SÉTIMA MORADA - CAPÍTULO 4

SÉTIMA MORADA - CAPÍTULO 4
Com o qual acaba, dando a entender o que lhe parece que pretende Nosso Senhor em fazer tão grandes mercês à alma, e como é necessário que andem juntas Marta e Maria. É muito proveitoso. 
1. Não haveis de entender, irmãs, que estes efeitos que tenho dito, estão sempre em um mesmo ser nestas almas e por isso, quando me lembro, digo habitualmente; porque, algumas vezes, as deixa Nosso Senhor em seu natural, e não parece senão que se juntam então todas as coisas peçonhentas do arrabalde e das outras moradas deste castelo, para se vingarem delas do tempo em que não as podem haver às mãos.
2. É verdade que isto dura pouco; um dia quando muito, ou pouco mais. E neste grande alvoroto, que procede normalmente de alguma ocasião, vê-se o que ganha a alma nesta boa companhia que tem; porque lhe dá o Senhor uma grande inteireza, para não torcer nada em coisa que seja do Seu serviço e boas determinações; mas antes parece que lhe crescem, e nem por um primeiro movimento muito pequeno se desviam desta determinação. Como digo, isto é poucas vezes, mas quer Nosso Senhor que ela não perca a memória de seu ser, para que sempre esteja humilde, e também para que entenda melhor o que deve a Sua Majestade, e a grandeza da mercê que recebe, e O louve.
3. Tão-pouco vos passe pelo pensamento que, por estas almas terem grandes desejos e determinação de não fazer uma imperfeição por coisa alguma cá da terra, deixem de fazer muitas, e até pecados. Com advertência não, pois que, a estas almas, o Senhor deve dar certamente ajuda muito particular para isto. Digo pecados veniais, que dos mortais, quanto elas entendem, estão livres, ainda que não seguras; pois terão alguns que não entendem, o que não lhes será pequeno tormento. Também lho dão as almas que elas vêem que se perdem; e embora tenham, de certo modo, grande esperança de não serem dessas, quando se recordam de alguns daqueles de que diz a Sagrada Escritura que pareciam ser favorecidos do Senhor, como por exemplo um Salomão que tanto comunicou com. Sua divina Majestade, não podem deixar de temer, como tenho dito; e aquela de vós que se vir com mais segurança de si mesma, tema mais; porque «bemaventurado o varão que teme a Deus», diz David. Sua Majestade nos ampare sempre; suplicar-Lhe isto para que não O ofendamos, é a maior segurança que podemos ter. Seja para sempre louvado, amen.
4. Será bom dizer-vos, irmãs, qual o fim para que o Senhor fez tantas mercês neste mundo. Ainda que nos efeitos delas já o tereis entendido, se advertistes nisso, eu vo-lo quero tornar a dizer aqui, para que não pense alguma que é só para regalar essas almas, o que seria grande erro; porque Sua Majestade não no-lo pode fazer maior que em dar-nos vida que seja imitando a que viveu Seu Filho tão amado; e assim tenho por certo serem estas mercês para fortalecer a nossa fraqueza - como aqui já tenho dito alguma vez para podê-Lo imitar no muito padecer.
5. Sempre temos visto que aqueles que mais de perto acompanhavam a Cristo Nosso Senhor, foram os que tiveram maiores trabalhos. Vejamos os que passou Sua gloriosa Mãe, e os gloriosos Apóstolos, Como pensais que poderia São Paulo sofrer trabalhos tão grandes? Por ele podemos ver que efeitos fazem as verdadeiras visões e a contemplação, quando são de Nosso Senhor, e não imaginação ou engano do demónio. Porventura escondeu-se com tais mercês para gozar daqueles regalos, e não atender a outra coisa? Já vedes que não teve dia de descanso, ao que podemos entender; e tão-pouco o devia ter tido de noite, pois nela ganhava o que havia de comer. Gosto muito de São Pedro, quando ia fugindo do cárcere e lhe apareceu Nosso Senhor e lhe disse que ia a Roma para ser crucificado outra vez. Nunca rezamos desta festa, onde isto se lê, que não me dê particular consolo. Como ficou São Pedro com esta mercê do Senhor, ou que fez? Ir logo para a morte; e não é pequena misericórdia do Senhor encontrar quem lha dê.
6. Oh! irmãs minhas, que esquecido deve ter o seu descanso, e que pouco se lhe deve dar da honra, e que longe deve andar de querer ser tida em algo a alma onde o Senhor está tão particularmente! Porque, se ela está muito com Ele, como é de razão, pouco se deve lembrar de si; toda a memória se lhe vai em contentá-l'O mais, e em quê ou como Lhe mostrará o amor que Lhe tem. Para isto é a oração, filhas minhas; para isto serve este matrimónio espiritual: que nasçam sempre obras, obras.
7. Esta é a verdadeira prova de ser coisa e mercê feita por Deus, - como já vos disse -, porque pouco me aproveita ficar-me ali a sós muito recolhida, fazendo actos com Nosso Senhor, propondo e prometendo fazer maravilhas por Seu serviço, se, em saindo dali, e se oferece ocasião, faço tudo ao revés. Digo mal, que aproveitará pouco, pois tudo o que se faz se se está com Deus, aproveita muito; e estas determinações, embora depois sejamos fracos em as cumprir, alguma vez nos dará Sua Majestade com que o façamos; e talvez, até mesmo, embora nos pese, como acontece muitas vezes; pois como vê uma alma muito cobarde, dá-lhe um trabalho muito grande, bem contra vontade dela, e fá-la sair com lucro; e, depois, como a alma entende isto, fica mais perdido o medo para mais se oferecer a Ele. Quis dizer que é pouco, em comparação do muito mais que é conformar as obras com os actos e palavras, e quem não o puder por junto, seja a pouco e pouco. Vá dobrando a sua vontade, se quer que lhe aproveite a oração; dentro destes recantos em que viveis, não faltarão muitas ocasiões em que o possais fazer. 
8. Olhai que isto importa muito mais do que eu vos saberei encarecer. Ponde os olhos no Crucificado e tudo se vos fará pouco. Se Sua Majestade nos mostrou o Seu amor com tão espantosas obras e tormentos, como quereis contentá-l'O só com palavras? Sabeis o que é ser espiritual deveras? É fazer-se escravos de Deus, para que, marcados com o Seu ferrete que é a cruz, pois já Lhe deram a sua liberdade, os possa vender por escravos de todo o mundo, como Ele o foi; e não lhes faz nenhum agravo nem pequena mercê. E se a isto se não determinam, não haja medo que aproveitem muito, porque de todo este edifício - como já disse - é seu fundamento a humildade; e se não há esta muito deveras, até para vosso bem não quererá o Senhor subi-lo muito alto, para não dar com tudo em terra. Assim, irmãs, para que leve bons alicerces, procurai ser a menor de todas e sua escrava, vendo como ou em quê as podeis servir e dar-lhes prazer; pois, o que fizerdes neste caso, o fazeis mais para vós do que para elas, pondo pedras tão firmes, que não vos caia o castelo. 
9. Volto a dizer que, para isto é necessário não assentar vossos alicerces só em rezar e contemplar; porque, se não procurais virtudes e o exercício delas, sempre ficareis anãs; e praza a Deus que não seja só no crescer, porque já sabeis que, quem não cresce, decresce; porque tenho por impossível que o amor, onde o há, se contente de ficar em um ser.
10. Parecer-vos-á que falo com os que começam, e que depois já podem descansar. Já vos disse que o sossego que estas almas têm no interior, é para muito menos o terem, nem o querem ter, no exterior. Para que pensais que são aquelas inspirações que disse, ou para melhor dizer, aspirações; e aqueles recados que a alma envia do centro interior à gente de cima do castelo e às moradas que estão fora daquela onde ela está? É para que se deitem a dormir? Não, não, e não; pois dali mais guerra lhes faz, para que não estejam ociosas as potências e os sentidos e todo o corporal, do que fazia quando andava com eles padecendo; porque então não entendia ó lucro tão grande que há nos trabalhos, que foram porventura meios de que Deus se serviu para a trazer até ali, e como lhe dá forças muito maiores que nunca a companhia que tem em si. Porque, se até cá David nos diz que com os santos seremos santos, não há que duvidar de que estando feita uma coisa com o Forte, por união tão soberana de espírito com espírito, se lhe há-de apegar fortaleza à alma, e assim vemos a que tiveram os Santos para padecer e morrer. 
11. É muito certo que, ainda com aquela fortaleza que ali se lhe pega, acode a todos os que estão no castelo, e até ao mesmo corpo, embora pareça muitas vezes que não se sente; mas, encorajado com o esforço que tem a alma, bebendo do vinho desta adega, onde a trouxe seu Esposo e não a deixa sair, redunda no corpo fraco, tal como o manjar recebido no estômago dá força à cabeça e a todo o corpo. E assim esta alma tem muito má ventura enquanto vive; porque, por muito que faça, é muito maior à força interior e a guerra que se lhe dá, pois tudo lhe parece um nada. Daqui deviam vir as grandes penitências que fizeram muitos Santos, em especial a gloriosa Madalena, criada sempre em tanto regalo, e aquela fome que teve o nosso Pai Elias da honra do seu Deus; e a que teve São Domingos e São Francisco de ajuntar almas para que o Senhor fosse louvado; e eu vos digo que não deviam passar pouco trabalho, esquecidos de si mesmos.
12. Isto quero eu, irmãs minhas, que procuremos alcançar, e não para gozar, mas sim para ter estas forças para servir; desejemos e ocupemo-nos na oração; não queiramos ir por caminhos não andados, pois nos perderemos na melhor altura; e seria caminho bem novo pensar ter estas mercês de Deus por outro sem ser aquele por onde Ele foi e têm ido todos os Seus Santos. Não vos passe isto pelo pensamento; crede-me que Marta e Maria hão-de andar juntas para hospedar ao Senhor, e tê-Lo sempre consigo, e não Lhe dar má hospedagem, não Lhe dando de comer. Como Lha daria Maria, sentada sempre a Seus pés, se sua irmã não a ajudasse? Seu manjar é que, de todas as maneiras que pudermos; ganhemos almas para que se salvem e sempre O louvem.
13. Dir-me-eis duas coisas: uma, é que o Senhor disse que Maria tinha escolhido a melhor parte. É que já tinha feito o oficio de Marta, regalando ao Senhor em Lhe lavar os pés e enxugando-os com seus cabelos. E acaso pensais que lhe seria de pouca mortificação, uma senhora como ela era, ir por essas ruas, e porventura só, porque no fervor que levava não entendia a como ia, e entrar aonde nunca tinha entrado, e sofrer depois as murmurações do fariseu, e outras muitíssimas que devia ter sofrido? Porque, não se vê no povo uma mulher, e como ela, fazer tal mudança, entre gente tão má como sabemos, que bastava verem que tinha amizade com o Senhor, a Quem eles tinham em tanto, aborrecimento, para trazerem à memória a vida que ela tinha levado e que se queria agora fazer santa, porque, claro está, logo mudaria de vestidos e tudo o mais. Pois, se agora se diz o mesmo das pessoas que não são tão nomeadas, que seria então? Eu vos digo, irmãs, que essa «melhor parte» vinha já depois de muitos trabalhos e mortificações, pois, ainda que não fosse senão ver a seu Mestre tido em tanto aborrecimento, isso era para ela trabalho intolerável. E então os muitos que depois passou na morte do Senhor! Tenho cá para mim que, o não ter.recebido martírio, foi por tê-lo passado em ver morrer o Senhor, e nos anos que ainda viveu, que seriam de terrível tormento, em se ver ausente d'Ele. Pelo que se vê que não estava sempre com regalo de contemplação aos pés, do Senhor.
14. A outra, é que não podeis, nem sabeis como levar almas a Deus; que o faríeis de muito boa vontade, sim; mas, não tendo de ensinar nem de pregar como faziam os Apóstolos, não sabeis como. A isto já respondi por escrito algumas vezes, e até não sei se neste Castelo; mas, porque é coisa que creio vos passa pelo pensamento, com os desejos que vos dá o Senhor, não deixarei de o dizer aqui: Já vos disse noutra parte, que algumas vezes o demónio nos dá grandes desejos, para que não lancemos mão do que temos à mão, para servir a Nosso Senhor em coisas possíveis, e fiquemos contentes com ter desejado ás impossíveis. Deixando de parte que na oração ajudareis muito, não queirais aproveitar a todo o mundo, mas sim às que estão em vossa companhia, e assim será maior a obra, porque a elas estais mais obrigadas. Pensais que é de pouco lucro, que a vossa humildade seja tão grande, e a mortificação, e o servir a todas, e uma grande caridade para com elas, e um amor do Senhor, que esse fogo as incendeie a todas, e com as demais virtudes as andeis sempre despertando? Não será senão serviço muito e muito agradável ao Senhor, e, com isto que pondes por obra, e que podeis, entenderá Sua Majestade que faríeis muito mais; e assim vos dará prémio, como se Lhe ganhásseis muitas almas.
15. Direis que isto não é converter, porque todas são boas: E, quem vos manda meter nisto? Quanto melhor forem, mais agradáveis serão ao Senhor seus louvores, e mais aproveitará sua oração aos próximos. Enfim, irmãs minhas, aquilo com que quero concluir é que não façamos torres sem fundamentos, porque o Senhor não olha tanto à grandeza das obras como ao amor com que se fazem; e, desde que façamos o que pudermos, Sua Majestade fará com que vamos podendo cada dia mais é mais, conquanto não nos cansemos logo, mas; no pouco que dura esta vida, e porventura será ainda menos do que cada uma pensa, ofereçamos interior e exteriormente ao Senhor o sacrifício que pudermos, pois que Sua Majestade o juntará com o sacrifício que Ele ofereceu por nós na Cruz a Seu Pai, para que tenha o valor que o nosso amor tiver merecido, embora sejam pequenas as obras.
16. Praza a Sua Majestade, irmãs e filhas minhas, que nos vejamos todas onde sempre O louvemos, e me dê graça para que eu faça alguma coisa do que digo, pelos méritos de Seu Filho, que vive e reina por todo o sempre, amen; que eu vos digo que é grande confusão minha, e assim vos peço, pelo mesmo Senhor, que não esqueçais em vossas orações esta pobre miserável. 
Com o qual acaba, dando a entender o que lhe parece que pretende Nosso Senhor em fazer tão grandes mercês à alma, e como é necessário que andem juntas Marta e Maria. É muito proveitoso. 
 
1. Não haveis de entender, irmãs, que estes efeitos que tenho dito, estão sempre em um mesmo ser nestas almas e por isso, quando me lembro, digo habitualmente; porque, algumas vezes, as deixa Nosso Senhor em seu natural, e não parece senão que se juntam então todas as coisas peçonhentas do arrabalde e das outras moradas deste castelo, para se vingarem delas do tempo em que não as podem haver às mãos.
 
2. É verdade que isto dura pouco; um dia quando muito, ou pouco mais. E neste grande alvoroto, que procede normalmente de alguma ocasião, vê-se o que ganha a alma nesta boa companhia que tem; porque lhe dá o Senhor uma grande inteireza, para não torcer nada em coisa que seja do Seu serviço e boas determinações; mas antes parece que lhe crescem, e nem por um primeiro movimento muito pequeno se desviam desta determinação. Como digo, isto é poucas vezes, mas quer Nosso Senhor que ela não perca a memória de seu ser, para que sempre esteja humilde, e também para que entenda melhor o que deve a Sua Majestade, e a grandeza da mercê que recebe, e O louve.
 
3. Tão-pouco vos passe pelo pensamento que, por estas almas terem grandes desejos e determinação de não fazer uma imperfeição por coisa alguma cá da terra, deixem de fazer muitas, e até pecados. Com advertência não, pois que, a estas almas, o Senhor deve dar certamente ajuda muito particular para isto. Digo pecados veniais, que dos mortais, quanto elas entendem, estão livres, ainda que não seguras; pois terão alguns que não entendem, o que não lhes será pequeno tormento. Também lho dão as almas que elas vêem que se perdem; e embora tenham, de certo modo, grande esperança de não serem dessas, quando se recordam de alguns daqueles de que diz a Sagrada Escritura que pareciam ser favorecidos do Senhor, como por exemplo um Salomão que tanto comunicou com. Sua divina Majestade, não podem deixar de temer, como tenho dito; e aquela de vós que se vir com mais segurança de si mesma, tema mais; porque «bemaventurado o varão que teme a Deus», diz David. Sua Majestade nos ampare sempre; suplicar-Lhe isto para que não O ofendamos, é a maior segurança que podemos ter. Seja para sempre louvado, amen.
 
4. Será bom dizer-vos, irmãs, qual o fim para que o Senhor fez tantas mercês neste mundo. Ainda que nos efeitos delas já o tereis entendido, se advertistes nisso, eu vo-lo quero tornar a dizer aqui, para que não pense alguma que é só para regalar essas almas, o que seria grande erro; porque Sua Majestade não no-lo pode fazer maior que em dar-nos vida que seja imitando a que viveu Seu Filho tão amado; e assim tenho por certo serem estas mercês para fortalecer a nossa fraqueza - como aqui já tenho dito alguma vez para podê-Lo imitar no muito padecer.
 
5. Sempre temos visto que aqueles que mais de perto acompanhavam a Cristo Nosso Senhor, foram os que tiveram maiores trabalhos. Vejamos os que passou Sua gloriosa Mãe, e os gloriosos Apóstolos, Como pensais que poderia São Paulo sofrer trabalhos tão grandes? Por ele podemos ver que efeitos fazem as verdadeiras visões e a contemplação, quando são de Nosso Senhor, e não imaginação ou engano do demónio. Porventura escondeu-se com tais mercês para gozar daqueles regalos, e não atender a outra coisa? Já vedes que não teve dia de descanso, ao que podemos entender; e tão-pouco o devia ter tido de noite, pois nela ganhava o que havia de comer. Gosto muito de São Pedro, quando ia fugindo do cárcere e lhe apareceu Nosso Senhor e lhe disse que ia a Roma para ser crucificado outra vez. Nunca rezamos desta festa, onde isto se lê, que não me dê particular consolo. Como ficou São Pedro com esta mercê do Senhor, ou que fez? Ir logo para a morte; e não é pequena misericórdia do Senhor encontrar quem lha dê.
 
6. Oh! irmãs minhas, que esquecido deve ter o seu descanso, e que pouco se lhe deve dar da honra, e que longe deve andar de querer ser tida em algo a alma onde o Senhor está tão particularmente! Porque, se ela está muito com Ele, como é de razão, pouco se deve lembrar de si; toda a memória se lhe vai em contentá-l'O mais, e em quê ou como Lhe mostrará o amor que Lhe tem. Para isto é a oração, filhas minhas; para isto serve este matrimónio espiritual: que nasçam sempre obras, obras.
 
7. Esta é a verdadeira prova de ser coisa e mercê feita por Deus, - como já vos disse -, porque pouco me aproveita ficar-me ali a sós muito recolhida, fazendo actos com Nosso Senhor, propondo e prometendo fazer maravilhas por Seu serviço, se, em saindo dali, e se oferece ocasião, faço tudo ao revés. Digo mal, que aproveitará pouco, pois tudo o que se faz se se está com Deus, aproveita muito; e estas determinações, embora depois sejamos fracos em as cumprir, alguma vez nos dará Sua Majestade com que o façamos; e talvez, até mesmo, embora nos pese, como acontece muitas vezes; pois como vê uma alma muito cobarde, dá-lhe um trabalho muito grande, bem contra vontade dela, e fá-la sair com lucro; e, depois, como a alma entende isto, fica mais perdido o medo para mais se oferecer a Ele. Quis dizer que é pouco, em comparação do muito mais que é conformar as obras com os actos e palavras, e quem não o puder por junto, seja a pouco e pouco. Vá dobrando a sua vontade, se quer que lhe aproveite a oração; dentro destes recantos em que viveis, não faltarão muitas ocasiões em que o possais fazer. 
 
8. Olhai que isto importa muito mais do que eu vos saberei encarecer. Ponde os olhos no Crucificado e tudo se vos fará pouco. Se Sua Majestade nos mostrou o Seu amor com tão espantosas obras e tormentos, como quereis contentá-l'O só com palavras? Sabeis o que é ser espiritual deveras? É fazer-se escravos de Deus, para que, marcados com o Seu ferrete que é a cruz, pois já Lhe deram a sua liberdade, os possa vender por escravos de todo o mundo, como Ele o foi; e não lhes faz nenhum agravo nem pequena mercê. E se a isto se não determinam, não haja medo que aproveitem muito, porque de todo este edifício - como já disse - é seu fundamento a humildade; e se não há esta muito deveras, até para vosso bem não quererá o Senhor subi-lo muito alto, para não dar com tudo em terra. Assim, irmãs, para que leve bons alicerces, procurai ser a menor de todas e sua escrava, vendo como ou em quê as podeis servir e dar-lhes prazer; pois, o que fizerdes neste caso, o fazeis mais para vós do que para elas, pondo pedras tão firmes, que não vos caia o castelo. 
 
9. Volto a dizer que, para isto é necessário não assentar vossos alicerces só em rezar e contemplar; porque, se não procurais virtudes e o exercício delas, sempre ficareis anãs; e praza a Deus que não seja só no crescer, porque já sabeis que, quem não cresce, decresce; porque tenho por impossível que o amor, onde o há, se contente de ficar em um ser.
 
10. Parecer-vos-á que falo com os que começam, e que depois já podem descansar. Já vos disse que o sossego que estas almas têm no interior, é para muito menos o terem, nem o querem ter, no exterior. Para que pensais que são aquelas inspirações que disse, ou para melhor dizer, aspirações; e aqueles recados que a alma envia do centro interior à gente de cima do castelo e às moradas que estão fora daquela onde ela está? É para que se deitem a dormir? Não, não, e não; pois dali mais guerra lhes faz, para que não estejam ociosas as potências e os sentidos e todo o corporal, do que fazia quando andava com eles padecendo; porque então não entendia ó lucro tão grande que há nos trabalhos, que foram porventura meios de que Deus se serviu para a trazer até ali, e como lhe dá forças muito maiores que nunca a companhia que tem em si. Porque, se até cá David nos diz que com os santos seremos santos, não há que duvidar de que estando feita uma coisa com o Forte, por união tão soberana de espírito com espírito, se lhe há-de apegar fortaleza à alma, e assim vemos a que tiveram os Santos para padecer e morrer. 
 
11. É muito certo que, ainda com aquela fortaleza que ali se lhe pega, acode a todos os que estão no castelo, e até ao mesmo corpo, embora pareça muitas vezes que não se sente; mas, encorajado com o esforço que tem a alma, bebendo do vinho desta adega, onde a trouxe seu Esposo e não a deixa sair, redunda no corpo fraco, tal como o manjar recebido no estômago dá força à cabeça e a todo o corpo. E assim esta alma tem muito má ventura enquanto vive; porque, por muito que faça, é muito maior à força interior e a guerra que se lhe dá, pois tudo lhe parece um nada. Daqui deviam vir as grandes penitências que fizeram muitos Santos, em especial a gloriosa Madalena, criada sempre em tanto regalo, e aquela fome que teve o nosso Pai Elias da honra do seu Deus; e a que teve São Domingos e São Francisco de ajuntar almas para que o Senhor fosse louvado; e eu vos digo que não deviam passar pouco trabalho, esquecidos de si mesmos.
 
12. Isto quero eu, irmãs minhas, que procuremos alcançar, e não para gozar, mas sim para ter estas forças para servir; desejemos e ocupemo-nos na oração; não queiramos ir por caminhos não andados, pois nos perderemos na melhor altura; e seria caminho bem novo pensar ter estas mercês de Deus por outro sem ser aquele por onde Ele foi e têm ido todos os Seus Santos. Não vos passe isto pelo pensamento; crede-me que Marta e Maria hão-de andar juntas para hospedar ao Senhor, e tê-Lo sempre consigo, e não Lhe dar má hospedagem, não Lhe dando de comer. Como Lha daria Maria, sentada sempre a Seus pés, se sua irmã não a ajudasse? Seu manjar é que, de todas as maneiras que pudermos; ganhemos almas para que se salvem e sempre O louvem.
 
13. Dir-me-eis duas coisas: uma, é que o Senhor disse que Maria tinha escolhido a melhor parte. É que já tinha feito o oficio de Marta, regalando ao Senhor em Lhe lavar os pés e enxugando-os com seus cabelos. E acaso pensais que lhe seria de pouca mortificação, uma senhora como ela era, ir por essas ruas, e porventura só, porque no fervor que levava não entendia a como ia, e entrar aonde nunca tinha entrado, e sofrer depois as murmurações do fariseu, e outras muitíssimas que devia ter sofrido? Porque, não se vê no povo uma mulher, e como ela, fazer tal mudança, entre gente tão má como sabemos, que bastava verem que tinha amizade com o Senhor, a Quem eles tinham em tanto, aborrecimento, para trazerem à memória a vida que ela tinha levado e que se queria agora fazer santa, porque, claro está, logo mudaria de vestidos e tudo o mais. Pois, se agora se diz o mesmo das pessoas que não são tão nomeadas, que seria então? Eu vos digo, irmãs, que essa «melhor parte» vinha já depois de muitos trabalhos e mortificações, pois, ainda que não fosse senão ver a seu Mestre tido em tanto aborrecimento, isso era para ela trabalho intolerável. E então os muitos que depois passou na morte do Senhor! Tenho cá para mim que, o não ter.recebido martírio, foi por tê-lo passado em ver morrer o Senhor, e nos anos que ainda viveu, que seriam de terrível tormento, em se ver ausente d'Ele. Pelo que se vê que não estava sempre com regalo de contemplação aos pés, do Senhor.
 
14. A outra, é que não podeis, nem sabeis como levar almas a Deus; que o faríeis de muito boa vontade, sim; mas, não tendo de ensinar nem de pregar como faziam os Apóstolos, não sabeis como. A isto já respondi por escrito algumas vezes, e até não sei se neste Castelo; mas, porque é coisa que creio vos passa pelo pensamento, com os desejos que vos dá o Senhor, não deixarei de o dizer aqui: Já vos disse noutra parte, que algumas vezes o demónio nos dá grandes desejos, para que não lancemos mão do que temos à mão, para servir a Nosso Senhor em coisas possíveis, e fiquemos contentes com ter desejado ás impossíveis. Deixando de parte que na oração ajudareis muito, não queirais aproveitar a todo o mundo, mas sim às que estão em vossa companhia, e assim será maior a obra, porque a elas estais mais obrigadas. Pensais que é de pouco lucro, que a vossa humildade seja tão grande, e a mortificação, e o servir a todas, e uma grande caridade para com elas, e um amor do Senhor, que esse fogo as incendeie a todas, e com as demais virtudes as andeis sempre despertando? Não será senão serviço muito e muito agradável ao Senhor, e, com isto que pondes por obra, e que podeis, entenderá Sua Majestade que faríeis muito mais; e assim vos dará prémio, como se Lhe ganhásseis muitas almas.
 
15. Direis que isto não é converter, porque todas são boas: E, quem vos manda meter nisto? Quanto melhor forem, mais agradáveis serão ao Senhor seus louvores, e mais aproveitará sua oração aos próximos. Enfim, irmãs minhas, aquilo com que quero concluir é que não façamos torres sem fundamentos, porque o Senhor não olha tanto à grandeza das obras como ao amor com que se fazem; e, desde que façamos o que pudermos, Sua Majestade fará com que vamos podendo cada dia mais é mais, conquanto não nos cansemos logo, mas; no pouco que dura esta vida, e porventura será ainda menos do que cada uma pensa, ofereçamos interior e exteriormente ao Senhor o sacrifício que pudermos, pois que Sua Majestade o juntará com o sacrifício que Ele ofereceu por nós na Cruz a Seu Pai, para que tenha o valor que o nosso amor tiver merecido, embora sejam pequenas as obras.
 
16. Praza a Sua Majestade, irmãs e filhas minhas, que nos vejamos todas onde sempre O louvemos, e me dê graça para que eu faça alguma coisa do que digo, pelos méritos de Seu Filho, que vive e reina por todo o sempre, amen; que eu vos digo que é grande confusão minha, e assim vos peço, pelo mesmo Senhor, que não esqueçais em vossas orações esta pobre miserável.