Trata de como é a pena que sentem de seus pecados as almas a quem Deus faz as ditas mercês. Diz quão grande erro é não se exercitar, por espiritual que se seja, em trazer presente a humanidade de Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, e sua sacratíssima paixão e vida, e a Sua gloriosa Mãe e os santos. É muito proveitoso.
1. Parecer-vos-á, irmãs, que estas almas, a quem o Senhor se comunica tão particularmente (em especial não poderão pensar isto que direi as que não tiverem chegado a estas mercês, porque se o tiverem gozado, e se é de Deus, verão o que eu direi), estarão já tão seguras de que hão-de gozá-l'O para sempre, que não terão que temer nem que chorar seus pecados; e será um engano muito grande, porque a dor dos pecados cresce tanto mais quanto mais se recebe de nosso Deus. E tenho para mim que esta pena não nos deixará, até que estejamos onde nenhuma coisa no-la possa dar.
2. É verdade que umas vezes aperta mais que outras, e também é de diferente maneira; porque não se lembra da pena que há-de ter por eles, mas sim de como foi tão ingrata a Quem tanto deve, e a Quem tanto merece ser servido; porque, nestas grandezas que se lhe comunicam, entende muito mais a de Deus. Espanta-se de como foi tão atrevida; chora o seu pouco respeito; parece-lhe coisa tão desatinada o seu desatino, que não acaba nunca de o lastimar, quando se lembra das coisas tão baixas pelas quais deixava uma tão grande Majestade. Muito mais se lembra disto do que das mercês recebidas, sendo elas tão grandes como as ditas e as que estão por dizer; parece que as leva um rio caudaloso e as traz a seu tempo; mas isto dos pecados estão como lodo, pois sempre parece que se avivam na memória e é bem grande cruz.
3. Sei de uma pessoa que, deixando de querer morrer para ver a Deus, o desejava para não sentir tão habitualmente a pena de quão desagradecida tinha sido a Quem tanto deveu sempre e havia de continuar a dever; e assim lhe parecia não poder haver ninguém cujas maldades pudessem chegar às suas, porque entendia que não haveria a quem Deus tanto tivesse sofrido e tantas mercês tivesse feito. No que toca a medo do inferno, nenhum têm. O de poderem vir a perder a Deus, às vezes aflige muito; mas é poucas vezes. Todo o seu temor é que não as deixe Deus de Sua mão e O venham a ofender, e se vejam em estado tão miserável como se viram em outros tempos, pois de sua própria pena ou glória não têm cuidado; e, se desejam não estar muito tempo no purgatório, é mais para não estarem ausentes de Deus, enquanto ali estiverem, do que pelas penas que hão-de passar.
4. Eu não teria por seguro, por favorecida que uma alma esteja de Deus, que ela se esquecesse de que nalgum tempo se viu em miserável estado; porque, embora seja coisa penosa, aproveita para muitas coisas. Talvez que, como eu tenho sido tão ruim, me pareça isto, e esta é a causa de o trazer sempre na memória; as que têm sido boas, não terão que sentir; embora sempre haja quebras enquanto vivemos neste corpo mortal. Para esta pena não é alivio nenhum pensar que Nosso Senhor já tem perdoados e esquecidos os pecados; antes acresce à pena ver tanta bondade e fazerem-se mercês a quem não merecia senão o inferno. Penso que foi este um grande martírio em São Pedro e na Madalena; porque, como tinham o amor tão acrescido e tinham recebido tantas mercês e tinham entendida a grandeza e majestade de Deus, seria bem duro de sofrer, e com muito terno sentimento.
5. Também vos parecerá que quem goza de coisas tão sublimes, não terá meditação nos mistérios da sacratíssima Humanidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, porque já se exercitará toda em amor. Isto é uma coisa que escrevi largamente em outra parte, e conquanto nisso me tenham con tradito e dito que não o entendo, porque são caminhos por onde leva Nosso Senhor e quando as almas já passaram dos princípios, é melhor tratar em coisas da Divindade e fugir das corpóreas, a mim não me farão confessar que é bom caminho. Bem pode ser que me engane, e que digamos todos a mesma coisa; mas eu vi que o demónio me queria enganar por aí, e assim estou tão escarmentada, que penso, embora o tenha dito mais vezes, dizervo-lo outra vez aqui, para que andeis nisto com muita advertência; e olhai que ouso dizer que não acrediteis a quem vos disser outra coisa. E procurarei dar-me a entender melhor do que o fiz em outra parte; porque, porventura, se alguém que o escrever, como ele o disse, mais se alargasse em o declarar, dizia bem; mas dizê-lo assim por junto às que não entendemos tanto, pode fazer muito mal.
6. Também lhes parecerá a algumas que não podem pensar na Paixão; pois menos poderão pensar na Santíssima Virgem, nem na vida dos Santos, que tão grande proveito e alento nos dá a sua memória. Eu não posso pensarem que pensam; porque, apartados de tudo o que é corpóreo, é para espíritos angélicos o estar sempre abrasados em amor, não para os que vivemos em corpo mortal, que é preciso tratar, pensar e se acompanhar dos que, tendo corpo, fizeram tão grandes façanhas por Deus; quanto mais apartar-se propositadamente de todo o nosso bem e remédio, que é a Sacratíssima Humanidade de Nosso Senhor Jesus Cristo. Eu não posso crer que o façam, mas não se entendem, e assim farão dano a si e aos outros. Pelo menos eu lhes asseguro que não entram nestas duas últimas moradas porque, se perdem o guia, que é o bom Jesus, não acertarão com o caminho: muito já será, se ficam nas outras moradas com segurança. Porque o mesmo Senhor nos disse que é caminho e também disse o Senhor que é luz, e que ninguém pode ir ao Pai senão por Ele; e «quem Me vê a Mim, vê a Meu Pai». Dirão que se dá outro sentido a estas palavras. Eu não sei esses outros sentidos; com este, que sempre a minha alma sente ser verdade, me tem ido muito bem.
7. Há algumas almas - e são muitas as que o têm tratado comigo - que, mal Nosso Senhor lhes chega a dar contemplação perfeita, quereriam sempre ficar-se ali, e não pode ser; mas ficam, com esta mercê do Senhor de tal maneira, que depois não podem, como antes, discorrer nos mistérios da Paixão e da vida de Cristo. E não sei qual a causa, mas isto é muito frequente: o entendimento fica mais inabilitado para a meditação. Creio que a causa deve ser esta: como na meditação tudo é buscar a Deus, uma vez que O encontra e a alma se acostuma a torna-1'O a buscar por obra de vontade, já não se quer cansar com o trabalho do entendimento. Também me parece que, como a vontade já está encendida, não quer esta potência generosa aproveitar-se daqueloutra, se puder; e não faz mal, mas será impossível, em especial até que chegue a estas últimas moradas, e perderá tempo, porque muitas vezes precisa de ser ajudada do entendimento para encender a vontade.
8. E notai, irmãs, este ponto, que é importante e assim o quero declarar melhor. Está a alma desejando empregar-se toda em amar e não quereria atender a outra coisa, mas não poderá ainda que queira; porque, ainda que a vontade não esteja morta, está amortecido o fogo que a costuma fazer arder, e é preciso quem o sopre para de si lançar calor. Seria bom que a alma se ficasse para ali com esta aridez, esperando fogo do céu que queime este sacrifício que está fazendo de si a Deus, como fez Elias, nosso Pai? Não, por certo; nem é bem esperar milagres. O Senhor os faz, quando é servido, por amor desta alma, como fica dito e se dirá adiante; mas Sua Majestade quer que nos tenhamos por tão ruins que pensemos não merecer que no-los faça, mas que nos ajudemos a nós mesmos em tudo o que pudermos. E tenho para mim que, até que morramos, por subida que seja a oração, isto é necessário.
9. Verdade é que, a quem o Senhor mete já na sétima morada, é muito poucas vezes, ou quase nunca, as que precisa de fazer esta diligência, pela razão que nela direi, se me lembrar; mas é muito contínuo o não se apartar de andar com Cristo Nosso Senhor, por um modo admirável, em que divino e humano juntamente é sempre sua companhia. Assim, pois, quando não se acendeu na vontade o fogo que fica dito, nem se sente a presença de Deus, é preciso que a busquemos; que isto quer Sua Majestade como o fazia a Esposa nos Cantares, e que perguntemos às criaturas quem as fez -, como diz Santo Agostinho, creio que nas suas Meditações ou Confissões -, e não nos fiquemos pasmados, perdendo tempo, a esperar o que uma vez nos deu porque nos princípios poderá ser que não no-lo dê o Senhor em um ano, e até em muitos; Sua Majestade sabe o porquê; nós não havemos de querer sabê-lo, nem há para quê. Visto que sabemos o caminho e como nele havemos de contentar a Deus pelos mandamentos e conselhos, e em pensar na Sua vida e morte, e no muito que Lhe devemos, andemos nisto muito diligentes; o demais, venha quando o Senhor quiser.
10. Aqui vem o responderem que não podem deter-se nestas coisas; e, pelo que fica dito, talvez tenham razão em certo modo. Já sabeis que discorrer com o entendimento é uma coisa, e representar a memória verdades ao entendimento, é outra. Direis, talvez, que não me entendeis, e verdadeiramente poderá ser que não o entenda eu para sabê-lo dizer; mas di-lo-ei como souber. Chamo eu meditação ao discorrer muito com o entendimento desta maneira: começamos a pensar na mercê que Deus nos fez em nos dar o Seu único Filho, e não paramos ali, mas vamos adiante aos mistérios de toda a Sua gloriosa vida; ou começamos na oração do Horto, e não pára o entendimento até estar pregado na Cruz; ou tomamos um passo da Paixão, digamos tal como a prisão, e andamos neste mistério considerando, por miúdo, as coisas que há que pensar nele e que sentir, assim da traição de Judas, como da fuga dos Apóstolos, e tudo o mais; e é admirável e muito meritória oração.
11. Esta é a oração que eu digo que terá razão para dizer que não a pode fazer quem chegou a ser levado por Deus a coisas sobrenaturais e à perfeita contemplação; porque, - como disse -, não sei a causa, mas o mais normal é não poder. Mas não a terá, digo razão, se diz que não se detém nestes mistérios, nem os traz presentes muitas vezes, em especial quando os celebra a Igreja Católica; nem é possível que perca assim a memória a alma que recebeu tanto de Deus em mostras de amor tão preciosas, porque são vivas centelhas para a inflamar mais no amor que tem a Nosso Senhor; senão que a alma se não entende com a meditação porque já entende estes mistérios por um modo mais perfeito. É porque lhos representa o entendimento, e gravam-se-lhe na memória de tal maneira, que só de ver o Senhor caído por terra com aquele espantoso suor no Horto, lhe basta não só para uma hora, senão para muitos dias, vendo numa simples vista de olhos quem Ele é, e quão ingratos temos sido a tão grande pena. Mas logo acode a vontade, ainda que não seja com ternura, desejar servir em alguma coisa tão grande mercê e a desejar padecer alguma coisa por Quem tanto padeceu e a outras coisas semelhantes, em que ocupa a memória e o entendimento. E creio que, por esta razão, não pode passar a discorrer mais largamente sobre a Paixão, e isto lhe faz parecer que não pode pensar nela.
12. E se não faz isto, é bem que o procure fazer, porque sei que não lho impedirá a muita subida oração, e não tenho por bem que não se exercite nisto muitas vezes. Se daqui a suspender o Senhor, que seja muito em boa hora, pois ainda que não queira, a fará deixar aquilo em que está. E tenho por muito certo que não é estorvo esta maneira de proceder, senão grande ajuda para todo o bem; o que seria estorvo é se trabalhasse muito no discorrer que disse ao princípio, e tenho para mim que não poderá quem chegou a mais. Bem pode ser que sim, pois, por muitos caminhos leva Deus as almas; mas não se condenem por isso as que não puderem ir por ele; nem as julguem inabilitadas para gozar de tão grandes bens como estão encerrados nos mistérios do nosso Bem, Jesus Cristo; nem ninguém me fará entender, seja tão espiritual quanto quiser, que irá bem por aqui.
13. Há uns princípios, e até meios, que têm algumas almas: logo que começam a chegar à oração de quietude e a gostar dos regalos e gostos que dá o Senhor, parece-lhes que é muito grande coisa estarem ali sempre gostando. Mas creiam-me, e não se embeveçam tanto - como já disse em outra parte - que a vida é longa, há nela muitos trabalhos, termos necessidade de olhar e ver como o nosso modelo Jesus Cristo os passou, e até Seus Apóstolos e Santos, para levarmos os nossos com perfeição. É muito boa companhia o bom Jesus para que nos apartemos dela e de Sua Sacratíssima Mãe e gosta muito de que nos condoamos de Suas penas, embora deixemos o nosso contentamento e gosto algumas vezes. Tanto mais, filhas, que não é tão frequente o regalo na oração, que não haja tempo para tudo; e a que disser que está sempre no mesmo ser, eu o teria por suspeitoso; digo, que nunca poderá fazer o que fica dito; e assim, tendo-vos também por tal, e procurai sair desse engano, e desembevecei-vos com todas as vossas forças; e, se não bastarem, digam-no à prioresa, para que vos dê um ofício de tanto cuidado, que tire esse perigo; ao menos para o juízo e para a cabeça seria bem grande se durasse muito tempo.
14. Creio que fica dado a entender quanto convém, por espirituais que sejam, não fugir tanto de coisas corpóreas, que lhes pareça até fazer dano a Humanidade sacratíssima. Alegam o que o Senhor disse a Seus discípulos, que convinha que Ele se fosse. Eu não posso sofrer isto. Por certo que não o disse à Sua Mãe Sacratíssima, porque Ela estava firme na fé, sabia que era Deus e homem; e embora O amasse mais que eles, era com tanta perfeição, que isso antes A ajudava. Não deviam estar então os Apóstolos tão firmes na fé como depois estiveram, e nós temos razão para estarmos agora. Eu vos digo, filhas, que o tenho por caminho perigoso, e que o demónio poderia vir por aqui a fazer perder a devoção para com o Santíssimo Sacramento.
15. O engano que me pareceu a mim que eu levava, não chegou a tanto como isto, mas sim a não gostar de pensar tanto em Nosso Senhor Jesus Cristo, e a ficar-me naquele embevecimento, aguardando aquele regalo. E vi claramente que ia mal; porque, como não o podia ter sempre, andava o pensamento daqui para ali, e a alma, me parece, como uma ave revoando, a qual não acha onde pousar, e perdendo muito tempo, e não aproveitando nas virtudes nem medrando na oração. E não entendia a causa, nem a entenderia, a meu parecer, porque me parecia que era aquilo muito acertado; até que, tratando da oração que trazia com uma pessoa serva de Deus, ela me avisou. Depois vi claramente como ia errada, e nunca se me acaba o pesar de ter havido algum tempo em que eu não entendesse que mal se podia ganhar com tão grande perda; e, mesmo quando pudesse, nenhum bem quero, senão adquirido por Quem nos vieram todos os bens. Seja Ele para sempre louvado, amen.
Trata de como é a pena que sentem de seus pecados as almas a quem Deus faz as ditas mercês. Diz quão grande erro é não se exercitar, por espiritual que se seja, em trazer presente a humanidade de Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, e sua sacratíssima paixão e vida, e a Sua gloriosa Mãe e os santos. É muito proveitoso.
1. Parecer-vos-á, irmãs, que estas almas, a quem o Senhor se comunica tão particularmente (em especial não poderão pensar isto que direi as que não tiverem chegado a estas mercês, porque se o tiverem gozado, e se é de Deus, verão o que eu direi), estarão já tão seguras de que hão-de gozá-l'O para sempre, que não terão que temer nem que chorar seus pecados; e será um engano muito grande, porque a dor dos pecados cresce tanto mais quanto mais se recebe de nosso Deus. E tenho para mim que esta pena não nos deixará, até que estejamos onde nenhuma coisa no-la possa dar.
2. É verdade que umas vezes aperta mais que outras, e também é de diferente maneira; porque não se lembra da pena que há-de ter por eles, mas sim de como foi tão ingrata a Quem tanto deve, e a Quem tanto merece ser servido; porque, nestas grandezas que se lhe comunicam, entende muito mais a de Deus. Espanta-se de como foi tão atrevida; chora o seu pouco respeito; parece-lhe coisa tão desatinada o seu desatino, que não acaba nunca de o lastimar, quando se lembra das coisas tão baixas pelas quais deixava uma tão grande Majestade. Muito mais se lembra disto do que das mercês recebidas, sendo elas tão grandes como as ditas e as que estão por dizer; parece que as leva um rio caudaloso e as traz a seu tempo; mas isto dos pecados estão como lodo, pois sempre parece que se avivam na memória e é bem grande cruz.
3. Sei de uma pessoa que, deixando de querer morrer para ver a Deus, o desejava para não sentir tão habitualmente a pena de quão desagradecida tinha sido a Quem tanto deveu sempre e havia de continuar a dever; e assim lhe parecia não poder haver ninguém cujas maldades pudessem chegar às suas, porque entendia que não haveria a quem Deus tanto tivesse sofrido e tantas mercês tivesse feito. No que toca a medo do inferno, nenhum têm. O de poderem vir a perder a Deus, às vezes aflige muito; mas é poucas vezes. Todo o seu temor é que não as deixe Deus de Sua mão e O venham a ofender, e se vejam em estado tão miserável como se viram em outros tempos, pois de sua própria pena ou glória não têm cuidado; e, se desejam não estar muito tempo no purgatório, é mais para não estarem ausentes de Deus, enquanto ali estiverem, do que pelas penas que hão-de passar.
4. Eu não teria por seguro, por favorecida que uma alma esteja de Deus, que ela se esquecesse de que nalgum tempo se viu em miserável estado; porque, embora seja coisa penosa, aproveita para muitas coisas. Talvez que, como eu tenho sido tão ruim, me pareça isto, e esta é a causa de o trazer sempre na memória; as que têm sido boas, não terão que sentir; embora sempre haja quebras enquanto vivemos neste corpo mortal. Para esta pena não é alivio nenhum pensar que Nosso Senhor já tem perdoados e esquecidos os pecados; antes acresce à pena ver tanta bondade e fazerem-se mercês a quem não merecia senão o inferno. Penso que foi este um grande martírio em São Pedro e na Madalena; porque, como tinham o amor tão acrescido e tinham recebido tantas mercês e tinham entendida a grandeza e majestade de Deus, seria bem duro de sofrer, e com muito terno sentimento.
5. Também vos parecerá que quem goza de coisas tão sublimes, não terá meditação nos mistérios da sacratíssima Humanidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, porque já se exercitará toda em amor. Isto é uma coisa que escrevi largamente em outra parte, e conquanto nisso me tenham con tradito e dito que não o entendo, porque são caminhos por onde leva Nosso Senhor e quando as almas já passaram dos princípios, é melhor tratar em coisas da Divindade e fugir das corpóreas, a mim não me farão confessar que é bom caminho. Bem pode ser que me engane, e que digamos todos a mesma coisa; mas eu vi que o demónio me queria enganar por aí, e assim estou tão escarmentada, que penso, embora o tenha dito mais vezes, dizervo-lo outra vez aqui, para que andeis nisto com muita advertência; e olhai que ouso dizer que não acrediteis a quem vos disser outra coisa. E procurarei dar-me a entender melhor do que o fiz em outra parte; porque, porventura, se alguém que o escrever, como ele o disse, mais se alargasse em o declarar, dizia bem; mas dizê-lo assim por junto às que não entendemos tanto, pode fazer muito mal.
6. Também lhes parecerá a algumas que não podem pensar na Paixão; pois menos poderão pensar na Santíssima Virgem, nem na vida dos Santos, que tão grande proveito e alento nos dá a sua memória. Eu não posso pensarem que pensam; porque, apartados de tudo o que é corpóreo, é para espíritos angélicos o estar sempre abrasados em amor, não para os que vivemos em corpo mortal, que é preciso tratar, pensar e se acompanhar dos que, tendo corpo, fizeram tão grandes façanhas por Deus; quanto mais apartar-se propositadamente de todo o nosso bem e remédio, que é a Sacratíssima Humanidade de Nosso Senhor Jesus Cristo. Eu não posso crer que o façam, mas não se entendem, e assim farão dano a si e aos outros. Pelo menos eu lhes asseguro que não entram nestas duas últimas moradas porque, se perdem o guia, que é o bom Jesus, não acertarão com o caminho: muito já será, se ficam nas outras moradas com segurança. Porque o mesmo Senhor nos disse que é caminho e também disse o Senhor que é luz, e que ninguém pode ir ao Pai senão por Ele; e «quem Me vê a Mim, vê a Meu Pai». Dirão que se dá outro sentido a estas palavras. Eu não sei esses outros sentidos; com este, que sempre a minha alma sente ser verdade, me tem ido muito bem.
7. Há algumas almas - e são muitas as que o têm tratado comigo - que, mal Nosso Senhor lhes chega a dar contemplação perfeita, quereriam sempre ficar-se ali, e não pode ser; mas ficam, com esta mercê do Senhor de tal maneira, que depois não podem, como antes, discorrer nos mistérios da Paixão e da vida de Cristo. E não sei qual a causa, mas isto é muito frequente: o entendimento fica mais inabilitado para a meditação. Creio que a causa deve ser esta: como na meditação tudo é buscar a Deus, uma vez que O encontra e a alma se acostuma a torna-1'O a buscar por obra de vontade, já não se quer cansar com o trabalho do entendimento. Também me parece que, como a vontade já está encendida, não quer esta potência generosa aproveitar-se daqueloutra, se puder; e não faz mal, mas será impossível, em especial até que chegue a estas últimas moradas, e perderá tempo, porque muitas vezes precisa de ser ajudada do entendimento para encender a vontade.
8. E notai, irmãs, este ponto, que é importante e assim o quero declarar melhor. Está a alma desejando empregar-se toda em amar e não quereria atender a outra coisa, mas não poderá ainda que queira; porque, ainda que a vontade não esteja morta, está amortecido o fogo que a costuma fazer arder, e é preciso quem o sopre para de si lançar calor. Seria bom que a alma se ficasse para ali com esta aridez, esperando fogo do céu que queime este sacrifício que está fazendo de si a Deus, como fez Elias, nosso Pai? Não, por certo; nem é bem esperar milagres. O Senhor os faz, quando é servido, por amor desta alma, como fica dito e se dirá adiante; mas Sua Majestade quer que nos tenhamos por tão ruins que pensemos não merecer que no-los faça, mas que nos ajudemos a nós mesmos em tudo o que pudermos. E tenho para mim que, até que morramos, por subida que seja a oração, isto é necessário.
9. Verdade é que, a quem o Senhor mete já na sétima morada, é muito poucas vezes, ou quase nunca, as que precisa de fazer esta diligência, pela razão que nela direi, se me lembrar; mas é muito contínuo o não se apartar de andar com Cristo Nosso Senhor, por um modo admirável, em que divino e humano juntamente é sempre sua companhia. Assim, pois, quando não se acendeu na vontade o fogo que fica dito, nem se sente a presença de Deus, é preciso que a busquemos; que isto quer Sua Majestade como o fazia a Esposa nos Cantares, e que perguntemos às criaturas quem as fez -, como diz Santo Agostinho, creio que nas suas Meditações ou Confissões -, e não nos fiquemos pasmados, perdendo tempo, a esperar o que uma vez nos deu porque nos princípios poderá ser que não no-lo dê o Senhor em um ano, e até em muitos; Sua Majestade sabe o porquê; nós não havemos de querer sabê-lo, nem há para quê. Visto que sabemos o caminho e como nele havemos de contentar a Deus pelos mandamentos e conselhos, e em pensar na Sua vida e morte, e no muito que Lhe devemos, andemos nisto muito diligentes; o demais, venha quando o Senhor quiser.
10. Aqui vem o responderem que não podem deter-se nestas coisas; e, pelo que fica dito, talvez tenham razão em certo modo. Já sabeis que discorrer com o entendimento é uma coisa, e representar a memória verdades ao entendimento, é outra. Direis, talvez, que não me entendeis, e verdadeiramente poderá ser que não o entenda eu para sabê-lo dizer; mas di-lo-ei como souber. Chamo eu meditação ao discorrer muito com o entendimento desta maneira: começamos a pensar na mercê que Deus nos fez em nos dar o Seu único Filho, e não paramos ali, mas vamos adiante aos mistérios de toda a Sua gloriosa vida; ou começamos na oração do Horto, e não pára o entendimento até estar pregado na Cruz; ou tomamos um passo da Paixão, digamos tal como a prisão, e andamos neste mistério considerando, por miúdo, as coisas que há que pensar nele e que sentir, assim da traição de Judas, como da fuga dos Apóstolos, e tudo o mais; e é admirável e muito meritória oração.
11. Esta é a oração que eu digo que terá razão para dizer que não a pode fazer quem chegou a ser levado por Deus a coisas sobrenaturais e à perfeita contemplação; porque, - como disse -, não sei a causa, mas o mais normal é não poder. Mas não a terá, digo razão, se diz que não se detém nestes mistérios, nem os traz presentes muitas vezes, em especial quando os celebra a Igreja Católica; nem é possível que perca assim a memória a alma que recebeu tanto de Deus em mostras de amor tão preciosas, porque são vivas centelhas para a inflamar mais no amor que tem a Nosso Senhor; senão que a alma se não entende com a meditação porque já entende estes mistérios por um modo mais perfeito. É porque lhos representa o entendimento, e gravam-se-lhe na memória de tal maneira, que só de ver o Senhor caído por terra com aquele espantoso suor no Horto, lhe basta não só para uma hora, senão para muitos dias, vendo numa simples vista de olhos quem Ele é, e quão ingratos temos sido a tão grande pena. Mas logo acode a vontade, ainda que não seja com ternura, desejar servir em alguma coisa tão grande mercê e a desejar padecer alguma coisa por Quem tanto padeceu e a outras coisas semelhantes, em que ocupa a memória e o entendimento. E creio que, por esta razão, não pode passar a discorrer mais largamente sobre a Paixão, e isto lhe faz parecer que não pode pensar nela.
12. E se não faz isto, é bem que o procure fazer, porque sei que não lho impedirá a muita subida oração, e não tenho por bem que não se exercite nisto muitas vezes. Se daqui a suspender o Senhor, que seja muito em boa hora, pois ainda que não queira, a fará deixar aquilo em que está. E tenho por muito certo que não é estorvo esta maneira de proceder, senão grande ajuda para todo o bem; o que seria estorvo é se trabalhasse muito no discorrer que disse ao princípio, e tenho para mim que não poderá quem chegou a mais. Bem pode ser que sim, pois, por muitos caminhos leva Deus as almas; mas não se condenem por isso as que não puderem ir por ele; nem as julguem inabilitadas para gozar de tão grandes bens como estão encerrados nos mistérios do nosso Bem, Jesus Cristo; nem ninguém me fará entender, seja tão espiritual quanto quiser, que irá bem por aqui.
13. Há uns princípios, e até meios, que têm algumas almas: logo que começam a chegar à oração de quietude e a gostar dos regalos e gostos que dá o Senhor, parece-lhes que é muito grande coisa estarem ali sempre gostando. Mas creiam-me, e não se embeveçam tanto - como já disse em outra parte - que a vida é longa, há nela muitos trabalhos, termos necessidade de olhar e ver como o nosso modelo Jesus Cristo os passou, e até Seus Apóstolos e Santos, para levarmos os nossos com perfeição. É muito boa companhia o bom Jesus para que nos apartemos dela e de Sua Sacratíssima Mãe e gosta muito de que nos condoamos de Suas penas, embora deixemos o nosso contentamento e gosto algumas vezes. Tanto mais, filhas, que não é tão frequente o regalo na oração, que não haja tempo para tudo; e a que disser que está sempre no mesmo ser, eu o teria por suspeitoso; digo, que nunca poderá fazer o que fica dito; e assim, tendo-vos também por tal, e procurai sair desse engano, e desembevecei-vos com todas as vossas forças; e, se não bastarem, digam-no à prioresa, para que vos dê um ofício de tanto cuidado, que tire esse perigo; ao menos para o juízo e para a cabeça seria bem grande se durasse muito tempo.
14. Creio que fica dado a entender quanto convém, por espirituais que sejam, não fugir tanto de coisas corpóreas, que lhes pareça até fazer dano a Humanidade sacratíssima. Alegam o que o Senhor disse a Seus discípulos, que convinha que Ele se fosse. Eu não posso sofrer isto. Por certo que não o disse à Sua Mãe Sacratíssima, porque Ela estava firme na fé, sabia que era Deus e homem; e embora O amasse mais que eles, era com tanta perfeição, que isso antes A ajudava. Não deviam estar então os Apóstolos tão firmes na fé como depois estiveram, e nós temos razão para estarmos agora. Eu vos digo, filhas, que o tenho por caminho perigoso, e que o demónio poderia vir por aqui a fazer perder a devoção para com o Santíssimo Sacramento.
15. O engano que me pareceu a mim que eu levava, não chegou a tanto como isto, mas sim a não gostar de pensar tanto em Nosso Senhor Jesus Cristo, e a ficar-me naquele embevecimento, aguardando aquele regalo. E vi claramente que ia mal; porque, como não o podia ter sempre, andava o pensamento daqui para ali, e a alma, me parece, como uma ave revoando, a qual não acha onde pousar, e perdendo muito tempo, e não aproveitando nas virtudes nem medrando na oração. E não entendia a causa, nem a entenderia, a meu parecer, porque me parecia que era aquilo muito acertado; até que, tratando da oração que trazia com uma pessoa serva de Deus, ela me avisou. Depois vi claramente como ia errada, e nunca se me acaba o pesar de ter havido algum tempo em que eu não entendesse que mal se podia ganhar com tão grande perda; e, mesmo quando pudesse, nenhum bem quero, senão adquirido por Quem nos vieram todos os bens. Seja Ele para sempre louvado, amen.