Prossegue no mesmo e trata das securas na oração e do que poderia suceder, a seu parecer, e como é mister provar-nos e que o Senhor prova aos que estão nestas moradas.
1. Eu tenho conhecido algumas almas, e creio que posso dizer bastantes, das que chegaram a este estado e vivido muitos anos nesta rectidão e concerto, alma e corpo; ao que se pode entender. E depois disto, quando já parece haviam de estar senhores do mundo, ao menos bem desenganados dele, prova-os Sua Majestade em coisas não muito grandes, e andam com tanta inquietação e aperto de cotação, que a mim me trazem tonta e até muito temerosa. Pois, dar-lhes conselho, não é remédio porque, como há tanto que tratam de virtudes, parece-lhes que podem ensinar a outros e que lhes sobra razão sentindo aquelas coisas.
2. Enfim, eu não achei remédio nem acho para consolar semelhantes pessoas, a não ser mostrar grande sentimento da sua pena (e na verdade, tem-se pena de as ver sujeitas a tanta miséria), e não contradizer suas razões; porque todas as concertam em seu pensamento, que é por Deus que as sentem e assim não vêm a entender que é imperfeição. E é outro engano para gente tão aproveitada. Que o sintam, não é de espantar, embora, a meu parecer, havia de passar depressa o sentimento de coisas semelhantes. Porque muitas vezes quer Deus que Seus escolhidos sintam essa miséria e aparta um pouco o Seu favor e não é preciso mais para que, de verdade, nos conheçamos bem depressa. E logo se entende esta maneira de os provar: para que eles compreendam a sua falta muito claramente; e, às vezes, dá-lhes mais pena ver que, sem estar na sua mão, sentem as coisas da terra e não muito pesadas, do que daquilo mesmo de que têm pena. Isto tenho-o eu por grande misericórdia de Deus; e ainda que é falta, é muito vantajosa para a humildade.
3. Nas pessoas que digo, não é assim, senão que canonizam - como disse - em seus pensamentos estas coisas, e assim quereriam que os outros as canonizassem. Quero dizer algumas delas, para que nos entendamos e nos provemos a nós mesmas, antes que nos prove o Senhor; pois seria bem grande coisa estarmos apercebidas e termonos entendido primeiro.
4. A uma pessoa rica, sem filhos nem para quem ela queira a fazenda, vem-lhe uma quebra de riqueza; mas não é de maneira que, do que lhe fica, lhe possa faltar o necessário para si e para sua casa, e ainda de sobra. Se esta andasse com tanto desassossego e inquietação como se não lhe ficasse um pão para comer, como háde pedir-lhe Nosso Senhor que deixe tudo por Ele? Aqui começa a dizer que o sente, porque o quer para os pobres. Por mim, creio que Deus mais quer que me conforme com o que Sua Majestade faz e, embora procure fazê-la, aquiete a minha alma e não esta caridade. E já que o não faz, por não a ter elevado o Senhor a tanto, seja muito em boa hora; mas entenda que lhe falta esta liberdade de espírito e com isto se disporá para que o Senhor lha dê, porque lha pedirá. Tem uma pessoa bem de que comer, e até de sobra; oferece-se-lhe o poder adquirir mais fortuna: tomá-la, se lha derem, seja em muito boa hora; mas procurá-la, e depois de a ter, procurar mais e mais, tenha tão boa intenção que quiser (e deve ter porque, como disse, são estas pessoas de oração e virtuosas), não haja medo que subam às moradas mais perto do Rei.
5. Deste modo acontece, quando se lhes oferece alguma coisa, pela qual os desprezem ou lhes tirem um pouco na honra; pois, embora lhes faça Deus mercê de que muitas vezes o sofram bem (porque é muito amigo de favorecer a virtude em público, para que não padeça a mesma virtude em que são tidos; e mesmo será porque O têm servido, pois é muito bom este nosso Bem), lá lhes fica uma tal inquietação, que não se podem valer, nem acaba de se acabar tão depressa. Valhame Deus! Não são estes os que, há tanto tempo, consideram como padeceu o Senhor e quão bom é padecer e até o desejam? Quereriam a todos tão concertados como eles trazem suas vidas, e praza a Deus que não pensem que a pena que têm é pela culpa alheia e a façam meritória em seu pensamento.
6. Parecer-vos-á, irmãs, que falo fora de propósito e não convosco, pois estas coisas aqui não as há, porque nem temos fazenda, nem a queremos, nem a procuramos, nem tão pouco alguém nos injuria. Por isso as comparações não aludem ao que se passa; mas tira-se delas outras muitas coisas que podem acontecer, as quais não seria bom assinalar, nem há para quê. Por estas entenderes se estais bem desprendidas do que deixastes porque se oferecem coisitas, ainda que não bem desta sorte, em que vos podereis muito bem provar e conhecer se estais senhoras das vossas paixões. E crede-me que não está o negócio em ter hábito de religião ou não, senão em procurar exercitar as virtudes e render a nossa vontade à de Deus em tudo e que oconcerto da nossa vida seja o que Sua Majestade dela ordenar e não queiramos que se faça a nossa vontade mas sim a Sua. Se não tivermos chegado até aqui, tenhamos - como disse - humildade, que é o unguento para as nossas feridas; porque, se a temos deveras, ainda que tarde algum tempo, virá o cirurgião, que é Deus, a sarar-nos.
7. As penitências que fazem estas almas são tão concertadas como a sua vida. Querem-na muito para servir a Nosso Senhor com ela, e tudo isto não é mau; assim têm grande discrição em fazer penitências, para não causar dano à saúde. Não tenhais medo que se matem, porque a sua razão está muito em si; não está ainda o amor para pôr de parte a razão. Mas queria eu que a tivéssemos para não nos contentarmos com esta maneira de servir a Deus, sempre passo a passo, que nunca acabamos de andar este caminho. E, como a nosso parecer sempre andamos e nos cansamos - porque crede que é um caminho custoso -, já será bem bom que não nos percamos. Mas, parece-vos, filhas, que se indo duma terra a outra pudéssemos chegar em oito dias, seria bom andar um ano por ventos, neves, chuvas e maus caminhos? Não valeria mais passá-lo de urna vez? Porque tudo isto há e perigos de serpentes. Oh! que bons sinais poderia eu dar disto. E praza a Deus que tenha passado daqui, que bastantes vezes me parece que não.
8. Como vamos com tanto senso, tudo nos ofende, porque tudo tememos; e assim, não ousamos passar adiante, como se nós pudéssemos chegar a estas moradas e outros estivessem a caminho. Pois, como isto não é possível, esforcemo-nos, irmãs minhas, por amor do Senhor; deixemos nossa razão e temores em Suas mãos; esqueçamos esta fraqueza natural que muito nos pode ocupar. O cuidado destes corpos tenham-no os prelados, e lá se avenham; nós tenhamo-lo só de caminhar depressa para ver este Senhor; pois, embora o regalo que possais ter é pouco ou nenhum, o cuidado da saúde nos poderia enganar, quanto mais que não se terá mais por isso, eu o sei. E também sei que não está o negócio no que toca ao corpo, que isto é o menos; pois o caminhar que digo, é com uma grande humildade; porque, se bem e entendestes, creio estar aqui o mal das que não vão adiante e nos pareça que temos andado poucos passos e assim o julguemos, e os que andam nossas irmãs nos pareçam muito pressurosos, e não só desejemos, mas procuremos que nos tenham pela mais ruim de todas.
9. E, com isto, este estado é excelentíssimo; e, se assim não é, toda a nossa vida estaremos nele e com mil penas e misérias. Porque, como não nos deixamos a nós mesmas, é muito trabalhoso e pesado, porque vamos muito carregadas com esta terra da nossa miséria, que não levam os que sobem aos aposentos que faltam. Nestes, não deixa o Senhor de pagar como justo, e ainda como misericordioso, pois dá sempre muito mais do que merecemos, dando-nos contentamentos muito maiores que os que podemos ter nos regalos e distracções desta vida. Mas não penso que dê muitos gostos, a não ser alguma vez, para nos convidar a ver o que se passa nas demais moradas, para que nos disponhamos a entrar nelas.
10. Parecer-vos-á que contentamentos e gostos é tudo o mesmo, para que eu faça esta diferença nos nomes. A mim parece-me que a há e muito grande; bem me posso enganar. Direi o que nisto entender nas quartas moradas que vêm depois destas; porque, como se há-de declarar algo dos gostos que ali dá o Senhor, fica melhor, e ainda que pareça sem proveito, poderá ser de algum, para que, entendendo o que é cada coisa, possais; esforçar-vos a seguir o melhor; e é de muito consolo para as almas que Deus leva até ali, e confusão para quem lhe parece já ter tudo, e, se são; humildes, mover-se-ão a dar graças. Se há alguma falta disto, dar-lhes-á um desgosto interior fora de propósito; pois, não está a perfeição nos gostos, nem no prémio, senão em quem mais ama e em quem melhor opera com justiça e verdade.
11. Direis: Para que serve tratar destas mercês interiores e dar a entender como são, se isto é verdade, como é? Eu não o sei; pergunte-se a quem mo mandou escrever que eu não estou obrigada a discutir com os superiores, mas a obedecer; nem seria bem fazê-lo. O que vos posso dizer com verdade, é que, quando eu não as tinha, nem ainda sabia por experiência, nem pensava sabê-lo em minha vida (e com razão, que grande contentamento fora para mim saber ou por conjecturas entenderque agradava a Deus em algum modo), quando lia em livros destas mercês e consolos que faz o Senhor às almas que O servem, isso me dava grandíssimo prazer e era motivo para minha alma dar grandes louvores a Deus. Pois, se a minha, com ser tão ruim, fazia isto, as que são boas e humildes O louvarão muito mais; e por uma só que O louve uma vez, está muito bem que se diga, a meu parecer, e que entendamos o contentamento e deleites que perdemos por nossa culpa. Quanto mais que, se são de Deus, vêm carregados de amor e fortaleza, com que se pode caminhar mais sem trabalho e ir crescendo nas obras e virtudes. Não penseis que importa pouco que isto não falhe da: nossa parte, pois, quando não é nossa a falta, justo é o Senhor, e Sua Majestade vos dará, por outros caminhos, o que vos tira por este, pelo que Sua Majestade sabe, pois são mui ocultos Seus segredos; pelo menos, será isso o que mais nos convém, sem dúvida nenhuma.
12. O que me parece nos faria muito proveito àquelas que pela bondade do Senhor estão neste estado (que, como disse, não lhes faz pouca misericórdia, porque estão muito perto de ir mais longe), é exercitarem-se muito na prontidão da obediência. E mesmo que não sejam religiosos, seria grande coisa - como o fazem muitas pessoas - ter a quem recorrer para não fazer em nada a sua vontade, que é o que habitualmente nos causa dano; e não buscar alguém do seu humor, como dizem, que vá sempre com muito tento em tudo, mas sim, procurar quem esteja muito desenganado das coisas do mundo, pois, de grande modo, aproveita tratar com quem já conhece o mundo para nos conhecermos e, porque algumas coisas que nos parecem impossíveis vendo-se em outros tão possíveis e a suavidade com que as levam, anima muito e parece que, com seu voo, nos atrevemos a voar, como fazem os filhos das aves quando os ensinam. Ainda que não dêem grande voo, pouco a pouco imitam os seus pais. De grande modo aproveita isto, eu o sei. Por mais determinadas que estejam em não ofender o Senhor, semelhantes pessoas procederão com acerto, não se metendo em ocasiões de O ofender; porque, como estão perto das primeiras moradas, com facilidade poderão voltar a elas, porque a sua fortaleza não está fundada em terra firme, como os que estão já exercitados em padecer; estes conhecem as tempestades do mundo, e quão pouco têm a temer ou a desejar seus contentamentos; e seria possível, com uma grande perseguição, voltarem de novo a eles. O demónio bem as sabe urdir para lhes fazer mal, e poderia suceder que, indo com bom zelo, querendo impedir pecados alheios, não pudessem resistir ao que a isto sobreviesse.
13. Olhemos as nossas faltas e deixemos as alheias, pois é muito próprio de pessoas tão concertadas espantarem-se de tudo; e porventura de quem nos espantamos, bem poderíamos aprender no principal. Na compostura exterior e na maneira de tratar, levamos-lhe vantagem; e não é isto o que tem mais importância, embora seja bom, e nem há para quê querer logo que vão todos pelo nosso caminho, nem pôr-se a ensinar o que é do espírito quem porventura não sabe o que isso é; pois com estes desejos que Deus nos dá, irmãs, do bem das almas, podemos cometer muitos erros. E assim é melhor ater-nos ao que diz a nossa Regra: «procurar viver sempre em silêncio e esperança», que o Senhor terá cuidado de nossas almas. Desde que não nos descuidemos de o suplicar a Sua Majestade, faremos grande proveito com Seu favor. Seja para sempre bendito.
Prossegue no mesmo e trata das securas na oração e do que poderia suceder, a seu parecer, e como é mister provar-nos e que o Senhor prova aos que estão nestas moradas.
1. Eu tenho conhecido algumas almas, e creio que posso dizer bastantes, das que chegaram a este estado e vivido muitos anos nesta rectidão e concerto, alma e corpo; ao que se pode entender. E depois disto, quando já parece haviam de estar senhores do mundo, ao menos bem desenganados dele, prova-os Sua Majestade em coisas não muito grandes, e andam com tanta inquietação e aperto de cotação, que a mim me trazem tonta e até muito temerosa. Pois, dar-lhes conselho, não é remédio porque, como há tanto que tratam de virtudes, parece-lhes que podem ensinar a outros e que lhes sobra razão sentindo aquelas coisas.
2. Enfim, eu não achei remédio nem acho para consolar semelhantes pessoas, a não ser mostrar grande sentimento da sua pena (e na verdade, tem-se pena de as ver sujeitas a tanta miséria), e não contradizer suas razões; porque todas as concertam em seu pensamento, que é por Deus que as sentem e assim não vêm a entender que é imperfeição. E é outro engano para gente tão aproveitada. Que o sintam, não é de espantar, embora, a meu parecer, havia de passar depressa o sentimento de coisas semelhantes. Porque muitas vezes quer Deus que Seus escolhidos sintam essa miséria e aparta um pouco o Seu favor e não é preciso mais para que, de verdade, nos conheçamos bem depressa. E logo se entende esta maneira de os provar: para que eles compreendam a sua falta muito claramente; e, às vezes, dá-lhes mais pena ver que, sem estar na sua mão, sentem as coisas da terra e não muito pesadas, do que daquilo mesmo de que têm pena. Isto tenho-o eu por grande misericórdia de Deus; e ainda que é falta, é muito vantajosa para a humildade.
3. Nas pessoas que digo, não é assim, senão que canonizam - como disse - em seus pensamentos estas coisas, e assim quereriam que os outros as canonizassem. Quero dizer algumas delas, para que nos entendamos e nos provemos a nós mesmas, antes que nos prove o Senhor; pois seria bem grande coisa estarmos apercebidas e termonos entendido primeiro.
4. A uma pessoa rica, sem filhos nem para quem ela queira a fazenda, vem-lhe uma quebra de riqueza; mas não é de maneira que, do que lhe fica, lhe possa faltar o necessário para si e para sua casa, e ainda de sobra. Se esta andasse com tanto desassossego e inquietação como se não lhe ficasse um pão para comer, como háde pedir-lhe Nosso Senhor que deixe tudo por Ele? Aqui começa a dizer que o sente, porque o quer para os pobres. Por mim, creio que Deus mais quer que me conforme com o que Sua Majestade faz e, embora procure fazê-la, aquiete a minha alma e não esta caridade. E já que o não faz, por não a ter elevado o Senhor a tanto, seja muito em boa hora; mas entenda que lhe falta esta liberdade de espírito e com isto se disporá para que o Senhor lha dê, porque lha pedirá. Tem uma pessoa bem de que comer, e até de sobra; oferece-se-lhe o poder adquirir mais fortuna: tomá-la, se lha derem, seja em muito boa hora; mas procurá-la, e depois de a ter, procurar mais e mais, tenha tão boa intenção que quiser (e deve ter porque, como disse, são estas pessoas de oração e virtuosas), não haja medo que subam às moradas mais perto do Rei.
5. Deste modo acontece, quando se lhes oferece alguma coisa, pela qual os desprezem ou lhes tirem um pouco na honra; pois, embora lhes faça Deus mercê de que muitas vezes o sofram bem (porque é muito amigo de favorecer a virtude em público, para que não padeça a mesma virtude em que são tidos; e mesmo será porque O têm servido, pois é muito bom este nosso Bem), lá lhes fica uma tal inquietação, que não se podem valer, nem acaba de se acabar tão depressa. Valhame Deus! Não são estes os que, há tanto tempo, consideram como padeceu o Senhor e quão bom é padecer e até o desejam? Quereriam a todos tão concertados como eles trazem suas vidas, e praza a Deus que não pensem que a pena que têm é pela culpa alheia e a façam meritória em seu pensamento.
6. Parecer-vos-á, irmãs, que falo fora de propósito e não convosco, pois estas coisas aqui não as há, porque nem temos fazenda, nem a queremos, nem a procuramos, nem tão pouco alguém nos injuria. Por isso as comparações não aludem ao que se passa; mas tira-se delas outras muitas coisas que podem acontecer, as quais não seria bom assinalar, nem há para quê. Por estas entenderes se estais bem desprendidas do que deixastes porque se oferecem coisitas, ainda que não bem desta sorte, em que vos podereis muito bem provar e conhecer se estais senhoras das vossas paixões. E crede-me que não está o negócio em ter hábito de religião ou não, senão em procurar exercitar as virtudes e render a nossa vontade à de Deus em tudo e que oconcerto da nossa vida seja o que Sua Majestade dela ordenar e não queiramos que se faça a nossa vontade mas sim a Sua. Se não tivermos chegado até aqui, tenhamos - como disse - humildade, que é o unguento para as nossas feridas; porque, se a temos deveras, ainda que tarde algum tempo, virá o cirurgião, que é Deus, a sarar-nos.
7. As penitências que fazem estas almas são tão concertadas como a sua vida. Querem-na muito para servir a Nosso Senhor com ela, e tudo isto não é mau; assim têm grande discrição em fazer penitências, para não causar dano à saúde. Não tenhais medo que se matem, porque a sua razão está muito em si; não está ainda o amor para pôr de parte a razão. Mas queria eu que a tivéssemos para não nos contentarmos com esta maneira de servir a Deus, sempre passo a passo, que nunca acabamos de andar este caminho. E, como a nosso parecer sempre andamos e nos cansamos - porque crede que é um caminho custoso -, já será bem bom que não nos percamos. Mas, parece-vos, filhas, que se indo duma terra a outra pudéssemos chegar em oito dias, seria bom andar um ano por ventos, neves, chuvas e maus caminhos? Não valeria mais passá-lo de urna vez? Porque tudo isto há e perigos de serpentes. Oh! que bons sinais poderia eu dar disto. E praza a Deus que tenha passado daqui, que bastantes vezes me parece que não.
8. Como vamos com tanto senso, tudo nos ofende, porque tudo tememos; e assim, não ousamos passar adiante, como se nós pudéssemos chegar a estas moradas e outros estivessem a caminho. Pois, como isto não é possível, esforcemo-nos, irmãs minhas, por amor do Senhor; deixemos nossa razão e temores em Suas mãos; esqueçamos esta fraqueza natural que muito nos pode ocupar. O cuidado destes corpos tenham-no os prelados, e lá se avenham; nós tenhamo-lo só de caminhar depressa para ver este Senhor; pois, embora o regalo que possais ter é pouco ou nenhum, o cuidado da saúde nos poderia enganar, quanto mais que não se terá mais por isso, eu o sei. E também sei que não está o negócio no que toca ao corpo, que isto é o menos; pois o caminhar que digo, é com uma grande humildade; porque, se bem e entendestes, creio estar aqui o mal das que não vão adiante e nos pareça que temos andado poucos passos e assim o julguemos, e os que andam nossas irmãs nos pareçam muito pressurosos, e não só desejemos, mas procuremos que nos tenham pela mais ruim de todas.
9. E, com isto, este estado é excelentíssimo; e, se assim não é, toda a nossa vida estaremos nele e com mil penas e misérias. Porque, como não nos deixamos a nós mesmas, é muito trabalhoso e pesado, porque vamos muito carregadas com esta terra da nossa miséria, que não levam os que sobem aos aposentos que faltam. Nestes, não deixa o Senhor de pagar como justo, e ainda como misericordioso, pois dá sempre muito mais do que merecemos, dando-nos contentamentos muito maiores que os que podemos ter nos regalos e distracções desta vida. Mas não penso que dê muitos gostos, a não ser alguma vez, para nos convidar a ver o que se passa nas demais moradas, para que nos disponhamos a entrar nelas.
10. Parecer-vos-á que contentamentos e gostos é tudo o mesmo, para que eu faça esta diferença nos nomes. A mim parece-me que a há e muito grande; bem me posso enganar. Direi o que nisto entender nas quartas moradas que vêm depois destas; porque, como se há-de declarar algo dos gostos que ali dá o Senhor, fica melhor, e ainda que pareça sem proveito, poderá ser de algum, para que, entendendo o que é cada coisa, possais; esforçar-vos a seguir o melhor; e é de muito consolo para as almas que Deus leva até ali, e confusão para quem lhe parece já ter tudo, e, se são; humildes, mover-se-ão a dar graças. Se há alguma falta disto, dar-lhes-á um desgosto interior fora de propósito; pois, não está a perfeição nos gostos, nem no prémio, senão em quem mais ama e em quem melhor opera com justiça e verdade.
11. Direis: Para que serve tratar destas mercês interiores e dar a entender como são, se isto é verdade, como é? Eu não o sei; pergunte-se a quem mo mandou escrever que eu não estou obrigada a discutir com os superiores, mas a obedecer; nem seria bem fazê-lo. O que vos posso dizer com verdade, é que, quando eu não as tinha, nem ainda sabia por experiência, nem pensava sabê-lo em minha vida (e com razão, que grande contentamento fora para mim saber ou por conjecturas entenderque agradava a Deus em algum modo), quando lia em livros destas mercês e consolos que faz o Senhor às almas que O servem, isso me dava grandíssimo prazer e era motivo para minha alma dar grandes louvores a Deus. Pois, se a minha, com ser tão ruim, fazia isto, as que são boas e humildes O louvarão muito mais; e por uma só que O louve uma vez, está muito bem que se diga, a meu parecer, e que entendamos o contentamento e deleites que perdemos por nossa culpa. Quanto mais que, se são de Deus, vêm carregados de amor e fortaleza, com que se pode caminhar mais sem trabalho e ir crescendo nas obras e virtudes. Não penseis que importa pouco que isto não falhe da: nossa parte, pois, quando não é nossa a falta, justo é o Senhor, e Sua Majestade vos dará, por outros caminhos, o que vos tira por este, pelo que Sua Majestade sabe, pois são mui ocultos Seus segredos; pelo menos, será isso o que mais nos convém, sem dúvida nenhuma.
12. O que me parece nos faria muito proveito àquelas que pela bondade do Senhor estão neste estado (que, como disse, não lhes faz pouca misericórdia, porque estão muito perto de ir mais longe), é exercitarem-se muito na prontidão da obediência. E mesmo que não sejam religiosos, seria grande coisa - como o fazem muitas pessoas - ter a quem recorrer para não fazer em nada a sua vontade, que é o que habitualmente nos causa dano; e não buscar alguém do seu humor, como dizem, que vá sempre com muito tento em tudo, mas sim, procurar quem esteja muito desenganado das coisas do mundo, pois, de grande modo, aproveita tratar com quem já conhece o mundo para nos conhecermos e, porque algumas coisas que nos parecem impossíveis vendo-se em outros tão possíveis e a suavidade com que as levam, anima muito e parece que, com seu voo, nos atrevemos a voar, como fazem os filhos das aves quando os ensinam. Ainda que não dêem grande voo, pouco a pouco imitam os seus pais. De grande modo aproveita isto, eu o sei. Por mais determinadas que estejam em não ofender o Senhor, semelhantes pessoas procederão com acerto, não se metendo em ocasiões de O ofender; porque, como estão perto das primeiras moradas, com facilidade poderão voltar a elas, porque a sua fortaleza não está fundada em terra firme, como os que estão já exercitados em padecer; estes conhecem as tempestades do mundo, e quão pouco têm a temer ou a desejar seus contentamentos; e seria possível, com uma grande perseguição, voltarem de novo a eles. O demónio bem as sabe urdir para lhes fazer mal, e poderia suceder que, indo com bom zelo, querendo impedir pecados alheios, não pudessem resistir ao que a isto sobreviesse.
13. Olhemos as nossas faltas e deixemos as alheias, pois é muito próprio de pessoas tão concertadas espantarem-se de tudo; e porventura de quem nos espantamos, bem poderíamos aprender no principal. Na compostura exterior e na maneira de tratar, levamos-lhe vantagem; e não é isto o que tem mais importância, embora seja bom, e nem há para quê querer logo que vão todos pelo nosso caminho, nem pôr-se a ensinar o que é do espírito quem porventura não sabe o que isso é; pois com estes desejos que Deus nos dá, irmãs, do bem das almas, podemos cometer muitos erros. E assim é melhor ater-nos ao que diz a nossa Regra: «procurar viver sempre em silêncio e esperança», que o Senhor terá cuidado de nossas almas. Desde que não nos descuidemos de o suplicar a Sua Majestade, faremos grande proveito com Seu favor. Seja para sempre bendito.