Trata de como, em começando o Senhor afazer maiores mercês, há maiores trabalhos. Diz alguns e como se comportam neles os que estão nesta morada. É bom para quem tem trabalhos interiores.
1. Venhamos, pois, com o favor do Espírito Santo, a falar das sextas moradas, onde a alma já fica ferida do amor do Esposo e procura mais ocasiões para estar a sós e deixar tudo quanto pode, conforme a seu estado, e a pode estorvar nesta soledade. Está tão esculpida na alma aquela vista, que todo o seu desejo é torna-la a gozar. Já disse que, nesta oração, não se vê nada, que se possa dizer ver, nem com a imaginação; digo vista, pela comparação que usei. A alma já está bem determinada a não tomar outro esposo; mas o Esposo não, olha aos grandes desejos que ela tem de que se façam já os desposórios,. pois ainda quer que o deseje mais e lhe custe alguma coisa um bem que é o, maior dos bens. E, embora tudo seja pouco para tão grandíssimo lucro digo-vos desde já, filhas, que não deixa de ser necessária aquela amostra e sinal que já se tem dele, para se poder levar esse trabalho. Oh! valha-me. Deus! e quantos não são os trabalhos interiores e exteriores que padece até entrar nas sétimas moradas!
2. Certo é que penso nisto algumas vezes e temo que, se o entendessem antes, seria dificultosíssimo determinar-se a fraqueza natural para o poder sofrer, nem se resolvesse a passar por isso, por maiores bens que se lhe representassem, salvo se tivesse chegado à sétima morada; pois aí já nada se teme que seja de molde a impedir a alma de se arrojar deveras a sofrer tudo por Deus. E a causa é porque está quase sempre tão junto a Sua Majestade, que daí lhe vem a fortaleza. Creio que será bom contar-vos alguns dos trabalhos que eu sei passarem-se com certeza. Nem todas as almas serão, talvez, levadas por este caminho, ainda que duvido que vivam livres de trabalhos cá da terra, de uma maneira ou doutra, as almas que, de tempos a tempos, gozam tão deveras de coisas do céu.
3. Embora eu por mim não tivesse em vista tratar disto, pensei que a alguma alma, que se veja nestes trabalhos, lhe será grande consolo saber o que se passa nas almas a quem Deus faz semelhantes mercês, porque então parece verdadeiramente estar tudo perdido. Não os levarei pela ordem como sucedem, mas sim como se me oferecerem à memória. E quero começar pelos mais pequenos, que é uma gritaria das pessoas com quem se trata, e até mesmo daquelas com quem não se trata, e que nunca na vida pareceu que se podiam vir a lembrar dela: «que se faz santa», «que faz extremos para enganar o mundo, e para fazer aos outros ruins, que são melhores cristãos sem essas cerimónias». E deve-se notar que não há aqui cerimónia nenhuma, a não ser procurar guardar bem o seu estado. Os que tinha por amigos, apartam-se dela e são os que lhe dão pior bocado, e são dos que muito se sentem: «que anda perdida aquela alma» dizem, «e notavelmente enganada»; «que são coisas de demónio», «que há-de ser como aquela e aqueloutra pessoa que se perdeu, e ocasião de que decaia a virtude»; «que traz enganados os confessores», e vão ter com eles a dizer-lho, trazendo-lhes exemplos do que acontece a alguns que por aqui se perdem; mil maneiras de mofas e ditos deste teor.
4. Sei duma pessoa que teve muito medo de não haver quem a confessasse, segundo andavam as coisas; mas, por serem muitas, não há para que deter-me. E o pior é não passarem depressa, mas ser toda a vida, e o avisarem-se uns aos outros que se guardem de tratar com pessoas semelhantes. Dir-me-eis que também há quem diga bem. Oh! filhas, e como são poucos os que acreditam nesse bem, em comparação dos muitos que abominam isso! Tanto mais que esse é outro trabalho maior que os ditos! Porque, como a alma vê claramente que, se tem algum bem, é dado por Deus e não seu de maneira nenhuma, pois pouco antes se viu muito pobre e metida em grandes pecados, é-lhe isto um tormento intolerável, pelo menos ao princípio; que depois não é tanto, por algumas razões. A primeira, porque a experiência lhe faz ver claramente que tão depressa dizem bem como mal, e assim não faz mais caso de uma coisa que de outra. A segunda, porque o Senhor lhe tem dado maior entendimento para ver que nenhuma coisa boa é sua, mas dada por Sua Majestade; e assim, como se a visse em terceira pessoa, esquecida de que tem aí alguma parte, volve-se a Deus para O louvar. A terceira, se já tem visto algumas almas aproveitadas por verem as mercês que Deus lhe faz, pensa que Sua Majestade tomou este meio de a terem por boa, não o sendo, para que, a elas, lhes adviesse bem. A quarta, porque, como tem diante de si a honra e a glória de Deus mais de que a sua, já não lhe vem uma tentação que dá nos princípios, de que esses louvores hão-de servir para a sua ruína, como tem visto em algumas, e pouco se lhe dá de ser desacreditada, a troco de que, sequer uma vez, seja Deus louvado, por seu intermédio; venha depois o que vier!
5. Estas razões e outras aplacam a muita pena que dão estes louvores, embora, quase sempre, se sinta alguma; a não ser quando não se adverte nisso nem pouco nem muito. Mas maior trabalho que os ditos é, sem comparação, o ver-se assim em público tida por boa, sem razão. E quando chega a já não ter muito trabalho com os louvores, muitíssimo menos o tem com os ditos; antes folga e é para ela como uma música muito suave. Isto é grande verdade, e antes fortalece a alma que a acobarda; porque já a experiência lhe tem ensinado o grande ganho que lhe advém por este caminho, e parece-lhe que não ofendem a Deus os que a perseguem; antes o permite Sua Majestade para seu maior lucro; e como sente isto claramente, ganha por eles um particular amor muito terno, pois lhe parece que aqueles são mais seus amigos e lhe dão mais a ganhar que os que dizem bem.
6. Também costuma o Senhor dar enfermidades grandíssimas. Este é muito maior trabalho, em especial quando são dores agudas, porque, se são violentas, parece-me de certo modo o maior trabalho que há na terra - digo exterior -embora entrem na conta quantos quiserem; se é de muito fortes dores, digo, porque descompõe o interior e o exterior, e aperta uma alma de tal maneira, que ela não sabe que fazer de si, e de muito boa vontade tomaria qualquer martírio rápido, de preferência a estas dores; ainda que em grandíssimo extremo não duram tanto, que, enfim, Deus não dá mais do que se pode sofrer, e Sua Majestade dá primeiro a paciência; mas ter outras grandes dores é o costume, e enfermidades de muitos géneros;
7. eu conheço uma pessoa que, desde que o Senhor lhe começou a fazer esta mercê que fica dita, há uns quarenta anos, não pode dizer com verdade que tenha estado um dia sem ter dores e outras maneiras de padecer, de falta de saúde corporal, digo, sem falar de outros grandes trabalhos. Verdade é que tinha sido muito ruim, e, para o inferno que merecia, tudo lhe parece pouco. Outras, que não tenham ofendido tanto a Nosso Senhor, Ele as levará por outro caminho; mas eu sempre escolheria o de padecer, ao menos para imitar a Nosso Senhor Jesus Cristo, ainda que não houvesse outro lucro; em especial, porque sempre há muitos. Oh! e se tratamos dos sofrimentos interiores!... Estoutros pareceriam pequenos se se acertasse em dizer estes, pois é impossível dar a entender de que maneira se passam.
8. Comecemos pelo tormento que é encontrar um confessor tão prudente e pouco experimentado, que não há coisa que tenha por segura: tudo teme, em tudo põe dúvida, pois vê coisas não habituais. Em especial, se na alma que as tem, vê alguma imperfeição (pois lhe parece que devem ser anjos aqueles a quem Deus fizer estas mercês, e é impossível enquanto estiverem neste corpo), logo tudo é condenado à conta do demónio ou da melancolia. E desta está o mundo tão cheio, que não me espanto; pois há tanta agora no mundo, e faz o demónio tantos males por este caminho, que têm muitíssima razão os confessores de o temer e de olhar a isto muito bem. Mas a pobre alma que anda com o mesmo temor e vai ao confessor como a juiz e este a condena, não pode deixar de receber tão grande tormento e perturbação, que só entenderá como é grande este trabalho quem tiver passado por ele. Porque este é outro dos grandes trabalhos que estas almas padecem, em especial se foram ruins: pensar que, por seus pecados, há-de permitir Deus que sejam enganadas; e ainda que, quando Sua Majestade lhes faz a mercê, estão seguras e não podem crer ser aquilo de outro espírito senão de Deus, como é coisa que passa depressa e a lembrança dos pecados está sempre viva, e vêem em si faltas - porquanto estas nunca faltam -, logo vem este tormento. Quando o confessor lhe dá segurança, aplaca-se o tormento, ainda que volta depois. Mas, quando ele ajuda com mais temor, é coisa quase insofrível, em especial quando, atrás disto, vem uma tal aridez, que parece que nunca se lembrou de Deus nem se há-de lembrar e, quando ouve falar de Sua Majestade, é como quem ouve falar de uma pessoa que está longe.
9. Tudo é nada se, além disto, não lhe vem a parecer que não sabe informar bem os confessores e que os traz enganados; e, por mais que pense e veja que não há primeiro movimento que não o diga, não lhe aproveita; porque está o entendimento tão obscuro que não é capaz de ver a verdade, e só crê o que lhe representa a imaginação (que então é ela a senhora), e os desatinos que o demónio lhe quer apresentar, ao qual Nosso Senhor deve ter dado licença para que prove a alma, e até para lhe fazer crer que está reprovada por Deus. Porque são muitas as coisas que a combatem com um aperto interior, de maneira tão sensível e intolerável, que eu não sei a que se possa comparar, se não é aos tormentos que se padecem no inferno; porque não se admite nenhum consolo nesta tempestade. Se o quer tomar do confessor, parece que acodem a ele todos os demónios para que mais a atormente. E assim, tratando um confessor com uma alma que estava neste tormento (que parece perigoso aperto por ser de tantas coisas juntas), depois de passado, ele dizia-lhe que o avisasse quando assim estivesse atribulada; mas sempre era muito pior até que ele veio a entender que o remédio já não estava em sua mão. Pois, se quisesse tomar um livro em língua vulgar, e é pessoa que sabia ler muito bem, acontecia-lhe não entender mais do que se não conhecesse uma letra, porque o entendimento não estava capaz de entender.
10. Enfim, nenhum remédio há nesta tempestade, senão aguardar a misericórdia de Deus que, em hora não esperada, só com uma palavra Sua, ou por meio de uma ocasião que se proporciona, tira tudo tão depressa, que nem parece ter havido uma névoa naquela alma pois fica cheia de sol e de muito maior consolação. E, como quem escapou duma batalha perigosa e tenha ganho a vitória, fica louvando a Nosso Senhor, pois foi Ele quem pelejou para o triunfo, e a alma reconhece muito claramente não ter pelejado. Pois todas as armas com que se podia defender, parece-lhe que as vê nas mãos de seu contrário, e assim conhece claramente a sua miséria e o pouquíssimo que podemos por nós mesmos, se o Senhor nos desamparar.
11. Parece que já não tem necessidade de consideração para entendê-lo, porque a experiência de ter passado por isto, tendo-se visto de todo incapacitada, fez-lhe entender o nosso nada, e quão miseráveis somos; porque a graça (conquanto não deve estar sem ela, pois em toda esta tormenta não ofende a Deus, nem O ofenderia por coisa nenhuma da terra), está tão !escondida, que nem mesmo lhe parece ver em si uma centelha muito pequena de amor de Deus, nem mesmo que o teve algum dia; porque, se fez algum bem, ou se Sua Majestade lhe fez alguma mercê, tudo lhe parece coisa sonhada e que foi uma fantasia. Os pecados, esses, sim, vê com certeza que os fez.
12. Ó Jesus, o que é ver uma alma desamparada desta sorte, e - como disse - quão pouco lhe aproveita qualquer consolação da terra! Por isso, irmãs, se alguma de vós se vir assim, não penseis que os ricos e os que estão com liberdade terão para estes momentos melhor remédio. Não, não; pois me parece a mim seria como se aos condenados lhes pusessem na frente quantos deleites há no mundo, nada disso bastaria para lhes dar alívio, antes lhes acrescentaria o tormento. Assim aqui, tudo isto vem do alto, e não valem nada as coisas da terra. Quer este grande Deus que O conheçamos a Ele como Rei e a nossa miséria; e isto importa muito para o que adiante se dirá.
13. Pois, que fará esta pobre alma, quando isto lhe durar assim muitos dias? Porque, se reza, é como se não rezasse, para sua consolação, digo; porque não penetra no interior, nem ela mesma entende o que reza para si, embora seja vocalmente, pois, para oração mental, não é este o tempo de maneira alguma, porque as potências não estão para isso; antes causa maior dano a solidão, ainda que seja outro tormento o estar com alguém ou que lhe falem. E assim, por muito que se esforce, anda com um desabrimento e má disposição exterior que muito se deixa ver. E saberá ela na verdade dizer o que tem? É indizível porque são aflições e penas espirituais a que não se sabe dar nome. O melhor remédio - não digo para tirar este tormento, que eu não o encontro, mas para que se possa sofrer - é atender a obras de caridade e exteriores, e esperar na misericórdia de Deus, que nunca falta aos que n'Ele esperam. Seja para sempre bendito, amen.
14. Outros trabalhos exteriores que dão os demónios, não devem ser tão habituais, e assim não há para que falar neles, nem são tão penosos em grande parte; porque, por muito que os demónios façam, não chegam a inabilitar assim as potências, a meu parecer, nem a perturbar a alma desta maneira; porque, enfim, fica ainda a razão para pensar que eles não podem fazer mais do que o Senhor lhes der licença; e, quando esta não está perdida, tudo é pouco em comparação do que fica dito.
15. Outras penas interiores iremos dizendo nestas moradas, tratando das diferenças que há na oração e nas mercês do Senhor. Porque, ainda que algumas são ainda de mais duro padecer que o já dito, como se verá pelo estado em que deixam o corpo, não merecem, no entanto, o nome de trabalhos, nem é razão que lho ponhamos, por serem tão grandes mercês do Senhor, e, porque, no meio deles, a alma bem entende serem mercês e muito acima de seus merecimentos. Esta pena tão grande vem já para entrar na sétima morada, com outros muitos trabalhos, dos quais direi alguns, porque todos seria impossível, nem mesmo declarar como são, porque vêm de outra linhagem muito mais alta que os outros que disse; e se destes, sendo de casta mais baixa, não pude declarar mais que o dito, menos poderei ainda nestes outros. O Senhor nos dê para tudo o Seu favor, pelos méritos de Seu Filho, amen.
Trata de como, em começando o Senhor afazer maiores mercês, há maiores trabalhos. Diz alguns e como se comportam neles os que estão nesta morada. É bom para quem tem trabalhos interiores.
1. Venhamos, pois, com o favor do Espírito Santo, a falar das sextas moradas, onde a alma já fica ferida do amor do Esposo e procura mais ocasiões para estar a sós e deixar tudo quanto pode, conforme a seu estado, e a pode estorvar nesta soledade. Está tão esculpida na alma aquela vista, que todo o seu desejo é torna-la a gozar. Já disse que, nesta oração, não se vê nada, que se possa dizer ver, nem com a imaginação; digo vista, pela comparação que usei. A alma já está bem determinada a não tomar outro esposo; mas o Esposo não, olha aos grandes desejos que ela tem de que se façam já os desposórios,. pois ainda quer que o deseje mais e lhe custe alguma coisa um bem que é o, maior dos bens. E, embora tudo seja pouco para tão grandíssimo lucro digo-vos desde já, filhas, que não deixa de ser necessária aquela amostra e sinal que já se tem dele, para se poder levar esse trabalho. Oh! valha-me. Deus! e quantos não são os trabalhos interiores e exteriores que padece até entrar nas sétimas moradas!
2. Certo é que penso nisto algumas vezes e temo que, se o entendessem antes, seria dificultosíssimo determinar-se a fraqueza natural para o poder sofrer, nem se resolvesse a passar por isso, por maiores bens que se lhe representassem, salvo se tivesse chegado à sétima morada; pois aí já nada se teme que seja de molde a impedir a alma de se arrojar deveras a sofrer tudo por Deus. E a causa é porque está quase sempre tão junto a Sua Majestade, que daí lhe vem a fortaleza. Creio que será bom contar-vos alguns dos trabalhos que eu sei passarem-se com certeza. Nem todas as almas serão, talvez, levadas por este caminho, ainda que duvido que vivam livres de trabalhos cá da terra, de uma maneira ou doutra, as almas que, de tempos a tempos, gozam tão deveras de coisas do céu.
3. Embora eu por mim não tivesse em vista tratar disto, pensei que a alguma alma, que se veja nestes trabalhos, lhe será grande consolo saber o que se passa nas almas a quem Deus faz semelhantes mercês, porque então parece verdadeiramente estar tudo perdido. Não os levarei pela ordem como sucedem, mas sim como se me oferecerem à memória. E quero começar pelos mais pequenos, que é uma gritaria das pessoas com quem se trata, e até mesmo daquelas com quem não se trata, e que nunca na vida pareceu que se podiam vir a lembrar dela: «que se faz santa», «que faz extremos para enganar o mundo, e para fazer aos outros ruins, que são melhores cristãos sem essas cerimónias». E deve-se notar que não há aqui cerimónia nenhuma, a não ser procurar guardar bem o seu estado. Os que tinha por amigos, apartam-se dela e são os que lhe dão pior bocado, e são dos que muito se sentem: «que anda perdida aquela alma» dizem, «e notavelmente enganada»; «que são coisas de demónio», «que há-de ser como aquela e aqueloutra pessoa que se perdeu, e ocasião de que decaia a virtude»; «que traz enganados os confessores», e vão ter com eles a dizer-lho, trazendo-lhes exemplos do que acontece a alguns que por aqui se perdem; mil maneiras de mofas e ditos deste teor.
4. Sei duma pessoa que teve muito medo de não haver quem a confessasse, segundo andavam as coisas; mas, por serem muitas, não há para que deter-me. E o pior é não passarem depressa, mas ser toda a vida, e o avisarem-se uns aos outros que se guardem de tratar com pessoas semelhantes. Dir-me-eis que também há quem diga bem. Oh! filhas, e como são poucos os que acreditam nesse bem, em comparação dos muitos que abominam isso! Tanto mais que esse é outro trabalho maior que os ditos! Porque, como a alma vê claramente que, se tem algum bem, é dado por Deus e não seu de maneira nenhuma, pois pouco antes se viu muito pobre e metida em grandes pecados, é-lhe isto um tormento intolerável, pelo menos ao princípio; que depois não é tanto, por algumas razões. A primeira, porque a experiência lhe faz ver claramente que tão depressa dizem bem como mal, e assim não faz mais caso de uma coisa que de outra. A segunda, porque o Senhor lhe tem dado maior entendimento para ver que nenhuma coisa boa é sua, mas dada por Sua Majestade; e assim, como se a visse em terceira pessoa, esquecida de que tem aí alguma parte, volve-se a Deus para O louvar. A terceira, se já tem visto algumas almas aproveitadas por verem as mercês que Deus lhe faz, pensa que Sua Majestade tomou este meio de a terem por boa, não o sendo, para que, a elas, lhes adviesse bem. A quarta, porque, como tem diante de si a honra e a glória de Deus mais de que a sua, já não lhe vem uma tentação que dá nos princípios, de que esses louvores hão-de servir para a sua ruína, como tem visto em algumas, e pouco se lhe dá de ser desacreditada, a troco de que, sequer uma vez, seja Deus louvado, por seu intermédio; venha depois o que vier!
5. Estas razões e outras aplacam a muita pena que dão estes louvores, embora, quase sempre, se sinta alguma; a não ser quando não se adverte nisso nem pouco nem muito. Mas maior trabalho que os ditos é, sem comparação, o ver-se assim em público tida por boa, sem razão. E quando chega a já não ter muito trabalho com os louvores, muitíssimo menos o tem com os ditos; antes folga e é para ela como uma música muito suave. Isto é grande verdade, e antes fortalece a alma que a acobarda; porque já a experiência lhe tem ensinado o grande ganho que lhe advém por este caminho, e parece-lhe que não ofendem a Deus os que a perseguem; antes o permite Sua Majestade para seu maior lucro; e como sente isto claramente, ganha por eles um particular amor muito terno, pois lhe parece que aqueles são mais seus amigos e lhe dão mais a ganhar que os que dizem bem.
6. Também costuma o Senhor dar enfermidades grandíssimas. Este é muito maior trabalho, em especial quando são dores agudas, porque, se são violentas, parece-me de certo modo o maior trabalho que há na terra - digo exterior -embora entrem na conta quantos quiserem; se é de muito fortes dores, digo, porque descompõe o interior e o exterior, e aperta uma alma de tal maneira, que ela não sabe que fazer de si, e de muito boa vontade tomaria qualquer martírio rápido, de preferência a estas dores; ainda que em grandíssimo extremo não duram tanto, que, enfim, Deus não dá mais do que se pode sofrer, e Sua Majestade dá primeiro a paciência; mas ter outras grandes dores é o costume, e enfermidades de muitos géneros;
7. eu conheço uma pessoa que, desde que o Senhor lhe começou a fazer esta mercê que fica dita, há uns quarenta anos, não pode dizer com verdade que tenha estado um dia sem ter dores e outras maneiras de padecer, de falta de saúde corporal, digo, sem falar de outros grandes trabalhos. Verdade é que tinha sido muito ruim, e, para o inferno que merecia, tudo lhe parece pouco. Outras, que não tenham ofendido tanto a Nosso Senhor, Ele as levará por outro caminho; mas eu sempre escolheria o de padecer, ao menos para imitar a Nosso Senhor Jesus Cristo, ainda que não houvesse outro lucro; em especial, porque sempre há muitos. Oh! e se tratamos dos sofrimentos interiores!... Estoutros pareceriam pequenos se se acertasse em dizer estes, pois é impossível dar a entender de que maneira se passam.
8. Comecemos pelo tormento que é encontrar um confessor tão prudente e pouco experimentado, que não há coisa que tenha por segura: tudo teme, em tudo põe dúvida, pois vê coisas não habituais. Em especial, se na alma que as tem, vê alguma imperfeição (pois lhe parece que devem ser anjos aqueles a quem Deus fizer estas mercês, e é impossível enquanto estiverem neste corpo), logo tudo é condenado à conta do demónio ou da melancolia. E desta está o mundo tão cheio, que não me espanto; pois há tanta agora no mundo, e faz o demónio tantos males por este caminho, que têm muitíssima razão os confessores de o temer e de olhar a isto muito bem. Mas a pobre alma que anda com o mesmo temor e vai ao confessor como a juiz e este a condena, não pode deixar de receber tão grande tormento e perturbação, que só entenderá como é grande este trabalho quem tiver passado por ele. Porque este é outro dos grandes trabalhos que estas almas padecem, em especial se foram ruins: pensar que, por seus pecados, há-de permitir Deus que sejam enganadas; e ainda que, quando Sua Majestade lhes faz a mercê, estão seguras e não podem crer ser aquilo de outro espírito senão de Deus, como é coisa que passa depressa e a lembrança dos pecados está sempre viva, e vêem em si faltas - porquanto estas nunca faltam -, logo vem este tormento. Quando o confessor lhe dá segurança, aplaca-se o tormento, ainda que volta depois. Mas, quando ele ajuda com mais temor, é coisa quase insofrível, em especial quando, atrás disto, vem uma tal aridez, que parece que nunca se lembrou de Deus nem se há-de lembrar e, quando ouve falar de Sua Majestade, é como quem ouve falar de uma pessoa que está longe.
9. Tudo é nada se, além disto, não lhe vem a parecer que não sabe informar bem os confessores e que os traz enganados; e, por mais que pense e veja que não há primeiro movimento que não o diga, não lhe aproveita; porque está o entendimento tão obscuro que não é capaz de ver a verdade, e só crê o que lhe representa a imaginação (que então é ela a senhora), e os desatinos que o demónio lhe quer apresentar, ao qual Nosso Senhor deve ter dado licença para que prove a alma, e até para lhe fazer crer que está reprovada por Deus. Porque são muitas as coisas que a combatem com um aperto interior, de maneira tão sensível e intolerável, que eu não sei a que se possa comparar, se não é aos tormentos que se padecem no inferno; porque não se admite nenhum consolo nesta tempestade. Se o quer tomar do confessor, parece que acodem a ele todos os demónios para que mais a atormente. E assim, tratando um confessor com uma alma que estava neste tormento (que parece perigoso aperto por ser de tantas coisas juntas), depois de passado, ele dizia-lhe que o avisasse quando assim estivesse atribulada; mas sempre era muito pior até que ele veio a entender que o remédio já não estava em sua mão. Pois, se quisesse tomar um livro em língua vulgar, e é pessoa que sabia ler muito bem, acontecia-lhe não entender mais do que se não conhecesse uma letra, porque o entendimento não estava capaz de entender.
10. Enfim, nenhum remédio há nesta tempestade, senão aguardar a misericórdia de Deus que, em hora não esperada, só com uma palavra Sua, ou por meio de uma ocasião que se proporciona, tira tudo tão depressa, que nem parece ter havido uma névoa naquela alma pois fica cheia de sol e de muito maior consolação. E, como quem escapou duma batalha perigosa e tenha ganho a vitória, fica louvando a Nosso Senhor, pois foi Ele quem pelejou para o triunfo, e a alma reconhece muito claramente não ter pelejado. Pois todas as armas com que se podia defender, parece-lhe que as vê nas mãos de seu contrário, e assim conhece claramente a sua miséria e o pouquíssimo que podemos por nós mesmos, se o Senhor nos desamparar.
11. Parece que já não tem necessidade de consideração para entendê-lo, porque a experiência de ter passado por isto, tendo-se visto de todo incapacitada, fez-lhe entender o nosso nada, e quão miseráveis somos; porque a graça (conquanto não deve estar sem ela, pois em toda esta tormenta não ofende a Deus, nem O ofenderia por coisa nenhuma da terra), está tão !escondida, que nem mesmo lhe parece ver em si uma centelha muito pequena de amor de Deus, nem mesmo que o teve algum dia; porque, se fez algum bem, ou se Sua Majestade lhe fez alguma mercê, tudo lhe parece coisa sonhada e que foi uma fantasia. Os pecados, esses, sim, vê com certeza que os fez.
12. Ó Jesus, o que é ver uma alma desamparada desta sorte, e - como disse - quão pouco lhe aproveita qualquer consolação da terra! Por isso, irmãs, se alguma de vós se vir assim, não penseis que os ricos e os que estão com liberdade terão para estes momentos melhor remédio. Não, não; pois me parece a mim seria como se aos condenados lhes pusessem na frente quantos deleites há no mundo, nada disso bastaria para lhes dar alívio, antes lhes acrescentaria o tormento. Assim aqui, tudo isto vem do alto, e não valem nada as coisas da terra. Quer este grande Deus que O conheçamos a Ele como Rei e a nossa miséria; e isto importa muito para o que adiante se dirá.
13. Pois, que fará esta pobre alma, quando isto lhe durar assim muitos dias? Porque, se reza, é como se não rezasse, para sua consolação, digo; porque não penetra no interior, nem ela mesma entende o que reza para si, embora seja vocalmente, pois, para oração mental, não é este o tempo de maneira alguma, porque as potências não estão para isso; antes causa maior dano a solidão, ainda que seja outro tormento o estar com alguém ou que lhe falem. E assim, por muito que se esforce, anda com um desabrimento e má disposição exterior que muito se deixa ver. E saberá ela na verdade dizer o que tem? É indizível porque são aflições e penas espirituais a que não se sabe dar nome. O melhor remédio - não digo para tirar este tormento, que eu não o encontro, mas para que se possa sofrer - é atender a obras de caridade e exteriores, e esperar na misericórdia de Deus, que nunca falta aos que n'Ele esperam. Seja para sempre bendito, amen.
14. Outros trabalhos exteriores que dão os demónios, não devem ser tão habituais, e assim não há para que falar neles, nem são tão penosos em grande parte; porque, por muito que os demónios façam, não chegam a inabilitar assim as potências, a meu parecer, nem a perturbar a alma desta maneira; porque, enfim, fica ainda a razão para pensar que eles não podem fazer mais do que o Senhor lhes der licença; e, quando esta não está perdida, tudo é pouco em comparação do que fica dito.
15. Outras penas interiores iremos dizendo nestas moradas, tratando das diferenças que há na oração e nas mercês do Senhor. Porque, ainda que algumas são ainda de mais duro padecer que o já dito, como se verá pelo estado em que deixam o corpo, não merecem, no entanto, o nome de trabalhos, nem é razão que lho ponhamos, por serem tão grandes mercês do Senhor, e, porque, no meio deles, a alma bem entende serem mercês e muito acima de seus merecimentos. Esta pena tão grande vem já para entrar na sétima morada, com outros muitos trabalhos, dos quais direi alguns, porque todos seria impossível, nem mesmo declarar como são, porque vêm de outra linhagem muito mais alta que os outros que disse; e se destes, sendo de casta mais baixa, não pude declarar mais que o dito, menos poderei ainda nestes outros. O Senhor nos dê para tudo o Seu favor, pelos méritos de Seu Filho, amen.