SEXTA MORADA - CAPÍTULO 9

SEXTA MORADA - CAPÍTULO 9
Trata de como o Senhor se comunica à alma por visão imaginária, e avisa muito que se guardem de desejar ir por este caminho. Dá para isso razões. É muito proveitoso.
1. Venhamos agora às visões imaginárias, que dizem ser aquelas em que o demónio se pode meter mais do que nas já ditas, e assim deve ser; mas, quando são de Nosso Senhor, de algum modo me parecem mais proveitosas, porque são mais conformes ao nosso natural; salvo das que o Senhor dá a entender na última morada, que a estas nenhuma chega.
2. Pois vejamos agora, como vos disse no capítulo anterior, como está presente este Senhor: é como se, num estojo de oiro, tivéssemos uma pedra preciosa de grandíssimo valor e virtude. Sabemos de certeza que está ali, ainda que nunca a tenhamos visto; mas a virtude da pedra não deixa de nos aproveitar, se a trazemos connosco. E, conquanto nunca a víssemos, nem por isso a deixamos de apreciar, porque, por experiência, temos visto que nos tem sarado de algumas enfermidades para as quais é apropriada; mas não ousamos olhar para ela, nem abrir o relicário, nem podemos; porque a maneira de o abrir só a sabe a pessoa de quem é a jóia e, ainda que no-la tenha emprestado para que nos  proveitássemos dela, ficou-se com a chave e, como coisa sua, a abrirá quando no-la quiser mostrar, e até a retomará, quando lhe parecer, como faz por vezes.
3. Pois digamos agora que, algumas vezes a quer abrir por instantes para fazer bem a quem a emprestou. Claro está que depois ser-lhe-á de muito maior contentamento, quando se lembrar do admirável resplendor da pedra, e assim ela lhe ficará mais esculpida na memória. Pois, assim acontece aqui: quando Nosso Senhor é servido regalar mais a esta alma, mostra-lhe claramente a Sua Sacratíssima Humanidade da maneira que Ele quer; ou como andava no mundo, ou depois de ressuscitado. E, embora seja com tanta presteza, que a poderíamos comparar à de um relâmpago, fica tão esculpida na imaginação esta imagem gloriosíssima, que tenho por impossível que se lhe tire até que a veja onde sempre a possa gozar.
4. Ainda que digo imagem, entende-se que não parece pintada a quem a vê, mas sim verdadeiramente viva, e algumas vezes está falando com a alma, e até mostrando-lhe grandes segredos. Mas haveis de entender que, embora nisto se detenha algum espaço de tempo, não se pode estar olhando para ela mais do que se está fitando o sol, e assim esta vista passa sempre muito depressa; e, não porque o seu resplendor, como o do sol, faça sofrer a vista interior, que é a que vê tudo isto (pois quando é com a vista exterior, não saberei dizer coisa nenhuma sobre isso, porque esta pessoa que digo, de quem tão particularmente posso falar, não tinha passado por isso; e do que não há experiência, mal se pode dar razão certa), que  seu resplendor é como uma luz infusa, e de um sol coberto de uma coisa tão transparente como um diamante, se se pudera lavrar; como uma holanda parecem as vestes, e quase detodas as vezes que Deus faz esta mercê à alma, fica-se em arroubamento, que não pode sua baixeza sofrer tão espantosa vista.
5. Digo espantosa, porque, com ser a mais formosa e de maior deleite que uma pessoa possa imaginar (embora vivesse mil anos e trabalhasse em o pensar, porque vai muito além de quanto cabe em nossa imaginação e entendimento), a sua presença é de tão grandíssima majestade que causa grande espanto à alma. A ousadas, não é preciso aqui perguntar como a alma sabe quem é, sem que lho tenham dito, pois se dá bem a conhecer que é o Senhor do céu e da terra; o que não se dá com os reis cá deste mundo que, por si mesmos, em bem pouco serão tidos, se não vai junto deles o seu acompanhamento, ou se não dizem quem são.
6. Oh! Senhor, como Vos desconhecemos os cristãos! Que será aquele dia quando nos vierdes julgar? Pois vindo aqui, tão de amizade, a tratar com Vossa esposa, infunde tanto temor o olhar para Vós!... Oh! filhas, que será quando, com tão rigorosa voz, disser: «Ide, malditos de meu Pai?».
7. Fique-nos agora isto na memória, desta mercê que Deus faz à alma, o que não será para nós pouco bem, pois São Jerónimo, ainda que santo, não a apartava da sua memória e assim não nos parecerá nada quanto aqui padecermos no rigor da religião que guardamos; pois mesmo quando durar muito, é um momento, comparado com aquela eternidade. Eu vos digo de verdade que, com ser tão ruim como sou, nunca tive tanto medo dos tormentos do inferno, que não fosse menos que nada em comparação do que tinha quando me lembrava que os condenados haviam de ver irados estes olhos tão formosos e mansos e benignos do Senhor, porque parece que não o podia sofrer meu coração: isto tem sido toda a minha vida. Quanto mais o temerá a pessoa a quem assim se tem representado, pois é tanto o sentimento, que a deixa sem sentir! Esta deve ser a causa de ficarem suspensão; porque o Senhor ajuda à sua fraqueza para que se junte com Sua grandeza nesta tão subida comunicação com Deus.
8. Quando a alma puder estar com muito vagar olhando este Senhor, eu não creio que será visão, mas sim alguma veemente consideração, alguma figura fabricada na imaginação; será como coisa morta em comparação com esta outra. 
9. Acontece a algumas pessoas (e sei que é verdade, pois que o têm tratado comigo, e não três ou quatro, senão muitas) serem de tão fraca imaginação, ou de entendimento tão eficaz, ou não sei o que é, que se embevecem na imaginação de modo que tudo o que pensam, lhes parece claramente que o vêem; se, porém, tivessem visto a verdadeira, entenderiam, sem lhes ficar dúvida alguma, o engano; porque elas mesmas é que vão compondo o que vêem com a sua imaginação, e depois não faz isso nenhum efeito, mas ficam frias, muito mais do que se vissem uma imagem devota. É coisa que bem se entende que não é para fazer caso, e assim esquece-se muito mais do que uma coisa sonhada.
10. Na visão de que tratamos não é assim, senão que, estando a alma muito longe de cuidar que há-de ver alguma coisa, nem lhe passa pelo pensamento; de repente se lhe representa muito por junto, e revolve todas as potências e sentidos com um grande temor e alvoroto, para os pôr logo naquela ditosa paz. Assim como, quando foi derrubado São Paulo, veio aquela tempestade e alvoroto do céu, assim aqui, neste mundo interior, se faz também grande movimento, e num instante - como já disse - fica tudo sossegado e esta alma tão ensinada em umas verdades tão grandes, que não precisa de outro mestre. A verdadeira Sabedoria, sem trabalho seu, tiroulhe a ignorância, e durante algum tempo a alma fica com uma certeza de que esta mercê é de Deus, que, por mais que lhe dissessem o contrário, nunca lhe poderiam, por então, meter o temor de que ali possa haver engano. Depois, metendo-lho o confessor, deixa-a Deus, para que ande vacilando se, por seus pecados, seria possível; mas não o acreditando - como eu disse nestas outras coisas - senão à maneira de tentações em coisas de fé, nas quais o demónio pode alvorotar, mas não pode fazer com que a alma deixe de estar firme; antes, quanto mais a combate, mais ela fica com a certeza de que o demónio não a poderia deixar com tantos bens, e assim é, pois não pode tanto no interior da alma; poderá, sim, representarlho, mas não com esta verdade e majestade e operações.
11. Como isto não pode ser visto pelos confessores, nem, porventura, aqueles a quem Deus faz esta mercê lho saberão dizer, temem e com muita razão. E assim é mister ir com cuidado, até aguardar o tempo do fruto que dão estas aparições e ir, pouco a pouco, olhando à humildade em que deixam a alma, e à fortaleza na virtude; que, se é demónio, depressa dará sinal e o apanharão em mil mentiras. Se o confessor tem experiência e passou por estas coisas, pouco tempo precisa para o entender, pois logo verá na relação se é Deus ou imaginação ou demónio; em especial, se Sua Majestade lhe deu o dom de conhecer os espíritos, que, se o tem e se teta letras, embora não tenha experiência, o conhecerá muito bem. 
12. O que é muito preciso, irmãs, é que andeis com grande lhaneza e verdade com o confessor; não digo já em dizer os pecados, que isso claro está, senão em contar a vossa oração. Porque, se não há isto, não vos asseguro que ides bem, nem que é Deus quem vos ensina; porque Ele é muito amigo de que, ao que está em Seu lugar, se trate com a mesma verdade e claridade como a Ele mesmo, desejando que o confessor entenda todos os nossos pensamentos, quanto mais as obras, por  pequenas que sejam. E com isto não andeis depois perturbadas nem inquietas, que, ainda mesmo que não fosse de Deus, se tendes humildade e boa consciência, não vos danificará. Sua Majestade sabe tirar bens dos males e, pelo caminho por onde o demónio vos queria fazer perder, ganhareis mais. Pensando que Deus vos faz tão grandes mercês, esforçar-vos-eis em contentá-l'O melhor e andar sempre com a memória ocupada na Sua imagem; porque, como dizia um grande letrado, o  demónio é grande pintor, e se lhe mostrasse, muito ao vivo, uma imagem do Senhor, que não lhe pesaria avivar com ela a sua devoção e para fazer guerra ao demónio com suas mesmas maldades; porque, ainda que um pintor seja muito mau, nem por isso se há-de deixar de reverenciar a imagem que ele faz, se essa imagem é a de todo o nosso Bem.
13. Parecia-lhe muito mal o que alguns aconselham, que façam figas quando assim virem alguma visão; porque dizia que, onde quer que vejamos pintado o nosso Rei, O devemos reverenciar; e vejo que tinha razão, porque até mesmo aqui se sentiria. Se uma pessoa que quer bem a outra, soubesse que ela lhe fazia semelhantes vitupérios ao seu retrato, não gostaria disso. Quanta maior razão não é, pois, que sempre se tenha respeito onde quer que vejamos um crucifixo, ou qualquer retrato do nosso Imperador. Ainda que tenha escrito isto em outra parte, folgo de o pôr aqui, porque vi uma pessoa andar aflita por lhe mandarem servir-se deste remédio. Não sei quem o inventou para tanto atormentar a quem não pode fazer menos do que obedecer, se o confessor lhe dá este conselho, parecendo-lhe que vai perdida se o não faz. O meu conselho é que, embora vo-lo dê, lhe digais esta razão com humildade, e não o aceiteis. Em extremo me quadraram muito as boas razões que me deu quem mo disse neste caso.
14. Grande lucro tira a alma desta mercê do Senhor, pois, quando pensa n'Ele ou em Sua Vida ou Paixão, recorda-se de seu mansíssimo e formoso rosto, o que é grandíssimo consolo, tal como aqui no-lo daria maior o ter visto uma pessoa que nos faz muito bem, do que se nunca a tivéssemos conhecido. Eu vos digo que dá grande consolação e proveito tão saborosa memória. Outros muitos bens traz consigo, mas como já tanto fica dito dos efeitos que fazem estas coisas, e se há-de dizer mais ainda, não me quero cansar nem cansar-vos, mas só avisar-vos muito que, quando souberdes ou ouvirdes que Deus faz estas mercês às almas, nunca Lhe supliqueis nem desejeis que vos leve por este caminho; 
15. embora vos pareça muito bom, e se haja de ter em muito e reverenciar, não convém fazê-lo, por algumas razões: a primeira, porque é falta de humildade querer que se vos dê o que nunca haveis merecido, e assim creio que não terá muita quem o desejar; porque, assim como um pequeno lavrador está longe de desejar ser rei, parecendo-lhe impossível, porque não o merece, assim também o está o humilde de coisas semelhantes; e creio eu que estas coisas nunca se darão, porque, primeiro que faça estas mercês, dá o Senhor um grande conhecimento próprio. Pois, como entenderá, com verdade, que se lhe faz uma muito grande mercê em não estar já no inferno, quem tem tais pensamentos? A segunda, porque é muito certo ser enganado, ou estar muito em perigo de o ser; porque o demónio não precisa mais do que ver uma pequena porta aberta para fazer mil trapalhices. A terceira; é que a mesma imaginação, quando há um grande desejo, faz entender à própria pessoa que ela vê e ouve aquilo que deseja, tal como os que andam com vontade de uma coisa durante o dia e pensando muito nela, lhes acontece virem a sonhar com ela de noite. A quarta, é muito grande atrevimento querer eu escolher caminho, não sabendo qual o melhor, mas sim deixar ao Senhor, que me conhece, que me leve por aquele que me convém, para que em tudo faça a Sua vontade. A quinta, pensais que são poucos os trabalhos que padecem aqueles a quem o Senhor faz estas mercês? Não, são grandíssimos e de muitas maneiras. E sabeis vós se seríeis pessoas para os sofrer? A sexta, porque talvez por aí mesmo por onde pensais ganhar, perdereis, como Saul, por ser rei.
16. Enfim, irmãs, além destas há outras; e crede-me que, o mais seguro, é não querer senão o que Deus quer, pois nos conhece e ama mais do que nós mesmos.Ponhamo-nos em Suas mãos, para que seja feita a Sua vontade em nós; e não poderemos errar se, com determinada vontade, nos ficamos sempre nisto. Deveis advertir que, por se receberem muitas mercês destas, não se merece mais glória, porque antes ficam esses mais obrigados a servir, pois recebem mais. Quanto ao merecer mais, não no-lo tira o Senhor, pois está na nossa mão; e assim há muitas pessoas santas que nunca souberam que coisa é receber uma destas mercês, e outras que as recebem, e não o são. E não penseis que são contínuas; antes, por uma vez que o Senhor as faz, são muitos os trabalhos; e assim a alma não se lembra de pensar se as há-de receber mais vezes, mas sim em como servir por elas.
17. Verdade é que deve ser isto de grandíssima ajuda para se ter virtudes em mais subida perfeição; más aquele que as tiver por as ter ganho à custa do seu trabalho, muito mais merecerá. Eu sei de uma pessoa, a quem o Senhor tinha feito algumas destas mercês, - e até de duas, e uma era homem -, que estavam tão desejosas de servir a Sua Majestade, à sua custa, sem estes grandes regalos, e tão ansiosas de padecer, que se queixavam a Nosso Senhor porque lhas dava, e se pudessem não as receber, as escusariam. Digo regalos, não destas visões porque, enfim, vêem seu grande lucro e que são muito de estimar senão dos que o Senhor dá na contemplação.
18. Verdade é que estes desejos também são sobrenaturais, a meu parecer, e de almas muito enamoradas, as quais quereriam que o Senhor visse que não O servem a soldo; e assim, - como disse -, nunca se lembram de que hão-de receber glória por qualquer coisa, para se esforçarem mais a servir por esse motivo, mas sim para contentar o amor, cujo natural é operar sempre de mil maneiras. Se pudesse, quereria buscar invenções para a alma se consumir n'Ele; e, se fosse preciso ficar para sempre aniquilada para maior honra de Deus, fá-lo-ia de muito boa vontade. Seja Ele louvado ápara sempre, amen; que, abaixando-Se a comunicar com tão miseráveis criaturas, quer mostrar Sua grandeza. 
Trata de como o Senhor se comunica à alma por visão imaginária, e avisa muito que se guardem de desejar ir por este caminho. Dá para isso razões. É muito proveitoso.
 
1. Venhamos agora às visões imaginárias, que dizem ser aquelas em que o demónio se pode meter mais do que nas já ditas, e assim deve ser; mas, quando são de Nosso Senhor, de algum modo me parecem mais proveitosas, porque são mais conformes ao nosso natural; salvo das que o Senhor dá a entender na última morada, que a estas nenhuma chega.
 
2. Pois vejamos agora, como vos disse no capítulo anterior, como está presente este Senhor: é como se, num estojo de oiro, tivéssemos uma pedra preciosa de grandíssimo valor e virtude. Sabemos de certeza que está ali, ainda que nunca a tenhamos visto; mas a virtude da pedra não deixa de nos aproveitar, se a trazemos connosco. E, conquanto nunca a víssemos, nem por isso a deixamos de apreciar, porque, por experiência, temos visto que nos tem sarado de algumas enfermidades para as quais é apropriada; mas não ousamos olhar para ela, nem abrir o relicário, nem podemos; porque a maneira de o abrir só a sabe a pessoa de quem é a jóia e, ainda que no-la tenha emprestado para que nos  proveitássemos dela, ficou-se com a chave e, como coisa sua, a abrirá quando no-la quiser mostrar, e até a retomará, quando lhe parecer, como faz por vezes.
 
3. Pois digamos agora que, algumas vezes a quer abrir por instantes para fazer bem a quem a emprestou. Claro está que depois ser-lhe-á de muito maior contentamento, quando se lembrar do admirável resplendor da pedra, e assim ela lhe ficará mais esculpida na memória. Pois, assim acontece aqui: quando Nosso Senhor é servido regalar mais a esta alma, mostra-lhe claramente a Sua Sacratíssima Humanidade da maneira que Ele quer; ou como andava no mundo, ou depois de ressuscitado. E, embora seja com tanta presteza, que a poderíamos comparar à de um relâmpago, fica tão esculpida na imaginação esta imagem gloriosíssima, que tenho por impossível que se lhe tire até que a veja onde sempre a possa gozar.
 
4. Ainda que digo imagem, entende-se que não parece pintada a quem a vê, mas sim verdadeiramente viva, e algumas vezes está falando com a alma, e até mostrando-lhe grandes segredos. Mas haveis de entender que, embora nisto se detenha algum espaço de tempo, não se pode estar olhando para ela mais do que se está fitando o sol, e assim esta vista passa sempre muito depressa; e, não porque o seu resplendor, como o do sol, faça sofrer a vista interior, que é a que vê tudo isto (pois quando é com a vista exterior, não saberei dizer coisa nenhuma sobre isso, porque esta pessoa que digo, de quem tão particularmente posso falar, não tinha passado por isso; e do que não há experiência, mal se pode dar razão certa), que  seu resplendor é como uma luz infusa, e de um sol coberto de uma coisa tão transparente como um diamante, se se pudera lavrar; como uma holanda parecem as vestes, e quase detodas as vezes que Deus faz esta mercê à alma, fica-se em arroubamento, que não pode sua baixeza sofrer tão espantosa vista.
 
5. Digo espantosa, porque, com ser a mais formosa e de maior deleite que uma pessoa possa imaginar (embora vivesse mil anos e trabalhasse em o pensar, porque vai muito além de quanto cabe em nossa imaginação e entendimento), a sua presença é de tão grandíssima majestade que causa grande espanto à alma. A ousadas, não é preciso aqui perguntar como a alma sabe quem é, sem que lho tenham dito, pois se dá bem a conhecer que é o Senhor do céu e da terra; o que não se dá com os reis cá deste mundo que, por si mesmos, em bem pouco serão tidos, se não vai junto deles o seu acompanhamento, ou se não dizem quem são.
 
6. Oh! Senhor, como Vos desconhecemos os cristãos! Que será aquele dia quando nos vierdes julgar? Pois vindo aqui, tão de amizade, a tratar com Vossa esposa, infunde tanto temor o olhar para Vós!... Oh! filhas, que será quando, com tão rigorosa voz, disser: «Ide, malditos de meu Pai?».
 
7. Fique-nos agora isto na memória, desta mercê que Deus faz à alma, o que não será para nós pouco bem, pois São Jerónimo, ainda que santo, não a apartava da sua memória e assim não nos parecerá nada quanto aqui padecermos no rigor da religião que guardamos; pois mesmo quando durar muito, é um momento, comparado com aquela eternidade. Eu vos digo de verdade que, com ser tão ruim como sou, nunca tive tanto medo dos tormentos do inferno, que não fosse menos que nada em comparação do que tinha quando me lembrava que os condenados haviam de ver irados estes olhos tão formosos e mansos e benignos do Senhor, porque parece que não o podia sofrer meu coração: isto tem sido toda a minha vida. Quanto mais o temerá a pessoa a quem assim se tem representado, pois é tanto o sentimento, que a deixa sem sentir! Esta deve ser a causa de ficarem suspensão; porque o Senhor ajuda à sua fraqueza para que se junte com Sua grandeza nesta tão subida comunicação com Deus.
 
8. Quando a alma puder estar com muito vagar olhando este Senhor, eu não creio que será visão, mas sim alguma veemente consideração, alguma figura fabricada na imaginação; será como coisa morta em comparação com esta outra. 
 
9. Acontece a algumas pessoas (e sei que é verdade, pois que o têm tratado comigo, e não três ou quatro, senão muitas) serem de tão fraca imaginação, ou de entendimento tão eficaz, ou não sei o que é, que se embevecem na imaginação de modo que tudo o que pensam, lhes parece claramente que o vêem; se, porém, tivessem visto a verdadeira, entenderiam, sem lhes ficar dúvida alguma, o engano; porque elas mesmas é que vão compondo o que vêem com a sua imaginação, e depois não faz isso nenhum efeito, mas ficam frias, muito mais do que se vissem uma imagem devota. É coisa que bem se entende que não é para fazer caso, e assim esquece-se muito mais do que uma coisa sonhada.
 
10. Na visão de que tratamos não é assim, senão que, estando a alma muito longe de cuidar que há-de ver alguma coisa, nem lhe passa pelo pensamento; de repente se lhe representa muito por junto, e revolve todas as potências e sentidos com um grande temor e alvoroto, para os pôr logo naquela ditosa paz. Assim como, quando foi derrubado São Paulo, veio aquela tempestade e alvoroto do céu, assim aqui, neste mundo interior, se faz também grande movimento, e num instante - como já disse - fica tudo sossegado e esta alma tão ensinada em umas verdades tão grandes, que não precisa de outro mestre. A verdadeira Sabedoria, sem trabalho seu, tiroulhe a ignorância, e durante algum tempo a alma fica com uma certeza de que esta mercê é de Deus, que, por mais que lhe dissessem o contrário, nunca lhe poderiam, por então, meter o temor de que ali possa haver engano. Depois, metendo-lho o confessor, deixa-a Deus, para que ande vacilando se, por seus pecados, seria possível; mas não o acreditando - como eu disse nestas outras coisas - senão à maneira de tentações em coisas de fé, nas quais o demónio pode alvorotar, mas não pode fazer com que a alma deixe de estar firme; antes, quanto mais a combate, mais ela fica com a certeza de que o demónio não a poderia deixar com tantos bens, e assim é, pois não pode tanto no interior da alma; poderá, sim, representarlho, mas não com esta verdade e majestade e operações.
 
11. Como isto não pode ser visto pelos confessores, nem, porventura, aqueles a quem Deus faz esta mercê lho saberão dizer, temem e com muita razão. E assim é mister ir com cuidado, até aguardar o tempo do fruto que dão estas aparições e ir, pouco a pouco, olhando à humildade em que deixam a alma, e à fortaleza na virtude; que, se é demónio, depressa dará sinal e o apanharão em mil mentiras. Se o confessor tem experiência e passou por estas coisas, pouco tempo precisa para o entender, pois logo verá na relação se é Deus ou imaginação ou demónio; em especial, se Sua Majestade lhe deu o dom de conhecer os espíritos, que, se o tem e se teta letras, embora não tenha experiência, o conhecerá muito bem. 
 
12. O que é muito preciso, irmãs, é que andeis com grande lhaneza e verdade com o confessor; não digo já em dizer os pecados, que isso claro está, senão em contar a vossa oração. Porque, se não há isto, não vos asseguro que ides bem, nem que é Deus quem vos ensina; porque Ele é muito amigo de que, ao que está em Seu lugar, se trate com a mesma verdade e claridade como a Ele mesmo, desejando que o confessor entenda todos os nossos pensamentos, quanto mais as obras, por  pequenas que sejam. E com isto não andeis depois perturbadas nem inquietas, que, ainda mesmo que não fosse de Deus, se tendes humildade e boa consciência, não vos danificará. Sua Majestade sabe tirar bens dos males e, pelo caminho por onde o demónio vos queria fazer perder, ganhareis mais. Pensando que Deus vos faz tão grandes mercês, esforçar-vos-eis em contentá-l'O melhor e andar sempre com a memória ocupada na Sua imagem; porque, como dizia um grande letrado, o  demónio é grande pintor, e se lhe mostrasse, muito ao vivo, uma imagem do Senhor, que não lhe pesaria avivar com ela a sua devoção e para fazer guerra ao demónio com suas mesmas maldades; porque, ainda que um pintor seja muito mau, nem por isso se há-de deixar de reverenciar a imagem que ele faz, se essa imagem é a de todo o nosso Bem.
 
13. Parecia-lhe muito mal o que alguns aconselham, que façam figas quando assim virem alguma visão; porque dizia que, onde quer que vejamos pintado o nosso Rei, O devemos reverenciar; e vejo que tinha razão, porque até mesmo aqui se sentiria. Se uma pessoa que quer bem a outra, soubesse que ela lhe fazia semelhantes vitupérios ao seu retrato, não gostaria disso. Quanta maior razão não é, pois, que sempre se tenha respeito onde quer que vejamos um crucifixo, ou qualquer retrato do nosso Imperador. Ainda que tenha escrito isto em outra parte, folgo de o pôr aqui, porque vi uma pessoa andar aflita por lhe mandarem servir-se deste remédio. Não sei quem o inventou para tanto atormentar a quem não pode fazer menos do que obedecer, se o confessor lhe dá este conselho, parecendo-lhe que vai perdida se o não faz. O meu conselho é que, embora vo-lo dê, lhe digais esta razão com humildade, e não o aceiteis. Em extremo me quadraram muito as boas razões que me deu quem mo disse neste caso.
 
14. Grande lucro tira a alma desta mercê do Senhor, pois, quando pensa n'Ele ou em Sua Vida ou Paixão, recorda-se de seu mansíssimo e formoso rosto, o que é grandíssimo consolo, tal como aqui no-lo daria maior o ter visto uma pessoa que nos faz muito bem, do que se nunca a tivéssemos conhecido. Eu vos digo que dá grande consolação e proveito tão saborosa memória. Outros muitos bens traz consigo, mas como já tanto fica dito dos efeitos que fazem estas coisas, e se há-de dizer mais ainda, não me quero cansar nem cansar-vos, mas só avisar-vos muito que, quando souberdes ou ouvirdes que Deus faz estas mercês às almas, nunca Lhe supliqueis nem desejeis que vos leve por este caminho; 
 
15. embora vos pareça muito bom, e se haja de ter em muito e reverenciar, não convém fazê-lo, por algumas razões: a primeira, porque é falta de humildade querer que se vos dê o que nunca haveis merecido, e assim creio que não terá muita quem o desejar; porque, assim como um pequeno lavrador está longe de desejar ser rei, parecendo-lhe impossível, porque não o merece, assim também o está o humilde de coisas semelhantes; e creio eu que estas coisas nunca se darão, porque, primeiro que faça estas mercês, dá o Senhor um grande conhecimento próprio. Pois, como entenderá, com verdade, que se lhe faz uma muito grande mercê em não estar já no inferno, quem tem tais pensamentos? A segunda, porque é muito certo ser enganado, ou estar muito em perigo de o ser; porque o demónio não precisa mais do que ver uma pequena porta aberta para fazer mil trapalhices. A terceira; é que a mesma imaginação, quando há um grande desejo, faz entender à própria pessoa que ela vê e ouve aquilo que deseja, tal como os que andam com vontade de uma coisa durante o dia e pensando muito nela, lhes acontece virem a sonhar com ela de noite. A quarta, é muito grande atrevimento querer eu escolher caminho, não sabendo qual o melhor, mas sim deixar ao Senhor, que me conhece, que me leve por aquele que me convém, para que em tudo faça a Sua vontade. A quinta, pensais que são poucos os trabalhos que padecem aqueles a quem o Senhor faz estas mercês? Não, são grandíssimos e de muitas maneiras. E sabeis vós se seríeis pessoas para os sofrer? A sexta, porque talvez por aí mesmo por onde pensais ganhar, perdereis, como Saul, por ser rei.
 
16. Enfim, irmãs, além destas há outras; e crede-me que, o mais seguro, é não querer senão o que Deus quer, pois nos conhece e ama mais do que nós mesmos.Ponhamo-nos em Suas mãos, para que seja feita a Sua vontade em nós; e não poderemos errar se, com determinada vontade, nos ficamos sempre nisto. Deveis advertir que, por se receberem muitas mercês destas, não se merece mais glória, porque antes ficam esses mais obrigados a servir, pois recebem mais. Quanto ao merecer mais, não no-lo tira o Senhor, pois está na nossa mão; e assim há muitas pessoas santas que nunca souberam que coisa é receber uma destas mercês, e outras que as recebem, e não o são. E não penseis que são contínuas; antes, por uma vez que o Senhor as faz, são muitos os trabalhos; e assim a alma não se lembra de pensar se as há-de receber mais vezes, mas sim em como servir por elas.
 
17. Verdade é que deve ser isto de grandíssima ajuda para se ter virtudes em mais subida perfeição; más aquele que as tiver por as ter ganho à custa do seu trabalho, muito mais merecerá. Eu sei de uma pessoa, a quem o Senhor tinha feito algumas destas mercês, - e até de duas, e uma era homem -, que estavam tão desejosas de servir a Sua Majestade, à sua custa, sem estes grandes regalos, e tão ansiosas de padecer, que se queixavam a Nosso Senhor porque lhas dava, e se pudessem não as receber, as escusariam. Digo regalos, não destas visões porque, enfim, vêem seu grande lucro e que são muito de estimar senão dos que o Senhor dá na contemplação.
 
18. Verdade é que estes desejos também são sobrenaturais, a meu parecer, e de almas muito enamoradas, as quais quereriam que o Senhor visse que não O servem a soldo; e assim, - como disse -, nunca se lembram de que hão-de receber glória por qualquer coisa, para se esforçarem mais a servir por esse motivo, mas sim para contentar o amor, cujo natural é operar sempre de mil maneiras. Se pudesse, quereria buscar invenções para a alma se consumir n'Ele; e, se fosse preciso ficar para sempre aniquilada para maior honra de Deus, fá-lo-ia de muito boa vontade. Seja Ele louvado ápara sempre, amen; que, abaixando-Se a comunicar com tão miseráveis criaturas, quer mostrar Sua grandeza.