SEXTA MORADA - CAPÍTULO 10 e 11

SEXTA MORADA - CAPÍTULO 10 e 11
Diz outras mercês que Deus faz à alma por modo diferente das que ficam agora ditas, e do grande proveito que delas fica. 
1. De muitas maneiras se comunica o Senhor à alma com estas aparições; algumas, quando está aflita; outras, quando lhe há-de vir algum trabalho grande; outras, para Sua Majestade Se regalar com ela e a regalar a ela. Não há motivo para particularizar mais cada coisa, pois meu intento não é senão dar a conhecer cada uma das diferenças que há neste caminho, até onde eu as entender, para que entendais, irmãs, de que maneira são e os efeitos que deixam; e também para que não se vos afigure que cada imaginação é uma visão e para que, quando o for, entendendo que é possível, não andeis alvorotadas e aflitas. Pois ganha muito o demónio, e goza à grande de ver uma alma aflita e inquieta, porque vê que isso lhe é estorvo para se empregar toda em amar e louvar a Deus. Por outras maneiras se comunica Sua Majestade, assaz mais subidas e menos perigosas; porque o demónio, creio, não as poderá contrafazer e, assim, mal se podem dizer, por ser coisa muito oculta, porquanto as imaginárias melhor se podem dar a entender.
2. Acontece, quando o Senhor é servido, estando a alma em oração e muito em seus sentidos, vir-lhe de repente uma suspensão, na qual o Senhor lhe dá a entender grandes segredos, que parece os vê no mesmo Deus. Estas, porém, não são visões da sacratíssima Humanidade, e embora diga que vê, não vê nada, porque não é visão imaginária, senão intelectual, na qual se lhe descobre como em Deus se vêem todas as coisas, e Ele as tem todas em Si mesmo. E é de grande proveito, porque, ainda que passa num momento, fica muito gravada, e causa grandíssima confusão; vê-se mais claramente a maldade de quando ofendemos a Deus, porque no mesmo Deus - digo, estando dentro d'Ele - fazemos grandes maldades. Quero fazer uma comparação, se acertar, para vo-lo dar a entender, porque, embora isto seja assim e o ouçamos muitas vezes, ou não reparamos nisso, ou não o queremos entender, pois não parece que seria possível sermos tão atrevidos, se se entendesse tal como é.
3. Façamos agora de conta que Deus é como uma morada ou palácio muito grande e formoso, e que este palácio, como digo, é o mesmo Deus. Pode porventura o pecador, para fazer suas maldades, apartar-se deste palácio? Não, por certo; senão que, dentro do mesmo palácio, que é o mesmo Deus, passam-se as abominações e desonestidades e maldades que fazemos nós os pecadores. Oh! coisa temerosa e digna de grande consideração e muito proveitosa para os que sabemos pouco que não acabamos de entender estas verdades e não seria possível ter atrevimento tão desatinado! Consideremos, irmãs, a grande misericórdia e sofrimento de Deus em não nos aniquilar ali imediatamente; e demos-Lhe muitas graças, e tenhamos vergonha de nos sentirmos por coisa que se faça ou diga contra nós; que a maior maldade do mundo é ver que Deus Nosso Criador sofre tantas dentro de Si, mesmo às Suas criaturas, e que nós sintamos alguma vez uma, única palavra que se diga em nossa ausência, e talvez sem má intenção.
4. Oh! miséria humana! Quando, mas quando, filhas, imitaremos em alguma coisa este grande Deus? Oh! e não se nos vá afigurar que já fazemos algo em sofrer injúrias! Mas passemos, de muito boa vontade, por tudo e amemos a quem no-las faz, pois este grande Deus não deixou de nos amar a nós, ainda que O tenhamos ofendido muito, e assim Ele tem razão de sobejo em querer que todos perdoem, por mais agravos que lhes façam. Eu vos digo, filhas, que embora passe depressa esta visão, é uma grande mercê que faz Nosso Senhor a quem a faz, se se quiser aproveitar dela, trazendo-a presente na memória muito de habitualmente.
5. Também acontece, assim muito de repente e de maneira que nem se sabe dizer, mostrar Deus em Si mesmo uma verdade que parece deixa obscurecidas todas as que há nas criaturas, e muito claramente dá a entender que só Ele é a verdade que não pode mentir; e dá-se bem a entender o que diz David em um salmo, que todo o homem é mentiroso; coisa que nunca jamais se entenderia assim, ainda que se ouvisse muitas vezes, e é verdade que não pode falhar. Lembro-me de Pilatos, o muito que perguntava a Nosso Senhor, quando em Sua Paixão Lhe disse: «O que é a verdade», e de quão pouco aqui entendemos desta suma Verdade.
6. Eu quisera poder dar-me melhor a entender neste caso, mas não se pode dizer. Tiremos daqui, irmãs, que, para nos conformarmos com o nosso Deus e Esposo em alguma coisa, será bem que procuremos muito andar sempre nesta verdade. Não digo só que não digamos mentiras, pois nisso, glória a Deus, já vejo que tendes em grande conta nestas casas de não a dizer por coisa nenhuma, mas que andemos em verdade diante de Deus e das gentes, de quantas maneiras pudermos; em especial, não querendo que nos tenham por melhores do que somos e, em nossas obras, dando a Deus o que é Seu e a nós o que é nosso, e procurando em tudo a verdade, e assim termos em pouco este mundo que é todo mentira e falsidade e, como tal, não é perdurável.
7. Uma vez estava eu considerando por que razão era Nosso Senhor tão amigo desta virtude da humildade, e logo se me pôs diante - a meu parecer sem eu considerar nisso, mas de repente - isto: é porque Deus é a suma Verdade, e a humildade é andar na verdade. E é muito grande verdade não termos coisa boa de nós mesmos, senão a miséria e sermos nada; e, quem isto não entende, anda em mentira. Quem melhor o entende, mais agrada à suma Verdade, porque anda nela. Praza a Deus, irmãs, nos faça mercê de não sairmos nunca deste próprio conhecimento, amen.
8. Nosso Senhor faz destas mercês à alma, porque, como a verdadeira esposa, que já está determinada a fazerem tudo a Sua Vontade, lhe quer dar alguma notícia daquilo em que a há-de fazer, e de Suas grandezas. Não há para que tratar de mais coisas, e destas duas falei por me parecer de grande proveito; pois, em coisas semelhantes não há que temer, senão louvar ao Senhor, porque as dá; porque a meu parecer, nem o demónio, nem mesmo a imaginação própria, têm aqui grande cabida; e assim a alma fica com grande satisfação. 
 
CAPÍTULO 11 
Trata de uns desejos tão grandes e impetuosos, que Deus dá à alma de O gozar, que a põem em perigo de perder a vida, e do proveito que fica desta mercê que o Senhor faz
1. Terão bastado todas estas mercês que o Esposo tem feito à alma, para que a pombinha ou borboletazinha esteja satisfeita (não penseis que a tenho esquecida), e tome assento onde há-de morrer? Não, por certo; antes está muito pior. Ainda mesmo que haja muitos anos que recebe estes favores, sempre geme e anda chorosa, porque de cada um deles lhe fica maior dor. A causa é porque, como vai conhecendo mais e mais as grandezas de Deus, e se vê estar tão ausente e apartada de O gozar, cresce muito mais o desejo; porque também cresce o amor, quanto mais se lhe descobre o muito que merece ser amado este grande Deus e Senhor; e nestes anos tem vindo crescendo, pouco a pouco, este desejo, de maneira que a trazem tão grande pena, como agora direi. Disse anos, conformando-me com o que se passou com a pessoa de que tenho falado aqui, que bem entendo que a Deus não há que pôr limites, pois num momento pode fazer chegar uma alma ao mais subido quer aqui se diz. Poderoso é Sua Majestade para tudo o que quiser fazer e desejoso de fazer muito por nós.
2. Pois há ocasiões em que estas ânsias e lágrimas e suspiros e os grandes ímpetos que ficam ditos (e tudo isto parece proceder do nosso amor, com grande sentimento, mas tudo não é nada em comparação deste outro, porque este parece um fogo que está fumegando, e pode sofrer-se, embora com pena), andando assim esta alma abrasando-se em si mesma, acontece muitas vezes, por um pensamento muito ligeiro, ou por uma palavra que ouve de que nos tarda o morrer, vir de outra parte - não se entende donde nem como - um golpe, ou como se viesse uma seta de fogo? Não digo que é seta, mas, seja que coisa for, vê-se claramente que não podia proceder do nosso natural. Também não é golpe, embora diga golpe; mas fere agudamente. E não é, a meu parecer, onde se costumam sentir as penas, senão no muito fundo e íntimo da alma, onde este raio que passa depressa, deixa tudo quanto encontra, desta terra de nosso natural, feito em pó. E, pelo tempo que dura, é impossível ter memória de coisa alguma do nosso ser; porque, num instante, ata as potências, de maneira que ficam sem nenhuma liberdade para nada, senão para as que lhe hão-de fazer acrescer esta dor.
3. Não quereria que isto parecesse encarecimento, porque vou vendo verdadeiramente que fico aquém, porque não se pode dizer tudo. É um arroubamento de sentidos e potências, para tudo o que não é, como disse, ajudar a sentir esta aflição. Porque o entendimento está muito vivo para entender a razão que há para sentir o estar aquela alma ausente de Deus; e ajuda Sua Majestade com tão viva notícia de Si naquele tempo, de maneira que faz crescer a pena em tal grau, que, quem a tem, começa a dar grandes gritos. Apesar de ser pessoa sofrida e habituada a padecer grandes dores, não pode então fazer mais; porque este sentimento não é no corpo, como fica dito, mas sim no interior da alma. Por isto compreendeu esta pessoa quanto mais fortes são os sentimentos da alma que os do corpo, e se lhe representou ser desta maneira os que se padecem no purgatório, pois, o não ter corpo, não impede de padecer muito mais que todos os que padecem cá na terra, tendo-o.
4. Eu vi uma pessoa assim, e verdadeiramente pensei que morria, e não era grande maravilha, porque, na verdade, é grande perigo de morte; e assim, ainda que dure pouco, deixa o corpo muito desconjuntado, e naquele tempo tem os pulsos tão abertos, como se já quisesse dar a alma a Deus, e não é para menos; porque o calor natural falta, e o abrasa de maneira que, com mais um pouco, ter-lhe-ia Deus cumprido seus desejos. Não porque sinta pouca ou muita dor no corpo (ainda que se desconjunta - como tenho dito - de maneira que fica durante uns dois ou três dias sem ter forças sequer para poder escrever, e com grandes dores; e até me parece que o corpo lhe fica sempre com menos força do que antes); o não sentir, deve ser porque é muito maior o sentimento interior da alma, e não faz caso de nenhuma coisa do corpo; é como se tivéssemos uma dor muito aguda em qualquer parte e, ainda que haja outras muitas, sentimo-las pouco; isto tenho-o eu bem provado. Aqui, nisto, nem pouco nem muito, nem creio sentiria se a fizessem em pedaços.
5. Dir-me-eis que é imperfeição; pois, porque não se conforma com a vontade de Deus, se Lhe está tão rendida? Até aqui podia fazer isso, e com isso suportava a vida. Agora não, porque sua razão está de tal sorte, que não é senhora dela, nem de pensar mais que ria razão que tem para penar; pois, se está ausente seu Bem, para que quer a vida? Sente uma soledade estranha, porque nenhuma criatura de toda a terra lhe faz companhia, nem creio lhe fariam as do Céu, a não ser Aquele a quem ama, antes tudo a atormenta. Vê-se como urna pessoa dependurada, que não assenta em coisa da terra, nem pode subir ao Céu; abrasada com esta sede, e não pode chegar à água. E não é sede que se possa sofrer, mas já em tal extremo, que nenhuma água lha tiraria, nem quer que se lhe tire, a não ser com aquela que Nosso Senhor disse à Samaritana, e essa não lha dão.
6. Oh! valha-me Deus, Senhor, como afligis aos Vossos amadores! Mas tudo é pouco para o que lhes dais depois. Bem é que o muito custe muito; quanto mais que, se é para purificar esta alma, a fim de que entre na sétima morada, assim como os que hão-de entrar no Céu se limpam no purgatório, é tão pouco este padecer, como seria uma gota de água no mar. Tanto mais que, com todo este tormento e aflição que, segundo creio, não o pode haver maior entre todas as aflições que há na terra, (e esta pessoa tinha passado muitas, assim corporais como espirituais, mas tudo lhe parece nada em comparação com esta), a alma sente que é de tanto preço esta pena, que entende muito bem não a poder merecer; todavia este sentimento não é de modo que a alivie em coisa alguma, mas, no entanto, a sofre de muito boa vontade, e sofreria toda a sua vida, se Deus nisso fosse servido; ainda que não seria morrer de uma vez, senão estar sempre morrendo; verdadeiramente não é menos que isso.
7. Pois consideremos, irmãs, aqueles que estão no inferno, que não estão com esta conformidade, nem com este contentamento e gosto que Deus põe na alma, nem vêem lucro neste padecer, senão que padecem sempre mais e mais. Sendo os tormentos da alma muito mais custosos que os do corpo, e os que eles aí padecem, maiores em comparação do que estes que temos aqui dito, e ver que estes serão para sempre sem fim, qual não será o tormento destas desventuradas almas? E que podemos fazer em vida tão curta, ou padecer, que não seja menos que nada para nos livrar de tão terríveis e eternos tormentos? Eu vos digo que será impossível dar a entender quão sensível coisa é o padecer da alma e como é diferente ao do corpo, se não se passa por isso; e quer o mesmo Senhor que o entendamos, para que melhor conheçamos o muito e muito que Lhe devemos em nos trazer a estado em que, por Sua misericórdia, temos esperança de que nos há-de livrar e perdoar nossos pecados.
8. Pois, tornando ao que tratávamos (que deixamos esta alma em grande pena), este rigor pouco lhe dura; será, quando muito, três ou quatro horas, a meu parecer, porque, se muito durasse, a não ser por milagre, seria impossível sofrê-lo a fraqueza natural. Já tem acontecido não durar mais de um quarto de hora e ficar feita em pedaços. Verdade é que desta vez perdeu de todo os sentidos, tal o rigor com que veio (e estando em conversação na Páscoa da Ressurreição, no último dia, e tendo estado toda a Páscoa com tanta aridez, que quase não entendia que o era), só de ouvir uma palavra de não ver acabar-se a vida. E pensar-se em poder resistir! Nem mais que, se metida num fogo, quisesse fazer com que a chama não tivesse calor para queimar. Não é sentimento que se possa passar com dissimulação, sem que as pessoas que estão presentes entendam o grande perigo em que está, embora do interior não possam ser testemunhas. É verdade que lhe são de alguma companhia, mas como se fossem sombras apenas; e assim lhe parecem todas as coisas da terra.
9. E para que vejais que é possível, se alguma vez vos virdes nisto, acudir aqui nossa fraqueza e natural, estando a alma como tendes visto, que morre por morrer, acontece alguma vez, quando isto aperta tanto que já parece que para sair do corpo não lhe falta quase nada, que teme verdadeiramente e quereria então que afrouxasse a pena para não acabar de morrer. Bem se deixa entender que este temor é de fraqueza natural, pois, por outra parte, não se tira o seu desejo, nem é possível haver remédio para tirar esta pena, até que lha tire o mesmo Senhor, o que quase sempre se dá com um arroubamento grande, ou com alguma visão, onde o verdadeiro Consolados a consola e fortalece, para que queira viver, enquanto for de Sua divina vontade.
10. Coisa penosa é esta, mas fica a alma com grandíssimos efeitos e perdido o medo aos trabalhos que lhe podem suceder; porque, em comparação do sentimento tão penoso que sentiu sua alma, lhe parece que não são nada. De tal maneira fica aproveitada, que gostaria de a padecer muitas vezes. Mas também não pode fazê-lo de maneira alguma, nem há remédio nenhum para a tornar a ter, até que o Senhor queira, assim como não o há para lhe resistir nem tira-la quando vem. Fica com maior desprezo do mundo do que antes, porque vê que nenhuma coisa dele lhe valeu naquele tormento, e muito mais desapegada das criaturas, porque já vê que só o Criador é Quem pode consolar e fartar sua alma, e com maior temor e cuidado de não O ofender, porque vê que também pode atormentar, assim como consolar.
11. Duas coisas há neste caminho espiritual que me parece a mim serem perigo de morte: uma é esta, e verdadeiramente o é, e não pequeno; a outra, de muito excessivo gozo e deleite, o qual é em tão grandíssimo extremo, que verdadeiramente parece desfalecer a alma, de sorte que não lhe falta mesmo nada para acabar de sair do corpo; e na verdade não seria pouca a sua dita. Aqui vereis, irmãs, se tive ou não razão em dizer que é preciso ânimo, e que terá razão o Senhor, quando Lhe pedirdes estas coisas, de vos dizer o que respondeu aos filhos de Zebedeu: se poderiam beber o cálice.
12. Creio, irmãs, que todas responderemos que sim, e com muita razão; porque Sua Majestade dá esforço a quem vê que o necessita, e em tudo defende estas almas, e responde por elas nas perseguições e murmurações, como o fazia por Madalena, ainda que não seja por palavras, será por obras; e enfim, enfim, antes que morram, lhes paga tudo por junto, como agora vereis. Seja para sempre bendito, e louvem-n'O todas as criaturas, amen. 
Diz outras mercês que Deus faz à alma por modo diferente das que ficam agora ditas, e do grande proveito que delas fica. 
1. De muitas maneiras se comunica o Senhor à alma com estas aparições; algumas, quando está aflita; outras, quando lhe há-de vir algum trabalho grande; outras, para Sua Majestade Se regalar com ela e a regalar a ela. Não há motivo para particularizar mais cada coisa, pois meu intento não é senão dar a conhecer cada uma das diferenças que há neste caminho, até onde eu as entender, para que entendais, irmãs, de que maneira são e os efeitos que deixam; e também para que não se vos afigure que cada imaginação é uma visão e para que, quando o for, entendendo que é possível, não andeis alvorotadas e aflitas. Pois ganha muito o demónio, e goza à grande de ver uma alma aflita e inquieta, porque vê que isso lhe é estorvo para se empregar toda em amar e louvar a Deus. Por outras maneiras se comunica Sua Majestade, assaz mais subidas e menos perigosas; porque o demónio, creio, não as poderá contrafazer e, assim, mal se podem dizer, por ser coisa muito oculta, porquanto as imaginárias melhor se podem dar a entender.
2. Acontece, quando o Senhor é servido, estando a alma em oração e muito em seus sentidos, vir-lhe de repente uma suspensão, na qual o Senhor lhe dá a entender grandes segredos, que parece os vê no mesmo Deus. Estas, porém, não são visões da sacratíssima Humanidade, e embora diga que vê, não vê nada, porque não é visão imaginária, senão intelectual, na qual se lhe descobre como em Deus se vêem todas as coisas, e Ele as tem todas em Si mesmo. E é de grande proveito, porque, ainda que passa num momento, fica muito gravada, e causa grandíssima confusão; vê-se mais claramente a maldade de quando ofendemos a Deus, porque no mesmo Deus - digo, estando dentro d'Ele - fazemos grandes maldades. Quero fazer uma comparação, se acertar, para vo-lo dar a entender, porque, embora isto seja assim e o ouçamos muitas vezes, ou não reparamos nisso, ou não o queremos entender, pois não parece que seria possível sermos tão atrevidos, se se entendesse tal como é.
3. Façamos agora de conta que Deus é como uma morada ou palácio muito grande e formoso, e que este palácio, como digo, é o mesmo Deus. Pode porventura o pecador, para fazer suas maldades, apartar-se deste palácio? Não, por certo; senão que, dentro do mesmo palácio, que é o mesmo Deus, passam-se as abominações e desonestidades e maldades que fazemos nós os pecadores. Oh! coisa temerosa e digna de grande consideração e muito proveitosa para os que sabemos pouco que não acabamos de entender estas verdades e não seria possível ter atrevimento tão desatinado! Consideremos, irmãs, a grande misericórdia e sofrimento de Deus em não nos aniquilar ali imediatamente; e demos-Lhe muitas graças, e tenhamos vergonha de nos sentirmos por coisa que se faça ou diga contra nós; que a maior maldade do mundo é ver que Deus Nosso Criador sofre tantas dentro de Si, mesmo às Suas criaturas, e que nós sintamos alguma vez uma, única palavra que se diga em nossa ausência, e talvez sem má intenção.
4. Oh! miséria humana! Quando, mas quando, filhas, imitaremos em alguma coisa este grande Deus? Oh! e não se nos vá afigurar que já fazemos algo em sofrer injúrias! Mas passemos, de muito boa vontade, por tudo e amemos a quem no-las faz, pois este grande Deus não deixou de nos amar a nós, ainda que O tenhamos ofendido muito, e assim Ele tem razão de sobejo em querer que todos perdoem, por mais agravos que lhes façam. Eu vos digo, filhas, que embora passe depressa esta visão, é uma grande mercê que faz Nosso Senhor a quem a faz, se se quiser aproveitar dela, trazendo-a presente na memória muito de habitualmente.
5. Também acontece, assim muito de repente e de maneira que nem se sabe dizer, mostrar Deus em Si mesmo uma verdade que parece deixa obscurecidas todas as que há nas criaturas, e muito claramente dá a entender que só Ele é a verdade que não pode mentir; e dá-se bem a entender o que diz David em um salmo, que todo o homem é mentiroso; coisa que nunca jamais se entenderia assim, ainda que se ouvisse muitas vezes, e é verdade que não pode falhar. Lembro-me de Pilatos, o muito que perguntava a Nosso Senhor, quando em Sua Paixão Lhe disse: «O que é a verdade», e de quão pouco aqui entendemos desta suma Verdade.
6. Eu quisera poder dar-me melhor a entender neste caso, mas não se pode dizer. Tiremos daqui, irmãs, que, para nos conformarmos com o nosso Deus e Esposo em alguma coisa, será bem que procuremos muito andar sempre nesta verdade. Não digo só que não digamos mentiras, pois nisso, glória a Deus, já vejo que tendes em grande conta nestas casas de não a dizer por coisa nenhuma, mas que andemos em verdade diante de Deus e das gentes, de quantas maneiras pudermos; em especial, não querendo que nos tenham por melhores do que somos e, em nossas obras, dando a Deus o que é Seu e a nós o que é nosso, e procurando em tudo a verdade, e assim termos em pouco este mundo que é todo mentira e falsidade e, como tal, não é perdurável.
7. Uma vez estava eu considerando por que razão era Nosso Senhor tão amigo desta virtude da humildade, e logo se me pôs diante - a meu parecer sem eu considerar nisso, mas de repente - isto: é porque Deus é a suma Verdade, e a humildade é andar na verdade. E é muito grande verdade não termos coisa boa de nós mesmos, senão a miséria e sermos nada; e, quem isto não entende, anda em mentira. Quem melhor o entende, mais agrada à suma Verdade, porque anda nela. Praza a Deus, irmãs, nos faça mercê de não sairmos nunca deste próprio conhecimento, amen.
8. Nosso Senhor faz destas mercês à alma, porque, como a verdadeira esposa, que já está determinada a fazerem tudo a Sua Vontade, lhe quer dar alguma notícia daquilo em que a há-de fazer, e de Suas grandezas. Não há para que tratar de mais coisas, e destas duas falei por me parecer de grande proveito; pois, em coisas semelhantes não há que temer, senão louvar ao Senhor, porque as dá; porque a meu parecer, nem o demónio, nem mesmo a imaginação própria, têm aqui grande cabida; e assim a alma fica com grande satisfação. 
 
CAPÍTULO 11 
Trata de uns desejos tão grandes e impetuosos, que Deus dá à alma de O gozar, que a põem em perigo de perder a vida, e do proveito que fica desta mercê que o Senhor faz
1. Terão bastado todas estas mercês que o Esposo tem feito à alma, para que a pombinha ou borboletazinha esteja satisfeita (não penseis que a tenho esquecida), e tome assento onde há-de morrer? Não, por certo; antes está muito pior. Ainda mesmo que haja muitos anos que recebe estes favores, sempre geme e anda chorosa, porque de cada um deles lhe fica maior dor. A causa é porque, como vai conhecendo mais e mais as grandezas de Deus, e se vê estar tão ausente e apartada de O gozar, cresce muito mais o desejo; porque também cresce o amor, quanto mais se lhe descobre o muito que merece ser amado este grande Deus e Senhor; e nestes anos tem vindo crescendo, pouco a pouco, este desejo, de maneira que a trazem tão grande pena, como agora direi. Disse anos, conformando-me com o que se passou com a pessoa de que tenho falado aqui, que bem entendo que a Deus não há que pôr limites, pois num momento pode fazer chegar uma alma ao mais subido quer aqui se diz. Poderoso é Sua Majestade para tudo o que quiser fazer e desejoso de fazer muito por nós.
2. Pois há ocasiões em que estas ânsias e lágrimas e suspiros e os grandes ímpetos que ficam ditos (e tudo isto parece proceder do nosso amor, com grande sentimento, mas tudo não é nada em comparação deste outro, porque este parece um fogo que está fumegando, e pode sofrer-se, embora com pena), andando assim esta alma abrasando-se em si mesma, acontece muitas vezes, por um pensamento muito ligeiro, ou por uma palavra que ouve de que nos tarda o morrer, vir de outra parte - não se entende donde nem como - um golpe, ou como se viesse uma seta de fogo? Não digo que é seta, mas, seja que coisa for, vê-se claramente que não podia proceder do nosso natural. Também não é golpe, embora diga golpe; mas fere agudamente. E não é, a meu parecer, onde se costumam sentir as penas, senão no muito fundo e íntimo da alma, onde este raio que passa depressa, deixa tudo quanto encontra, desta terra de nosso natural, feito em pó. E, pelo tempo que dura, é impossível ter memória de coisa alguma do nosso ser; porque, num instante, ata as potências, de maneira que ficam sem nenhuma liberdade para nada, senão para as que lhe hão-de fazer acrescer esta dor.
3. Não quereria que isto parecesse encarecimento, porque vou vendo verdadeiramente que fico aquém, porque não se pode dizer tudo. É um arroubamento de sentidos e potências, para tudo o que não é, como disse, ajudar a sentir esta aflição. Porque o entendimento está muito vivo para entender a razão que há para sentir o estar aquela alma ausente de Deus; e ajuda Sua Majestade com tão viva notícia de Si naquele tempo, de maneira que faz crescer a pena em tal grau, que, quem a tem, começa a dar grandes gritos. Apesar de ser pessoa sofrida e habituada a padecer grandes dores, não pode então fazer mais; porque este sentimento não é no corpo, como fica dito, mas sim no interior da alma. Por isto compreendeu esta pessoa quanto mais fortes são os sentimentos da alma que os do corpo, e se lhe representou ser desta maneira os que se padecem no purgatório, pois, o não ter corpo, não impede de padecer muito mais que todos os que padecem cá na terra, tendo-o.
4. Eu vi uma pessoa assim, e verdadeiramente pensei que morria, e não era grande maravilha, porque, na verdade, é grande perigo de morte; e assim, ainda que dure pouco, deixa o corpo muito desconjuntado, e naquele tempo tem os pulsos tão abertos, como se já quisesse dar a alma a Deus, e não é para menos; porque o calor natural falta, e o abrasa de maneira que, com mais um pouco, ter-lhe-ia Deus cumprido seus desejos. Não porque sinta pouca ou muita dor no corpo (ainda que se desconjunta - como tenho dito - de maneira que fica durante uns dois ou três dias sem ter forças sequer para poder escrever, e com grandes dores; e até me parece que o corpo lhe fica sempre com menos força do que antes); o não sentir, deve ser porque é muito maior o sentimento interior da alma, e não faz caso de nenhuma coisa do corpo; é como se tivéssemos uma dor muito aguda em qualquer parte e, ainda que haja outras muitas, sentimo-las pouco; isto tenho-o eu bem provado. Aqui, nisto, nem pouco nem muito, nem creio sentiria se a fizessem em pedaços.
5. Dir-me-eis que é imperfeição; pois, porque não se conforma com a vontade de Deus, se Lhe está tão rendida? Até aqui podia fazer isso, e com isso suportava a vida. Agora não, porque sua razão está de tal sorte, que não é senhora dela, nem de pensar mais que ria razão que tem para penar; pois, se está ausente seu Bem, para que quer a vida? Sente uma soledade estranha, porque nenhuma criatura de toda a terra lhe faz companhia, nem creio lhe fariam as do Céu, a não ser Aquele a quem ama, antes tudo a atormenta. Vê-se como urna pessoa dependurada, que não assenta em coisa da terra, nem pode subir ao Céu; abrasada com esta sede, e não pode chegar à água. E não é sede que se possa sofrer, mas já em tal extremo, que nenhuma água lha tiraria, nem quer que se lhe tire, a não ser com aquela que Nosso Senhor disse à Samaritana, e essa não lha dão.
6. Oh! valha-me Deus, Senhor, como afligis aos Vossos amadores! Mas tudo é pouco para o que lhes dais depois. Bem é que o muito custe muito; quanto mais que, se é para purificar esta alma, a fim de que entre na sétima morada, assim como os que hão-de entrar no Céu se limpam no purgatório, é tão pouco este padecer, como seria uma gota de água no mar. Tanto mais que, com todo este tormento e aflição que, segundo creio, não o pode haver maior entre todas as aflições que há na terra, (e esta pessoa tinha passado muitas, assim corporais como espirituais, mas tudo lhe parece nada em comparação com esta), a alma sente que é de tanto preço esta pena, que entende muito bem não a poder merecer; todavia este sentimento não é de modo que a alivie em coisa alguma, mas, no entanto, a sofre de muito boa vontade, e sofreria toda a sua vida, se Deus nisso fosse servido; ainda que não seria morrer de uma vez, senão estar sempre morrendo; verdadeiramente não é menos que isso.
7. Pois consideremos, irmãs, aqueles que estão no inferno, que não estão com esta conformidade, nem com este contentamento e gosto que Deus põe na alma, nem vêem lucro neste padecer, senão que padecem sempre mais e mais. Sendo os tormentos da alma muito mais custosos que os do corpo, e os que eles aí padecem, maiores em comparação do que estes que temos aqui dito, e ver que estes serão para sempre sem fim, qual não será o tormento destas desventuradas almas? E que podemos fazer em vida tão curta, ou padecer, que não seja menos que nada para nos livrar de tão terríveis e eternos tormentos? Eu vos digo que será impossível dar a entender quão sensível coisa é o padecer da alma e como é diferente ao do corpo, se não se passa por isso; e quer o mesmo Senhor que o entendamos, para que melhor conheçamos o muito e muito que Lhe devemos em nos trazer a estado em que, por Sua misericórdia, temos esperança de que nos há-de livrar e perdoar nossos pecados.
8. Pois, tornando ao que tratávamos (que deixamos esta alma em grande pena), este rigor pouco lhe dura; será, quando muito, três ou quatro horas, a meu parecer, porque, se muito durasse, a não ser por milagre, seria impossível sofrê-lo a fraqueza natural. Já tem acontecido não durar mais de um quarto de hora e ficar feita em pedaços. Verdade é que desta vez perdeu de todo os sentidos, tal o rigor com que veio (e estando em conversação na Páscoa da Ressurreição, no último dia, e tendo estado toda a Páscoa com tanta aridez, que quase não entendia que o era), só de ouvir uma palavra de não ver acabar-se a vida. E pensar-se em poder resistir! Nem mais que, se metida num fogo, quisesse fazer com que a chama não tivesse calor para queimar. Não é sentimento que se possa passar com dissimulação, sem que as pessoas que estão presentes entendam o grande perigo em que está, embora do interior não possam ser testemunhas. É verdade que lhe são de alguma companhia, mas como se fossem sombras apenas; e assim lhe parecem todas as coisas da terra.
9. E para que vejais que é possível, se alguma vez vos virdes nisto, acudir aqui nossa fraqueza e natural, estando a alma como tendes visto, que morre por morrer, acontece alguma vez, quando isto aperta tanto que já parece que para sair do corpo não lhe falta quase nada, que teme verdadeiramente e quereria então que afrouxasse a pena para não acabar de morrer. Bem se deixa entender que este temor é de fraqueza natural, pois, por outra parte, não se tira o seu desejo, nem é possível haver remédio para tirar esta pena, até que lha tire o mesmo Senhor, o que quase sempre se dá com um arroubamento grande, ou com alguma visão, onde o verdadeiro Consolados a consola e fortalece, para que queira viver, enquanto for de Sua divina vontade.
10. Coisa penosa é esta, mas fica a alma com grandíssimos efeitos e perdido o medo aos trabalhos que lhe podem suceder; porque, em comparação do sentimento tão penoso que sentiu sua alma, lhe parece que não são nada. De tal maneira fica aproveitada, que gostaria de a padecer muitas vezes. Mas também não pode fazê-lo de maneira alguma, nem há remédio nenhum para a tornar a ter, até que o Senhor queira, assim como não o há para lhe resistir nem tira-la quando vem. Fica com maior desprezo do mundo do que antes, porque vê que nenhuma coisa dele lhe valeu naquele tormento, e muito mais desapegada das criaturas, porque já vê que só o Criador é Quem pode consolar e fartar sua alma, e com maior temor e cuidado de não O ofender, porque vê que também pode atormentar, assim como consolar.
11. Duas coisas há neste caminho espiritual que me parece a mim serem perigo de morte: uma é esta, e verdadeiramente o é, e não pequeno; a outra, de muito excessivo gozo e deleite, o qual é em tão grandíssimo extremo, que verdadeiramente parece desfalecer a alma, de sorte que não lhe falta mesmo nada para acabar de sair do corpo; e na verdade não seria pouca a sua dita. Aqui vereis, irmãs, se tive ou não razão em dizer que é preciso ânimo, e que terá razão o Senhor, quando Lhe pedirdes estas coisas, de vos dizer o que respondeu aos filhos de Zebedeu: se poderiam beber o cálice.
12. Creio, irmãs, que todas responderemos que sim, e com muita razão; porque Sua Majestade dá esforço a quem vê que o necessita, e em tudo defende estas almas, e responde por elas nas perseguições e murmurações, como o fazia por Madalena, ainda que não seja por palavras, será por obras; e enfim, enfim, antes que morram, lhes paga tudo por junto, como agora vereis. Seja para sempre bendito, e louvem-n'O todas as criaturas, amen. 
 

Diz outras mercês que Deus faz à alma por modo diferente das que ficam agora ditas, e do grande proveito que delas fica. 

1. De muitas maneiras se comunica o Senhor à alma com estas aparições; algumas, quando está aflita; outras, quando lhe há-de vir algum trabalho grande; outras, para Sua Majestade Se regalar com ela e a regalar a ela. Não há motivo para particularizar mais cada coisa, pois meu intento não é senão dar a conhecer cada uma das diferenças que há neste caminho, até onde eu as entender, para que entendais, irmãs, de que maneira são e os efeitos que deixam; e também para que não se vos afigure que cada imaginação é uma visão e para que, quando o for, entendendo que é possível, não andeis alvorotadas e aflitas. Pois ganha muito o demónio, e goza à grande de ver uma alma aflita e inquieta, porque vê que isso lhe é estorvo para se empregar toda em amar e louvar a Deus. Por outras maneiras se comunica Sua Majestade, assaz mais subidas e menos perigosas; porque o demónio, creio, não as poderá contrafazer e, assim, mal se podem dizer, por ser coisa muito oculta, porquanto as imaginárias melhor se podem dar a entender.

2. Acontece, quando o Senhor é servido, estando a alma em oração e muito em seus sentidos, vir-lhe de repente uma suspensão, na qual o Senhor lhe dá a entender grandes segredos, que parece os vê no mesmo Deus. Estas, porém, não são visões da sacratíssima Humanidade, e embora diga que vê, não vê nada, porque não é visão imaginária, senão intelectual, na qual se lhe descobre como em Deus se vêem todas as coisas, e Ele as tem todas em Si mesmo. E é de grande proveito, porque, ainda que passa num momento, fica muito gravada, e causa grandíssima confusão; vê-se mais claramente a maldade de quando ofendemos a Deus, porque no mesmo Deus - digo, estando dentro d'Ele - fazemos grandes maldades. Quero fazer uma comparação, se acertar, para vo-lo dar a entender, porque, embora isto seja assim e o ouçamos muitas vezes, ou não reparamos nisso, ou não o queremos entender, pois não parece que seria possível sermos tão atrevidos, se se entendesse tal como é.

3. Façamos agora de conta que Deus é como uma morada ou palácio muito grande e formoso, e que este palácio, como digo, é o mesmo Deus. Pode porventura o pecador, para fazer suas maldades, apartar-se deste palácio? Não, por certo; senão que, dentro do mesmo palácio, que é o mesmo Deus, passam-se as abominações e desonestidades e maldades que fazemos nós os pecadores. Oh! coisa temerosa e digna de grande consideração e muito proveitosa para os que sabemos pouco que não acabamos de entender estas verdades e não seria possível ter atrevimento tão desatinado! Consideremos, irmãs, a grande misericórdia e sofrimento de Deus em não nos aniquilar ali imediatamente; e demos-Lhe muitas graças, e tenhamos vergonha de nos sentirmos por coisa que se faça ou diga contra nós; que a maior maldade do mundo é ver que Deus Nosso Criador sofre tantas dentro de Si, mesmo às Suas criaturas, e que nós sintamos alguma vez uma, única palavra que se diga em nossa ausência, e talvez sem má intenção.

4. Oh! miséria humana! Quando, mas quando, filhas, imitaremos em alguma coisa este grande Deus? Oh! e não se nos vá afigurar que já fazemos algo em sofrer injúrias! Mas passemos, de muito boa vontade, por tudo e amemos a quem no-las faz, pois este grande Deus não deixou de nos amar a nós, ainda que O tenhamos ofendido muito, e assim Ele tem razão de sobejo em querer que todos perdoem, por mais agravos que lhes façam. Eu vos digo, filhas, que embora passe depressa esta visão, é uma grande mercê que faz Nosso Senhor a quem a faz, se se quiser aproveitar dela, trazendo-a presente na memória muito de habitualmente.

5. Também acontece, assim muito de repente e de maneira que nem se sabe dizer, mostrar Deus em Si mesmo uma verdade que parece deixa obscurecidas todas as que há nas criaturas, e muito claramente dá a entender que só Ele é a verdade que não pode mentir; e dá-se bem a entender o que diz David em um salmo, que todo o homem é mentiroso; coisa que nunca jamais se entenderia assim, ainda que se ouvisse muitas vezes, e é verdade que não pode falhar. Lembro-me de Pilatos, o muito que perguntava a Nosso Senhor, quando em Sua Paixão Lhe disse: «O que é a verdade», e de quão pouco aqui entendemos desta suma Verdade.

6. Eu quisera poder dar-me melhor a entender neste caso, mas não se pode dizer. Tiremos daqui, irmãs, que, para nos conformarmos com o nosso Deus e Esposo em alguma coisa, será bem que procuremos muito andar sempre nesta verdade. Não digo só que não digamos mentiras, pois nisso, glória a Deus, já vejo que tendes em grande conta nestas casas de não a dizer por coisa nenhuma, mas que andemos em verdade diante de Deus e das gentes, de quantas maneiras pudermos; em especial, não querendo que nos tenham por melhores do que somos e, em nossas obras, dando a Deus o que é Seu e a nós o que é nosso, e procurando em tudo a verdade, e assim termos em pouco este mundo que é todo mentira e falsidade e, como tal, não é perdurável.

7. Uma vez estava eu considerando por que razão era Nosso Senhor tão amigo desta virtude da humildade, e logo se me pôs diante - a meu parecer sem eu considerar nisso, mas de repente - isto: é porque Deus é a suma Verdade, e a humildade é andar na verdade. E é muito grande verdade não termos coisa boa de nós mesmos, senão a miséria e sermos nada; e, quem isto não entende, anda em mentira. Quem melhor o entende, mais agrada à suma Verdade, porque anda nela. Praza a Deus, irmãs, nos faça mercê de não sairmos nunca deste próprio conhecimento, amen.

8. Nosso Senhor faz destas mercês à alma, porque, como a verdadeira esposa, que já está determinada a fazerem tudo a Sua Vontade, lhe quer dar alguma notícia daquilo em que a há-de fazer, e de Suas grandezas. Não há para que tratar de mais coisas, e destas duas falei por me parecer de grande proveito; pois, em coisas semelhantes não há que temer, senão louvar ao Senhor, porque as dá; porque a meu parecer, nem o demónio, nem mesmo a imaginação própria, têm aqui grande cabida; e assim a alma fica com grande satisfação. 

 

CAPÍTULO 11 

Trata de uns desejos tão grandes e impetuosos, que Deus dá à alma de O gozar, que a põem em perigo de perder a vida, e do proveito que fica desta mercê que o Senhor faz

1. Terão bastado todas estas mercês que o Esposo tem feito à alma, para que a pombinha ou borboletazinha esteja satisfeita (não penseis que a tenho esquecida), e tome assento onde há-de morrer? Não, por certo; antes está muito pior. Ainda mesmo que haja muitos anos que recebe estes favores, sempre geme e anda chorosa, porque de cada um deles lhe fica maior dor. A causa é porque, como vai conhecendo mais e mais as grandezas de Deus, e se vê estar tão ausente e apartada de O gozar, cresce muito mais o desejo; porque também cresce o amor, quanto mais se lhe descobre o muito que merece ser amado este grande Deus e Senhor; e nestes anos tem vindo crescendo, pouco a pouco, este desejo, de maneira que a trazem tão grande pena, como agora direi. Disse anos, conformando-me com o que se passou com a pessoa de que tenho falado aqui, que bem entendo que a Deus não há que pôr limites, pois num momento pode fazer chegar uma alma ao mais subido quer aqui se diz. Poderoso é Sua Majestade para tudo o que quiser fazer e desejoso de fazer muito por nós.

2. Pois há ocasiões em que estas ânsias e lágrimas e suspiros e os grandes ímpetos que ficam ditos (e tudo isto parece proceder do nosso amor, com grande sentimento, mas tudo não é nada em comparação deste outro, porque este parece um fogo que está fumegando, e pode sofrer-se, embora com pena), andando assim esta alma abrasando-se em si mesma, acontece muitas vezes, por um pensamento muito ligeiro, ou por uma palavra que ouve de que nos tarda o morrer, vir de outra parte - não se entende donde nem como - um golpe, ou como se viesse uma seta de fogo? Não digo que é seta, mas, seja que coisa for, vê-se claramente que não podia proceder do nosso natural. Também não é golpe, embora diga golpe; mas fere agudamente. E não é, a meu parecer, onde se costumam sentir as penas, senão no muito fundo e íntimo da alma, onde este raio que passa depressa, deixa tudo quanto encontra, desta terra de nosso natural, feito em pó. E, pelo tempo que dura, é impossível ter memória de coisa alguma do nosso ser; porque, num instante, ata as potências, de maneira que ficam sem nenhuma liberdade para nada, senão para as que lhe hão-de fazer acrescer esta dor.

3. Não quereria que isto parecesse encarecimento, porque vou vendo verdadeiramente que fico aquém, porque não se pode dizer tudo. É um arroubamento de sentidos e potências, para tudo o que não é, como disse, ajudar a sentir esta aflição. Porque o entendimento está muito vivo para entender a razão que há para sentir o estar aquela alma ausente de Deus; e ajuda Sua Majestade com tão viva notícia de Si naquele tempo, de maneira que faz crescer a pena em tal grau, que, quem a tem, começa a dar grandes gritos. Apesar de ser pessoa sofrida e habituada a padecer grandes dores, não pode então fazer mais; porque este sentimento não é no corpo, como fica dito, mas sim no interior da alma. Por isto compreendeu esta pessoa quanto mais fortes são os sentimentos da alma que os do corpo, e se lhe representou ser desta maneira os que se padecem no purgatório, pois, o não ter corpo, não impede de padecer muito mais que todos os que padecem cá na terra, tendo-o.

4. Eu vi uma pessoa assim, e verdadeiramente pensei que morria, e não era grande maravilha, porque, na verdade, é grande perigo de morte; e assim, ainda que dure pouco, deixa o corpo muito desconjuntado, e naquele tempo tem os pulsos tão abertos, como se já quisesse dar a alma a Deus, e não é para menos; porque o calor natural falta, e o abrasa de maneira que, com mais um pouco, ter-lhe-ia Deus cumprido seus desejos. Não porque sinta pouca ou muita dor no corpo (ainda que se desconjunta - como tenho dito - de maneira que fica durante uns dois ou três dias sem ter forças sequer para poder escrever, e com grandes dores; e até me parece que o corpo lhe fica sempre com menos força do que antes); o não sentir, deve ser porque é muito maior o sentimento interior da alma, e não faz caso de nenhuma coisa do corpo; é como se tivéssemos uma dor muito aguda em qualquer parte e, ainda que haja outras muitas, sentimo-las pouco; isto tenho-o eu bem provado. Aqui, nisto, nem pouco nem muito, nem creio sentiria se a fizessem em pedaços.

5. Dir-me-eis que é imperfeição; pois, porque não se conforma com a vontade de Deus, se Lhe está tão rendida? Até aqui podia fazer isso, e com isso suportava a vida. Agora não, porque sua razão está de tal sorte, que não é senhora dela, nem de pensar mais que ria razão que tem para penar; pois, se está ausente seu Bem, para que quer a vida? Sente uma soledade estranha, porque nenhuma criatura de toda a terra lhe faz companhia, nem creio lhe fariam as do Céu, a não ser Aquele a quem ama, antes tudo a atormenta. Vê-se como urna pessoa dependurada, que não assenta em coisa da terra, nem pode subir ao Céu; abrasada com esta sede, e não pode chegar à água. E não é sede que se possa sofrer, mas já em tal extremo, que nenhuma água lha tiraria, nem quer que se lhe tire, a não ser com aquela que Nosso Senhor disse à Samaritana, e essa não lha dão.

6. Oh! valha-me Deus, Senhor, como afligis aos Vossos amadores! Mas tudo é pouco para o que lhes dais depois. Bem é que o muito custe muito; quanto mais que, se é para purificar esta alma, a fim de que entre na sétima morada, assim como os que hão-de entrar no Céu se limpam no purgatório, é tão pouco este padecer, como seria uma gota de água no mar. Tanto mais que, com todo este tormento e aflição que, segundo creio, não o pode haver maior entre todas as aflições que há na terra, (e esta pessoa tinha passado muitas, assim corporais como espirituais, mas tudo lhe parece nada em comparação com esta), a alma sente que é de tanto preço esta pena, que entende muito bem não a poder merecer; todavia este sentimento não é de modo que a alivie em coisa alguma, mas, no entanto, a sofre de muito boa vontade, e sofreria toda a sua vida, se Deus nisso fosse servido; ainda que não seria morrer de uma vez, senão estar sempre morrendo; verdadeiramente não é menos que isso.

7. Pois consideremos, irmãs, aqueles que estão no inferno, que não estão com esta conformidade, nem com este contentamento e gosto que Deus põe na alma, nem vêem lucro neste padecer, senão que padecem sempre mais e mais. Sendo os tormentos da alma muito mais custosos que os do corpo, e os que eles aí padecem, maiores em comparação do que estes que temos aqui dito, e ver que estes serão para sempre sem fim, qual não será o tormento destas desventuradas almas? E que podemos fazer em vida tão curta, ou padecer, que não seja menos que nada para nos livrar de tão terríveis e eternos tormentos? Eu vos digo que será impossível dar a entender quão sensível coisa é o padecer da alma e como é diferente ao do corpo, se não se passa por isso; e quer o mesmo Senhor que o entendamos, para que melhor conheçamos o muito e muito que Lhe devemos em nos trazer a estado em que, por Sua misericórdia, temos esperança de que nos há-de livrar e perdoar nossos pecados.

8. Pois, tornando ao que tratávamos (que deixamos esta alma em grande pena), este rigor pouco lhe dura; será, quando muito, três ou quatro horas, a meu parecer, porque, se muito durasse, a não ser por milagre, seria impossível sofrê-lo a fraqueza natural. Já tem acontecido não durar mais de um quarto de hora e ficar feita em pedaços. Verdade é que desta vez perdeu de todo os sentidos, tal o rigor com que veio (e estando em conversação na Páscoa da Ressurreição, no último dia, e tendo estado toda a Páscoa com tanta aridez, que quase não entendia que o era), só de ouvir uma palavra de não ver acabar-se a vida. E pensar-se em poder resistir! Nem mais que, se metida num fogo, quisesse fazer com que a chama não tivesse calor para queimar. Não é sentimento que se possa passar com dissimulação, sem que as pessoas que estão presentes entendam o grande perigo em que está, embora do interior não possam ser testemunhas. É verdade que lhe são de alguma companhia, mas como se fossem sombras apenas; e assim lhe parecem todas as coisas da terra.

9. E para que vejais que é possível, se alguma vez vos virdes nisto, acudir aqui nossa fraqueza e natural, estando a alma como tendes visto, que morre por morrer, acontece alguma vez, quando isto aperta tanto que já parece que para sair do corpo não lhe falta quase nada, que teme verdadeiramente e quereria então que afrouxasse a pena para não acabar de morrer. Bem se deixa entender que este temor é de fraqueza natural, pois, por outra parte, não se tira o seu desejo, nem é possível haver remédio para tirar esta pena, até que lha tire o mesmo Senhor, o que quase sempre se dá com um arroubamento grande, ou com alguma visão, onde o verdadeiro Consolados a consola e fortalece, para que queira viver, enquanto for de Sua divina vontade.

10. Coisa penosa é esta, mas fica a alma com grandíssimos efeitos e perdido o medo aos trabalhos que lhe podem suceder; porque, em comparação do sentimento tão penoso que sentiu sua alma, lhe parece que não são nada. De tal maneira fica aproveitada, que gostaria de a padecer muitas vezes. Mas também não pode fazê-lo de maneira alguma, nem há remédio nenhum para a tornar a ter, até que o Senhor queira, assim como não o há para lhe resistir nem tira-la quando vem. Fica com maior desprezo do mundo do que antes, porque vê que nenhuma coisa dele lhe valeu naquele tormento, e muito mais desapegada das criaturas, porque já vê que só o Criador é Quem pode consolar e fartar sua alma, e com maior temor e cuidado de não O ofender, porque vê que também pode atormentar, assim como consolar.

11. Duas coisas há neste caminho espiritual que me parece a mim serem perigo de morte: uma é esta, e verdadeiramente o é, e não pequeno; a outra, de muito excessivo gozo e deleite, o qual é em tão grandíssimo extremo, que verdadeiramente parece desfalecer a alma, de sorte que não lhe falta mesmo nada para acabar de sair do corpo; e na verdade não seria pouca a sua dita. Aqui vereis, irmãs, se tive ou não razão em dizer que é preciso ânimo, e que terá razão o Senhor, quando Lhe pedirdes estas coisas, de vos dizer o que respondeu aos filhos de Zebedeu: se poderiam beber o cálice.

12. Creio, irmãs, que todas responderemos que sim, e com muita razão; porque Sua Majestade dá esforço a quem vê que o necessita, e em tudo defende estas almas, e responde por elas nas perseguições e murmurações, como o fazia por Madalena, ainda que não seja por palavras, será por obras; e enfim, enfim, antes que morram, lhes paga tudo por junto, como agora vereis. Seja para sempre bendito, e louvem-n'O todas as criaturas, amen.