lhe fazer esta mercê, está segura da sua salvação e de não tornar a cair. Não digo tal; e em quantas partes o tratar desta maneira, dizendo que parece, estar.a alma em- segurança, entenda-se que é enquanto a Divina Majestade a tiver assim de Sua mão, e ela não O ofender. Pelo menos, sei de certeza que, embora se veja neste estado e lhe tenha durado anos, não se tem por segura, mas sim que anda com muito mais temor que antes em se guardar de qualquer pequena ofensa a Deus, e com tão grandes desejos de O servir, como se dirá adiante, e habitualmente com pena e confusão de ver o pouco, que pode fazer e o muito a que está obrigada, que não é pequena cruz, senão bem grande penitência, porque, quanto a fazer penitência esta alma, quanto maior, mais prazer lhe dá. A verdadeira penitência para ela é quando Deus lhe tira a saúde e as forças para a poder fazer; pois, ainda que noutra parte disse a grande pena que isto lhe dá, aqui é muito maior, e tudo lhe deve vir de onde está plantada a raiz; pois, assim como a árvore que está junto das correntes das águas tem mais frescor e dá mais fruto, por que maravilhar-nos dos desejos que tenha esta alma, se o verdadeiro espírito dela está feito um com a água celestial, que dissemos?
10. Pois, voltando ao que dizia, não se entenda que as potências, sentidos e paixões estão sempre nesta paz; a alma sim. Mas nestas moradas não deixa de haver tempos de guerra, de trabalhos e de fadigas; mas são de maneira que não sai da sua paz nem do seu posto: isto é o normal? Este centro da nossa alma, ou este espírito, é coisa tão dificultosa de dizer, e até mesmo de crer, que, por não me saber dar a entender, penso vos dê, irmãs, alguma tentação de não crer o que digo; porque dizer que há trabalhos e penas, e que a alma está em paz, é coisa dificultosa de acreditar. Quero dar-vos uma comparação ou duas: praza a Deus que, sejam tais que diga alguma coisa com elas; mas, se assim não for, eu sei que sou verdadeira no que digo.
11. Está o Rei no seu palácio, e há muitas guerras em seu reino, e muitas coisas penosas, mas nem por isso deixa de estar em seu posto; assim também aqui, embora nessas outras moradas ande muita barafunda e haja feras peçonhentas, e se oiça o ruído, ninguém entra naquela morada que a faça sair dali; nem as coisas que ouve, ainda que lhe dêem alguma pena, não é de modo a que alvorocem e lhe tirem a paz, porque as paixões estão já vencidas, de sorte que têm medo de entrar ali, porque sairão mais rendidas.Dói-nos todo o corpo; mas, se a cabeça está sã, porque nos dói o corpo, não doerá a cabeça. Estou-me a rir destas comparações, que não me contentam, mas não sei outras. Pensai .o. que quiserdes; mas é verdade o que disse.
Prossegue no mesmo. Diz a diferença que há entre união espiritual e matrimónio espiritual. Declara-o com delicadas comparações. 
 
1. Pois, venhamos agora a tratar do divino e espiritual matrimónio, ainda que esta grande mercê não se deve realizar com perfeição enquanto vivermos, pois, se nos apartássemos de Deus, perder-se-ia este tão grande bem. A primeira vez que Deus faz esta mercê, quer Sua Majestade mostrar-Se à alma por visão imaginária de Sua sacratíssima Humanidade, para que o entenda bem e não esteja ignorante de que recebe tão soberano dom. A outras pessoas será por outra forma; a esta de quem falamos, represen tou-se-lhe o Senhor, acabando de comungar, em forma de grande resplendor e formosura e majestade, como depois de ressuscitado, e lhe disse que já era tempo dela tomar as coisas d'Ele por suas, e Ele teria cuidado das coisas dela, e outras palavras que são mais para se sentir do que para se dizer.
 
2. Parecer-vos-á que isto não era novidade, pois já de outras vezes o Senhor tinha se representado a esta alma desta maneira. Mas foi tão diferente, que a deixou bem desatinada e espantada; primeiro, porque foi com grande força esta visão; segundo, pelas palavras que lhe disse, e também porque no interior da sua alma, onde esta visão se lhe representou, não tinha visto outras, a não ser a visão passada. E emendei que há grandíssima diferença entre todas as visões passadas e as desta morada, e tão. grande entre o desposório espiritual e o matrimónio espiritual, como a que há entre dois desposados, e os que já não se podem apartar. 
 
3. Já disse que, embora se dêem estas comparações, porque não há outras mais a propósito, entenda-se que aqui não há mais memória de corpo de que se a alma já não estivesse nele, mas só de espírito; e no matrimónio espiritual muito menos, porque esta secreta união passa-se no centro mais interior da alma, que deve ser onde está o mesmo Deus, e, a meu parecer, não é preciso porta para entrar. Digo que não é preciso porta, porque em tudo o que se tem dito até aqui, parece que é por meio dos sentidos e potências e este aparecimento da Humanidade do Senhor assim devia ser; mas o que se passa na união do matrimónio espiritual é muito diferente. Aparece o Senhor neste centro da alma sem visão imaginária, mas intelectual, ainda que mais delicada que as ditas, como apareceu aos Apóstolos, sem entrar pela porta, quando lhes disse: "Pax vobis". É um segredo tão grande e uma mercê tão subida o que Deus ali comunica à alma num instante, e o grandíssimo deleite que a alma sente, que eu não sei a que o comparar: mas o Senhor quer-lhe manifestar, por aquele momento, a glória que há no Céu, por uma maneira mais subida que nenhuma outra visão e gosto espiritual. Não se pode dizer mais senão que - tanto quanto se pode entender - fica a alma, digo, o espírito desta alma, feito uma coisa com Deus; pois, como Ele é também espírito, Sua Majestade quis mostrar o amor que nos tem, dando a entender a algumas pessoas até onde chega, para que louvemos Sua grandeza, porque de tal maneira se quis juntar com a criatura, que, assim como os que já se não podem apartar, não se quer Ele apartar dela.
 
4. O desposório espiritual é diferente, pois muitas vezes se apartam, e a união também o é; porque, embora união seja juntarem-se duas coisas numa só, enfim, podem-se apartar e ficar cada coisa de per si, como vemos ordinariamente que passa depressa esta mercê do Senhor, e depois fica a alma sem aquela companhia, digo de modo que ela o entenda. Nesta outra mercê do Senhor, não; porque sempre fica a alma com o seu Deus naquele centro. Digamos que a união é como se duas velas de cera se juntassem em tal extremo, que toda a luz fosse uma, ou que o pavio, a luz e a cera fosse tudo um; mas depois pode-se apartar muito bem uma vela da outra, e ficam duas velas, e o pavio da cera. Aqui, é como se caísse água do céu num rio ou numa fonte, onde fica tudo feito água e não se poderá já dividir nem apartar o que é água do rio e a que caiu do céu; ou se um pequeno arroiozito entra no mar, não haverá meio de os apartar; ou como, se num aposento houvesse duas janelas por onde entrasse muita luz; ainda que entra dividida, se faz toda uma luz.
 
5. Talvez seja isto o que disse São Paulo: «O que se arrima e chega a Deus, faz-se um espírito com Ele», tocante a este soberano matrimónio, que pressupõe Sua Majestade já ter chegado a Si a alma por união. E também disse: «Mihi vivere Christus est, mori lucrum»; assim me parece pode dizer aqui a alma, porque é onde a borboletazinha que dissemos; morre, e com grandíssimo gozo, porque a sua vida é já Cristo. 
 
6. Isto entende-se melhor, com o andar do tempo, pelos efeitos, porque se entende claramente, por umas secretas aspirações, ser Deus o que dá vida à nossa alma, e muitas vezes tão vivas, que de maneira nenhuma se pode duvidar, porque as sente muito bem a alma, ainda que não se sabem dizer, mas é tanto este sentimento que produzem algumas vezes umas palavras regaladas; que parece que não se pode deixar de dizer: «ó vida da minha vida, e sustento que me sustentas»! e coisas deste género. Porque, daqueles peitos divinos, onde parece Deus estar sempre sustentando a alma, saem uns veios de leite, que conforta toda a gente do castelo; parece querer o Senhor que de algum modo gozem do muito que goza a alma, e que daquele rio caudaloso, onde se absorve esta fontezita pequenina, saia algumas vezes algum jacto daquela água para sustentar aqueles que no corporal hão-de servir a estes dois desposados. E, assim como sentiria esta água uma pessoa que está descuidada, se a banhassem de repente nela, e não podia deixar de o sentir, da mesma maneira, e ainda com mais certeza, se entendem estas operações que digo. Porque, assim como não nos poderia sobrevir um grande jacto de água, se não tivesse seu princípio - como disse -, assim também se entende claramente que há no interior da alma Quem arroje estas setas e dê vida a esta vida, e que há sol donde procede uma grande luz, enviada do interior da alma às potências. Ela - como já disse - não se muda daquele centro, nem perde a paz; porque o mesmo Senhor que a deu aos Apóstolos, quando estavam juntos, lha pode dar a ela. 
 
7. Tenho-me lembrado que esta saudação do Senhor devia ser muito mais do que soa, assim como o dizer à gloriosa Madalena que fosse em paz; porque, como as palavras do Senhor são em nós como obras feitas, tde tal modo deviam operar naquelas almas já dispostas, que apartasse nelas tudo o que é corpóreo na alma, e a deixasse como puro espírito, para que se pudesse juntar nessa união celestial com o Espírito incriado, pois é muito certo que, em nos esvaziando de tudo o que é criatura, e desapegando-nos dela por amor de Deus, o mesmo Senhor a há-de encher de Si mesmo. E assim, orando uma vez Jesus Cristo Nosso Senhor por Seus Apóstolos - não sei onde é -, disse que fossem uma coisa com o Pai e com Ele, como Jesus Cristo está no Pai e o Pai está n'Ele. Não sei que maior amor pode haver do que este! E aqui não deixamos todos de entrar, pois assim o disse Sua Majestade: «Não rogo só por eles, senão por todos aqueles que hão-de crer também em Mim», e diz ainda: «Eu estou neles». 
 
8.Oh! valha-me Deus! que palavras tão verdadeiras, e como as entende a alma, que nesta oração o vê por si mesma! E como o entenderíamos todas, se não fosse por nossa culpa! Porque as palavras de Jesus Cristo, nosso Rei e Senhor, não podem falhar!" Mas, como nós faltamos em nos dispor e desviar de tudo o que pode embaraçar esta luz, não nos vemos neste espelho que contemplamos, onde está esculpida a nossa imagem.
 
9. Voltando pois ao que dizíamos, em o Senhor metendo á alma nesta Sua morada, que é o centro da mesma alma, assim como dizem que o céu empíreo, onde está Nosso Senhor, não se move como os demais, assim parece que, em entrando aqui, já não há nesta alma os movimentos que costuma haver nas potências e imaginação, de modo que a prejudiquem e lhe tirem a paz. Parece que quero dizer que, chegando a alma a ponto de Deus lhe fazer esta mercê, está segura da sua salvação e de não tornar a cair. Não digo tal; e em quantas partes o tratar desta maneira, dizendo que parece, estar.a alma em- segurança, entenda-se que é enquanto a Divina Majestade a tiver assim de Sua mão, e ela não O ofender. Pelo menos, sei de certeza que, embora se veja neste estado e lhe tenha durado anos, não se tem por segura, mas sim que anda com muito mais temor que antes em se guardar de qualquer pequena ofensa a Deus, e com tão grandes desejos de O servir, como se dirá adiante, e habitualmente com pena e confusão de ver o pouco, que pode fazer e o muito a que está obrigada, que não é pequena cruz, senão bem grande penitência, porque, quanto a fazer penitência esta alma, quanto maior, mais prazer lhe dá. A verdadeira penitência para ela é quando Deus lhe tira a saúde e as forças para a poder fazer; pois, ainda que noutra parte disse a grande pena que isto lhe dá, aqui é muito maior, e tudo lhe deve vir de onde está plantada a raiz; pois, assim como a árvore que está junto das correntes das águas tem mais frescor e dá mais fruto, por que maravilhar-nos dos desejos que tenha esta alma, se o verdadeiro espírito dela está feito um com a água celestial, que dissemos?
 
10. Pois, voltando ao que dizia, não se entenda que as potências, sentidos e paixões estão sempre nesta paz; a alma sim. Mas nestas moradas não deixa de haver tempos de guerra, de trabalhos e de fadigas; mas são de maneira que não sai da sua paz nem do seu posto: isto é o normal? Este centro da nossa alma, ou este espírito, é coisa tão dificultosa de dizer, e até mesmo de crer, que, por não me saber dar a entender, penso vos dê, irmãs, alguma tentação de não crer o que digo; porque dizer que há trabalhos e penas, e que a alma está em paz, é coisa dificultosa de acreditar. Quero dar-vos uma comparação ou duas: praza a Deus que, sejam tais que diga alguma coisa com elas; mas, se assim não for, eu sei que sou verdadeira no que digo.
 
11. Está o Rei no seu palácio, e há muitas guerras em seu reino, e muitas coisas penosas, mas nem por isso deixa de estar em seu posto; assim também aqui, embora nessas outras moradas ande muita barafunda e haja feras peçonhentas, e se oiça o ruído, ninguém entra naquela morada que a faça sair dali; nem as coisas que ouve, ainda que lhe dêem alguma pena, não é de modo a que alvorocem e lhe tirem a paz, porque as paixões estão já vencidas, de sorte que têm medo de entrar ali, porque sairão mais rendidas.Dói-nos todo o corpo; mas, se a cabeça está sã, porque nos dói o corpo, não doerá a cabeça. Estou-me a rir destas comparações, que não me contentam, mas não sei outras. Pensai .o. que quiserdes; mas é verdade o que disse.