SEXTA MORADA - CAPÍTULO 4

SEXTA MORADA - CAPÍTULO 4
Trata de quando Deus suspende a alma na oração com arroubamento, ou êxtase, ou rapto, que tudo é uma mesma coisa, a meu parecer e como é mister grande. ânimo para receber grandes mercês de Sua Majestade. 
1. Com estas ditas coisas de trabalhos e as demais, que sossego pode trazer a pobre borboletazinha? Tudo é para mais desejar gozar do Esposo; e Sua Majestade, como quem conhece a nossa fraqueza, vai-a habilitando com estas coisas e outras muitas, para que tenha ânimo de se unir a tão grande Senhor e tomá-Lo por Esposo? 
2. Rir-vos-eis de que diga isto, e parecer-vos-á desatino; porque a qualquer de vós vos parecerá que não é preciso tê-lo e não haverá nenhuma mulher de tão humilde condição, que o não tenha para desposar-se com o rei. Assim o creio eu comum da terra; mas com O do Céu, eu vos digo ser preciso mais ânimo do que pensais; porque o nosso natural é muito tímido e baixo para tão grande coisa, e tenho por certo que, se Deus não lho desse, apesar de quanto vedes e de quanto nos convém, seria impossível tê-lo. E assim vereis o que faz Sua Majestade para concluir este desposório, que eu entendo deve ser quando dá arroubamentos, que a tira de seus sentidos; porque se estando neles se visse tão perto desta grande Majestade, não seria possível porventura ficar com vida.. Entende-se arroubamentos que o sejam, e não fraquezas de mulheres, como por cá temos, que tudo nos parece arroubamento e êxtase, e, - como creio já ter dito -, há compleições tão fracas que, com uma oração de quietude, quase que morrem. Quero deixar aqui algumas maneiras que tenho entendido haver de arroubamentos (por ter trato com tantas pessoas espirituais) embora não sei se acertarei a dizê-lo como disse em outra parte onde escrevi sobre isto e algumas coisas das que vão aqui que, por algumas razões, me pareceu que nada se perde em as tornar a dizer, ainda mesmo quando não seja senão para que as moradas fiquem todas aqui por junto.
3. Uma das maneiras é que, estando a alma, ainda mesmo que não seja em oração, tocada de alguma palavra de que se lembrou, ou que então ouve de Deus, parece que Sua Majestade desde o interior da alma faz crescer a centelha que já dissemos, movido de piedade de a ter visto padecer tanto tempo com desejo d'Ele e, abrasada toda ela como uma ave Fénix, fica renovada e, piedosamente se pode crer, perdoadas as suas culpas (há-de-se entender, com a disposição e os meios que esta alma terá tido, como a Igreja o ensina). E assim limpa, o Senhor a une consigo, sem ainda ninguém o entender, a não ser os dois, nem ainda a mesma alma o entende de modo a podê-lo depois dizer, conquanto não esteja sem sentidos interiores; porque não é como quem é tomado de desmaio ou paroxismo em que não entende nenhuma coisa interior nem exterior.
4. O que eu entendo neste caso é que a alma nunca esteve tão desperta para as coisas de Deus, nem com tão grande luz e conhecimento de Sua Majestade. Parecerá impossível, porque, se as potências estão tão absortas, que podemos até  dizer que estão mortas, e os sentidos na mesma, como se pode entender que entende esse segredo? Eu não sei, nem talvez nenhuma criatura, senão o mesmo Criador, assim como outras muitas coisas que se passam neste estado, digo nestas duas moradas; pois esta e a última poder-se-iam juntar muito bem, porque, de uma à outra, não há porta cerrada. Mas, porque na última há coisas que ainda se não manifestaram aos que não chegaram a ela, pareceu-me bem separá-las.
5. Quando, estando a alma nesta suspensão, o Senhor tem por bem mostrar-lhe alguns segredos, como de coisas do Céu e visões imaginárias, isto sabe dizê-lo depois e de tal maneira fica impresso na memória, que nunca jamais se esquece; mas, quando são visões intelectuais, estas tão-pouco as sabe dizer; porque deve haver a este tempo algumas tão subidas, que não convém que as entendam os que vivem nesta terra para as poderem dizer, embora estando a alma sã e em seus sentidos, se possam por cá dizer muitas destas visões intelectuais. Poderá ser que algumas de vós não entendais que coisa sejam visões, em especial intelectuais. Eu o direi a seu tempo, porque mo mandou quem pode; e, ainda que, pareça coisa impertinente, talvez para algumas almas seja de proveito.
6. Mas dir-me-eis: se depois não há-de haver lembrança dessas mercês tão subidas que o Senhor aí faz à alma, que proveito lhe trazem? Oh! filhas, é tão grande que nem se pode encarecer; porque, embora não se saibam dizer, lá no muito interior da alma ficam bem escritas e jamais se esquecem. Pois, se não têm imagem, nem as entendem as potências, como se podem lembrar? Tão-pouco entendo eu isso; mas entendo que ficam nesta alma umas verdades tão fixas da grandeza de Deus, que, ainda que não tivera fé que lhe diga quem Ele é, e que está obrigada a tê-Lo por Deus, adorá-Lo-ia como tal, desde aquele momento, como fez Jacob, quando viu a escada; porque com ela devia ter entendido outros segredos que não soube dizer, pois só com ver uma escada por onde desciam e subiam anjos, se não tivesse tido mais luz interior, não teria entendido tão grandes mistérios.
7. Não sei se atino no que digo, porque embora o tenha ouvido, não sei se me recordo bem. Nem tão-pouco Moisés soube dizer tudo o que viu na sarça, senão o que Deus quis que dissesse: Mas, se Deus não mostrasse à alma alguns segredos, certamente para que visse e cresse que era Deus, não se meteria em tantos e tão grandes trabalhos. Mas deve ter entendido tão grandes coisas dentro dos espinhos daquela sarça, que lhe deram ânimo para fazer o que fez pelo povo de Israel. Assim, irmãs, nas coisas ocultas de Deus não havemos de buscar razões para as entender, mas, assim como cremos que é poderoso, está claro que havemos de crer que um vermezinho de tão limitado poder como nós, não pode entender Suas grandezas. Louvemo-l'O muito, porque é servido que entendamos algumas. 
8. Estou desejando acertar com uma comparação para ver se posso dar a entender alguma coisa disto que vou dizendo e creio não haver nenhuma que quadre, mas digamos esta: entrais num aposento de um rei ou grande senhor, creio lhe chamam câmara, onde tem infinitos géneros de vidros e loiças e muitas coisas, postas em tal ordem, que quase todas se vêem logo ao entrar. Uma vez me levaram a um destes aposentos em casa da duquesa de Alba (onde, vindo de caminho, me mandou estar a obediência, por esta senhora ter importunado os superiores com pedidos), e fiquei espantada logo ao entrar e considerava para que podia aproveitar aquela barafunda de coisas, e via que se podia louvar ao Senhor ao ver tamanha diversidade. Agora acho graça como me aproveita para isto que digo. E, ainda que estive ali algum tempo, era tanto o que havia para ver, que logo me esqueci de tudo, de maneira que de nenhuma daquelas peças, me ficou mais memória como se nunca as tivesse visto, nem saberia dizer de que feitura eram; (mas, assim em conjunto, lembro-me de o ter visto). Assim aqui; está a alma tão unida com Deus, metida neste aposento do céu empíreo, que devemos ter no interior das nossa almas (porque está claro que, visto Deus estar nelas, está nalguma destas moradas); e ainda que, quando a alma está assim em êxtase, nem sempre o Senhor deve querer que veja estes segredos (porque está tão embebida em gozá-Lo, que lhe basta tão grande bem), algumas vezes gosta, no entanto, que ela se desembeveça e veja de repente o que está naquele aposento; e assim fica, depois de voltar a si, com aquela representação das grandezas que viu; mas não pode dizer nenhuma, nem o seu natural chega a mais do que ao sobrenatural que Deus quis que ela visse.
9. Logo já confesso o que foi ver, e o que é visão imaginária. Não quero dizer tal, pois não é disto que trato, senão de visão intelectual; mas, como não tenho letras, a minha rudeza não sabe dizer nada; pois, o que tenho dito até aqui, nesta oração, entendo claramente que, se vai bem, não fui eu que o disse. Eu tenho para mim que, se algumas vezes a alma, a quem Deus deu arroubamento, não entende neles destes segredos; não são arroubamentos, senão alguma fraqueza natural, que pode dar a pessoas de fraca compleição, como somos nós as mulheres, juntamente com alguma força de espírito que sobrepuje o natural, e ficam-se assim embevecidas, como creio ter dito na oração de quietude. Isto nada tem a ver com arroubamentos, porque, quando é arroubamento, crede que Deus rouba toda a alma para Si, e que, como a coisa própria Sua e já Sua esposa, lhe vai mostrando alguma partezinha do reino que já ganhou por ser Sua esposa; e, por pouco que seja, é tudo muito o que há neste grande Deus, e não quer estorvo de ninguém, nem das potências, nem dos sentidos; senão, depressa manda fechar as portas de todas estas moradas, e só aquela em que Ele está fica aberta, para nós entrarmos. Bendita seja tão grande misericórdia; e com razão serão malditos os que não quiserem aproveitar-se dela, e perderem este Senhor.
10. Oh! irmãs minhas, que não é nada o que deixámos, nem nada o que fazemos, nem quanto pudermos fazer por um Deus que assim se comunica a um vermezinho! E, se temos esperança de ainda nesta vida gozar deste bem, que fazemos e em que nos detemos? Que coisa é bastante para que deixemos um só momento de buscar a este Senhor, como o fazia a Esposa, por bairros e praças? Oh! e que farsa é tudo o que há no mundo, se não nos leva e ajuda a isto, ainda mesmo que durassem para sempre os seus deleites, riquezas e gozos, todos quantos se puderem imaginar, que tudo é asco e lixo, comparado a estes tesouros que se hão-de gozar sem fim! Mesmo estes são nada em comparação de ter por nosso ao Senhor de todos os tesouros do Céu e da terra.
11. Oh cegueira humana! Até quando, até quando estaremos até que nos caia esta terra de nossos olhos? Pois, embora entre nós não parece ser tanta que nos cegue de todo, vejo uns argueirinhos, umas manchazinhas que, se os deixamos crescer, bastarão para nos fazer grande dano; senão que, por amor de Deus, irmãs, aproveitemo-nos destas faltas para conhecer a nossa miséria e elas nos dêem melhor vista, como a deu o lodo ao cego a quem sarou o nosso Esposo. E assim, vendo-nos tão imperfeitas, cresça mais em nós o suplicar-Lhe que tire bens das nossas misérias, para em tudo contentarmos a Sua Majestade.
12. Muito me tenho desviado do assunto sem o perceber. Perdoai-me, irmãs, e crede que, chegada a estas grandezas de Deus, digo a falar delas, não pode deixar de me dar muita lástima ver o que perdemos por nossa culpa. Porque, embora seja verdade que são coisas que o Senhor dá a quem Ele quer, se quiséssemos a Sua Majestade como Ele nos quer, dá-las-ia a todos. Não está desejando outra coisa senão ter a quem dar, que por isso não se diminuem Suas riquezas. 
13. Tornando, pois, ao que dizia, manda o Esposo cerrar as portas das moradas e até as do castelo e da cerca; porque, em querendo arrebatar a esta alma, tira-se-lhe o fôlego de maneira que, embora dure algumas vezes um pouquinho mais na posse dos outros sentidos, de nenhum modo pode falar; ainda que de outras vezes tudo se lhe tira de repente e resfriam-se as mãos e o corpo, de modo que não parece ter alma, nem se percebe algumas vezes se respira. Isto dura pouco tempo, digo, para estar num mesmo ser; porque, atenuando-se um pouco esta grande suspensão, parece que o corpo volta um tanto a si e toma alento para tornar a morrer e dar maior vida à alma, e, no entanto, isto não dura muito neste tão grande êxtase; 
14. mas, ainda que se tira a suspensão, acontece ficar a vontade tão embevecida e o entendimento tão alheio, que dura assim o dia e até dias, que parece não é capaz de atender a coisa que não seja para despertar a vontade a amar e ela ali se fica muito desperta para isto e adormecida para se lançar a apegar-se a alguma criatura.
15. Oh! quando a alma torna já de todo a si, quanta não é a confusão que lhe fica, e que desejos tão grandes de se empregar em Deus, de todas as maneiras que Ele se quiser servir dela! Se das orações passadas já ficam tais efeitos como os que ficam ditos, que será de uma mercê tão grande corno esta? Quereria ter mil vidas para as empregar todas em Deus, e que todas quantas coisas há na terra fossem línguas para O louvar por ela. Desejos de fazer penitência, grandíssimos; e não faz muito em a fazer, porque, com a força do amor, sente pouco quanto faz, e vê claramente que os mártires não faziam muito nos tormentos que padeciam, porque, com esta ajuda da parte de Nosso Senhor, é fácil, e assim se queixam estas almas a Sua Majestade quando não se lhes oferece em que padecer.
16. Quando esta mercê lhes é feita em segredo, têm-na por muito grande; porque, quando é diante de algumas pessoas, é tão grande a vergonha e afronta que lhes fica, que de algum modo embevece a alma do, que gozou, com a pena e cuidado que lhe dá o pensar no que pensarão os que isto viram. Porque conhecem a malícia do mundo, e entendem que não o lançarão porventura à conta do que é, mas antes aquilo por que haviam de louvar ao Senhor, talvez seja ocasião para eles fazerem maus juízos. Esta pena e vergonha parece-me de certo modo falta de humildade; mas isto já não está em sua mão; porque, se esta pessoa deseja ser vituperada, que lhe importa? Como entendeu alguém, que estava nesta aflição, da parte de Nosso Senhor: «Não tenhas pena, porque, ou eles Me hão-de louvar a Mim, ou murmurar de ti; e em qualquer destas coisas ganhas tu». Soube depois que esta pessoa se tinha animado muito e consolado com estas palavras; e assim, para o caso de alguma se vir nesta aflição, as deixo aqui. Parece que Nosso Senhor quer que todos entendam que aquela alma é já Sua, e que ninguém há-de tocar nela; no corpo, na honra, na fazenda, seja em muito boa hora, pois de tudo se tirará honra para Sua Majestade; mas na alma, isso não; pois se ela, com muito culpável atrevimento, não se aparta de Seu Esposo, Ele lhe será amparo contra todo o mundo e até contra todo o, inferno.
17. Não sei se fica dado a entender algo do que seja o arroubamento, porque tudo é impossível, como disse; e creio não se ter perdido nada em o dizer, para se poder entender o que é, porque há efeitos muito diferentes nos fingidos arroubamentos. Não digo fingidos, porque quem os tem queira enganar, mas porque o está ela própria; e como os sinais e efeitos não são conformes a tão grande mercê, fica desacreditada de tal maneira que, com razão, não se dá depois crédito a quem o Senhor fizer esta mercê. Seja Ele para sempre bendito e louvado, amen, amen. 
Trata de quando Deus suspende a alma na oração com arroubamento, ou êxtase, ou rapto, que tudo é uma mesma coisa, a meu parecer e como é mister grande. ânimo para receber grandes mercês de Sua Majestade. 
 
1. Com estas ditas coisas de trabalhos e as demais, que sossego pode trazer a pobre borboletazinha? Tudo é para mais desejar gozar do Esposo; e Sua Majestade, como quem conhece a nossa fraqueza, vai-a habilitando com estas coisas e outras muitas, para que tenha ânimo de se unir a tão grande Senhor e tomá-Lo por Esposo? 
 
2. Rir-vos-eis de que diga isto, e parecer-vos-á desatino; porque a qualquer de vós vos parecerá que não é preciso tê-lo e não haverá nenhuma mulher de tão humilde condição, que o não tenha para desposar-se com o rei. Assim o creio eu comum da terra; mas com O do Céu, eu vos digo ser preciso mais ânimo do que pensais; porque o nosso natural é muito tímido e baixo para tão grande coisa, e tenho por certo que, se Deus não lho desse, apesar de quanto vedes e de quanto nos convém, seria impossível tê-lo. E assim vereis o que faz Sua Majestade para concluir este desposório, que eu entendo deve ser quando dá arroubamentos, que a tira de seus sentidos; porque se estando neles se visse tão perto desta grande Majestade, não seria possível porventura ficar com vida.. Entende-se arroubamentos que o sejam, e não fraquezas de mulheres, como por cá temos, que tudo nos parece arroubamento e êxtase, e, - como creio já ter dito -, há compleições tão fracas que, com uma oração de quietude, quase que morrem. Quero deixar aqui algumas maneiras que tenho entendido haver de arroubamentos (por ter trato com tantas pessoas espirituais) embora não sei se acertarei a dizê-lo como disse em outra parte onde escrevi sobre isto e algumas coisas das que vão aqui que, por algumas razões, me pareceu que nada se perde em as tornar a dizer, ainda mesmo quando não seja senão para que as moradas fiquem todas aqui por junto.
 
3. Uma das maneiras é que, estando a alma, ainda mesmo que não seja em oração, tocada de alguma palavra de que se lembrou, ou que então ouve de Deus, parece que Sua Majestade desde o interior da alma faz crescer a centelha que já dissemos, movido de piedade de a ter visto padecer tanto tempo com desejo d'Ele e, abrasada toda ela como uma ave Fénix, fica renovada e, piedosamente se pode crer, perdoadas as suas culpas (há-de-se entender, com a disposição e os meios que esta alma terá tido, como a Igreja o ensina). E assim limpa, o Senhor a une consigo, sem ainda ninguém o entender, a não ser os dois, nem ainda a mesma alma o entende de modo a podê-lo depois dizer, conquanto não esteja sem sentidos interiores; porque não é como quem é tomado de desmaio ou paroxismo em que não entende nenhuma coisa interior nem exterior.
 
4. O que eu entendo neste caso é que a alma nunca esteve tão desperta para as coisas de Deus, nem com tão grande luz e conhecimento de Sua Majestade. Parecerá impossível, porque, se as potências estão tão absortas, que podemos até  dizer que estão mortas, e os sentidos na mesma, como se pode entender que entende esse segredo? Eu não sei, nem talvez nenhuma criatura, senão o mesmo Criador, assim como outras muitas coisas que se passam neste estado, digo nestas duas moradas; pois esta e a última poder-se-iam juntar muito bem, porque, de uma à outra, não há porta cerrada. Mas, porque na última há coisas que ainda se não manifestaram aos que não chegaram a ela, pareceu-me bem separá-las.
 
5. Quando, estando a alma nesta suspensão, o Senhor tem por bem mostrar-lhe alguns segredos, como de coisas do Céu e visões imaginárias, isto sabe dizê-lo depois e de tal maneira fica impresso na memória, que nunca jamais se esquece; mas, quando são visões intelectuais, estas tão-pouco as sabe dizer; porque deve haver a este tempo algumas tão subidas, que não convém que as entendam os que vivem nesta terra para as poderem dizer, embora estando a alma sã e em seus sentidos, se possam por cá dizer muitas destas visões intelectuais. Poderá ser que algumas de vós não entendais que coisa sejam visões, em especial intelectuais. Eu o direi a seu tempo, porque mo mandou quem pode; e, ainda que, pareça coisa impertinente, talvez para algumas almas seja de proveito.
 
6. Mas dir-me-eis: se depois não há-de haver lembrança dessas mercês tão subidas que o Senhor aí faz à alma, que proveito lhe trazem? Oh! filhas, é tão grande que nem se pode encarecer; porque, embora não se saibam dizer, lá no muito interior da alma ficam bem escritas e jamais se esquecem. Pois, se não têm imagem, nem as entendem as potências, como se podem lembrar? Tão-pouco entendo eu isso; mas entendo que ficam nesta alma umas verdades tão fixas da grandeza de Deus, que, ainda que não tivera fé que lhe diga quem Ele é, e que está obrigada a tê-Lo por Deus, adorá-Lo-ia como tal, desde aquele momento, como fez Jacob, quando viu a escada; porque com ela devia ter entendido outros segredos que não soube dizer, pois só com ver uma escada por onde desciam e subiam anjos, se não tivesse tido mais luz interior, não teria entendido tão grandes mistérios.
 
7. Não sei se atino no que digo, porque embora o tenha ouvido, não sei se me recordo bem. Nem tão-pouco Moisés soube dizer tudo o que viu na sarça, senão o que Deus quis que dissesse: Mas, se Deus não mostrasse à alma alguns segredos, certamente para que visse e cresse que era Deus, não se meteria em tantos e tão grandes trabalhos. Mas deve ter entendido tão grandes coisas dentro dos espinhos daquela sarça, que lhe deram ânimo para fazer o que fez pelo povo de Israel. Assim, irmãs, nas coisas ocultas de Deus não havemos de buscar razões para as entender, mas, assim como cremos que é poderoso, está claro que havemos de crer que um vermezinho de tão limitado poder como nós, não pode entender Suas grandezas. Louvemo-l'O muito, porque é servido que entendamos algumas. 
 
8. Estou desejando acertar com uma comparação para ver se posso dar a entender alguma coisa disto que vou dizendo e creio não haver nenhuma que quadre, mas digamos esta: entrais num aposento de um rei ou grande senhor, creio lhe chamam câmara, onde tem infinitos géneros de vidros e loiças e muitas coisas, postas em tal ordem, que quase todas se vêem logo ao entrar. Uma vez me levaram a um destes aposentos em casa da duquesa de Alba (onde, vindo de caminho, me mandou estar a obediência, por esta senhora ter importunado os superiores com pedidos), e fiquei espantada logo ao entrar e considerava para que podia aproveitar aquela barafunda de coisas, e via que se podia louvar ao Senhor ao ver tamanha diversidade. Agora acho graça como me aproveita para isto que digo. E, ainda que estive ali algum tempo, era tanto o que havia para ver, que logo me esqueci de tudo, de maneira que de nenhuma daquelas peças, me ficou mais memória como se nunca as tivesse visto, nem saberia dizer de que feitura eram; (mas, assim em conjunto, lembro-me de o ter visto). Assim aqui; está a alma tão unida com Deus, metida neste aposento do céu empíreo, que devemos ter no interior das nossa almas (porque está claro que, visto Deus estar nelas, está nalguma destas moradas); e ainda que, quando a alma está assim em êxtase, nem sempre o Senhor deve querer que veja estes segredos (porque está tão embebida em gozá-Lo, que lhe basta tão grande bem), algumas vezes gosta, no entanto, que ela se desembeveça e veja de repente o que está naquele aposento; e assim fica, depois de voltar a si, com aquela representação das grandezas que viu; mas não pode dizer nenhuma, nem o seu natural chega a mais do que ao sobrenatural que Deus quis que ela visse.
 
9. Logo já confesso o que foi ver, e o que é visão imaginária. Não quero dizer tal, pois não é disto que trato, senão de visão intelectual; mas, como não tenho letras, a minha rudeza não sabe dizer nada; pois, o que tenho dito até aqui, nesta oração, entendo claramente que, se vai bem, não fui eu que o disse. Eu tenho para mim que, se algumas vezes a alma, a quem Deus deu arroubamento, não entende neles destes segredos; não são arroubamentos, senão alguma fraqueza natural, que pode dar a pessoas de fraca compleição, como somos nós as mulheres, juntamente com alguma força de espírito que sobrepuje o natural, e ficam-se assim embevecidas, como creio ter dito na oração de quietude. Isto nada tem a ver com arroubamentos, porque, quando é arroubamento, crede que Deus rouba toda a alma para Si, e que, como a coisa própria Sua e já Sua esposa, lhe vai mostrando alguma partezinha do reino que já ganhou por ser Sua esposa; e, por pouco que seja, é tudo muito o que há neste grande Deus, e não quer estorvo de ninguém, nem das potências, nem dos sentidos; senão, depressa manda fechar as portas de todas estas moradas, e só aquela em que Ele está fica aberta, para nós entrarmos. Bendita seja tão grande misericórdia; e com razão serão malditos os que não quiserem aproveitar-se dela, e perderem este Senhor.
 
10. Oh! irmãs minhas, que não é nada o que deixámos, nem nada o que fazemos, nem quanto pudermos fazer por um Deus que assim se comunica a um vermezinho! E, se temos esperança de ainda nesta vida gozar deste bem, que fazemos e em que nos detemos? Que coisa é bastante para que deixemos um só momento de buscar a este Senhor, como o fazia a Esposa, por bairros e praças? Oh! e que farsa é tudo o que há no mundo, se não nos leva e ajuda a isto, ainda mesmo que durassem para sempre os seus deleites, riquezas e gozos, todos quantos se puderem imaginar, que tudo é asco e lixo, comparado a estes tesouros que se hão-de gozar sem fim! Mesmo estes são nada em comparação de ter por nosso ao Senhor de todos os tesouros do Céu e da terra.
 
11. Oh cegueira humana! Até quando, até quando estaremos até que nos caia esta terra de nossos olhos? Pois, embora entre nós não parece ser tanta que nos cegue de todo, vejo uns argueirinhos, umas manchazinhas que, se os deixamos crescer, bastarão para nos fazer grande dano; senão que, por amor de Deus, irmãs, aproveitemo-nos destas faltas para conhecer a nossa miséria e elas nos dêem melhor vista, como a deu o lodo ao cego a quem sarou o nosso Esposo. E assim, vendo-nos tão imperfeitas, cresça mais em nós o suplicar-Lhe que tire bens das nossas misérias, para em tudo contentarmos a Sua Majestade.
 
12. Muito me tenho desviado do assunto sem o perceber. Perdoai-me, irmãs, e crede que, chegada a estas grandezas de Deus, digo a falar delas, não pode deixar de me dar muita lástima ver o que perdemos por nossa culpa. Porque, embora seja verdade que são coisas que o Senhor dá a quem Ele quer, se quiséssemos a Sua Majestade como Ele nos quer, dá-las-ia a todos. Não está desejando outra coisa senão ter a quem dar, que por isso não se diminuem Suas riquezas. 
 
13. Tornando, pois, ao que dizia, manda o Esposo cerrar as portas das moradas e até as do castelo e da cerca; porque, em querendo arrebatar a esta alma, tira-se-lhe o fôlego de maneira que, embora dure algumas vezes um pouquinho mais na posse dos outros sentidos, de nenhum modo pode falar; ainda que de outras vezes tudo se lhe tira de repente e resfriam-se as mãos e o corpo, de modo que não parece ter alma, nem se percebe algumas vezes se respira. Isto dura pouco tempo, digo, para estar num mesmo ser; porque, atenuando-se um pouco esta grande suspensão, parece que o corpo volta um tanto a si e toma alento para tornar a morrer e dar maior vida à alma, e, no entanto, isto não dura muito neste tão grande êxtase; 
 
14. mas, ainda que se tira a suspensão, acontece ficar a vontade tão embevecida e o entendimento tão alheio, que dura assim o dia e até dias, que parece não é capaz de atender a coisa que não seja para despertar a vontade a amar e ela ali se fica muito desperta para isto e adormecida para se lançar a apegar-se a alguma criatura.
 
15. Oh! quando a alma torna já de todo a si, quanta não é a confusão que lhe fica, e que desejos tão grandes de se empregar em Deus, de todas as maneiras que Ele se quiser servir dela! Se das orações passadas já ficam tais efeitos como os que ficam ditos, que será de uma mercê tão grande corno esta? Quereria ter mil vidas para as empregar todas em Deus, e que todas quantas coisas há na terra fossem línguas para O louvar por ela. Desejos de fazer penitência, grandíssimos; e não faz muito em a fazer, porque, com a força do amor, sente pouco quanto faz, e vê claramente que os mártires não faziam muito nos tormentos que padeciam, porque, com esta ajuda da parte de Nosso Senhor, é fácil, e assim se queixam estas almas a Sua Majestade quando não se lhes oferece em que padecer.
 
16. Quando esta mercê lhes é feita em segredo, têm-na por muito grande; porque, quando é diante de algumas pessoas, é tão grande a vergonha e afronta que lhes fica, que de algum modo embevece a alma do, que gozou, com a pena e cuidado que lhe dá o pensar no que pensarão os que isto viram. Porque conhecem a malícia do mundo, e entendem que não o lançarão porventura à conta do que é, mas antes aquilo por que haviam de louvar ao Senhor, talvez seja ocasião para eles fazerem maus juízos. Esta pena e vergonha parece-me de certo modo falta de humildade; mas isto já não está em sua mão; porque, se esta pessoa deseja ser vituperada, que lhe importa? Como entendeu alguém, que estava nesta aflição, da parte de Nosso Senhor: «Não tenhas pena, porque, ou eles Me hão-de louvar a Mim, ou murmurar de ti; e em qualquer destas coisas ganhas tu». Soube depois que esta pessoa se tinha animado muito e consolado com estas palavras; e assim, para o caso de alguma se vir nesta aflição, as deixo aqui. Parece que Nosso Senhor quer que todos entendam que aquela alma é já Sua, e que ninguém há-de tocar nela; no corpo, na honra, na fazenda, seja em muito boa hora, pois de tudo se tirará honra para Sua Majestade; mas na alma, isso não; pois se ela, com muito culpável atrevimento, não se aparta de Seu Esposo, Ele lhe será amparo contra todo o mundo e até contra todo o, inferno.
 
17. Não sei se fica dado a entender algo do que seja o arroubamento, porque tudo é impossível, como disse; e creio não se ter perdido nada em o dizer, para se poder entender o que é, porque há efeitos muito diferentes nos fingidos arroubamentos. Não digo fingidos, porque quem os tem queira enganar, mas porque o está ela própria; e como os sinais e efeitos não são conformes a tão grande mercê, fica desacreditada de tal maneira que, com razão, não se dá depois crédito a quem o Senhor fizer esta mercê. Seja Ele para sempre bendito e louvado, amen, amen.