SEXTA MORADA - CAPÍTULO 2

SEXTA MORADA - CAPÍTULO 2
Trata de algumas maneiras com que Nosso Senhor desperta a alma, nas quais parece não há que temer, embora seja coisa muito subida, e sejam grandes mercês. 
1. Parece que temos deixado muito a pombazita, mas não; porque estes trabalhos são os que a fazem levantar ainda mais alto voo. Comecemos, pois, agora a tratar da maneira como se avém com ela o Esposo, e como, antes que de todo o seja, lho faz bem desejar, por uns meios tão delicados, que a própria alma não os entende, nem eu creio acertarei a dizê-lo de modo a que o entenda, a não ser as que passaram por isto; porque são uns impulsos tão delicados e subtis, que procedem do mais interior da alma, que não sei que comparação dar e que lhes quadre.
2. É bem diferente de tudo o que cá na terra podemos procurar, e até mesmo dos gostos que ficam ditos, pois muitas vezes, estando a própria pessoa descuidada e sem ter a memória em Deus, Sua Majestade a desperta, à maneira de um cometa que passa depressa, ou de um trovão, ainda que não se ouça ruído; mas entende muito bem a alma que foi chamamento de Deus, e tão bem entendido, que algumas vezes, em especial ao princípio, a faz estremecer e até queixar-se, sem ser coisa que lhe doa. Sente-se ferida saborosissimamente, mas não atina como nem quem a feriu; mas bem conhece ser coisa preciosa e jamais quereria sarar daquela ferida. Queixa-se a seu Esposo com palavras de amor, mesmo exteriores, sem poder fazer outra coisa; porque entende que Ele está presente, mas não Se quer manifestar de maneira a deixar-Se gozar. E é grande pena, ainda que saborosa e doce; e embora não a queira ter, não pode; mas isto não o quereria jamais. Esta pena muito mais a satisfaz que o embevecimento saboroso, que carece de pena, da oração de quietude.
3. Estou-me desfazendo, irmãs, para vos dar a entender esta operação de amor, e não sei como o fazer. Porque parece coisa contraditória dar o Amado claramente a entender que está com a alma e, ao mesmo tempo, parecer que a chama com um sinal tão certo, que não se pode duvidar, e com um silvo tão penetrante para a alma o entender, que não pode deixar de o ouvir; pois não parece senão que, em falando o Esposo, que está na sétima morada, por este modo (que não é fala formada), toda a gente que está nas outras moradas não ousa mexer-se: nem sentidos nem imaginações, nem potências. Oh! meu poderoso Deus, como são grandes os Vossos segredos, e que diferentes são as coisas do Espírito de tudo quanto por cá se pode ver e entender, pois com nenhuma coisa se pode declarar esta tão pequena, para as muito grandes que operais com as almas!
4. Faz nela tão grande operação, que se está desfazendo em desejos, e não sabe. o que pedir, porque claramente lhe parece que está com ela o seu Deus. Dir-me-eis: Pois, se isto entende, que deseja ela, ou que é que lhe dá pena? e que maior bem quer? Não sei; sei que lhe parece chegar às entranhas esta pena, e quando delas lhe arranca a seta Aquele que a fere, verdadeiramente parece que lhas leva atrás de si, tal é o sentimento de amor que sente. Estava eu pensando agora se seria que deste fogo do braseiro incendido, que é o meu Deus, saltava alguma centelha e dava na alma, de maneira a deixar-lhe sentir aquele incendido fogo, e como ainda não era bastante para a queimar, e é tão deleitoso, ficava com aquela pena e ao tocar nela fazia aquela operação; parece-me ser a melhor comparação que acertei a dizer. Porque esta dor saborosa - e não é dor - não está em um ser; ainda que, às vezes, dura um grande bocado, outras depressa se acaba: é como o Senhor o quer comunicar, pois não é coisa que se possa procurar por nenhuma via humana. Mas, ainda que está algumas vezes um bom bocado, desaparece e torna de novo; enfim, esta dor nunca está fixa, e por isso não acaba de abrasar a alma, pois mal se vai a acender, morre a centelha e a alma fica com o desejo de tornar a padecer aquela dor amorosa que ela lhe causa.
5. Aqui não há que pensar se é coisa movida pelo mesmo natural, ou causada pela melancolia, nem tão-pouco se é engano do demónio, ou se é coisa que se lhe afigurou; porque se deixa muito bem entender vir este movimento de onde está o Senhor que é imutável; e as operações não são como as de outras devoções, nas quais o muito embevecimento do gosto nos pode fazer duvidar. Aqui estão todos os sentidos e potências sem embevecimento, olhando ao que poderá ser, sem estorvar em nada, nem poderem acrescentar aquela pena deleitosa, nem tirá-la, a meu parecer. A quem Nosso Senhor fizer esta mercê (que, se lha tem feito, em lendo isto o entenderá), dê-Lhe muitas e muitas graças, pois não tem que temer se é ou não engano; tema muito se há-de vir a ser ingrato a tão grande mercê, e procure esforçar-se em servir e a melhorar em tudo a sua vida, e verá no que pára, e como recebe mais e mais. Uma pessoa que teve isto, passou alguns anos assim, e só com aquela mercê estava bem satisfeita, pois, se servisse ao Senhor uma multidão de anos, com grandes trabalhos, ficava com ela muito bem paga. Bendito seja Ele para sempre, amen.
6. Poderá ser que repareis como nisto há mais segurança do que noutras coisas. A meu parecer, é por estas razões: a primeira, porque jamais o demónio pode dar uma pena saborosa como esta. Poderá dar sabor e deleite que pareça espiritual; mas juntar pena, e tanta, com quietude e gosto da alma, não é da sua faculdade, pois todos os seus poderes estão por fora, e as suas penas, quando ele as dá, nunca são, a meu parecer, saborosas nem com paz, senão inquietas e com guerra. A segunda razão é porque esta tempestade saborosa vem de outra região, sem ser das que ele pode senhorear. A terceira, pelos grandes proveitos que ficam na alma, os quais são, muito habitualmente, determinar-se a padecer por Deus e desejar ter muitos trabalhos e ficar muito mais determinada a apartar-se dos contentos e conversações da terra, e outras coisas semelhantes.
7. O não ser ilusão, está muito claro; porque, ainda que outras vezes o procure, não poderá contra-fazer aquilo. E é coisa tão notória, que de nenhuma maneira isso se pode afigurar, digo parecer que é, não sendo, nem duvidar de que é verdade; e se alguma dúvida ficar, saibam que esses ímpetos não são verdadeiros; digo, se duvidar se os teve ou não; porque assim se dá a sentir, como aos ouvidos uma grande voz. E ser melancolia não leva nenhum caminho, pois a melancolia não faz nem fabrica seus antolhos senão na imaginação; isto, ao contrário, procede do interior da alma. Bem pode ser que eu me engane, mas até ouvir outras razões a quem o entenda, sempre estarei nesta opinião; assim sei de uma pessoa muito cheia de temor destes enganos, que desta oração nunca o pode ter.
8. Também costuma Nosso Senhor ter outras maneiras de despertar a alma: a qualquer hora, estando a rezar vocalmente e descuidada de coisa interior, parece que lhe vem uma inflamação deleitosa, como se de repente viesse um olor tão grande, que se comunicasse por todos os sentidos (não digo que é olor, mas ponho esta comparação), ou coisa de este género, só para dar a sentir que está ali o Esposo; e move um desejo saboroso de a alma gozar d'Ele, e com isto fica disposta para fazer grandes actos e louvores a Nosso Senhor. Esta mercê nasce de onde já ficou dito; mas aqui não há coisa que dê pena, nem mesmo os desejos de gozar de Deus são penosos: isto é o mais habitual senti-lo a alma. Tão-pouco me parece haver que temer, por algumas das razões já ditas, senão procurar admitir esta mercê com acção de graças. 
Trata de algumas maneiras com que Nosso Senhor desperta a alma, nas quais parece não há que temer, embora seja coisa muito subida, e sejam grandes mercês. 
 
1. Parece que temos deixado muito a pombazita, mas não; porque estes trabalhos são os que a fazem levantar ainda mais alto voo. Comecemos, pois, agora a tratar da maneira como se avém com ela o Esposo, e como, antes que de todo o seja, lho faz bem desejar, por uns meios tão delicados, que a própria alma não os entende, nem eu creio acertarei a dizê-lo de modo a que o entenda, a não ser as que passaram por isto; porque são uns impulsos tão delicados e subtis, que procedem do mais interior da alma, que não sei que comparação dar e que lhes quadre.
 
2. É bem diferente de tudo o que cá na terra podemos procurar, e até mesmo dos gostos que ficam ditos, pois muitas vezes, estando a própria pessoa descuidada e sem ter a memória em Deus, Sua Majestade a desperta, à maneira de um cometa que passa depressa, ou de um trovão, ainda que não se ouça ruído; mas entende muito bem a alma que foi chamamento de Deus, e tão bem entendido, que algumas vezes, em especial ao princípio, a faz estremecer e até queixar-se, sem ser coisa que lhe doa. Sente-se ferida saborosissimamente, mas não atina como nem quem a feriu; mas bem conhece ser coisa preciosa e jamais quereria sarar daquela ferida. Queixa-se a seu Esposo com palavras de amor, mesmo exteriores, sem poder fazer outra coisa; porque entende que Ele está presente, mas não Se quer manifestar de maneira a deixar-Se gozar. E é grande pena, ainda que saborosa e doce; e embora não a queira ter, não pode; mas isto não o quereria jamais. Esta pena muito mais a satisfaz que o embevecimento saboroso, que carece de pena, da oração de quietude.
 
3. Estou-me desfazendo, irmãs, para vos dar a entender esta operação de amor, e não sei como o fazer. Porque parece coisa contraditória dar o Amado claramente a entender que está com a alma e, ao mesmo tempo, parecer que a chama com um sinal tão certo, que não se pode duvidar, e com um silvo tão penetrante para a alma o entender, que não pode deixar de o ouvir; pois não parece senão que, em falando o Esposo, que está na sétima morada, por este modo (que não é fala formada), toda a gente que está nas outras moradas não ousa mexer-se: nem sentidos nem imaginações, nem potências. Oh! meu poderoso Deus, como são grandes os Vossos segredos, e que diferentes são as coisas do Espírito de tudo quanto por cá se pode ver e entender, pois com nenhuma coisa se pode declarar esta tão pequena, para as muito grandes que operais com as almas!
 
4. Faz nela tão grande operação, que se está desfazendo em desejos, e não sabe. o que pedir, porque claramente lhe parece que está com ela o seu Deus. Dir-me-eis: Pois, se isto entende, que deseja ela, ou que é que lhe dá pena? e que maior bem quer? Não sei; sei que lhe parece chegar às entranhas esta pena, e quando delas lhe arranca a seta Aquele que a fere, verdadeiramente parece que lhas leva atrás de si, tal é o sentimento de amor que sente. Estava eu pensando agora se seria que deste fogo do braseiro incendido, que é o meu Deus, saltava alguma centelha e dava na alma, de maneira a deixar-lhe sentir aquele incendido fogo, e como ainda não era bastante para a queimar, e é tão deleitoso, ficava com aquela pena e ao tocar nela fazia aquela operação; parece-me ser a melhor comparação que acertei a dizer. Porque esta dor saborosa - e não é dor - não está em um ser; ainda que, às vezes, dura um grande bocado, outras depressa se acaba: é como o Senhor o quer comunicar, pois não é coisa que se possa procurar por nenhuma via humana. Mas, ainda que está algumas vezes um bom bocado, desaparece e torna de novo; enfim, esta dor nunca está fixa, e por isso não acaba de abrasar a alma, pois mal se vai a acender, morre a centelha e a alma fica com o desejo de tornar a padecer aquela dor amorosa que ela lhe causa.
 
5. Aqui não há que pensar se é coisa movida pelo mesmo natural, ou causada pela melancolia, nem tão-pouco se é engano do demónio, ou se é coisa que se lhe afigurou; porque se deixa muito bem entender vir este movimento de onde está o Senhor que é imutável; e as operações não são como as de outras devoções, nas quais o muito embevecimento do gosto nos pode fazer duvidar. Aqui estão todos os sentidos e potências sem embevecimento, olhando ao que poderá ser, sem estorvar em nada, nem poderem acrescentar aquela pena deleitosa, nem tirá-la, a meu parecer. A quem Nosso Senhor fizer esta mercê (que, se lha tem feito, em lendo isto o entenderá), dê-Lhe muitas e muitas graças, pois não tem que temer se é ou não engano; tema muito se há-de vir a ser ingrato a tão grande mercê, e procure esforçar-se em servir e a melhorar em tudo a sua vida, e verá no que pára, e como recebe mais e mais. Uma pessoa que teve isto, passou alguns anos assim, e só com aquela mercê estava bem satisfeita, pois, se servisse ao Senhor uma multidão de anos, com grandes trabalhos, ficava com ela muito bem paga. Bendito seja Ele para sempre, amen.
 
6. Poderá ser que repareis como nisto há mais segurança do que noutras coisas. A meu parecer, é por estas razões: a primeira, porque jamais o demónio pode dar uma pena saborosa como esta. Poderá dar sabor e deleite que pareça espiritual; mas juntar pena, e tanta, com quietude e gosto da alma, não é da sua faculdade, pois todos os seus poderes estão por fora, e as suas penas, quando ele as dá, nunca são, a meu parecer, saborosas nem com paz, senão inquietas e com guerra. A segunda razão é porque esta tempestade saborosa vem de outra região, sem ser das que ele pode senhorear. A terceira, pelos grandes proveitos que ficam na alma, os quais são, muito habitualmente, determinar-se a padecer por Deus e desejar ter muitos trabalhos e ficar muito mais determinada a apartar-se dos contentos e conversações da terra, e outras coisas semelhantes.
 
7. O não ser ilusão, está muito claro; porque, ainda que outras vezes o procure, não poderá contra-fazer aquilo. E é coisa tão notória, que de nenhuma maneira isso se pode afigurar, digo parecer que é, não sendo, nem duvidar de que é verdade; e se alguma dúvida ficar, saibam que esses ímpetos não são verdadeiros; digo, se duvidar se os teve ou não; porque assim se dá a sentir, como aos ouvidos uma grande voz. E ser melancolia não leva nenhum caminho, pois a melancolia não faz nem fabrica seus antolhos senão na imaginação; isto, ao contrário, procede do interior da alma. Bem pode ser que eu me engane, mas até ouvir outras razões a quem o entenda, sempre estarei nesta opinião; assim sei de uma pessoa muito cheia de temor destes enganos, que desta oração nunca o pode ter.
 
8. Também costuma Nosso Senhor ter outras maneiras de despertar a alma: a qualquer hora, estando a rezar vocalmente e descuidada de coisa interior, parece que lhe vem uma inflamação deleitosa, como se de repente viesse um olor tão grande, que se comunicasse por todos os sentidos (não digo que é olor, mas ponho esta comparação), ou coisa de este género, só para dar a sentir que está ali o Esposo; e move um desejo saboroso de a alma gozar d'Ele, e com isto fica disposta para fazer grandes actos e louvores a Nosso Senhor. Esta mercê nasce de onde já ficou dito; mas aqui não há coisa que dê pena, nem mesmo os desejos de gozar de Deus são penosos: isto é o mais habitual senti-lo a alma. Tão-pouco me parece haver que temer, por algumas das razões já ditas, senão procurar admitir esta mercê com acção de graças.