A primeira e a segunda parte do «segredo» de Fátima foram
já discutidas tão amplamente por específicas publicações, que não
necessitam de ser ilustradas novamente aqui. Queria apenas
chamar brevemente a atenção para o ponto mais significativo. Os
pastorinhos experimentaram, durante um instante terrível, uma
visão do inferno. Viram a queda das «almas dos pobres pecadores».
Em seguida, foi-lhes dito o motivo pelo qual tiveram de passar por
esse instante: para «salvá-las» — para mostrar um caminho de
salvação. Isto faz-nos recordar uma frase da primeira Carta de
Pedro que diz: «Estais certos de obter, como prémio da vossa fé, a
salvação das almas» (1, 9). Como caminho para se chegar a tal
objectivo, é indicado de modo surpreendente para pessoas
originárias do ambiente cultural anglo-saxónico e germânico – a
devoção ao Imaculado Coração de Maria. Para compreender isto,
deveria bastar uma breve explicação. O termo «coração», na
linguagem da Bíblia, significa o centro da existência humana, uma
confluência da razão, vontade, temperamento e sensibilidade, onde
a pessoa encontra a sua unidade e orientação interior. O «coração
imaculado» é, segundo o evangelho de Mateus (5, 8), um coração
que a partir de Deus chegou a uma perfeita unidade interior e,
consequentemente, «vê a Deus». Portanto, «devoção» ao Imaculado
Coração de Maria é aproximar-se desta atitude do coração, na qual
o fiat — «seja feita a vossa vontade» — se torna o centro
conformador de toda a existência. Se porventura alguém objectasse
que não se deve interpor um ser humano entre nós e Cristo, lembre-
-se de que Paulo não tem medo de dizer às suas comunidades:
«Imitai-me» (cf. 1 Cor 4, 16; Fil 3, 17; 1 Tes 1, 6; 2 Tes 3, 7.9). No
Apóstolo, elas podem verificar concretamente o que significa seguir
Cristo. Mas, com quem poderemos nós aprender sempre melhor
do que com a Mãe do Senhor?
Chegamos assim finalmente à terceira parte do «segredo» de
Fátima, publicado aqui pela primeira vez integralmente. Como resulta da documentação anterior, a interpretação dada pelo Cardeal
Sodano, no seu texto do dia 13 de Maio, tinha antes sido apresentada pessoalmente à Irmã Lúcia. A tal propósito, ela começou por
observar que lhe foi dada a visão, mas não a sua interpretação. A
interpretação, dizia, não compete ao vidente, mas à Igreja. No entanto, depois da leitura do texto, a Irmã Lúcia disse que tal interpretação corresponde àquilo que ela mesma tinha sentido e que, pela
sua parte, reconhecia essa interpretação como correcta. Sendo
assim, limitar-nos-emos, naquilo que vem a seguir, a dar de forma
profunda um fundamento à referida interpretação, partindo dos critérios anteriormente desenvolvidos.
Do mesmo modo que tínhamos indentificado, como palavrachave da primeira e segunda parte do «segredo», a frase «salvar
as almas», assim agora a palavra-chave desta parte do «segredo»
é o tríplice grito: «Penitência, Penitência, Penitência!» Volta-nos
ao pensamento o início do Evangelho: «Pænitemini et credite
evangelio» (Mc 1, 15). Perceber os sinais do tempo significa compreender a urgência da penitência, da conversão, da fé. Tal é a
resposta justa a uma época histórica caracterizada por grandes
perigos, que serão delineados nas sucessivas imagens. Deixo aqui
uma recordação pessoal: num colóquio que a Irmã Lúcia teve comigo, ela disse-me que lhe parecia cada vez mais claramente que
o objectivo de todas as aparições era fazer crescer sempre mais
na fé, na esperança e na caridade; tudo o mais pretendia apenas
levar a isso.
Examinemos agora mais de perto as diversas imagens. O anjo
com a espada de fogo à esquerda da Mãe de Deus lembra imagens análogas do Apocalipse: ele representa a ameaça do juízo
que pende sobre o mundo. A possibilidade que este acabe reduzido a cinzas num mar de chamas, hoje já não aparece de forma
alguma como pura fantasia: o próprio homem preparou, com suas
invenções, a espada de fogo. Em seguida, a visão mostra a força
que se contrapõe ao poder da destruição: o brilho da Mãe de Deus
e, de algum modo proveniente do mesmo, o apelo à penitência.
Deste modo, é sublinhada a importância da liberdade do homem: o
futuro não está de forma alguma determinado imutavelmente, e a
imagem vista pelos pastorinhos não é, absolutamente, um filme
antecipado do futuro, do qual já nada se poderia mudar. Na realidade, toda a visão acontece só para chamar em campo a liberdade e orientá-la numa direcção positiva. O sentido da visão não é,
portanto, o de mostrar um filme sobre o futuro, já fixo irremediavelmente; mas exactamente o contrário: o seu sentido é mobilizar as
forças da mudança em bem. Por isso, há que considerar completamente extraviadas aquelas explicações fatalistas do «segredo»
que dizem, por exemplo, que o autor do atentado de 13 de Maio de
1981 teria sido, em última análise, um instrumento do plano divino
predisposto pela Providência e, por conseguinte, não poderia ter
agido livremente, ou outras ideias semelhantes que por aí andam.
A visão fala sobretudo de perigos e do caminho para salvar-se
deles.
As frases seguintes do texto mostram uma vez mais e de forma muito clara o carácter simbólico da visão: Deus permanece o
incomensurável e a luz que está para além de qualquer visão nossa. As pessoas humanas são vistas como que num espelho. Devemos ter continuamente presente esta limitação inerente à visão,
cujos confins estão aqui visivelmente indicados. O futuro é visto
apenas «como que num espelho, de maneira confusa» (cf. 1 Cor
13, 12). Consideremos agora as diversas imagens que se sucedem no texto do «segredo». O lugar da acção é descrito com três
símbolos: uma montanha íngreme, uma grande cidade meia em
ruínas e finalmente uma grande cruz de troncos toscos. A montanha e a cidade simbolizam o lugar da história humana: a história
como árdua subida para o alto, a história como lugar da criatividade
e convivência humana e simultaneamente de destruições pelas
quais o homem aniquila a obra do seu próprio trabalho. A cidade
pode ser lugar de comunhão e progresso, mas também lugar do
perigo e da ameaça mais extrema. No cimo da montanha, está a
cruz: meta e ponto de orientação da história. Na cruz, a destruição
é transformada em salvação; ergue-se como sinal da miséria da
história e como promessa para a mesma.
Aparecem lá, depois, pessoas humanas: o Bispo vestido de
branco («tivemos o pressentimento que era o Santo Padre»), outros bispos, sacerdotes, religiosos e religiosas e, finalmente, homens e mulheres de todas as classes e posições sociais. O Papa
parece caminhar à frente dos outros, tremendo e sofrendo por todos os horrores que o circundam. E não são apenas as casas da
cidade que jazem meio em ruínas; o seu caminho é ladeado pelos
cadáveres dos mortos. Deste modo, o caminho da Igreja é descrito
como uma Via Sacra, como um caminho num tempo de violência,
destruições e perseguições. Nesta imagem, pode-se ver representada a história dum século inteiro. Tal como os lugares da terra
aparecem sinteticamente representados nas duas imagens da
montanha e da cidade e estão orientados para a cruz, assim também os tempos são apresentados de forma contraída: na visão,
podemos reconhecer o século vinte como século dos mártires, como
século dos sofrimentos e perseguições à Igreja, como o século
das guerras mundiais e de muitas guerras locais que ocuparam
toda a segunda metade do mesmo, tendo feito experimentar novas formas de crueldade. No «espelho» desta visão, vemos passar as testemunhas da fé de decénios. A este respeito, é oportuno
mencionar uma frase da carta que a Irmã Lúcia escreveu ao Santo
Padre no dia 12 de Maio de 1982: «A terceira parte do “segredo”
refere-se às palavras de Nossa Senhora: “Se não, [a Rússia] espalhará os seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à Igreja. Os bons serão martirizados, o Santo Padre terá
muito que sofrer, várias nações serão aniquiladas”».
Na Via Sacra deste século, tem um papel especial a figura do
Papa. Na árdua subida da montanha, podemos sem dúvida ver
figurados conjuntamente diversos Papas, começando de Pio X até
ao Papa actual, que partilharam os sofrimentos deste século e se
esforçaram por avançar, no meio deles, pelo caminho que leva à
cruz. Na visão, também o Papa é morto na estrada dos mártires.
Não era razoável que o Santo Padre, quando, depois do atentado
de 13 de Maio de 1981, mandou trazer o texto da terceira parte do
«segredo», tivesse lá identificado o seu próprio destino? Esteve
muito perto da fronteira da morte, tendo ele mesmo explicado a
sua salvação com as palavras seguintes: «Foi uma mão materna
que guiou a trajectória da bala e o Papa agonizante deteve-se no
limiar da morte» (13 de Maio de 1994). O facto de ter havido lá uma
«mão materna» que desviou a bala mortífera demonstra uma vez
mais que não existe um destino imutável, que a fé e a oração são
forças que podem influir na história e que, em última análise, a
oração é mais forte que as balas, a fé mais poderosa que os exércitos.
A conclusão do «segredo» lembra imagens, que Lúcia pode
ter visto em livros de piedade e cujo conteúdo deriva de antigas
intuições de fé. É uma visão consoladora, que quer tornar permeável
à força santificante de Deus uma história de sangue e de lágrimas.
Anjos recolhem, sob os braços da cruz, o sangue dos mártires e
com ele regam as almas que se aproximam de Deus. O sangue de
Cristo e o sangue dos mártires são vistos aqui juntos: o sangue
dos mártires escorre dos braços da cruz. O seu martírio realiza-se
solidariamente com a paixão de Cristo, identificando-se com ela.
Eles completam em favor do corpo de Cristo o que ainda falta aos
seus sofrimentos (cf. Col 1, 24). A sua própria vida tornou-se
eucaristia, inserindo-se no mistério do grão de trigo que morre e se
torna fecundo. O sangue dos mártires é semente de cristãos, disse
Tertuliano. Tal como nasceu a Igreja da morte de Cristo, do seu
lado aberto, assim também a morte das testemunhas é fecunda
para a vida futura da Igreja. Deste modo, a visão da terceira parte
do «segredo», tão angustiante ao início, termina numa imagem de
esperança: nenhum sofrimento é vão, e precisamente uma Igreja
sofredora, uma Igreja dos mártires torna-se sinal indicador para o
homem na sua busca de Deus. Não se trata apenas de ver os que
sofrem acolhidos na mão amorosa de Deus como Lázaro, que
encontrou a grande consolação e misteriosamente representa
Cristo, que por nós Se quis fazer o pobre Lázaro; mas há algo
mais: do sofrimento das testemunhas deriva uma força de
purificação e renovamento, porque é a actualização do próprio
sofrimento de Cristo e transmite ao tempo presente a sua eficácia
salvífica.
Chegamos assim a uma última pergunta: O que é que significa no seu conjunto (nas suas três partes) o «segredo» de Fátima?
O que é nos diz a nós? Em primeiro lugar, devemos supor, como
afirma o Cardeal Sodano, que «os acontecimentos a que faz refe-
rência a terceira parte do “segredo” de Fátima parecem pertencer
já ao passado». Os diversos acontecimentos, na medida em que
lá são representados, pertencem já ao passado. Quem estava à
espera de impressionantes revelações apocalípticas sobre o fim
do mundo ou sobre o futuro desenrolar da história, deve ficar desiludido. Fátima não oferece tais satisfações à nossa curiosidade,
como, aliás, a fé cristã em geral que não pretende nem pode ser
alimento para a nossa curiosidade. O que permanece — dissemo-
-lo logo ao início das nossas reflexões sobre o texto do «segredo»
— é a exortação à oração como caminho para a «salvação das
almas», e no mesmo sentido o apelo à penitência e à conversão.
Queria, no fim, tomar uma vez mais outra palavra-chave do
«segredo» que justamente se tornou famosa: «O meu Imaculado
Coração triunfará». Que significa isto? Significa que este Coração
aberto a Deus, purificado pela contemplação de Deus, é mais forte
que as pistolas ou outras armas de qualquer espécie. O fiat de
Maria, a palavra do seu Coração, mudou a história do mundo, porque introduziu neste mundo o Salvador: graças àquele «Sim», Deus
pôde fazer-Se homem no nosso meio e tal permanece para sempre. Que o maligno tem poder neste mundo, vemo-lo e experimentamo-lo continuamente; tem poder, porque a nossa liberdade
se deixa continuamente desviar de Deus. Mas, desde que Deus
passou a ter um coração humano e deste modo orientou a liberdade do homem para o bem, para Deus, a liberdade para o mal deixou de ter a última palavra. O que vale desde então, está expresso
nesta frase: «No mundo tereis aflições, mas tende confiança! Eu
venci o mundo» (Jo 16, 33). A mensagem de Fátima convida a
confiar nesta promessa.
Joseph Card. Ratzinger
Prefeito da Congregação
para a Doutrina da Fé
A primeira e a segunda parte do «segredo» de Fátima foram
já discutidas tão amplamente por específicas publicações, que não
necessitam de ser ilustradas novamente aqui. Queria apenas
chamar brevemente a atenção para o ponto mais significativo. Os
pastorinhos experimentaram, durante um instante terrível, uma
visão do inferno. Viram a queda das «almas dos pobres pecadores».
Em seguida, foi-lhes dito o motivo pelo qual tiveram de passar por
esse instante: para «salvá-las» — para mostrar um caminho de
salvação. Isto faz-nos recordar uma frase da primeira Carta de
Pedro que diz: «Estais certos de obter, como prémio da vossa fé, a
salvação das almas» (1, 9). Como caminho para se chegar a tal
objectivo, é indicado de modo surpreendente para pessoas
originárias do ambiente cultural anglo-saxónico e germânico – a
devoção ao Imaculado Coração de Maria. Para compreender isto,
deveria bastar uma breve explicação. O termo «coração», na
linguagem da Bíblia, significa o centro da existência humana, uma
confluência da razão, vontade, temperamento e sensibilidade, onde
a pessoa encontra a sua unidade e orientação interior. O «coração
imaculado» é, segundo o evangelho de Mateus (5, 8), um coração
que a partir de Deus chegou a uma perfeita unidade interior e,
consequentemente, «vê a Deus». Portanto, «devoção» ao Imaculado
Coração de Maria é aproximar-se desta atitude do coração, na qual
o fiat — «seja feita a vossa vontade» — se torna o centro
conformador de toda a existência. Se porventura alguém objectasse
que não se deve interpor um ser humano entre nós e Cristo, lembre-
-se de que Paulo não tem medo de dizer às suas comunidades:
«Imitai-me» (cf. 1 Cor 4, 16; Fil 3, 17; 1 Tes 1, 6; 2 Tes 3, 7.9). No
Apóstolo, elas podem verificar concretamente o que significa seguir
Cristo. Mas, com quem poderemos nós aprender sempre melhor
do que com a Mãe do Senhor?
Chegamos assim finalmente à terceira parte do «segredo» de
Fátima, publicado aqui pela primeira vez integralmente. Como resulta da documentação anterior, a interpretação dada pelo Cardeal
Sodano, no seu texto do dia 13 de Maio, tinha antes sido apresentada pessoalmente à Irmã Lúcia. A tal propósito, ela começou por
observar que lhe foi dada a visão, mas não a sua interpretação. A
interpretação, dizia, não compete ao vidente, mas à Igreja. No entanto, depois da leitura do texto, a Irmã Lúcia disse que tal interpretação corresponde àquilo que ela mesma tinha sentido e que, pela
sua parte, reconhecia essa interpretação como correcta. Sendo
assim, limitar-nos-emos, naquilo que vem a seguir, a dar de forma
profunda um fundamento à referida interpretação, partindo dos critérios anteriormente desenvolvidos.
Do mesmo modo que tínhamos indentificado, como palavrachave da primeira e segunda parte do «segredo», a frase «salvar
as almas», assim agora a palavra-chave desta parte do «segredo»
é o tríplice grito: «Penitência, Penitência, Penitência!» Volta-nos
ao pensamento o início do Evangelho: «Pænitemini et credite
evangelio» (Mc 1, 15). Perceber os sinais do tempo significa compreender a urgência da penitência, da conversão, da fé. Tal é a
resposta justa a uma época histórica caracterizada por grandes
perigos, que serão delineados nas sucessivas imagens. Deixo aqui
uma recordação pessoal: num colóquio que a Irmã Lúcia teve comigo, ela disse-me que lhe parecia cada vez mais claramente que
o objectivo de todas as aparições era fazer crescer sempre mais
na fé, na esperança e na caridade; tudo o mais pretendia apenas
levar a isso.
Examinemos agora mais de perto as diversas imagens. O anjo
com a espada de fogo à esquerda da Mãe de Deus lembra imagens análogas do Apocalipse: ele representa a ameaça do juízo
que pende sobre o mundo. A possibilidade que este acabe reduzido a cinzas num mar de chamas, hoje já não aparece de forma
alguma como pura fantasia: o próprio homem preparou, com suas
invenções, a espada de fogo. Em seguida, a visão mostra a força
que se contrapõe ao poder da destruição: o brilho da Mãe de Deus
e, de algum modo proveniente do mesmo, o apelo à penitência.
Deste modo, é sublinhada a importância da liberdade do homem: o
futuro não está de forma alguma determinado imutavelmente, e a
imagem vista pelos pastorinhos não é, absolutamente, um filme
antecipado do futuro, do qual já nada se poderia mudar. Na realidade, toda a visão acontece só para chamar em campo a liberdade e orientá-la numa direcção positiva. O sentido da visão não é,
portanto, o de mostrar um filme sobre o futuro, já fixo irremediavelmente; mas exactamente o contrário: o seu sentido é mobilizar as
forças da mudança em bem. Por isso, há que considerar completamente extraviadas aquelas explicações fatalistas do «segredo»
que dizem, por exemplo, que o autor do atentado de 13 de Maio de
1981 teria sido, em última análise, um instrumento do plano divino
predisposto pela Providência e, por conseguinte, não poderia ter
agido livremente, ou outras ideias semelhantes que por aí andam.
A visão fala sobretudo de perigos e do caminho para salvar-se
deles.
As frases seguintes do texto mostram uma vez mais e de forma muito clara o carácter simbólico da visão: Deus permanece o
incomensurável e a luz que está para além de qualquer visão nossa. As pessoas humanas são vistas como que num espelho. Devemos ter continuamente presente esta limitação inerente à visão,
cujos confins estão aqui visivelmente indicados. O futuro é visto
apenas «como que num espelho, de maneira confusa» (cf. 1 Cor
13, 12). Consideremos agora as diversas imagens que se sucedem no texto do «segredo». O lugar da acção é descrito com três
símbolos: uma montanha íngreme, uma grande cidade meia em
ruínas e finalmente uma grande cruz de troncos toscos. A montanha e a cidade simbolizam o lugar da história humana: a história
como árdua subida para o alto, a história como lugar da criatividade
e convivência humana e simultaneamente de destruições pelas
quais o homem aniquila a obra do seu próprio trabalho. A cidade
pode ser lugar de comunhão e progresso, mas também lugar do
perigo e da ameaça mais extrema. No cimo da montanha, está a
cruz: meta e ponto de orientação da história. Na cruz, a destruição
é transformada em salvação; ergue-se como sinal da miséria da
história e como promessa para a mesma.
Aparecem lá, depois, pessoas humanas: o Bispo vestido de
branco («tivemos o pressentimento que era o Santo Padre»), outros bispos, sacerdotes, religiosos e religiosas e, finalmente, homens e mulheres de todas as classes e posições sociais. O Papa
parece caminhar à frente dos outros, tremendo e sofrendo por todos os horrores que o circundam. E não são apenas as casas da
cidade que jazem meio em ruínas; o seu caminho é ladeado pelos
cadáveres dos mortos. Deste modo, o caminho da Igreja é descrito
como uma Via Sacra, como um caminho num tempo de violência,
destruições e perseguições. Nesta imagem, pode-se ver representada a história dum século inteiro. Tal como os lugares da terra
aparecem sinteticamente representados nas duas imagens da
montanha e da cidade e estão orientados para a cruz, assim também os tempos são apresentados de forma contraída: na visão,
podemos reconhecer o século vinte como século dos mártires, como
século dos sofrimentos e perseguições à Igreja, como o século
das guerras mundiais e de muitas guerras locais que ocuparam
toda a segunda metade do mesmo, tendo feito experimentar novas formas de crueldade. No «espelho» desta visão, vemos passar as testemunhas da fé de decénios. A este respeito, é oportuno
mencionar uma frase da carta que a Irmã Lúcia escreveu ao Santo
Padre no dia 12 de Maio de 1982: «A terceira parte do “segredo”
refere-se às palavras de Nossa Senhora: “Se não, [a Rússia] espalhará os seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à Igreja. Os bons serão martirizados, o Santo Padre terá
muito que sofrer, várias nações serão aniquiladas”».
Na Via Sacra deste século, tem um papel especial a figura do
Papa. Na árdua subida da montanha, podemos sem dúvida ver
figurados conjuntamente diversos Papas, começando de Pio X até
ao Papa actual, que partilharam os sofrimentos deste século e se
esforçaram por avançar, no meio deles, pelo caminho que leva à
cruz. Na visão, também o Papa é morto na estrada dos mártires.
Não era razoável que o Santo Padre, quando, depois do atentado
de 13 de Maio de 1981, mandou trazer o texto da terceira parte do
«segredo», tivesse lá identificado o seu próprio destino? Esteve
muito perto da fronteira da morte, tendo ele mesmo explicado a
sua salvação com as palavras seguintes: «Foi uma mão materna
que guiou a trajectória da bala e o Papa agonizante deteve-se no
limiar da morte» (13 de Maio de 1994). O facto de ter havido lá uma
«mão materna» que desviou a bala mortífera demonstra uma vez
mais que não existe um destino imutável, que a fé e a oração são
forças que podem influir na história e que, em última análise, a
oração é mais forte que as balas, a fé mais poderosa que os exércitos.
A conclusão do «segredo» lembra imagens, que Lúcia pode
ter visto em livros de piedade e cujo conteúdo deriva de antigas
intuições de fé. É uma visão consoladora, que quer tornar permeável
à força santificante de Deus uma história de sangue e de lágrimas.
Anjos recolhem, sob os braços da cruz, o sangue dos mártires e
com ele regam as almas que se aproximam de Deus. O sangue de
Cristo e o sangue dos mártires são vistos aqui juntos: o sangue
dos mártires escorre dos braços da cruz. O seu martírio realiza-se
solidariamente com a paixão de Cristo, identificando-se com ela.
Eles completam em favor do corpo de Cristo o que ainda falta aos
seus sofrimentos (cf. Col 1, 24). A sua própria vida tornou-se
eucaristia, inserindo-se no mistério do grão de trigo que morre e se
torna fecundo. O sangue dos mártires é semente de cristãos, disse
Tertuliano. Tal como nasceu a Igreja da morte de Cristo, do seu
lado aberto, assim também a morte das testemunhas é fecunda
para a vida futura da Igreja. Deste modo, a visão da terceira parte
do «segredo», tão angustiante ao início, termina numa imagem de
esperança: nenhum sofrimento é vão, e precisamente uma Igreja
sofredora, uma Igreja dos mártires torna-se sinal indicador para o
homem na sua busca de Deus. Não se trata apenas de ver os que
sofrem acolhidos na mão amorosa de Deus como Lázaro, que
encontrou a grande consolação e misteriosamente representa
Cristo, que por nós Se quis fazer o pobre Lázaro; mas há algo
mais: do sofrimento das testemunhas deriva uma força de
purificação e renovamento, porque é a actualização do próprio
sofrimento de Cristo e transmite ao tempo presente a sua eficácia
salvífica.
Chegamos assim a uma última pergunta: O que é que significa no seu conjunto (nas suas três partes) o «segredo» de Fátima?
O que é nos diz a nós? Em primeiro lugar, devemos supor, como
afirma o Cardeal Sodano, que «os acontecimentos a que faz refe-
rência a terceira parte do “segredo” de Fátima parecem pertencer
já ao passado». Os diversos acontecimentos, na medida em que
lá são representados, pertencem já ao passado. Quem estava à
espera de impressionantes revelações apocalípticas sobre o fim
do mundo ou sobre o futuro desenrolar da história, deve ficar desiludido. Fátima não oferece tais satisfações à nossa curiosidade,
como, aliás, a fé cristã em geral que não pretende nem pode ser
alimento para a nossa curiosidade. O que permanece — dissemo-
-lo logo ao início das nossas reflexões sobre o texto do «segredo»
— é a exortação à oração como caminho para a «salvação das
almas», e no mesmo sentido o apelo à penitência e à conversão.
Queria, no fim, tomar uma vez mais outra palavra-chave do
«segredo» que justamente se tornou famosa: «O meu Imaculado
Coração triunfará». Que significa isto? Significa que este Coração
aberto a Deus, purificado pela contemplação de Deus, é mais forte
que as pistolas ou outras armas de qualquer espécie. O fiat de
Maria, a palavra do seu Coração, mudou a história do mundo, porque introduziu neste mundo o Salvador: graças àquele «Sim», Deus
pôde fazer-Se homem no nosso meio e tal permanece para sempre. Que o maligno tem poder neste mundo, vemo-lo e experimentamo-lo continuamente; tem poder, porque a nossa liberdade
se deixa continuamente desviar de Deus. Mas, desde que Deus
passou a ter um coração humano e deste modo orientou a liberdade do homem para o bem, para Deus, a liberdade para o mal deixou de ter a última palavra. O que vale desde então, está expresso
nesta frase: «No mundo tereis aflições, mas tende confiança! Eu
venci o mundo» (Jo 16, 33). A mensagem de Fátima convida a
confiar nesta promessa.
Joseph Card. Ratzinger
Prefeito da Congregação
para a Doutrina da Fé