SEXTA MORADA - CAPÍTULO 3

SEXTA MORADA - CAPÍTULO 3
Trata da mesma matéria e diz a maneira como Deus fala à alma, quando é servido, e avisa como se hão-de haver nisto, e não seguir o seu próprio parecer. Dá alguns sinais para se conhecer quando não é engano, e quando o é. É muito proveitoso. 
1. Outra maneira tem Deus de despertar a alma; embora, de algum modo, pareça maior mercê que as já ditas, poderá ser mais perigosa e por isso me deterei um tanto nela. São umas falas com a alma, de muitas maneiras: umas, parece que vêm de fora; outras, do muito interior da alma; outras, da parte superior dela e outras, tão do exterior, que se ouvem com os ouvidos, porque parece que é voz formada. Algumas vezes, e muitas, pode ser ilusão, em especial em pessoas de imaginação fraca ou melancólicas, digo de melancolia notável.
2. Destas duas maneiras de ser das pessoas não há que fazer caso, a meu parecer, ainda que digam que vêem e ouvem e entendem, nem inquietá-las com dizer-lhes que é demónio; mas ouvi-las como pessoas enfermas, dizendo a prioresa ou o confessor, a quem lho disser, que não faça caso disso; não está aí o essencial para servir a Deus e que muitos têm sido enganados pelo demónio, ainda que não será talvez assim com ela, e isto para não a afligir mais do que já está com o seu humor doentio; porque, se lhe dizem que é melancolia, é um não acabar: jurará que o vê e ouve, porque assim lhe parece.
3. Verdade é que é preciso ter cuidado de lhes tirar a oração, e procurar o mais que se puder que não façam caso disso; porque o demónio costuma aproveitar-se destas almas assim enfermas, embora não seja para seu dano, mas para o de outros; e tanto em enfermas como em sãs, sempre há que temer destas coisas, até ir entendendo o espírito que é. E digo que o melhor é sempre desfazer-lho nos princípios; porque, se é de Deus, é maior ajuda para ir adiante, e antes cresce quando é contrariado. Isto é assim, mas que não seja apertando muito a alma e inquietando-a, porque verdadeiramente ela não pode mais.
4. Pois, voltando ao que dizia das falas com a alma, de todas as maneiras que disse, podem ser de Deus e também do demónio e da própria imaginação. Direi, se acertar, com o favor do Senhor, os sinais que há nestas diferenças e quando estas falas serão perigosas. Porque há muitas almas que as ouvem entre gente de oração, e eu não quereria, irmãs, que pensásseis que fazeis mal em não lhes dar crédito, nem tão-pouco em dar-lho, quando são somente para vós mesmas, isto é: de consolação, ou aviso de faltas vossas; diga-as quem as disser, ou seja ilusão ou não, pouco vai nisso. De uma coisa vos aviso: não penseis, embora sejam de Deus, que por isso sereis melhores pois muito falou Ele aos fariseus, e todo o bem está em como se aproveitam destas palavras. E de nenhuma que não vá muito conforme à Sagrada Escritura não façais mais caso delas do que se as ouvísseis ao mesmo demónio; porque, ainda mesmo que sejam só da vossa fraca imaginação, é preciso tomarem-se como sendo uma tentação contra. coisas de fé, e assim resistir-lhes sempre, para que se vão afastando; e; de. facto, virão a desaparecer porque trazem consigo pouca força.
5. Pois, voltando ao primeiro, quer venha do interior, quer da parte superior, quer do exterior, isso não importa para deixar de ser de Deus. Os sinais mais certos que se podem ter, a meu parecer, são estes: o primeiro e mais verdadeiro, é o poderio e senhorio que trazem consigo, que é falando e operando. Declaro mais. Está uma alma em toda a tribulação e alvoroto interior que fica dito, e escuridão do entendimento e aridez. E, com uma palavra destas, que diga somente: «não tenhas pena», fica sossegada e sem nenhuma pena, e com grande luz, desaparecendo toda aquela pena, em que lhe parecia que, se todo o mundo e os letrados se juntassem a dar-lhe razões para que não a tivesse, não poderiam, por muito que trabalhassem, tirá-la daquela aflição. Está aflita por lhe ter dito o seu confessor, ou outros, que é espírito do demónio o que ela tem, e toda ela está cheia de temor; e, com uma só palavra destas que se lhe diga: «Sou Eu, não tenhas medo», desaparece todo o medo e fica consoladíssima, parecendo-lhe que ninguém conseguirá fazer-lhe crer outra coisa. Está com muita pena de alguns negócios graves, pois não sabe que resultado irão ter. Mas, entendendo que lhe dizem que «sossegue, que tudo sucederá bem», fica com uma grande certeza e sem pena. E deste modo, outras muitas coisas.
6. A segunda razão ou sinal é uma grande quietude que fica na alma, e um recolhimento devoto e pacífico, ficando ela assim disposta para os louvores de Deus. Oh! Senhor, se uma palavra mandada dizer por meio de um Vosso pajem (pois segundo dizem, estas ao menos nesta morada, não as diz o mesmo Senhor, mas sim algum anjo), tem tanta força, a que ponto a deixareis na alma que está ligada por amor conVosco, e Vós com ela?
7. O terceiro sinal é não se apagarem estas palavras da memória durante muito tempo, e algumas nunca, como se apagam as que ouvimos cá na terra, digo as que ouvimos aos homens; pois, ainda que sejam muito graves e letrados, não nos ficam tão esculpidas na memória, nem mesmo se são de coisas por vir, as acreditamos como a estas; é que fica uma grandíssima certeza, embora algumas vezes em coisas muito impossíveis ao parecer, não deixe de lhe vir a dúvida se será ou não será, e o entendimento ande com algumas vacilações, na mesma alma há, no entanto, uma segurança que não se pode render, ainda mesmo que lhe pareça que vai tudo ao contrário do que entendeu; e passam anos, e não se lhe tira aquele pensar que Deus buscará outros meios que os homens não entendem, mas que, enfim, se há-de fazer e assim se faz por fim; ainda que, como digo, não se deixa de padecer quando se vêem muitos desvios, porque, como já há tempos que o entendeu, e os sinais e a certeza que ao presente ficam de ser aquilo de Deus é já de coisas do passado, dá lugar a estas hesitações, pensando se foi do demónio, se foi da imaginação; contudo nenhuma destas dúvidas lhe fica ao presente, e até morreria por aquela verdade. Mas, como digo, com todas estas imaginações que o demónio levanta para perturbar e acobardar a alma, em especial se é em negócio que em fazer-se tal qual se entendeu há de advir muito bem às almas, e são obras de grande honra e serviço de Deus, e nelas há grande dificuldade, o que não fará ele? Ao menos enfraquece a fé, pois é grande dano não crer que Deus é poderoso para fazer obras que não alcançam os nossos entendimentos.
8. Apesar de todos estes combates, ainda que haja quem diga à mesma pessoa que são disparates (digo os confessores com quem se tratam estas coisas), e apesar dos maus sucessos que pode haver para dar a entender que essas coisas não se podem cumprir, sempre fica - não sei onde -, uma centelha tão viva, de que assim será que, embora todas as demais esperanças estejam mortas, não poderia, ainda mesmo que quisesse, deixar de estar viva aquela centelha de segurança. E por fim - como já disse -, cumpre-se a palavra do Senhor e a alma fica tão contente e alegre, que não quereria senão louvar sempre a Sua Majestade, por ver cumprido o que se lhe tinha dito, muito mais do que pela própria obra, ainda que nela se empenhasse muito, muito.
9. Não sei de que vem isto, que a alma tenha em tanto apreço que saiam verdadeiras estas palavras de Deus, pois, se a mesma pessoa fosse apanhada em algumas mentiras, creio que não o sentiria tanto; como se ela nisto pudesse mais do que dizer o que lhe dizem. Infinitas vezes se lembrava acerca disto certa pessoa do profeta Jonas, quando temia que não se houvesse de perder Nínive. Enfim; como é espírito de Deus, é razão que se lhe tenha esta fidelidade em desejar que não O tenham por falso, pois é a suma Verdade. E assim é grande a alegria quando, depois de mil rodeios, e em coisas dificultosíssimas, vê aquilo cumprido; e ainda que daí hajam de sobrevir grandes trabalhos à mesma pessoa, ela antes os quer sofrer, do que deixar-se de cumprir o que tem por certo ter-lhe dito o Senhor. Talvez nem todas as pessoas terão esta fraqueza, se o é, que eu isto não posso condenar por mau.
10. Se são da imaginação, não há nenhum destes sinais, nem certeza, nem paz e gosto interior; salvo que poderia acontecer, e até eu sei de algumas pessoas a quem tem acontecido, estando muito embebidas em oração de quietude e sono espiritual, pois algumas são fracas de compleição ou imaginação, ou não sei a causa, neste grande recolhimento estão verdadeiramente tão fora de si, que não se sentem no exterior e ficam tão adormentados todos os sentidos, que, como uma pessoa que dorme e até talvez seja assim e estejam adormecidas, a modo de sonho lhes parece que lhes falam, e até vêem coisas e pensam que é de Deus, e que deixam na alma seus efeitos, enfim, como de sonho. E também poderia ser, pedindo uma coisa afectuosamente a Nosso Senhor, parecer-lhes que lhes dizem o que querem e isto acontece algumas vezes. Mas quem tiver muita experiência das falas de Deus, não se poderá enganar - a meu parecer - nisto da imaginação.
11. Do demónio há mais que temer. Mas, se há os sinais que ficam ditos, muito se pode assegurar ser de Deus, embora não de maneira que, se é coisa grave o que se lhe diz, e se se há-de pôr por obra em coisa sua ou em negócios de terceiras pessoas, nunca faça nada, nem lhe passe pelo pensamento fazê-lo sem a opinião de confessor letrado e avisado e servo de Deus; e isto, ainda mesmo que o entenda muito bem e lhe pareça claramente ser coisa de Deus, porque é o que Sua Majestade quer, e não é deixar de fazer o que Ele manda, pois nos tem dito que tenhamos ao confessor em Seu lugar, e aqui não se pode duvidar serem palavras Suas; e estas ajudam a ter ânimo, se é negócio dificultoso, e Nosso Senhor o dará ao confessor e fará que ele creia que é espírito Seu, quando Ele o quiser, e se não, não estão a mais obrigados. E fazer outra coisa sem ser o que fica dito, e alguém guiar-se nisto pelo seu próprio parecer, tenho-o por coisa muito perigosa; e assim admoesto-vos, irmãs, da parte de Nosso Senhor, que nunca isto vos aconteça.
12. Tem o Senhor outra maneira de falar à alma, que eu tenho para mim por muito certo ser de Sua parte: por meio de alguma visão intelectual, que adiante direi como é. É tão no íntimo da alma, e parece-lhe ouvir tão claro do mesmo Senhor aquelas palavras com os ouvidos da alma, e tão em segredo, que a mesma maneira de as entender, com as operações que produz a mesma visão, assegura e dá certeza de que ali o demónio não pode ter parte. Deixa grandes efeitos para se crer isto; pelo menos, há segurança de que não procede da imaginação, e também, se há advertência, sempre disto a pode ter, por estas razões: A primeira, porque deve ser diferente na clareza da fala, que é tão clara que, se falta uma silaba daquilo que entendeu, se lembra, e se foi dito por um estilo ou por outro, embora seja tudo a mesma sentença; e naquilo que se afigure pela imaginação, não será fala tão clara, nem palavras tão distintas, senão como coisa meio sonhada.
13. A segunda é porque não se pensava aqui muitas vezes no que se entendeu -digo que é a desoras e até algumas vezes estando em conversação -, embora em muitas se responda ao que passa num pronto pelo pensamento ou ao que antes se tinha pensado; mas muitas vezes é em coisas que nunca teve ideia de que poderiam ser nem seriam; e assim não as poderia ter fabricado a imaginação para que a alma se enganasse em se lhe afigurar o que não tinha desejado, nem querido, nem tinha vindo ao seu conhecimento.
14. A terceira razão é porque isto é como quem ouve; e o da imaginação é como quem vai compondo, pouco a pouco, o que ele mesmo quer que lhe digam. 
15. A quarta, porque as palavras são muito diferentes, e com uma só se compreende muito, o que o nosso entendimento não poderia compor tão depressa.
16. A quinta, porque muitas vezes, juntamente com as palavras, por um modo que eu não saberei dizer, dá-se a entender, sem palavras, muito mais do que elas soam. Deste modo de entender, falarei mais noutra parte, pois é coisa muito delicada e para louvar a Nosso Senhor. É que, nesta maneira e nestas diferenças tem havido pessoas que ficam muito duvidosas, (em especial uma por quem isto passou, eassim haverá outras) que não chegam a entender-se. Sei, pois, que essa pessoa tem olhado a isto com muito cuidado, porque têm sido muitas as vezes que o Senhor lhe faz esta mercê, e a maior dúvida que tinha a princípio era nisto: se era ilusão. O ser do demónio, mais depressa se pode entender, ainda que são tantas as suas subtilezas que bem sabe contrafazer o espírito de luz; mas será - a meu parecer -só nas palavras, dizendo-as muito claras, para que também não fique dúvida se se entenderam tal como quando são do Espírito de Verdade; mas não poderá contrafazer os efeitos que ficam ditos, nem deixar essa paz e essa claridade na alma; antes, inquietação e alvoroto. Mas pode fazer pouco dano, ou nenhum, se a alma é humilde e faz o que tenho dito de não se mover a fazer nada, por mais coisas que oiça.
17. Se são favores e regalos do Senhor, veja com atenção se, por causa disto, se tem por melhor; c se, quando for maior a palavra de regalo, não ficar mais confundida, creia que não é espírito de Deus. Porque é coisa muito certa que, quando o é, quanto maior mercê lhe faz, em tanto menos se tem a mesma alma, e maior lembrança lhe traz de seus pecados, e mais olvidada anda de seu próprio  lucro, e mais emprega sua vontade e memória em só querer a honra de Deus; nem se recorda do seu próprio proveito, e anda com maior temor de torcer em alguma coisa a Sua divina vontade, e com maior certeza de nunca ter merecido aquelas mercês, mas sim o inferno. Logo que façam estes efeitos todas as coisas e mercês que tiver na oração, não ande a alma assustada, mas confiada na misericórdia do Senhor, que é fiel, e não deixará que o demónio a engane, ainda que é bom andar sempre com temor.
18. Poderá ser que, àquelas que o Senhor não leva por este caminho, lhes pareça que estas almas poderiam não escutar estas palavras que lhes dizem e, se são falas interiores, distrair-se de maneira a não as admitirem, e com isto andariam sem estes perigos. A isto respondo que é impossível: não falo das que se lhes afigura que ouvem, pois não estando a apetecer tanto alguma coisa, nem querendo fazer caso das imaginações, têm remédio. Aqui não há nenhum, porque o mesmo espírito que fala, de tal maneira faz parar todos os outros pensamentos e advertir ao que se diz que, em certo modo, seria mais possível, me parece e creio ser assim, uma pessoa que ouvisse muito bem não entender a outra que falasse em altas vozes. Poderia não advertir, e pôr o pensamento e o entendimento em outra coisa. Mas nisto de que tratamos não se pode fazer assim. Não há ouvidos que se tapem, nem poder para pensar, a não ser no que se lhe diz; porque O que fez parar o sol - a pedido de Josué creio que era - pode fazer parar as potências e todo o interior. De maneira que a alma vê bem que outro maior Senhor do que ela governa aquele castelo, e isto faz-lhe muita devoção e ter muita humildade. Assim é que, para se escusar a isto, não há nenhum remédio. No-lo dê a divina Majestade para pormos os olhos só em O contentar e nos esqueçamos de nós mesmos, como tenho dito, amen. Praza-Lhe que eu tenha acertado em dar a entender o que nisto .pretendia, e seja um aviso para quem tiver estas coisas. 
Trata da mesma matéria e diz a maneira como Deus fala à alma, quando é servido, e avisa como se hão-de haver nisto, e não seguir o seu próprio parecer. Dá alguns sinais para se conhecer quando não é engano, e quando o é. É muito proveitoso. 
 
1. Outra maneira tem Deus de despertar a alma; embora, de algum modo, pareça maior mercê que as já ditas, poderá ser mais perigosa e por isso me deterei um tanto nela. São umas falas com a alma, de muitas maneiras: umas, parece que vêm de fora; outras, do muito interior da alma; outras, da parte superior dela e outras, tão do exterior, que se ouvem com os ouvidos, porque parece que é voz formada. Algumas vezes, e muitas, pode ser ilusão, em especial em pessoas de imaginação fraca ou melancólicas, digo de melancolia notável.
 
2. Destas duas maneiras de ser das pessoas não há que fazer caso, a meu parecer, ainda que digam que vêem e ouvem e entendem, nem inquietá-las com dizer-lhes que é demónio; mas ouvi-las como pessoas enfermas, dizendo a prioresa ou o confessor, a quem lho disser, que não faça caso disso; não está aí o essencial para servir a Deus e que muitos têm sido enganados pelo demónio, ainda que não será talvez assim com ela, e isto para não a afligir mais do que já está com o seu humor doentio; porque, se lhe dizem que é melancolia, é um não acabar: jurará que o vê e ouve, porque assim lhe parece.
 
3. Verdade é que é preciso ter cuidado de lhes tirar a oração, e procurar o mais que se puder que não façam caso disso; porque o demónio costuma aproveitar-se destas almas assim enfermas, embora não seja para seu dano, mas para o de outros; e tanto em enfermas como em sãs, sempre há que temer destas coisas, até ir entendendo o espírito que é. E digo que o melhor é sempre desfazer-lho nos princípios; porque, se é de Deus, é maior ajuda para ir adiante, e antes cresce quando é contrariado. Isto é assim, mas que não seja apertando muito a alma e inquietando-a, porque verdadeiramente ela não pode mais.
 
4. Pois, voltando ao que dizia das falas com a alma, de todas as maneiras que disse, podem ser de Deus e também do demónio e da própria imaginação. Direi, se acertar, com o favor do Senhor, os sinais que há nestas diferenças e quando estas falas serão perigosas. Porque há muitas almas que as ouvem entre gente de oração, e eu não quereria, irmãs, que pensásseis que fazeis mal em não lhes dar crédito, nem tão-pouco em dar-lho, quando são somente para vós mesmas, isto é: de consolação, ou aviso de faltas vossas; diga-as quem as disser, ou seja ilusão ou não, pouco vai nisso. De uma coisa vos aviso: não penseis, embora sejam de Deus, que por isso sereis melhores pois muito falou Ele aos fariseus, e todo o bem está em como se aproveitam destas palavras. E de nenhuma que não vá muito conforme à Sagrada Escritura não façais mais caso delas do que se as ouvísseis ao mesmo demónio; porque, ainda mesmo que sejam só da vossa fraca imaginação, é preciso tomarem-se como sendo uma tentação contra. coisas de fé, e assim resistir-lhes sempre, para que se vão afastando; e; de. facto, virão a desaparecer porque trazem consigo pouca força.
 
5. Pois, voltando ao primeiro, quer venha do interior, quer da parte superior, quer do exterior, isso não importa para deixar de ser de Deus. Os sinais mais certos que se podem ter, a meu parecer, são estes: o primeiro e mais verdadeiro, é o poderio e senhorio que trazem consigo, que é falando e operando. Declaro mais. Está uma alma em toda a tribulação e alvoroto interior que fica dito, e escuridão do entendimento e aridez. E, com uma palavra destas, que diga somente: «não tenhas pena», fica sossegada e sem nenhuma pena, e com grande luz, desaparecendo toda aquela pena, em que lhe parecia que, se todo o mundo e os letrados se juntassem a dar-lhe razões para que não a tivesse, não poderiam, por muito que trabalhassem, tirá-la daquela aflição. Está aflita por lhe ter dito o seu confessor, ou outros, que é espírito do demónio o que ela tem, e toda ela está cheia de temor; e, com uma só palavra destas que se lhe diga: «Sou Eu, não tenhas medo», desaparece todo o medo e fica consoladíssima, parecendo-lhe que ninguém conseguirá fazer-lhe crer outra coisa. Está com muita pena de alguns negócios graves, pois não sabe que resultado irão ter. Mas, entendendo que lhe dizem que «sossegue, que tudo sucederá bem», fica com uma grande certeza e sem pena. E deste modo, outras muitas coisas.
 
6. A segunda razão ou sinal é uma grande quietude que fica na alma, e um recolhimento devoto e pacífico, ficando ela assim disposta para os louvores de Deus. Oh! Senhor, se uma palavra mandada dizer por meio de um Vosso pajem (pois segundo dizem, estas ao menos nesta morada, não as diz o mesmo Senhor, mas sim algum anjo), tem tanta força, a que ponto a deixareis na alma que está ligada por amor conVosco, e Vós com ela?
 
7. O terceiro sinal é não se apagarem estas palavras da memória durante muito tempo, e algumas nunca, como se apagam as que ouvimos cá na terra, digo as que ouvimos aos homens; pois, ainda que sejam muito graves e letrados, não nos ficam tão esculpidas na memória, nem mesmo se são de coisas por vir, as acreditamos como a estas; é que fica uma grandíssima certeza, embora algumas vezes em coisas muito impossíveis ao parecer, não deixe de lhe vir a dúvida se será ou não será, e o entendimento ande com algumas vacilações, na mesma alma há, no entanto, uma segurança que não se pode render, ainda mesmo que lhe pareça que vai tudo ao contrário do que entendeu; e passam anos, e não se lhe tira aquele pensar que Deus buscará outros meios que os homens não entendem, mas que, enfim, se há-de fazer e assim se faz por fim; ainda que, como digo, não se deixa de padecer quando se vêem muitos desvios, porque, como já há tempos que o entendeu, e os sinais e a certeza que ao presente ficam de ser aquilo de Deus é já de coisas do passado, dá lugar a estas hesitações, pensando se foi do demónio, se foi da imaginação; contudo nenhuma destas dúvidas lhe fica ao presente, e até morreria por aquela verdade. Mas, como digo, com todas estas imaginações que o demónio levanta para perturbar e acobardar a alma, em especial se é em negócio que em fazer-se tal qual se entendeu há de advir muito bem às almas, e são obras de grande honra e serviço de Deus, e nelas há grande dificuldade, o que não fará ele? Ao menos enfraquece a fé, pois é grande dano não crer que Deus é poderoso para fazer obras que não alcançam os nossos entendimentos.
 
8. Apesar de todos estes combates, ainda que haja quem diga à mesma pessoa que são disparates (digo os confessores com quem se tratam estas coisas), e apesar dos maus sucessos que pode haver para dar a entender que essas coisas não se podem cumprir, sempre fica - não sei onde -, uma centelha tão viva, de que assim será que, embora todas as demais esperanças estejam mortas, não poderia, ainda mesmo que quisesse, deixar de estar viva aquela centelha de segurança. E por fim - como já disse -, cumpre-se a palavra do Senhor e a alma fica tão contente e alegre, que não quereria senão louvar sempre a Sua Majestade, por ver cumprido o que se lhe tinha dito, muito mais do que pela própria obra, ainda que nela se empenhasse muito, muito.
 
9. Não sei de que vem isto, que a alma tenha em tanto apreço que saiam verdadeiras estas palavras de Deus, pois, se a mesma pessoa fosse apanhada em algumas mentiras, creio que não o sentiria tanto; como se ela nisto pudesse mais do que dizer o que lhe dizem. Infinitas vezes se lembrava acerca disto certa pessoa do profeta Jonas, quando temia que não se houvesse de perder Nínive. Enfim; como é espírito de Deus, é razão que se lhe tenha esta fidelidade em desejar que não O tenham por falso, pois é a suma Verdade. E assim é grande a alegria quando, depois de mil rodeios, e em coisas dificultosíssimas, vê aquilo cumprido; e ainda que daí hajam de sobrevir grandes trabalhos à mesma pessoa, ela antes os quer sofrer, do que deixar-se de cumprir o que tem por certo ter-lhe dito o Senhor. Talvez nem todas as pessoas terão esta fraqueza, se o é, que eu isto não posso condenar por mau.
 
10. Se são da imaginação, não há nenhum destes sinais, nem certeza, nem paz e gosto interior; salvo que poderia acontecer, e até eu sei de algumas pessoas a quem tem acontecido, estando muito embebidas em oração de quietude e sono espiritual, pois algumas são fracas de compleição ou imaginação, ou não sei a causa, neste grande recolhimento estão verdadeiramente tão fora de si, que não se sentem no exterior e ficam tão adormentados todos os sentidos, que, como uma pessoa que dorme e até talvez seja assim e estejam adormecidas, a modo de sonho lhes parece que lhes falam, e até vêem coisas e pensam que é de Deus, e que deixam na alma seus efeitos, enfim, como de sonho. E também poderia ser, pedindo uma coisa afectuosamente a Nosso Senhor, parecer-lhes que lhes dizem o que querem e isto acontece algumas vezes. Mas quem tiver muita experiência das falas de Deus, não se poderá enganar - a meu parecer - nisto da imaginação.
 
11. Do demónio há mais que temer. Mas, se há os sinais que ficam ditos, muito se pode assegurar ser de Deus, embora não de maneira que, se é coisa grave o que se lhe diz, e se se há-de pôr por obra em coisa sua ou em negócios de terceiras pessoas, nunca faça nada, nem lhe passe pelo pensamento fazê-lo sem a opinião de confessor letrado e avisado e servo de Deus; e isto, ainda mesmo que o entenda muito bem e lhe pareça claramente ser coisa de Deus, porque é o que Sua Majestade quer, e não é deixar de fazer o que Ele manda, pois nos tem dito que tenhamos ao confessor em Seu lugar, e aqui não se pode duvidar serem palavras Suas; e estas ajudam a ter ânimo, se é negócio dificultoso, e Nosso Senhor o dará ao confessor e fará que ele creia que é espírito Seu, quando Ele o quiser, e se não, não estão a mais obrigados. E fazer outra coisa sem ser o que fica dito, e alguém guiar-se nisto pelo seu próprio parecer, tenho-o por coisa muito perigosa; e assim admoesto-vos, irmãs, da parte de Nosso Senhor, que nunca isto vos aconteça.
 
12. Tem o Senhor outra maneira de falar à alma, que eu tenho para mim por muito certo ser de Sua parte: por meio de alguma visão intelectual, 
que adiante direi como é. É tão no íntimo da alma, e parece-lhe ouvir tão claro do mesmo Senhor aquelas palavras com os ouvidos da alma, e tão em segredo, que a mesma maneira de as entender, com as operações que produz a mesma visão, assegura e dá certeza de que ali o demónio não pode ter parte. Deixa grandes efeitos para se crer isto; pelo menos, há segurança de que não procede da imaginação, e também, se há advertência, sempre disto a pode ter, por estas razões: A primeira, porque deve ser diferente na clareza da fala, que é tão clara que, se falta uma silaba daquilo que entendeu, se lembra, e se foi dito por um estilo ou por outro, embora seja tudo a mesma sentença; e naquilo que se afigure pela imaginação, não será fala tão clara, nem palavras tão distintas, senão como coisa meio sonhada.
 
13. A segunda é porque não se pensava aqui muitas vezes no que se entendeu -digo que é a desoras e até algumas vezes estando em conversação -, embora em muitas se responda ao que passa num pronto pelo pensamento ou ao que antes se tinha pensado; mas muitas vezes é em coisas que nunca teve ideia de que poderiam ser nem seriam; e assim não as poderia ter fabricado a imaginação para que a alma se enganasse em se lhe afigurar o que não tinha desejado, nem querido, nem tinha vindo ao seu conhecimento.
 
14. A terceira razão é porque isto é como quem ouve; e o da imaginação é como quem vai compondo, pouco a pouco, o que ele mesmo quer que lhe digam. 
 
15. A quarta, porque as palavras são muito diferentes, e com uma só se compreende muito, o que o nosso entendimento não poderia compor tão depressa.
 
16. A quinta, porque muitas vezes, juntamente com as palavras, por um modo que eu não saberei dizer, dá-se a entender, sem palavras, muito mais do que elas soam. Deste modo de entender, falarei mais noutra parte, pois é coisa muito delicada e para louvar a Nosso Senhor. É que, nesta maneira e nestas diferenças tem havido pessoas que ficam muito duvidosas, (em especial uma por quem isto passou, eassim haverá outras) que não chegam a entender-se. Sei, pois, que essa pessoa tem olhado a isto com muito cuidado, porque têm sido muitas as vezes que o Senhor lhe faz esta mercê, e a maior dúvida que tinha a princípio era nisto: se era ilusão. O ser do demónio, mais depressa se pode entender, ainda que são tantas as suas subtilezas que bem sabe contrafazer o espírito de luz; mas será - a meu parecer -só nas palavras, dizendo-as muito claras, para que também não fique dúvida se se entenderam tal como quando são do Espírito de Verdade; mas não poderá contrafazer os efeitos que ficam ditos, nem deixar essa paz e essa claridade na alma; antes, inquietação e alvoroto. Mas pode fazer pouco dano, ou nenhum, se a alma é humilde e faz o que tenho dito de não se mover a fazer nada, por mais coisas que oiça.
 
17. Se são favores e regalos do Senhor, veja com atenção se, por causa disto, se tem por melhor; c se, quando for maior a palavra de regalo, não ficar mais confundida, creia que não é espírito de Deus. Porque é coisa muito certa que, quando o é, quanto maior mercê lhe faz, em tanto menos se tem a mesma alma, e maior lembrança lhe traz de seus pecados, e mais olvidada anda de seu próprio  lucro, e mais emprega sua vontade e memória em só querer a honra de Deus; nem se recorda do seu próprio proveito, e anda com maior temor de torcer em alguma coisa a Sua divina vontade, e com maior certeza de nunca ter merecido aquelas mercês, mas sim o inferno. Logo que façam estes efeitos todas as coisas e mercês que tiver na oração, não ande a alma assustada, mas confiada na misericórdia do Senhor, que é fiel, e não deixará que o demónio a engane, ainda que é bom andar sempre com temor.
 
18. Poderá ser que, àquelas que o Senhor não leva por este caminho, lhes pareça que estas almas poderiam não escutar estas palavras que lhes dizem e, se são falas interiores, distrair-se de maneira a não as admitirem, e com isto andariam sem estes perigos. A isto respondo que é impossível: não falo das que se lhes afigura que ouvem, pois não estando a apetecer tanto alguma coisa, nem querendo fazer caso das imaginações, têm remédio. Aqui não há nenhum, porque o mesmo espírito que fala, de tal maneira faz parar todos os outros pensamentos e advertir ao que se diz que, em certo modo, seria mais possível, me parece e creio ser assim, uma pessoa que ouvisse muito bem não entender a outra que falasse em altas vozes. Poderia não advertir, e pôr o pensamento e o entendimento em outra coisa. Mas nisto de que tratamos não se pode fazer assim. Não há ouvidos que se tapem, nem poder para pensar, a não ser no que se lhe diz; porque O que fez parar o sol - a pedido de Josué creio que era - pode fazer parar as potências e todo o interior. De maneira que a alma vê bem que outro maior Senhor do que ela governa aquele castelo, e isto faz-lhe muita devoção e ter muita humildade. Assim é que, para se escusar a isto, não há nenhum remédio. No-lo dê a divina Majestade para pormos os olhos só em O contentar e nos esqueçamos de nós mesmos, como tenho dito, amen. Praza-Lhe que eu tenha acertado em dar a entender o que nisto .pretendia, e seja um aviso para quem tiver estas coisas.