5 ADOLESCÊNCIA E GRAÇA DE NATAL (1886 - 1887)

5 ADOLESCÊNCIA E GRAÇA DE NATAL (1886 - 1887)
 
Se o Céu me comulava de graças, não era por eu as merecer. Era ainda muito imperfeita. Tinha, isso sim, um grande desejo de praticar [44 vº] a virtude, mas fazia-o duma maneira esquisita. Eis um exemplo: Sendo a mais nova, não estava habituada a bastar-me a mim mesma. A Celina arrumava o quarto onde dormíamos juntas, e eu não fazia nenhum trabalho doméstico. Depois da Maria entrar para o Carmelo, algumas vezes, para agradar a Deus, tentava fazer a cama, ou, na ausência da Celina, guardar, à noite, os seus vasos de flores. Como disse, era só por Deus que fazia estas coisas; portanto, não deveria estar à espera do obrigado das criaturas. Ai de mim! sucedia exactamente o contrário! Se a Celina, por infelicidade, não se mostrava contente e surpreendida com os meus pequenos serviços, eu não ficava satisfeita, e mostrava-lho com as minhas lágrimas...
Eu era verdadeiramente insuportável, pela minha excessiva sensibilidade. Assim, se me acontecia causar involuntariamente algum pequeno desgosto a alguém de quem gostava, em vez de levantar a cabeça e de não chorar, chorava como uma Madalena, o que aumentava a minha falta, em vez de a diminuir; e quando começava a consolar-me pelo facto em si mesmo, chorava por ter chorado... Todos os argumentos eram inúteis, e não conseguia corrigir-me desse reles defeito. 
Não sei como acalentava o doce pensamento de entrar para o Carmelo, estando ainda nas fraldas da infância!... Foi preciso Deus fazer um pequeno milagre para me fazer crescer num instante, e esse milagre fê-lo no dia inesquecível de Natal.  Nessa noite luminosa que esclarece as delícias da Santíssima Trindade, Jesus, o doce pequeno Menino de uma hora, mudou a noite da minha alma em torrentes de luz...
Nessa noite em que Ele se fez fraco e sofredor por meu amor, tornou-me forte e corajosa; revestiu-me com as suas armas; e desde essa noite bendita, não fui vencida em nenhum combate; antes, pelo contrário, caminhei de vitória em vitória e comecei, por assim dizer, «uma corrida de gigante!...».
[45 rº] A fonte das minhas lágrimas estancou, e desde então não se abriu senão raras vezes e com dificuldade, o que justificou esta frase que me tinha sido dita: - «Tu choras tanto na tua infância, que mais tarde já não terás lágrimas para derramar!...».
Foi no dia 25  de Dezembro de 1886 que recebi a graça da minha completa conversão. 
Regressávamos da missa da meia-noite, em que eu tivera a felicidade de receber o Deus forte e poderoso. Ao chegar aos Buissonnets, regozijava-me por ir buscar os meus sapatos à chaminé. Aquele antigo costume causara-nos tanta alegria na nossa infância, que a Celina queria continuar a tratar-me como um bebé, já que eu era a mais nova da familia... O Papá gostava de ver a minha felicidade, de ouvir os meus gritos de alegria, ao tirar cada surpresa dos sapatos encantados, e a satisfação do meu Rei aumentava muito a minha felicidade. 
Mas Jesus, querendo mostrar-me que me devia desfazer dos defeitos da infância, tirou-me também as alegrias inocentes. Permitiu que o Papá, fatigado da missa da meia-noite, ficasse aborrecido ao ver os meus sapatos na chaminé e dissesse estas palavras que me cortaram o coração: - «Enfim, ainda bem que é o último ano!...». Nesse momento eu subia as escadas para ir tirar o chapéu. A Celina, conhecendo a minha sensibilidade e vendo as lágrimas a brilharem-me nos olhos, teve também vontade de chorar, pois amava-me muito e compreendia o meu desgosto: - «Ó Teresa!, disse-me ela, não desças já; sofrerias imenso se fosses agora ver os teus sapatos». Mas a Teresa já não era a mesma; Jesus tinha-lhe mudado o coração!
Retendo as lágrimas, desci rapidamente as escadas e, reprimindo as palpitações do coração, peguei nos sapatos e, colocando-os diante do Papá, tirei alegremente todos os objectos, mostrando-me feliz como uma rainha. O Papá, tinha recuperado também o bom humor, ria-se: A Celina julgava estar a sonhar!... Felizmente era uma doce realidade: a Teresinha tinha encontrado a força da alma, que perdera aos quatro anos e meio, e havia de conservá-la para sempre!... [45 vº]  Nessa noite de luz começou o terceiro período da minha vida, o mais belo de todos, o mais repleto das graças do Céu... A obra que eu não tinha podido fazer em dez anos, Jesus consumou-a num instante, contentando-se com a minha boa vontade, que nunca me faltou. Como os apóstolos, eu podia dizer-lhe: - «Senhor, pesquei toda a noite, sem nada apanhar». 
Mais misericordioso ainda para comigo do que para com os seus discípulos, Jesus pegou Ele mesmo na rede, lançou-a e retirou-a cheia de peixes... Fez de mim um pescador de almas. Senti um grande desejo de trabalhar pela conversão dos pecadores, desejo que não tinha sentido tão vivamente... Senti, numa palavra, entrar a caridade no meu coração, senti a necessidade de me esquecer de mim para dar alegria. E desde então fui feliz!...
Um Domingo, contemplando uma estampa de Nosso Senhor na Cruz, fiquei impressionada com o sangue que caía de uma das suas mãos divinas. Senti uma enorme pena, ao pensar que esse sangue caía na terra, sem que ninguém se apressasse a recolhê-lo, e resolvi manter-me em espírito ao pé da cruz para receber o Divino orvalho que dela escorria, compreendendo que seria necessário espalhá-lo sobre as almas...
O grito de Jesus na cruz: -«Tenho sede!» ressoava também continuamente no meu coração. Estas palavras acendiam em mim um ardor desconhecido e muito vivo... Queria dar de beber ao meu Bem-Amado, e sentia-me eu mesma devorada pela sede de almas... Não eram ainda as almas dos sacerdotes que me atraíam, mas as dos grandes pecadores; ardia no desejo de as arrancar às chamas eternas... A fim de estimular o meu zelo, Deus mostrou-me que os meus desejos Lhe agradavam. 
Ouvi falar de um grande criminoso que acabava de ser condenado à morte, por crimes horríveis. Tudo leva a crer que morreria impenitente. Quis a todo o custo impedi-lo de cair no Inferno e, para o conseguir, empreguei todos meis imagináveis. Sabendo que por mim mesma nada podia, ofereci [46 rº] a Deus todos os méritos infinitos de Nosso Senhor, os tesouros da Santa Igreja. Além disso, pedi à Celina que mandasse celebrar uma missa pelas minhas intenções, não ousando encomendá-la eu mesma, com receio de ser obrigada a confessar que era por Pranzini, o grande criminoso. Nem sequer queria dizer à Celina; mas ela fez-me perguntas com tanta delicadeza e insistência, que lhe confiei o meu segredo. Muito longe de fazer troça de mim, pediu-me para a deixar ajudar-me a converter o meu pecador. Aceitei com reconhecimento, pois quereria que todas as criaturas se unissem a mim para implorar a graça para o culpado. 
Sentia no fundo do coração, a certeza de que os nossos desejos seriam satisfeitos. Disse a Deus que estava bem certa de que Ele perdoaria ao pobre infeliz Pranzini, e que o acreditaria mesmo que ele não se confessasse e não mostrasse nenhum sinal de arrependimento - tanta confiança eu tinha na misericórdia infinita de Jesus! -, mas que Lhe pedia apenas «um sinal» de arrependimento, a fim de obter coragem para continuar a rezar pelos pecadores, e para minha consolação... A minha oração foi atendida à letra!
Apesar do Papá nos ter proibido de ler os jornais, não julgava desobedecer ao ler as passagens que falavam de Pranzini. No dia seguinte à sua execução, encontro à mão o jornal "La Croix". Abro-o à pressa, e, que vejo?... Ah! as lágrimas traíram-me a emoção, e fui obrigada a esconder-me... Pranzini não se tinha confessado. Subira ao cadafalso, e preparava-se para meter a cabeça no macabro buraco, quando de repente, levado por uma súbita inspiração, volta-se, agarra o Crucifixo que o sacerdote lhe apresentava, e beija por três vezes as suas sagradas chagas!... Depois a sua alma foi receber a sentença misericordiosa d´Aquele que declara que no Céu haverá mais alegria por um só pecador que faz penitência do que por noventa e nove justos que não têm necessidade de penitência!...
Obtivera «o sinal» pedido; e esse sinal era a reprodução fiel da [46 vº] graça que Jesus me concedera para me afeiçoar a rezar pelos pecadores. Acaso não foi perante as chagas [de] Jesus, ao ver correr o seu sangue divino, que a sede das almas penetrou no meu coração? Queria dar-lhes a beber esse sangue imaculado que as purificaria das suas manchas; e eis que os lábios do «meu primeiro filho» foram colar-se sobre as sagradas chagas!!... Que resposta inefavelmente doce!
Ah! a partir dessa graça única, o meu desejo de salvar as almas cresceu de dia para dia; parecia-me ouvir Jesus dizer-me como à Samaritana: - «Dá-me de beber!». Era uma verdadeira permuta de amor: às almas eu dava o sangue de Jesus; a Jesus oferecia essas mesmas almas, refrescadas pelo seu orvalho Divino; parecia-me assim dessedentá-lo, e quanto mais Lhe dava de beber, mais aumentava a sede da minha pobre alminha; e era esta sede ardente que Ele me dava como a mais deliciosa bebida do seu amor...
Em pouco tempo, Deus tirou-me do círculo estreito em que eu girava, sem saber como de lá sair. Ao ver o caminho que Ele me fez percorrer, a minha gratidão é grande, mas, devo reconhecê-lo, se o maior passo estava dado, tinha ainda de deixar muitas coisas. Liberto dos seus escrúpulos, da sua sensibilidade excessiva, o meu espírito desenvolveu-se.
Sempre amara o majestoso, o belo; mas nesta altura apoderou-se de mim um desejo imenso de saber. Não me contentando com as lições e com os deveres que me dava a minha mestra, aplicava-me sozinha a estudos especiais de História e de Ciência. Os outros estudos deixavam-me indiferente; mas estas duas disciplinas atraíam toda a minha atenção. Assim, em poucos meses adquiri mais conhecimentos que durante os meus anos de estudo.
Ah! isso não passava de vaidade e aflição de espírito! Vinha-me muitas vezes ao pensamento o capítulo da Imitação de Cristo em que se fala das ciências; não obstante, arranjava maneira de continuar, dizendo a mim mesma que estava em idade de estudar, que não havia [47 rº] mal em o fazer. Não creio ter ofendido a Deus (apesar de reconhecer ter gasto assim inutilmente o tempo), pois não ocupava nisso senão um certo número de horas, que não queria exceder, a fim de mortificar o meu desejo, demasiado vivo, de saber. 
Estava na idade mais perigosa para as raparigas. Mas Deus fez por mim o que o profeta Ezequiel refere nas suas profecias: «Passando a meu lado, Jesus viu que tinha chegado para mim o tempo de ser amada; Ele fez aliança comigo, e tornei-me sua...; estendeu sobre mim o seu manto, lavou-me em perfumes preciosos, revestiu-me com vestes bordadas, dando-me colares e adornos sem preço...; alimentou-me com a mais pura farinha, com mel e azeite em abundância... Com isto, tornei-me bela a seus olhos, e fez de mim uma poderosa rainha!...». Sim, Jesus fez tudo isso por mim. Eu poderia retomar cada palavra que acabo de escrever e provar que ela se realizou em mim; mas as graças que contei mais acima são disso uma prova suficiente. Vou falar apenas do alimento que me prodigalizou «em abundância». Desde há muito tempo que eu me alimentava com «a pura farinha» contida na Imitação de Cristo. Foi o único livro que me fez bem, pois não tinha ainda encontrado os tesouros escondidos no Evangelho. 
Sabia de cor quase todos os capítulos da minha querida Imitação; esse livrinho acompanhava-me sempre. No Verão trazia-o no meu bolso, e no Inverno no manguito; assim, converteu-se num costume. Em casa da minha tia divertiam-se muito abrindo-o ao acaso, e fazendo-me recitar o capítulo que calhasse. 
Aos 14 anos, com o meu desejo de ciência, Deus achou que era necessário juntar «à pura farinha, mel e azeite em abundância».
Esse mel e azeite fez-mos encontrar nas conferências do senhor Padre Arminjon sobre: «O fim do mundo presente e os mistérios da vida futura». Esse livro fora emprestado ao Papá pelas minhas queridas Carmelitas; por isso, contrariamente ao meu [47 vº] costume (pois não lia os livros do Papá), pedi para o ler. 
Essa leitura foi também uma das maiores graças da minha vida. Li-o à janela do meu quarto de estudo, e a impressão que me causou é demasiado íntima e doce para a poder transmitir...
Todas as grandes verdades da religião, os mistérios da eternidade, mergulhavam a minha alma numa felicidade que, não era da terra... Pressentia já (não com os olhos da carne, mas com os do coração) o que Deus reserva aos que o amam. E vendo que as recompensas eternas não tinham nenhuma proporção com os suaves sacrifícios da vida, queria amar, amar a Jesus com paixão, dar-lhe mil provas de amor enquanto ainda pudesse... Copiei várias páginas sobre o perfeito amor e sobre a recepção que Deus há-de fazer aos seus eleitos no momento em que Ele próprio se tornará a sua grande e eterna recompensa, e repetia sem cessar as palavras de amor que tinham abrasado o meu coração...
A Celina tornara-se a confidente íntima dos meus pensamentos. Desde o Natal já nos podíamos compreender; a distância da idade já não existia, porque eu tinha crescido em estatura e, sobretudo em graça... Antes dessa altura queixava-me muitas vezes por nada saber dos segredos da Celina. Ela dizia-me que eu era muito pequena, que era preciso eu crescer «a altura de um banquinho» para ela ter confiança em mim... Gostava de subir para cima desse precioso banquinho quando estava ao lado dela, e dizia-lhe que me falasse intimamente. Mas a minha astúcia não surtia efeito; uma distância nos separava ainda!...
Jesus, que nos queria fazer avançar juntas, criou nos nossos corações laços mais fortes que os do sangue. Fez com que nos tornássemos irmãs de alma. Realizaram-se em nós estas palavras do Cântico Espiritual de S. João da Cruz. Falando ao Esposo, a Esposa diz: «Apressam-se as donzelas, sobre as tuas pegadas no caminho; ao toque das [48 rº] centelhas, e ao temperado vinho, dão-te aromas de bálsamo divino».
Sim, era mesmo apressadamente que seguíamos as pegadas de Jesus. As centelhas de amor que Ele semeava às mãos cheias nas nossas almas, o vinho delicioso e forte que nos dava a beber, faziam desaparecer aos nosso olhos as coisas passageiras, e dos nosso lábios brotavam aspirações de amor inspiradas por Ele. 
Como eram deliciosas as conversas que tínhamos todas as noites no belveder! Com o olhar fixo no horizonte, contemplávamos a branca lua elevando-se lentamente por detrás das árvores altas..., os reflexos prateados que espalhava pela natureza adormecida..., as estrelas brilhantes cintilando no azul profundo..., o sopro suave da brisa da noite fazendo flutuar as níveas nuvens..., tudo elevava as nossas almas para o Céu, o belo Céu, do qual contemplávamos ainda «apenas o límpido reverso». 
Não sei se me engano, mas parece-me que a expansão das nossas almas era semelhante à de Santa Mónica com o seu filho, quando no porto de Ostia ficavam perdidos em êxtase, à vista das maravilhas do Criador!... Parece-me que recebíamos graças de ordem tão elevada como as concedidas aos grandes santos. 
Como diz a Imitação, Deus comunica-se umas vezes no meio de um vivo esplendor, outras «suavemente velado sob sombras e figuras». Era desta maneira que se dignava manifestar-se às nossas almas; mas, como era transparente e ténue o véu que escondia Jesus aos nossos olhares!... A dúvida não era possível; a fé e a esperança já não eram necessárias; o amor fazia-nos encontrar na terra Aquele que procurávamos. «Tendo-o encontrado só, dera-nos o seu beijo, para que no futuro ninguém nos pudesse desprezar».
Graças tão grandes não deviam ficar sem frutos, e estes foram abundantes. A prática da virtude tornou-se-nos agradável e natural. Ao princípio o meu rosto denunciava muitas vezes o combate, mas pouco a pouco essa impressão desapareceu, e a renúncia tornou-se-me fácil, mesmo no primeiro instante. 
Jesus disse: «Ao [48 vº] que tem dar-se-á mais, e ficará na abundância». Por uma graça fielmente recebida, concedia-me uma multidão de novas graças... Dava-se-me Ele próprio na sagrada comunhão mais vezes do que eu teria ousado esperar. Adoptara como regra de conduta comungar todas as vezes que o meu confessor me deixasse, sem falhar nenhuma, mas deixando-o determinar o número sem nunca lhe pedir. Nessa altura não tinha a audácia que agora tenho, senão teria procedido de outra maneira, pois vejo claramente que uma alma deve dizer ao confessor a atracção que sente por receber o seu Deus. Não é para ficar no cibório de ouro que Jesus desce todos os dias do Céu, mas para encontrar outro Céu que Lhe é infinitamente mais caro que o primeiro: o Céu da nossa alma, feita à sua imagem, o templo vivo da adorável Trindade!...
Jesus, que via o meu desejo e a rectidão do meu coração, permitiu que durante o mês de Maio o meu confessor me dissesse para receber a sagrada comunhão quatro vezes  por semana; e passado esse belo mês, ele acrescentou uma quinta vez sempre que houvesse alguma festa. Ao retirar-me do confessionário, corriam dos meus olhos doces lágrimas; parecia-me que era o próprio Jesus que se queria dar a mim, pois eu demorava muito pouco a confessar-me, e nunca dizia uma só palavra dos meus sentimentos interiores. 
O caminho por onde seguia era tão direito, tão luminoso, que não precisava de outro guia a não ser Jesus... Comparava os directores espirituais a espelhos fiéis que reflectiam Jesus nas almas, e pensava que para comigo Deus não se servia de intermediário, mas que agia directamente!...
Quando um agricultor rodeia de cuidados um fruto que quer fazer amadurecer antes da estação, nunca é para o deixar pendurado na árvore, mas para o apresentar numa mesa esplendorosamente servida. Era com uma intenção semelhante [49 rº] que Jesus prodigalizava as suas graças à sua pequena Florzinha... Ele que nos dias da sua vida mortal, num ímpeto de amor, exclamou: «Eu Vos bendigo, ó Pai, porque escondestes  estas coisas aos sábios e aos prudentes e as revelastes aos mais pequeninos», queria fazer brilhar em mim a sua misericórdia. Porque eu era pequena e fraca, Ele abaixava-se para mim e instruía-me em segredo sobre as coisas do seu amor. Ah! se sábios que passaram a sua vida a estudar me tivessem vindo interrogar, sem dúvida teriam ficado admirados ao ver uma criança de catorze anos compreender os segredos da perfeição, segredos que toda a sua ciência lhes não pode descobrir, pois para os possuir é preciso ser pobre de espírito.
Como diz S. João da Cruz: «Sem outra luz nem guia excepto a que no coração ardia. Mas esta me guiava, mais certeira que a luz do meio-dia, aonde me esperava quem bem me conhecia». 
Esse lugar era o Carmelo. Antes de «descansar á sombra d´Aquele que eu desejava», tinha de passar por bastantes provações. Mas a chamada divina era tão insistente, que mesmo que tivesse de atravessar as chamas, tê-lo-ia feito para ser fiel a Jesus... 
Para me encorajar na minha vocação, não encontrei senão uma única alma: foi a da minha querida Madre... O meu coração encontrou no seu um eco fiel; sem a sua ajuda não teria, certamente, chegado à margem bendita que há cinco anos a tinha recebido no seu solo impregnado do orvalho celeste. 
Sim, havia cinco anos que estava afastada de vós, minha querida Madre. Julgava ter-vos perdido; mas no momento da provação foi a vossa mão que me indicou o caminho que devia seguir... Tinha necessidade dessa ajuda, pois as minhas visitas ao Carmelo tinham-se tornado cada vez mais penosas para mim; não podia falar do meu desejo de entrar, sem me sentir repelida. 
A Maria, achando-me muito nova, fazia tudo o que podia para impedir a minha entrada. Vós mesma, minha Madre, para me experimentar, tentáveis às vezes moderar o meu ardor. [49 vº] Enfim, se não tivesse tido verdadeira  vocação, teria desistido logo no princípio, pois encontrei obstáculos logo que comecei a responder ao chamamento de Jesus. 
Não quis comunicar à Celina o meu desejo de entrar tão nova para o Carmelo, o que me fez sofrer ainda mais, pois era-me bem difícil esconder-lhe qualquer coisa... Este sofrimento não durou muito tempo; depressa a minha querida irmãzinha soube da minha determinação e, longe de tentar dissuadir-me, aceitou com coragem admirável o sacrifício que Deus lhe pedia. 
Para compreender quão grande foi esse sacrifício, seria preciso saber até que ponto nós estávamos unidas... Era, por assim dizer, a mesma alma que nos fazia viver; desde há poucos meses, gozávamos juntas da vida mais deliciosa que duas raparigas podiam sonhar; tudo à nossa volta correspondia aos nossos gostos; era-nos dada a maior liberdade; enfim, eu dizia que a nossa vida era o Ideal da felicidade na terra... Mal tínhamos tido tempo para saborear esse ideal da felicidade, já era preciso renunciar livremente a ele.
A minha querida Celina não se revoltou um instante sequer. Não era a ela, no entanto, que Jesus chamava em primeiro lugar, por isso, teria podido queixar-se...; tendo a mesma vocação que eu, tocava-lhe a ela partir!... Mas assim como no tempo dos mártires, os que ficavam na prisão davam alegremente o beijo da paz aos seus irmãos que partiam em primeiro lugar para combaterem na arena e consolavam-se com o pensamento de que eles estavam talvez reservados para combates ainda maiores, assim a Celina deixou a sua Teresa afastar-se e ficou sozinha para o glorioso e sangrento combate para o qual Jesus a destinava como a priviligiada do seu amor!... 
A Celina tornou-se, portanto,a confidente das minhas lutas e dos meus sofrimentos; participou neles tal como se tratasse da sua própria vocação. Não tinha que temer nenhuma oposição da sua parte. Mas não sabia que meio utilizar para o comunicar ao Papá... Como lhe falar em ter que separar-se da sua rainha, a ele que acabava de fazer o sacrifício das suas três filhas mais velhas?... Ah! quantas lutas íntimas não sofri antes [50 rº] de sentir a coragem para lhe falar!...
No entanto, era preciso decidir-me, pois ia fazer catorze anos e meio; apenas seis meses nos separavam ainda da bela noite de Natal em que eu tinha resolvido entrar, à mesma hora em que, no ano anterior, tinha recebido «a minha graça». Para fazer a minha grande confidência escolhi o dia de Pentecostes. Durante todo o dia supliquei aos santos apóstolos que rezassem por mim e que me inspirassem as palavras que eu havia de dizer... Não eram eles, com efeito que deviam ajudar a menina tímida que Deus destinava a tornar-se o apóstolo dos apóstolos, pela oração e pelo sacrifício? 
Foi só de tarde, ao voltar de vésperas, que encontrei ocasião para falar ao meu querido paizinho. Tinha-se ido sentar no bordo da cisterna, e ali, com as mãos juntas, contemplava as maravilhas da natureza. O sol, cujos raios tinham perdido o seu ardor, dourava a copa das árvores altas, nas quais os passarinhos cantavam alegremente a sua oração da tarde. O belo rosto do Papá tinha uma expressão celestial. Senti que a paz lhe inundava o coração.
Sem dizer uma única palavra, fui-me sentar ao lado dele, com os olhos já cheios de lágrimas. Ele olhou-me com ternura, e pegando-me na cabeça, encostou-a contra o seu coração, dizendo-me: - «Que tens, minha rainhazinha?... Conta-me lá...». Depois, levantando-se como para dissimular a sus própria emoção, caminhou lentamente, mantendo a minha cabeça encostada ao seu coração. No meio de lágrimas, confiei-lhe o meu desejo de entrar para o Carmelo. Então as lágrimas dele vieram misturar-se com as minhas; mas não disse uma palavra para me dissuadir da minha vocação, contentando-se simplesmente com fazer-me notar que eu era ainda muito nova para tomar uma decisão tão séria. Mas eu defendi tão bem a minha causa que o Papá, com a sua maneira de ser simples e recta, ficou logo convencido de que o meu desejo era o do próprio Deus. Na sua fé profunda, exclamou que Deus lhe fazia uma grande honra ao pedir-lhe assim as suas filhas. 
Continuámos durante muito tempo o nosso passeio. O meu coração, aliviado pela bondade com que o meu incomparável pai tinha acolhido as suas confidências, [50 vº] transbordava afectuosamente no seu. O Papá parecia gozar daquela alegria tranquila que advém do sacrifício consumado. Falou-me como um santo. Gostaria de me lembrar das suas palavras para as escrever aqui, mas só conservei delas uma recordação demasiado perfumada para o poder traduzir. 
Do que me lembro perfeitamente é da acção simbólica que o meu querido Rei realizou sem o saber. Aproximando-se de um muro pouco elevado, mostrou-me florzinhas brancas parecidas com lírios em miniatura, e, pegando numa dessas flores, deu-ma, explicando-me com que cuidado Deus a tinha feito nascer e a tinha conservado até àquele dia. Ouvindo-o falar, julgava escutar a minha história, tal era a semelhança entre o que Jesus fizera pela florzinha e pela Teresinha...
Recebi essa florzita como uma relíquia. Notei que, ao colhê-la, o Papá tinha arrancado todas as suas raízes sem as partir; parecia destinada a continuar a viver noutra terra mais fértil que o musgo delicado em que tinham decorrido as suas primeiras manhãs... Era exactamente a mesma acção que o Papá acabava de fazer comigo alguns instantes antes, permitindo-me escalar a Montanha do Carmelo e deixar o ameno vale, testemunha dos meus primeiros passos na vida. 
Coloquei a minha florzinha branca no meu livro da Imitação, no capítulo intitulado: «Da necessidade de amar a Jesus sobre todas as coisas». É lá que ainda está; só que a haste se quebrou muito perto da raíz, e Deus parece dizer-me com isso que quebrará dentro em breve os laços da sua Florzinha e não a deixará murchar na terra!
Depois de ter obtido o consentimento do Papá, julgava poder voar sem temor para o Carmelo; mas, bem dolorosas provações haviam ainda de provar a minha vocação. 
Foi a tremer que confiei ao nosso tio a resolução que tinha tomado. Prodigalizou-me todos os sinais de ternura possíveis, mas não me deu autorização para partir;  pelo contrário, proibiu-me de lhe [51 rº] falar da minha vocação antes dos 17 anos de idade. Era contrário à prudência humana, dizia ele, deixar entrar para o Carmelo uma criança de 15 anos. Sendo esta vida de Carmelita, aos olhos do mundo, uma vida de filósofo, seria causar grande prejuízo à religião deixar que a abraçasse uma criança sem experiência... Toda a gente iria comentar isso, etc..., etc... Chegou mesmo a dizer que, para o decidir a deixar-me partir, seria preciso preciso um milagre. Compreendi que todas as razões seriam inúteis; por isso, retirei-me com o coração mergulhado na mais profunda amargura. A minha única consolação era a oração. Suplicava a Jesus que fizesse o milagre pedido, visto que só a esse preço poderia responder ao seu chamamento. 
Passou-se bastante tempo antes de ousar falar novamente ao nosso tio. Custava-me extremamente ir a casa dele. Da sua parte, ele parecia não mais pensar na minha vocação; mas soube mais tarde que a minha grande tristeza o influenciou muito a meu favor. Antes de fazer luzir na minha alma um raio de esperança, Deus quis enviar-me um martírio bem doloroso que demorou três dias. Oh! nunca como durante esta provação compreendi tão bem a dor da Santíssima Virgem e de S. José procurando o divino Menino Jesus...
Estava num triste deserto, ou antes, a minha alma era semelhante ao frágil batel sem piloto, entregue à mercê das ondas tempestuosas... Eu sei, Jesus estava lá a dormir na minha barquinha; mas a noite era tão negra, que me era impossível vê-lo. Nada me iluminava; nem sequer um relâmpago vinha rasgar as nuvens sombrias... Sem dúvida que o clarão dos relâmpagos é bem triste; mas se a tempestade tivesse chegado a rebentar abertamente, teria podido vislumbrar Jesus ao menos por um instante...
Era a noite, a noite profunda da alma... Como Jesus no jardim da agonia, sentia-me só, não encontrando consolação nem na terra nem no Céu. Deus parecia ter-me abandonado!!!...
A natureza parecia tomar parte na minha amarga tristeza. Durante esses três dias o sol não fez aparecer um único dos [51 vº] seus raios, e a chuva caiu torrencialmente. (Notei que em todas as circunstâncias graves da minha vida, a natureza era a imagem da minha alma. Nos dias de lágrimas, o Céu chorava comigo; nos dias de alegria, o sol enviava com profusão os seus alegres raios, e o azul não ficava obscurecido com nenhuma nuvem...). 
Finalmente, no quarto dia, que era um sábado, dia consagrado à doce Rainha do Céu, fui visitar o nosso tio. Qual não foi a minha surpresa, ao vê-lo olhar para mim e mandar-me entrar para o seu gabinete sem que lhe tivesse  manifestado tal desejo!... Começou por me repreender delicadamente por parecer ter medo dele, e depois disse-me que não era necessário pedir um milagre, que tinha apenas pedido a Deus que lhe desse «uma simples inclinação do coração», e que fora atendido... Ah! não tive a tentação de implorar um milagre, pois para mim o milagre estava concedido: o nosso tio já não era o mesmo!
Sem fazer nenhuma alusão à «prudência humana», disse-me que eu era uma Florzinha que Deus queria colher, e que não se oporia mais a isso!... Esta resposta definitiva era bem digna dele. Pela terceira vez este cristão de outra época permitia que uma das filhas adoptivas do seu coração se fosse sepultar longe do mundo. A nossa tia foi também admirável em ternura e prudência. Não me lembro que, durante a minha provação, me tenha dito uma única palavra que pudesse aumentá-la; via que ela tinha uma grande compaixão pela sua pobre Teresinha; por isso, quando obtive o consentimento do nosso querido tio, deu-me também o seu, mas não sem me provar de mil maneiras que a minha partida lhe causaria desgosto...
Ah! os nossos queridos parentes estavam bem longe de imaginar [52 rº] então que haviam de renovar ainda mais duas vezes o mesmo sacrifício... Mas, ao estender a mão sempre para pedir, Deus não a apresentou vazia: os seus amigos mais queridos puderam obter dela abundantemente a força e a coragem  que tão necessárias lhes eram. 
Mas o meu coração leva-me para bem longe do meu assunto. É quase com pena que volto a ele. 
Depois da resposta do nosso tio, podeis compreender, minha Madre, [51 vº continuação] com que alegria retomei o caminho dos Buissonnets, sob «o lindo céu, cujas nuvens se tinham dissipado completamente»!... Na minha alma também a noite cessara. Jesus, ao acordar, tinha-me restituído a alegria; o fragor das vagas acalmara-se; em vez do vento da provação, uma brisa ligeira enfunava a minha vela, e eu pensava chegar dentro em pouco à margem bendita que avistava pertinho de mim. Ele estava realmente muito perto da minha barquinha; mas mais que uma tempestade havia ainda de surgir, e, roubando-lhe a vista do farol luminoso, fazer-lhe temer ter-se afastado para sempre da margem tão ardentemente desejada...
Poucos dias depois de ter obtido o consentimento do nosso tio, fui visitar-vos, minha querida Madre, e contei-vos a minha alegria por terem passado todas as minhas provações. Mas, qual não foi a minha surpresa e o meu desgosto, ao ouvir-vos dizer que o Senhor [52 rº] P. Superior não consentia na minha entrada antes dos 21 anos de idade... Ninguém tinha pensado nessa oposição, a mais invencível de todas. 
Apesar disso, sem perder a coragem, fui eu própria, com o Papá e a Celina, a casa do nosso Padre, para tentar movê-lo, mostrando-lhe que tinha verdadeira vocação para o Carmelo. Recebeu-nos muito friamente. O meu incomparável paizinho em vão juntou às minhas as suas solicitações. Nada conseguiu mudar a sua oposição. Disse-me que não havia perigo em esperar, que podia levar em casa uma vida de Carmelita; que se não tomasse a disciplina nem tudo estava perdido..., etc..., etc... Por último, acrescentou que não era senão o delegado do senhor Bispo, que se este me quisesse autorizar a entrar para o Carmelo, nada mais teria a dizer...
Saí da residência paroquial banhada em lágrimas. Felizmente ia escondida pelo guarda-chuva, pois a chuva caía torrencialmente. 
O Papá não sabia como me consolar... Prometeu levar-me a Bayeux, logo que lhe manifestei  tal desejo, porque eu estava resolvida a conseguir os meus fins. Cheguei mesmo a dizer que recorria ao Santo Padre, se o senhor Bispo não me quisesse permitir entrar para o Carmelo aos 15 anos...
Muitas coisas aconteceram antes da minha viagem a Bayeux. Exteriormente a minha vida parecia a mesma. 
Estudava e recebia da Celina lições de desenho, e a minha hábil mestra encontrava em mim grandes disposições para a sua arte.
Crescia sobretudo no amor de Deus. Sentia no meu coração ímpetos até então desconhecidos; às vezes tinha verdadeiros transportes de amor. Uma noite, não sabendo como dizer a Jesus que O amava e quanto desejava que Ele fosse amado e glorificado em toda a parte, pensei com dor que Ele nunca poderia receber do Inferno um único acto de amor. Então disse a Deus que, para Lhe agradar eu consentiria em ver-me lá mergulhada, para que Ele fosse amado eternamente nesse lugar de blasfémia... Sabia que isso não O poderia glorificar, porque Ele não deseja senão a nossa felicidade; mas, quando se [52 vº] ama, sente-se necessidade de dizer mil loucuras. Se falava desta maneira, não era porque o Céu não excitasse o meu desejo, mas porque então o meu Céu não era senão o Amor, e estava convencida, como S. Paulo, de que nada poderia separar-me do objecto divino que me tinha seduzido!... 
Antes de deixar o mundo, Deus deu-me a consolação de contemplar de perto almas de crianças. Sendo a mais pequena da família, nunca tivera essa felicidade. Eis as tristes circunstâncias que ma ocasionaram: Uma pobre mulher, parente da nossa criada, morreu na flor da idade, deixando três crianças pequeninas. Durante a doença dela, recebemos em casa as duas meninas, das quais a mais velha não tinha ainda seis anos. Ocupava-me delas durante todo o dia, e era para mim um grande prazer ver com que candura acreditavam em tudo quanto lhes dizia. 
O santo baptismo deve depositar nas almas um germe bem profundo das virtudes teologais, pois se revelam logo na infância, e basta a esperança dos bens futuros para fazer aceitar sacrifícios. Quando queria ver as minhas duas meninas bem dispostas uma com a outra, em vez de prometer brinquedos e rebuçados à que cedesse à irmã, falava-lhes das recompensas eternas que o Menino Jesus daria no Céu às criancinhas bem comportadas. 
A mais velha, cuja razão começava a desenvolver-se, fitava-me com os olhos a brilhar de alegria. Fazia-me mil perguntas encantadoras sobre o Menino Jesus e o seu belo Céu, e prometia-me com entusiasmo ceder sempre à irmã. Dizia que nunca na sua vida esqueceria o que lhe tinha ensinado «a menina grande», pois era assim que me chamava...
Vendo de perto estas almas inocentes, compreendi que grande infelicidade era não as formar bem desde o seu despertar, quando se parecem com a cera mole sobre a qual se pode imprimir o cunho das virtudes mas também o do mal... Compreendi o que Jesus disse no Evangelho: «Era preferível ser lançado ao mar que escandalizar uma só destas criancinhas». [53 rº] Ah! quantas almas chegariam à santidade, se fossem bem orientadas!...
Bem sei que Deus não precisa de ninguém para realizar a sua obra. Mas assim como deixa que um agricultor hábil cultive plantas raras e delicadas, dando-lhe para isso o saber necessário, e reservando para si próprio o cuidado de as fecundar, assim Jesus quer ser ajudado no seu divino cultivo das almas.
Que aconteceria se um agricultor pouco habilidoso não enxertasse bem as suas árvores, se não soubesse reconhecer a natureza de cada uma e quisesse fazer desabrochar rosas num pessegueiro? Fazia morrer a árvore que, no entanto, era boa e capaz de produzir frutos. 
Do mesmo modo, é preciso saber reconhecer o que Deus pede às almas desde a infância, a secundar a acção da sua graça, sem nunca a antecipar nem a retardar.
Como os passarinhos aprendem a cantar ouvindo os pais, assim as crianças aprendem a ciência das virtudes, o canto sublime do Amor divino, junto das almas encarregadas de as formar para a vida. 
Lembro-me de que entre os meus pássaros tinha um canário que cantava maravilhosamente; tinha também um pequeno pintarroxo, ao qual prodigalizava os meus cuidados «maternais», por tê-lo adoptado antes de ele ter podido gozar da felicidade da liberdade. Esse pobre pequeno prisioneiro não tinha pais que o ensinassem a cantar; mas ouvindo de manhã à noite o canário, seu companheiro, entoar alegres trinados, quis imitá-lo... Esta empresa era difícil para um pintarroxo, e por isso a sua débil voz teve muita dificuldade em se harmonizar com a voz vibrante do seu professor de música. Era encantador ver os esforços do pobre pequeno; mas foram por fim coroados de êxito, pois o cantar dele, embora muito fraco, tornou-se absolutamente idêntico ao do canário.
[53 vº] Ó minha querida Madre! fostes vós quem me ensinou a cantar! Foi a vossa voz que me encantou desde a infância; e agora tenho a consolação de ouvir dizer que me pareço convosco!!! Sei quanto ainda estou longe disso, mas espero, apesar da minha debilidade, repetir eternamente o mesmo cântico que vós!...
Antes da minha entrada para o Carmelo, tive ainda muitas experiências da vida e das misérias do mundo. Mas estes pormenores levar-me-iam demasiado longe. Vou retomar o relato da minha vocação. 
O dia 31 de Outubro foi o dia marcado para a minha viagem a Bayeux, Fui sozinha com o Papá, com o coração cheio de esperança, mas também muito comovida ao pensar em me apresentar no Paço episcopal. Pela primeira vez na minha vida, tinha de ir fazer uma visita sem ser acompanhada pelas minhas irmãs, e essa visita era a um Bispo! Eu, que nunca precisava de falar senão para responder às perguntas que me faziam, tinha de explicar eu mesma a finalidade  da minha visita e explanar as razões que me levavam a solicitar a minha entrada para o Carmelo. Numa palavra, tinha de mostrar a solidez da minha vocação. 
Ah! quanto me custou fazer esta viagem! Foi preciso que Deus me concedesse uma graça muito especial para eu poder ultrapassar a minha grande timidez... É bem verdade que «o Amor nunca encontra impossíveis, porque tudo crê possível e permitido». 
Verdadeiramente, só o amor de Jesus me podia fazer ultrapassar estas dificuldades e as que se seguiram, pois aprouve-lhe fazer-me comprar a minha vocação com provações bem grandes...
Hoje, que gozo da solidão do Carmelo (repousando à sombra d´Aquele que tão ardentemente desejei), acho que comprei a minha felicidade por baixo preço, e estaria disposta a suportar muito maiores penas para a adquirir, se não a tivesse ainda!
Chovia a cântaros quando chegamos a Bayeux. O Papá que não queria ver a sua rainhazinha entrar no Paço episcopal com o lindo vestido todo ensopado, fê-la subir para um ónibus e conduzir  à catedral. Ali começaram os meus infortúnios. O senhor Bispo e todo o clero assistiam a um solene funeral. A igreja estava repleta de senhoras de luto, e toda a gente olhava para mim com o meu [54 rº] vestido claro e o meu chapéu branco. Quereria sair da igreja, mas, nem pensar nisso, por causa da chuva. E para me humilhar ainda mais, Deus permitiu que o Papá, com a sua simplicidade patriarcal, me fizesse avançar até ao cimo da catedral. Não o querendo desgostar, fi-lo de boa vontade, e proporcionei esta distracção aos bons habitantes de Bayeux, que desejaria nunca ter conhecido... Enfim, pude respirar à vontade numa capela que ficava por detrás por altar-mor, e fiquei lá muito tempo, rezando com fervor, à espera de que a chuva passasse e nos deixasse sair. Ao descer o Papá fez-me admirar a beleza do edifício, que parecia muito maior estando deserto. Mas, um único pensamento me dominava. Não podia sentir gosto com coisa nenhuma. 
Fomos directamente à secretaria do Sr. P.  Révérony, que estava avisado da nossa chegada, tendo ele próprio fixado o dia da viagem; mas estava ausente. Tivemos, portanto de vaguear pelas ruas de Bayeux, que me pareceram muito tristes. 
Finalmente voltámos para junto do Paço episcopal, e o Papá fez-me entrar num belo hotel, onde não fiz as honras ao bom cozinheiro. O pobre paizinho era de uma ternura quase incrível para comigo. Dizia-me que não me preocupasse; que com certeza o senhor Bispo atenderia o meu pedido. Depois de termos descansado, voltámos à secretaria do Sr. P. Révérony. Chegou ao mesmo tempo um cavalheiro, mas o Vigário Geral pediu-lhe educadamente que esperasse, e fez-nos entrar em primeiro lugar no seu gabinete. (O pobre cavalheiro teve tempo para se aborrecer, pois a visita foi longa). O Sr. P. Révérony mostrou-se muito amável, mas penso que o motivo da nossa viagem o surpreendeu muito. Depois de ter olhado para mim a sorrir, e de me ter dirigido algumas perguntas, disse-nos: - «Vou apresentá-los ao Senhor Bispo. Tenham a bondade de me acompanhar». 
Vendo lágrimas a brilharem nos meus olhos, acrescentou: - «Ah! estou a ver diamantes!... Não é preciso mostrá-los ao Senhor Bispo!...». Fez-nos atravessar várias salas enormes, ornadas [54 vº]  com retratos de bispos. Ao ver-me nesses enormes salões, parecia-me ser uma pobre formiguita, e perguntava a mim própria o que ousaria dizer ao Senhor Bispo. 
Ele andava a passear entre dois sacerdotes, numa galeria. Vi o Sr. P. Révérony dizer-lhe algumas palavras e voltar com ele. Nós esperávamo-lo no seu gabinete, onde havia três grandes poltronas diante da lareira onde crepitava um fogo vivo. Ao ver entrar Sua Excelência, o Papá ajoelhou-se ao pé de mim para recebermos a bênção. Depois o Sr. Bispo mandou ao Papá sentar-se numa das poltronas; sentou-se em frente dele, e o Sr. P. Révérony quis que eu me instalasse na do meio; recusei delicadamente, mas ele insistiu, dizendo-me que mostrasse se eu era capaz de obedecer. Logo me sentei, sem dizer mais nada, e fiquei confundida, ao vê-lo servir-se de uma cadeira, estando eu enterrada numa poltrona onde quatro como eu caberiam à vontade (mais à vontade do que eu, pois estava longe de o estar!...). 
Esperava que o Papá falasse, mas disse-me que explicasse eu mesma ao Senhor Bispo a finalidade da nossa visita. Fi-lo o mais eloquentemente que pude. Sua Excelência, habituado à eloquência, não pareceu muito impressionado com as minhas razões. Em vez delas, uma palavra do Sr. P. Superior ter-me-ia sido mais útil. Infelizmente, não a tinha, e a oposição dele não advoga de modo algum a meu favor...
O Senhor Bispo perguntou-me se havia muito tempo que eu desejava entrar para o Camelo. -« Oh! sim, Excelência, há muito tempo!...» -«Vejamos, replicou a rir o Sr. P. Révérony, pelo menos não pode dizer que há 15 anos que tem esse desejo!» - «É verdade, retorqui sorrindo também, mas não há muitos anos a subtrair, pois desejei ser religiosa desde o despertar da razão, e desejei o Carmelo logo que o conheci bem, porque achava que nesta Ordem seriam satisfeitas todas as aspirações da minha alma». [55 rº] Não sei, minha Madre, se foram estas exactamente as minhas palavras. 
[54 vº, continuação] Creio que me exprimi ainda pior; mas, enfim, é este o sentido. 
O Senhor Bispo, julgando ser agradável ao Papá, tentou convencer-me a permanecer mais alguns anos ao pé dele; por isso, não ficou pouco surpreendido e edificado ao vê-lo tomar o meu partido, intercedendo para que eu obtivesse a permissão de voar aos 15 anos. No entanto, tudo foi inútil. Disse que antes de se decidir era indespensável uma conversa com com o Superior do Carmelo. Não podia ouvir nada que me causasse tanto desgosto, pois conhecia a oposição formal do nosso Padre, e por isso, sem fazer caso da recomendação  do Sr. P. Révérony, fiz mais do que mostrar diamantes ao Senhor Bispo: dei-lhos!... Vi bem que estava impressionado. Cingindo-me pelo pescoço, apoiava a minha cabeça no seu ombro e fazia-me carícias como creio que nunca ninguém [55 rº] recebera dele. Disse-me que não estava tudo perdido, que estava muito contente por eu ir a Roma para fortalecer  a minha vocação, e que em vez de chorar me devia alegrar. Acrescentou que, tendo de ir a Lisieux na semana seguinte, falaria de mim ao pároco de Saint Jacques, e que certamente receberia a resposta em Itália. Compreendi que seria inútil fazer novas instâncias. Aliás não tinha mais nada a dizer, pois tinha esgotado todos os recursos da minha eloquência. 
O Senhor Bispo acompanhou-nos até ao jardim. O Papá divertiu-o muito ao dizer-lhe que, para parecer mais velha, eu mandara puxar o cabelo para cima. (Este pormenor não o esqueceu o Senhor Bispo, porque não fala da «sua filhinha» sem contar a história do cabelo...). 
O Sr. P. Révérony quis acompanhar-nos até à saída do jardim do Paço episcopal. Disse ao Papá que nunca se tinha visto coisa semelhante: - «Um pai tão ansioso por dar a filha a Deus como esta filha por se oferecer a si mesma»!
O Papá pediu-lhe várias explicações sobre a peregrinação; entre outras coisas, perguntou-lhe como seria preciso vestir-se para comparecer diante do Santo Padre. Estou ainda a vê-lo voltar-se diante do Sr. P. Révérony e perguntar: - «Estou bem assim?...». Dissera também ao Senhor Bispo que, se ele não me permitisse entrar para o Carmelo, eu pediria essa graça ao Soberano Pontífice. 
Era muito simples nas suas palavras e nas suas maneiras o meu querido Rei; mas era tão bonito..., e tinha uma distinção absolutamente natural, que deve ter agradado muito ao Senhor Bispo, habituado a ver-se rodeado de personagens  que conhecem  todas as regras de etiqueta dos salões, mas não o Rei de França e de Navarra em pessoa, com a sua rainhazinha...
Quando cheguei à rua, as lágrimas começaram de novo a correr, mas não tanto por causa do meu desgosto, mas por ver que o meu paizinho acabava de fazer uma viagem inútil... Ele que imaginava a festa de enviar um telegrama para o Carmelo, a anunciar a feliz resposta do Senhor Bispo, era obrigado a [55 vº] regressar sem trazer nenhuma...
Ah! que desgosto eu tinha!... Parecia-me que o meu futuro estava destroçado para sempre. Quanto mais me aproximava do termo, mais via complicarem-se as minhas pretensões. A minha alma estava mergulhada na amargura, mas também na paz, porque não procurava senão a vontade de Deus. 
Logo que cheguei a Liseux, fui procurar consolação ao Carmelo, e encontrei-me junto de vós, minha querida Madre. Oh, não! nunca esquecerei tudo o que sofrestes por minha causa. Se não temesse profaná-las servindo-me delas, poderia dizer as palavras que Jesus dirigiu aos seus apóstolos na noite da sua Paixão: «Fostes vós que estivestes sempre comigo em todas as minhas tribulações»... Também as minhas queridíssimas irmãs me ofereceram dulcíssimas consolações...
 
 
Se o Céu me comulava de graças, não era por eu as merecer. Era ainda muito imperfeita. Tinha, isso sim, um grande desejo de praticar [44 vº] a virtude, mas fazia-o duma maneira esquisita. Eis um exemplo: Sendo a mais nova, não estava habituada a bastar-me a mim mesma. A Celina arrumava o quarto onde dormíamos juntas, e eu não fazia nenhum trabalho doméstico. Depois da Maria entrar para o Carmelo, algumas vezes, para agradar a Deus, tentava fazer a cama, ou, na ausência da Celina, guardar, à noite, os seus vasos de flores. Como disse, era só por Deus que fazia estas coisas; portanto, não deveria estar à espera do obrigado das criaturas. Ai de mim! sucedia exactamente o contrário! Se a Celina, por infelicidade, não se mostrava contente e surpreendida com os meus pequenos serviços, eu não ficava satisfeita, e mostrava-lho com as minhas lágrimas...
Eu era verdadeiramente insuportável, pela minha excessiva sensibilidade. Assim, se me acontecia causar involuntariamente algum pequeno desgosto a alguém de quem gostava, em vez de levantar a cabeça e de não chorar, chorava como uma Madalena, o que aumentava a minha falta, em vez de a diminuir; e quando começava a consolar-me pelo facto em si mesmo, chorava por ter chorado... Todos os argumentos eram inúteis, e não conseguia corrigir-me desse reles defeito. 
Não sei como acalentava o doce pensamento de entrar para o Carmelo, estando ainda nas fraldas da infância!... Foi preciso Deus fazer um pequeno milagre para me fazer crescer num instante, e esse milagre fê-lo no dia inesquecível de Natal.  Nessa noite luminosa que esclarece as delícias da Santíssima Trindade, Jesus, o doce pequeno Menino de uma hora, mudou a noite da minha alma em torrentes de luz...
Nessa noite em que Ele se fez fraco e sofredor por meu amor, tornou-me forte e corajosa; revestiu-me com as suas armas; e desde essa noite bendita, não fui vencida em nenhum combate; antes, pelo contrário, caminhei de vitória em vitória e comecei, por assim dizer, «uma corrida de gigante!...».
[45 rº] A fonte das minhas lágrimas estancou, e desde então não se abriu senão raras vezes e com dificuldade, o que justificou esta frase que me tinha sido dita: - «Tu choras tanto na tua infância, que mais tarde já não terás lágrimas para derramar!...».
Foi no dia 25  de Dezembro de 1886 que recebi a graça da minha completa conversão. 
Regressávamos da missa da meia-noite, em que eu tivera a felicidade de receber o Deus forte e poderoso. Ao chegar aos Buissonnets, regozijava-me por ir buscar os meus sapatos à chaminé. Aquele antigo costume causara-nos tanta alegria na nossa infância, que a Celina queria continuar a tratar-me como um bebé, já que eu era a mais nova da familia... O Papá gostava de ver a minha felicidade, de ouvir os meus gritos de alegria, ao tirar cada surpresa dos sapatos encantados, e a satisfação do meu Rei aumentava muito a minha felicidade. 
Mas Jesus, querendo mostrar-me que me devia desfazer dos defeitos da infância, tirou-me também as alegrias inocentes. Permitiu que o Papá, fatigado da missa da meia-noite, ficasse aborrecido ao ver os meus sapatos na chaminé e dissesse estas palavras que me cortaram o coração: - «Enfim, ainda bem que é o último ano!...». Nesse momento eu subia as escadas para ir tirar o chapéu. A Celina, conhecendo a minha sensibilidade e vendo as lágrimas a brilharem-me nos olhos, teve também vontade de chorar, pois amava-me muito e compreendia o meu desgosto: - «Ó Teresa!, disse-me ela, não desças já; sofrerias imenso se fosses agora ver os teus sapatos». Mas a Teresa já não era a mesma; Jesus tinha-lhe mudado o coração!
Retendo as lágrimas, desci rapidamente as escadas e, reprimindo as palpitações do coração, peguei nos sapatos e, colocando-os diante do Papá, tirei alegremente todos os objectos, mostrando-me feliz como uma rainha. O Papá, tinha recuperado também o bom humor, ria-se: A Celina julgava estar a sonhar!... Felizmente era uma doce realidade: a Teresinha tinha encontrado a força da alma, que perdera aos quatro anos e meio, e havia de conservá-la para sempre!... [45 vº]  Nessa noite de luz começou o terceiro período da minha vida, o mais belo de todos, o mais repleto das graças do Céu... A obra que eu não tinha podido fazer em dez anos, Jesus consumou-a num instante, contentando-se com a minha boa vontade, que nunca me faltou. Como os apóstolos, eu podia dizer-lhe: - «Senhor, pesquei toda a noite, sem nada apanhar». 
Mais misericordioso ainda para comigo do que para com os seus discípulos, Jesus pegou Ele mesmo na rede, lançou-a e retirou-a cheia de peixes... Fez de mim um pescador de almas. Senti um grande desejo de trabalhar pela conversão dos pecadores, desejo que não tinha sentido tão vivamente... Senti, numa palavra, entrar a caridade no meu coração, senti a necessidade de me esquecer de mim para dar alegria. E desde então fui feliz!...
Um Domingo, contemplando uma estampa de Nosso Senhor na Cruz, fiquei impressionada com o sangue que caía de uma das suas mãos divinas. Senti uma enorme pena, ao pensar que esse sangue caía na terra, sem que ninguém se apressasse a recolhê-lo, e resolvi manter-me em espírito ao pé da cruz para receber o Divino orvalho que dela escorria, compreendendo que seria necessário espalhá-lo sobre as almas...
O grito de Jesus na cruz: -«Tenho sede!» ressoava também continuamente no meu coração. Estas palavras acendiam em mim um ardor desconhecido e muito vivo... Queria dar de beber ao meu Bem-Amado, e sentia-me eu mesma devorada pela sede de almas... Não eram ainda as almas dos sacerdotes que me atraíam, mas as dos grandes pecadores; ardia no desejo de as arrancar às chamas eternas... A fim de estimular o meu zelo, Deus mostrou-me que os meus desejos Lhe agradavam. 
Ouvi falar de um grande criminoso que acabava de ser condenado à morte, por crimes horríveis. Tudo leva a crer que morreria impenitente. Quis a todo o custo impedi-lo de cair no Inferno e, para o conseguir, empreguei todos meis imagináveis. Sabendo que por mim mesma nada podia, ofereci [46 rº] a Deus todos os méritos infinitos de Nosso Senhor, os tesouros da Santa Igreja. Além disso, pedi à Celina que mandasse celebrar uma missa pelas minhas intenções, não ousando encomendá-la eu mesma, com receio de ser obrigada a confessar que era por Pranzini, o grande criminoso. Nem sequer queria dizer à Celina; mas ela fez-me perguntas com tanta delicadeza e insistência, que lhe confiei o meu segredo. Muito longe de fazer troça de mim, pediu-me para a deixar ajudar-me a converter o meu pecador. Aceitei com reconhecimento, pois quereria que todas as criaturas se unissem a mim para implorar a graça para o culpado. 
Sentia no fundo do coração, a certeza de que os nossos desejos seriam satisfeitos. Disse a Deus que estava bem certa de que Ele perdoaria ao pobre infeliz Pranzini, e que o acreditaria mesmo que ele não se confessasse e não mostrasse nenhum sinal de arrependimento - tanta confiança eu tinha na misericórdia infinita de Jesus! -, mas que Lhe pedia apenas «um sinal» de arrependimento, a fim de obter coragem para continuar a rezar pelos pecadores, e para minha consolação... A minha oração foi atendida à letra!
Apesar do Papá nos ter proibido de ler os jornais, não julgava desobedecer ao ler as passagens que falavam de Pranzini. No dia seguinte à sua execução, encontro à mão o jornal "La Croix". Abro-o à pressa, e, que vejo?... Ah! as lágrimas traíram-me a emoção, e fui obrigada a esconder-me... Pranzini não se tinha confessado. Subira ao cadafalso, e preparava-se para meter a cabeça no macabro buraco, quando de repente, levado por uma súbita inspiração, volta-se, agarra o Crucifixo que o sacerdote lhe apresentava, e beija por três vezes as suas sagradas chagas!... Depois a sua alma foi receber a sentença misericordiosa d´Aquele que declara que no Céu haverá mais alegria por um só pecador que faz penitência do que por noventa e nove justos que não têm necessidade de penitência!...
Obtivera «o sinal» pedido; e esse sinal era a reprodução fiel da [46 vº] graça que Jesus me concedera para me afeiçoar a rezar pelos pecadores. Acaso não foi perante as chagas [de] Jesus, ao ver correr o seu sangue divino, que a sede das almas penetrou no meu coração? Queria dar-lhes a beber esse sangue imaculado que as purificaria das suas manchas; e eis que os lábios do «meu primeiro filho» foram colar-se sobre as sagradas chagas!!... Que resposta inefavelmente doce!
Ah! a partir dessa graça única, o meu desejo de salvar as almas cresceu de dia para dia; parecia-me ouvir Jesus dizer-me como à Samaritana: - «Dá-me de beber!». Era uma verdadeira permuta de amor: às almas eu dava o sangue de Jesus; a Jesus oferecia essas mesmas almas, refrescadas pelo seu orvalho Divino; parecia-me assim dessedentá-lo, e quanto mais Lhe dava de beber, mais aumentava a sede da minha pobre alminha; e era esta sede ardente que Ele me dava como a mais deliciosa bebida do seu amor...
Em pouco tempo, Deus tirou-me do círculo estreito em que eu girava, sem saber como de lá sair. Ao ver o caminho que Ele me fez percorrer, a minha gratidão é grande, mas, devo reconhecê-lo, se o maior passo estava dado, tinha ainda de deixar muitas coisas. Liberto dos seus escrúpulos, da sua sensibilidade excessiva, o meu espírito desenvolveu-se.
Sempre amara o majestoso, o belo; mas nesta altura apoderou-se de mim um desejo imenso de saber. Não me contentando com as lições e com os deveres que me dava a minha mestra, aplicava-me sozinha a estudos especiais de História e de Ciência. Os outros estudos deixavam-me indiferente; mas estas duas disciplinas atraíam toda a minha atenção. Assim, em poucos meses adquiri mais conhecimentos que durante os meus anos de estudo.
Ah! isso não passava de vaidade e aflição de espírito! Vinha-me muitas vezes ao pensamento o capítulo da Imitação de Cristo em que se fala das ciências; não obstante, arranjava maneira de continuar, dizendo a mim mesma que estava em idade de estudar, que não havia [47 rº] mal em o fazer. Não creio ter ofendido a Deus (apesar de reconhecer ter gasto assim inutilmente o tempo), pois não ocupava nisso senão um certo número de horas, que não queria exceder, a fim de mortificar o meu desejo, demasiado vivo, de saber. 
Estava na idade mais perigosa para as raparigas. Mas Deus fez por mim o que o profeta Ezequiel refere nas suas profecias: «Passando a meu lado, Jesus viu que tinha chegado para mim o tempo de ser amada; Ele fez aliança comigo, e tornei-me sua...; estendeu sobre mim o seu manto, lavou-me em perfumes preciosos, revestiu-me com vestes bordadas, dando-me colares e adornos sem preço...; alimentou-me com a mais pura farinha, com mel e azeite em abundância... Com isto, tornei-me bela a seus olhos, e fez de mim uma poderosa rainha!...». Sim, Jesus fez tudo isso por mim. Eu poderia retomar cada palavra que acabo de escrever e provar que ela se realizou em mim; mas as graças que contei mais acima são disso uma prova suficiente. Vou falar apenas do alimento que me prodigalizou «em abundância». Desde há muito tempo que eu me alimentava com «a pura farinha» contida na Imitação de Cristo. Foi o único livro que me fez bem, pois não tinha ainda encontrado os tesouros escondidos no Evangelho. 
Sabia de cor quase todos os capítulos da minha querida Imitação; esse livrinho acompanhava-me sempre. No Verão trazia-o no meu bolso, e no Inverno no manguito; assim, converteu-se num costume. Em casa da minha tia divertiam-se muito abrindo-o ao acaso, e fazendo-me recitar o capítulo que calhasse. 
Aos 14 anos, com o meu desejo de ciência, Deus achou que era necessário juntar «à pura farinha, mel e azeite em abundância».
Esse mel e azeite fez-mos encontrar nas conferências do senhor Padre Arminjon sobre: «O fim do mundo presente e os mistérios da vida futura». Esse livro fora emprestado ao Papá pelas minhas queridas Carmelitas; por isso, contrariamente ao meu [47 vº] costume (pois não lia os livros do Papá), pedi para o ler. 
Essa leitura foi também uma das maiores graças da minha vida. Li-o à janela do meu quarto de estudo, e a impressão que me causou é demasiado íntima e doce para a poder transmitir...
Todas as grandes verdades da religião, os mistérios da eternidade, mergulhavam a minha alma numa felicidade que, não era da terra... Pressentia já (não com os olhos da carne, mas com os do coração) o que Deus reserva aos que o amam. E vendo que as recompensas eternas não tinham nenhuma proporção com os suaves sacrifícios da vida, queria amar, amar a Jesus com paixão, dar-lhe mil provas de amor enquanto ainda pudesse... Copiei várias páginas sobre o perfeito amor e sobre a recepção que Deus há-de fazer aos seus eleitos no momento em que Ele próprio se tornará a sua grande e eterna recompensa, e repetia sem cessar as palavras de amor que tinham abrasado o meu coração...
A Celina tornara-se a confidente íntima dos meus pensamentos. Desde o Natal já nos podíamos compreender; a distância da idade já não existia, porque eu tinha crescido em estatura e, sobretudo em graça... Antes dessa altura queixava-me muitas vezes por nada saber dos segredos da Celina. Ela dizia-me que eu era muito pequena, que era preciso eu crescer «a altura de um banquinho» para ela ter confiança em mim... Gostava de subir para cima desse precioso banquinho quando estava ao lado dela, e dizia-lhe que me falasse intimamente. Mas a minha astúcia não surtia efeito; uma distância nos separava ainda!...
Jesus, que nos queria fazer avançar juntas, criou nos nossos corações laços mais fortes que os do sangue. Fez com que nos tornássemos irmãs de alma. Realizaram-se em nós estas palavras do Cântico Espiritual de S. João da Cruz. Falando ao Esposo, a Esposa diz: «Apressam-se as donzelas, sobre as tuas pegadas no caminho; ao toque das [48 rº] centelhas, e ao temperado vinho, dão-te aromas de bálsamo divino».
Sim, era mesmo apressadamente que seguíamos as pegadas de Jesus. As centelhas de amor que Ele semeava às mãos cheias nas nossas almas, o vinho delicioso e forte que nos dava a beber, faziam desaparecer aos nosso olhos as coisas passageiras, e dos nosso lábios brotavam aspirações de amor inspiradas por Ele. 
Como eram deliciosas as conversas que tínhamos todas as noites no belveder! Com o olhar fixo no horizonte, contemplávamos a branca lua elevando-se lentamente por detrás das árvores altas..., os reflexos prateados que espalhava pela natureza adormecida..., as estrelas brilhantes cintilando no azul profundo..., o sopro suave da brisa da noite fazendo flutuar as níveas nuvens..., tudo elevava as nossas almas para o Céu, o belo Céu, do qual contemplávamos ainda «apenas o límpido reverso». 
Não sei se me engano, mas parece-me que a expansão das nossas almas era semelhante à de Santa Mónica com o seu filho, quando no porto de Ostia ficavam perdidos em êxtase, à vista das maravilhas do Criador!... Parece-me que recebíamos graças de ordem tão elevada como as concedidas aos grandes santos. 
Como diz a Imitação, Deus comunica-se umas vezes no meio de um vivo esplendor, outras «suavemente velado sob sombras e figuras». Era desta maneira que se dignava manifestar-se às nossas almas; mas, como era transparente e ténue o véu que escondia Jesus aos nossos olhares!... A dúvida não era possível; a fé e a esperança já não eram necessárias; o amor fazia-nos encontrar na terra Aquele que procurávamos. «Tendo-o encontrado só, dera-nos o seu beijo, para que no futuro ninguém nos pudesse desprezar».
Graças tão grandes não deviam ficar sem frutos, e estes foram abundantes. A prática da virtude tornou-se-nos agradável e natural. Ao princípio o meu rosto denunciava muitas vezes o combate, mas pouco a pouco essa impressão desapareceu, e a renúncia tornou-se-me fácil, mesmo no primeiro instante. 
Jesus disse: «Ao [48 vº] que tem dar-se-á mais, e ficará na abundância». Por uma graça fielmente recebida, concedia-me uma multidão de novas graças... Dava-se-me Ele próprio na sagrada comunhão mais vezes do que eu teria ousado esperar. Adoptara como regra de conduta comungar todas as vezes que o meu confessor me deixasse, sem falhar nenhuma, mas deixando-o determinar o número sem nunca lhe pedir. Nessa altura não tinha a audácia que agora tenho, senão teria procedido de outra maneira, pois vejo claramente que uma alma deve dizer ao confessor a atracção que sente por receber o seu Deus. Não é para ficar no cibório de ouro que Jesus desce todos os dias do Céu, mas para encontrar outro Céu que Lhe é infinitamente mais caro que o primeiro: o Céu da nossa alma, feita à sua imagem, o templo vivo da adorável Trindade!...
Jesus, que via o meu desejo e a rectidão do meu coração, permitiu que durante o mês de Maio o meu confessor me dissesse para receber a sagrada comunhão quatro vezes  por semana; e passado esse belo mês, ele acrescentou uma quinta vez sempre que houvesse alguma festa. Ao retirar-me do confessionário, corriam dos meus olhos doces lágrimas; parecia-me que era o próprio Jesus que se queria dar a mim, pois eu demorava muito pouco a confessar-me, e nunca dizia uma só palavra dos meus sentimentos interiores. 
O caminho por onde seguia era tão direito, tão luminoso, que não precisava de outro guia a não ser Jesus... Comparava os directores espirituais a espelhos fiéis que reflectiam Jesus nas almas, e pensava que para comigo Deus não se servia de intermediário, mas que agia directamente!...
Quando um agricultor rodeia de cuidados um fruto que quer fazer amadurecer antes da estação, nunca é para o deixar pendurado na árvore, mas para o apresentar numa mesa esplendorosamente servida. Era com uma intenção semelhante [49 rº] que Jesus prodigalizava as suas graças à sua pequena Florzinha... Ele que nos dias da sua vida mortal, num ímpeto de amor, exclamou: «Eu Vos bendigo, ó Pai, porque escondestes  estas coisas aos sábios e aos prudentes e as revelastes aos mais pequeninos», queria fazer brilhar em mim a sua misericórdia. Porque eu era pequena e fraca, Ele abaixava-se para mim e instruía-me em segredo sobre as coisas do seu amor. Ah! se sábios que passaram a sua vida a estudar me tivessem vindo interrogar, sem dúvida teriam ficado admirados ao ver uma criança de catorze anos compreender os segredos da perfeição, segredos que toda a sua ciência lhes não pode descobrir, pois para os possuir é preciso ser pobre de espírito.
Como diz S. João da Cruz: «Sem outra luz nem guia excepto a que no coração ardia. Mas esta me guiava, mais certeira que a luz do meio-dia, aonde me esperava quem bem me conhecia». 
Esse lugar era o Carmelo. Antes de «descansar á sombra d´Aquele que eu desejava», tinha de passar por bastantes provações. Mas a chamada divina era tão insistente, que mesmo que tivesse de atravessar as chamas, tê-lo-ia feito para ser fiel a Jesus... 
Para me encorajar na minha vocação, não encontrei senão uma única alma: foi a da minha querida Madre... O meu coração encontrou no seu um eco fiel; sem a sua ajuda não teria, certamente, chegado à margem bendita que há cinco anos a tinha recebido no seu solo impregnado do orvalho celeste. 
Sim, havia cinco anos que estava afastada de vós, minha querida Madre. Julgava ter-vos perdido; mas no momento da provação foi a vossa mão que me indicou o caminho que devia seguir... Tinha necessidade dessa ajuda, pois as minhas visitas ao Carmelo tinham-se tornado cada vez mais penosas para mim; não podia falar do meu desejo de entrar, sem me sentir repelida. 
A Maria, achando-me muito nova, fazia tudo o que podia para impedir a minha entrada. Vós mesma, minha Madre, para me experimentar, tentáveis às vezes moderar o meu ardor. [49 vº] Enfim, se não tivesse tido verdadeira  vocação, teria desistido logo no princípio, pois encontrei obstáculos logo que comecei a responder ao chamamento de Jesus. 
Não quis comunicar à Celina o meu desejo de entrar tão nova para o Carmelo, o que me fez sofrer ainda mais, pois era-me bem difícil esconder-lhe qualquer coisa... Este sofrimento não durou muito tempo; depressa a minha querida irmãzinha soube da minha determinação e, longe de tentar dissuadir-me, aceitou com coragem admirável o sacrifício que Deus lhe pedia. 
Para compreender quão grande foi esse sacrifício, seria preciso saber até que ponto nós estávamos unidas... Era, por assim dizer, a mesma alma que nos fazia viver; desde há poucos meses, gozávamos juntas da vida mais deliciosa que duas raparigas podiam sonhar; tudo à nossa volta correspondia aos nossos gostos; era-nos dada a maior liberdade; enfim, eu dizia que a nossa vida era o Ideal da felicidade na terra... Mal tínhamos tido tempo para saborear esse ideal da felicidade, já era preciso renunciar livremente a ele.
A minha querida Celina não se revoltou um instante sequer. Não era a ela, no entanto, que Jesus chamava em primeiro lugar, por isso, teria podido queixar-se...; tendo a mesma vocação que eu, tocava-lhe a ela partir!... Mas assim como no tempo dos mártires, os que ficavam na prisão davam alegremente o beijo da paz aos seus irmãos que partiam em primeiro lugar para combaterem na arena e consolavam-se com o pensamento de que eles estavam talvez reservados para combates ainda maiores, assim a Celina deixou a sua Teresa afastar-se e ficou sozinha para o glorioso e sangrento combate para o qual Jesus a destinava como a priviligiada do seu amor!... 
A Celina tornou-se, portanto,a confidente das minhas lutas e dos meus sofrimentos; participou neles tal como se tratasse da sua própria vocação. Não tinha que temer nenhuma oposição da sua parte. Mas não sabia que meio utilizar para o comunicar ao Papá... Como lhe falar em ter que separar-se da sua rainha, a ele que acabava de fazer o sacrifício das suas três filhas mais velhas?... Ah! quantas lutas íntimas não sofri antes [50 rº] de sentir a coragem para lhe falar!...
No entanto, era preciso decidir-me, pois ia fazer catorze anos e meio; apenas seis meses nos separavam ainda da bela noite de Natal em que eu tinha resolvido entrar, à mesma hora em que, no ano anterior, tinha recebido «a minha graça». Para fazer a minha grande confidência escolhi o dia de Pentecostes. Durante todo o dia supliquei aos santos apóstolos que rezassem por mim e que me inspirassem as palavras que eu havia de dizer... Não eram eles, com efeito que deviam ajudar a menina tímida que Deus destinava a tornar-se o apóstolo dos apóstolos, pela oração e pelo sacrifício? 
Foi só de tarde, ao voltar de vésperas, que encontrei ocasião para falar ao meu querido paizinho. Tinha-se ido sentar no bordo da cisterna, e ali, com as mãos juntas, contemplava as maravilhas da natureza. O sol, cujos raios tinham perdido o seu ardor, dourava a copa das árvores altas, nas quais os passarinhos cantavam alegremente a sua oração da tarde. O belo rosto do Papá tinha uma expressão celestial. Senti que a paz lhe inundava o coração.
Sem dizer uma única palavra, fui-me sentar ao lado dele, com os olhos já cheios de lágrimas. Ele olhou-me com ternura, e pegando-me na cabeça, encostou-a contra o seu coração, dizendo-me: - «Que tens, minha rainhazinha?... Conta-me lá...». Depois, levantando-se como para dissimular a sus própria emoção, caminhou lentamente, mantendo a minha cabeça encostada ao seu coração. No meio de lágrimas, confiei-lhe o meu desejo de entrar para o Carmelo. Então as lágrimas dele vieram misturar-se com as minhas; mas não disse uma palavra para me dissuadir da minha vocação, contentando-se simplesmente com fazer-me notar que eu era ainda muito nova para tomar uma decisão tão séria. Mas eu defendi tão bem a minha causa que o Papá, com a sua maneira de ser simples e recta, ficou logo convencido de que o meu desejo era o do próprio Deus. Na sua fé profunda, exclamou que Deus lhe fazia uma grande honra ao pedir-lhe assim as suas filhas. 
Continuámos durante muito tempo o nosso passeio. O meu coração, aliviado pela bondade com que o meu incomparável pai tinha acolhido as suas confidências, [50 vº] transbordava afectuosamente no seu. O Papá parecia gozar daquela alegria tranquila que advém do sacrifício consumado. Falou-me como um santo. Gostaria de me lembrar das suas palavras para as escrever aqui, mas só conservei delas uma recordação demasiado perfumada para o poder traduzir. 
Do que me lembro perfeitamente é da acção simbólica que o meu querido Rei realizou sem o saber. Aproximando-se de um muro pouco elevado, mostrou-me florzinhas brancas parecidas com lírios em miniatura, e, pegando numa dessas flores, deu-ma, explicando-me com que cuidado Deus a tinha feito nascer e a tinha conservado até àquele dia. Ouvindo-o falar, julgava escutar a minha história, tal era a semelhança entre o que Jesus fizera pela florzinha e pela Teresinha...
Recebi essa florzita como uma relíquia. Notei que, ao colhê-la, o Papá tinha arrancado todas as suas raízes sem as partir; parecia destinada a continuar a viver noutra terra mais fértil que o musgo delicado em que tinham decorrido as suas primeiras manhãs... Era exactamente a mesma acção que o Papá acabava de fazer comigo alguns instantes antes, permitindo-me escalar a Montanha do Carmelo e deixar o ameno vale, testemunha dos meus primeiros passos na vida. 
Coloquei a minha florzinha branca no meu livro da Imitação, no capítulo intitulado: «Da necessidade de amar a Jesus sobre todas as coisas». É lá que ainda está; só que a haste se quebrou muito perto da raíz, e Deus parece dizer-me com isso que quebrará dentro em breve os laços da sua Florzinha e não a deixará murchar na terra!
Depois de ter obtido o consentimento do Papá, julgava poder voar sem temor para o Carmelo; mas, bem dolorosas provações haviam ainda de provar a minha vocação. 
Foi a tremer que confiei ao nosso tio a resolução que tinha tomado. Prodigalizou-me todos os sinais de ternura possíveis, mas não me deu autorização para partir;  pelo contrário, proibiu-me de lhe [51 rº] falar da minha vocação antes dos 17 anos de idade. Era contrário à prudência humana, dizia ele, deixar entrar para o Carmelo uma criança de 15 anos. Sendo esta vida de Carmelita, aos olhos do mundo, uma vida de filósofo, seria causar grande prejuízo à religião deixar que a abraçasse uma criança sem experiência... Toda a gente iria comentar isso, etc..., etc... Chegou mesmo a dizer que, para o decidir a deixar-me partir, seria preciso preciso um milagre. Compreendi que todas as razões seriam inúteis; por isso, retirei-me com o coração mergulhado na mais profunda amargura. A minha única consolação era a oração. Suplicava a Jesus que fizesse o milagre pedido, visto que só a esse preço poderia responder ao seu chamamento. 
Passou-se bastante tempo antes de ousar falar novamente ao nosso tio. Custava-me extremamente ir a casa dele. Da sua parte, ele parecia não mais pensar na minha vocação; mas soube mais tarde que a minha grande tristeza o influenciou muito a meu favor. Antes de fazer luzir na minha alma um raio de esperança, Deus quis enviar-me um martírio bem doloroso que demorou três dias. Oh! nunca como durante esta provação compreendi tão bem a dor da Santíssima Virgem e de S. José procurando o divino Menino Jesus...
Estava num triste deserto, ou antes, a minha alma era semelhante ao frágil batel sem piloto, entregue à mercê das ondas tempestuosas... Eu sei, Jesus estava lá a dormir na minha barquinha; mas a noite era tão negra, que me era impossível vê-lo. Nada me iluminava; nem sequer um relâmpago vinha rasgar as nuvens sombrias... Sem dúvida que o clarão dos relâmpagos é bem triste; mas se a tempestade tivesse chegado a rebentar abertamente, teria podido vislumbrar Jesus ao menos por um instante...
Era a noite, a noite profunda da alma... Como Jesus no jardim da agonia, sentia-me só, não encontrando consolação nem na terra nem no Céu. Deus parecia ter-me abandonado!!!...
A natureza parecia tomar parte na minha amarga tristeza. Durante esses três dias o sol não fez aparecer um único dos [51 vº] seus raios, e a chuva caiu torrencialmente. (Notei que em todas as circunstâncias graves da minha vida, a natureza era a imagem da minha alma. Nos dias de lágrimas, o Céu chorava comigo; nos dias de alegria, o sol enviava com profusão os seus alegres raios, e o azul não ficava obscurecido com nenhuma nuvem...). 
Finalmente, no quarto dia, que era um sábado, dia consagrado à doce Rainha do Céu, fui visitar o nosso tio. Qual não foi a minha surpresa, ao vê-lo olhar para mim e mandar-me entrar para o seu gabinete sem que lhe tivesse  manifestado tal desejo!... Começou por me repreender delicadamente por parecer ter medo dele, e depois disse-me que não era necessário pedir um milagre, que tinha apenas pedido a Deus que lhe desse «uma simples inclinação do coração», e que fora atendido... Ah! não tive a tentação de implorar um milagre, pois para mim o milagre estava concedido: o nosso tio já não era o mesmo!
Sem fazer nenhuma alusão à «prudência humana», disse-me que eu era uma Florzinha que Deus queria colher, e que não se oporia mais a isso!... Esta resposta definitiva era bem digna dele. Pela terceira vez este cristão de outra época permitia que uma das filhas adoptivas do seu coração se fosse sepultar longe do mundo. A nossa tia foi também admirável em ternura e prudência. Não me lembro que, durante a minha provação, me tenha dito uma única palavra que pudesse aumentá-la; via que ela tinha uma grande compaixão pela sua pobre Teresinha; por isso, quando obtive o consentimento do nosso querido tio, deu-me também o seu, mas não sem me provar de mil maneiras que a minha partida lhe causaria desgosto...
Ah! os nossos queridos parentes estavam bem longe de imaginar [52 rº] então que haviam de renovar ainda mais duas vezes o mesmo sacrifício... Mas, ao estender a mão sempre para pedir, Deus não a apresentou vazia: os seus amigos mais queridos puderam obter dela abundantemente a força e a coragem  que tão necessárias lhes eram. 
Mas o meu coração leva-me para bem longe do meu assunto. É quase com pena que volto a ele. 
Depois da resposta do nosso tio, podeis compreender, minha Madre, [51 vº continuação] com que alegria retomei o caminho dos Buissonnets, sob «o lindo céu, cujas nuvens se tinham dissipado completamente»!... Na minha alma também a noite cessara. Jesus, ao acordar, tinha-me restituído a alegria; o fragor das vagas acalmara-se; em vez do vento da provação, uma brisa ligeira enfunava a minha vela, e eu pensava chegar dentro em pouco à margem bendita que avistava pertinho de mim. Ele estava realmente muito perto da minha barquinha; mas mais que uma tempestade havia ainda de surgir, e, roubando-lhe a vista do farol luminoso, fazer-lhe temer ter-se afastado para sempre da margem tão ardentemente desejada...
Poucos dias depois de ter obtido o consentimento do nosso tio, fui visitar-vos, minha querida Madre, e contei-vos a minha alegria por terem passado todas as minhas provações. Mas, qual não foi a minha surpresa e o meu desgosto, ao ouvir-vos dizer que o Senhor [52 rº] P. Superior não consentia na minha entrada antes dos 21 anos de idade... Ninguém tinha pensado nessa oposição, a mais invencível de todas. 
Apesar disso, sem perder a coragem, fui eu própria, com o Papá e a Celina, a casa do nosso Padre, para tentar movê-lo, mostrando-lhe que tinha verdadeira vocação para o Carmelo. Recebeu-nos muito friamente. O meu incomparável paizinho em vão juntou às minhas as suas solicitações. Nada conseguiu mudar a sua oposição. Disse-me que não havia perigo em esperar, que podia levar em casa uma vida de Carmelita; que se não tomasse a disciplina nem tudo estava perdido..., etc..., etc... Por último, acrescentou que não era senão o delegado do senhor Bispo, que se este me quisesse autorizar a entrar para o Carmelo, nada mais teria a dizer...
Saí da residência paroquial banhada em lágrimas. Felizmente ia escondida pelo guarda-chuva, pois a chuva caía torrencialmente. 
O Papá não sabia como me consolar... Prometeu levar-me a Bayeux, logo que lhe manifestei  tal desejo, porque eu estava resolvida a conseguir os meus fins. Cheguei mesmo a dizer que recorria ao Santo Padre, se o senhor Bispo não me quisesse permitir entrar para o Carmelo aos 15 anos...
Muitas coisas aconteceram antes da minha viagem a Bayeux. Exteriormente a minha vida parecia a mesma. 
Estudava e recebia da Celina lições de desenho, e a minha hábil mestra encontrava em mim grandes disposições para a sua arte.
Crescia sobretudo no amor de Deus. Sentia no meu coração ímpetos até então desconhecidos; às vezes tinha verdadeiros transportes de amor. Uma noite, não sabendo como dizer a Jesus que O amava e quanto desejava que Ele fosse amado e glorificado em toda a parte, pensei com dor que Ele nunca poderia receber do Inferno um único acto de amor. Então disse a Deus que, para Lhe agradar eu consentiria em ver-me lá mergulhada, para que Ele fosse amado eternamente nesse lugar de blasfémia... Sabia que isso não O poderia glorificar, porque Ele não deseja senão a nossa felicidade; mas, quando se [52 vº] ama, sente-se necessidade de dizer mil loucuras. Se falava desta maneira, não era porque o Céu não excitasse o meu desejo, mas porque então o meu Céu não era senão o Amor, e estava convencida, como S. Paulo, de que nada poderia separar-me do objecto divino que me tinha seduzido!... 
Antes de deixar o mundo, Deus deu-me a consolação de contemplar de perto almas de crianças. Sendo a mais pequena da família, nunca tivera essa felicidade. Eis as tristes circunstâncias que ma ocasionaram: Uma pobre mulher, parente da nossa criada, morreu na flor da idade, deixando três crianças pequeninas. Durante a doença dela, recebemos em casa as duas meninas, das quais a mais velha não tinha ainda seis anos. Ocupava-me delas durante todo o dia, e era para mim um grande prazer ver com que candura acreditavam em tudo quanto lhes dizia. 
O santo baptismo deve depositar nas almas um germe bem profundo das virtudes teologais, pois se revelam logo na infância, e basta a esperança dos bens futuros para fazer aceitar sacrifícios. Quando queria ver as minhas duas meninas bem dispostas uma com a outra, em vez de prometer brinquedos e rebuçados à que cedesse à irmã, falava-lhes das recompensas eternas que o Menino Jesus daria no Céu às criancinhas bem comportadas. 
A mais velha, cuja razão começava a desenvolver-se, fitava-me com os olhos a brilhar de alegria. Fazia-me mil perguntas encantadoras sobre o Menino Jesus e o seu belo Céu, e prometia-me com entusiasmo ceder sempre à irmã. Dizia que nunca na sua vida esqueceria o que lhe tinha ensinado «a menina grande», pois era assim que me chamava...
Vendo de perto estas almas inocentes, compreendi que grande infelicidade era não as formar bem desde o seu despertar, quando se parecem com a cera mole sobre a qual se pode imprimir o cunho das virtudes mas também o do mal... Compreendi o que Jesus disse no Evangelho: «Era preferível ser lançado ao mar que escandalizar uma só destas criancinhas». [53 rº] Ah! quantas almas chegariam à santidade, se fossem bem orientadas!...
Bem sei que Deus não precisa de ninguém para realizar a sua obra. Mas assim como deixa que um agricultor hábil cultive plantas raras e delicadas, dando-lhe para isso o saber necessário, e reservando para si próprio o cuidado de as fecundar, assim Jesus quer ser ajudado no seu divino cultivo das almas.
Que aconteceria se um agricultor pouco habilidoso não enxertasse bem as suas árvores, se não soubesse reconhecer a natureza de cada uma e quisesse fazer desabrochar rosas num pessegueiro? Fazia morrer a árvore que, no entanto, era boa e capaz de produzir frutos. 
Do mesmo modo, é preciso saber reconhecer o que Deus pede às almas desde a infância, a secundar a acção da sua graça, sem nunca a antecipar nem a retardar.
Como os passarinhos aprendem a cantar ouvindo os pais, assim as crianças aprendem a ciência das virtudes, o canto sublime do Amor divino, junto das almas encarregadas de as formar para a vida. 
Lembro-me de que entre os meus pássaros tinha um canário que cantava maravilhosamente; tinha também um pequeno pintarroxo, ao qual prodigalizava os meus cuidados «maternais», por tê-lo adoptado antes de ele ter podido gozar da felicidade da liberdade. Esse pobre pequeno prisioneiro não tinha pais que o ensinassem a cantar; mas ouvindo de manhã à noite o canário, seu companheiro, entoar alegres trinados, quis imitá-lo... Esta empresa era difícil para um pintarroxo, e por isso a sua débil voz teve muita dificuldade em se harmonizar com a voz vibrante do seu professor de música. Era encantador ver os esforços do pobre pequeno; mas foram por fim coroados de êxito, pois o cantar dele, embora muito fraco, tornou-se absolutamente idêntico ao do canário.
[53 vº] Ó minha querida Madre! fostes vós quem me ensinou a cantar! Foi a vossa voz que me encantou desde a infância; e agora tenho a consolação de ouvir dizer que me pareço convosco!!! Sei quanto ainda estou longe disso, mas espero, apesar da minha debilidade, repetir eternamente o mesmo cântico que vós!...
Antes da minha entrada para o Carmelo, tive ainda muitas experiências da vida e das misérias do mundo. Mas estes pormenores levar-me-iam demasiado longe. Vou retomar o relato da minha vocação. 
O dia 31 de Outubro foi o dia marcado para a minha viagem a Bayeux, Fui sozinha com o Papá, com o coração cheio de esperança, mas também muito comovida ao pensar em me apresentar no Paço episcopal. Pela primeira vez na minha vida, tinha de ir fazer uma visita sem ser acompanhada pelas minhas irmãs, e essa visita era a um Bispo! Eu, que nunca precisava de falar senão para responder às perguntas que me faziam, tinha de explicar eu mesma a finalidade  da minha visita e explanar as razões que me levavam a solicitar a minha entrada para o Carmelo. Numa palavra, tinha de mostrar a solidez da minha vocação. 
Ah! quanto me custou fazer esta viagem! Foi preciso que Deus me concedesse uma graça muito especial para eu poder ultrapassar a minha grande timidez... É bem verdade que «o Amor nunca encontra impossíveis, porque tudo crê possível e permitido». 
Verdadeiramente, só o amor de Jesus me podia fazer ultrapassar estas dificuldades e as que se seguiram, pois aprouve-lhe fazer-me comprar a minha vocação com provações bem grandes...
Hoje, que gozo da solidão do Carmelo (repousando à sombra d´Aquele que tão ardentemente desejei), acho que comprei a minha felicidade por baixo preço, e estaria disposta a suportar muito maiores penas para a adquirir, se não a tivesse ainda!
Chovia a cântaros quando chegamos a Bayeux. O Papá que não queria ver a sua rainhazinha entrar no Paço episcopal com o lindo vestido todo ensopado, fê-la subir para um ónibus e conduzir  à catedral. Ali começaram os meus infortúnios. O senhor Bispo e todo o clero assistiam a um solene funeral. A igreja estava repleta de senhoras de luto, e toda a gente olhava para mim com o meu [54 rº] vestido claro e o meu chapéu branco. Quereria sair da igreja, mas, nem pensar nisso, por causa da chuva. E para me humilhar ainda mais, Deus permitiu que o Papá, com a sua simplicidade patriarcal, me fizesse avançar até ao cimo da catedral. Não o querendo desgostar, fi-lo de boa vontade, e proporcionei esta distracção aos bons habitantes de Bayeux, que desejaria nunca ter conhecido... Enfim, pude respirar à vontade numa capela que ficava por detrás por altar-mor, e fiquei lá muito tempo, rezando com fervor, à espera de que a chuva passasse e nos deixasse sair. Ao descer o Papá fez-me admirar a beleza do edifício, que parecia muito maior estando deserto. Mas, um único pensamento me dominava. Não podia sentir gosto com coisa nenhuma. 
Fomos directamente à secretaria do Sr. P.  Révérony, que estava avisado da nossa chegada, tendo ele próprio fixado o dia da viagem; mas estava ausente. Tivemos, portanto de vaguear pelas ruas de Bayeux, que me pareceram muito tristes. 
Finalmente voltámos para junto do Paço episcopal, e o Papá fez-me entrar num belo hotel, onde não fiz as honras ao bom cozinheiro. O pobre paizinho era de uma ternura quase incrível para comigo. Dizia-me que não me preocupasse; que com certeza o senhor Bispo atenderia o meu pedido. Depois de termos descansado, voltámos à secretaria do Sr. P. Révérony. Chegou ao mesmo tempo um cavalheiro, mas o Vigário Geral pediu-lhe educadamente que esperasse, e fez-nos entrar em primeiro lugar no seu gabinete. (O pobre cavalheiro teve tempo para se aborrecer, pois a visita foi longa). O Sr. P. Révérony mostrou-se muito amável, mas penso que o motivo da nossa viagem o surpreendeu muito. Depois de ter olhado para mim a sorrir, e de me ter dirigido algumas perguntas, disse-nos: - «Vou apresentá-los ao Senhor Bispo. Tenham a bondade de me acompanhar». 
Vendo lágrimas a brilharem nos meus olhos, acrescentou: - «Ah! estou a ver diamantes!... Não é preciso mostrá-los ao Senhor Bispo!...». Fez-nos atravessar várias salas enormes, ornadas [54 vº]  com retratos de bispos. Ao ver-me nesses enormes salões, parecia-me ser uma pobre formiguita, e perguntava a mim própria o que ousaria dizer ao Senhor Bispo. 
Ele andava a passear entre dois sacerdotes, numa galeria. Vi o Sr. P. Révérony dizer-lhe algumas palavras e voltar com ele. Nós esperávamo-lo no seu gabinete, onde havia três grandes poltronas diante da lareira onde crepitava um fogo vivo. Ao ver entrar Sua Excelência, o Papá ajoelhou-se ao pé de mim para recebermos a bênção. Depois o Sr. Bispo mandou ao Papá sentar-se numa das poltronas; sentou-se em frente dele, e o Sr. P. Révérony quis que eu me instalasse na do meio; recusei delicadamente, mas ele insistiu, dizendo-me que mostrasse se eu era capaz de obedecer. Logo me sentei, sem dizer mais nada, e fiquei confundida, ao vê-lo servir-se de uma cadeira, estando eu enterrada numa poltrona onde quatro como eu caberiam à vontade (mais à vontade do que eu, pois estava longe de o estar!...). 
Esperava que o Papá falasse, mas disse-me que explicasse eu mesma ao Senhor Bispo a finalidade da nossa visita. Fi-lo o mais eloquentemente que pude. Sua Excelência, habituado à eloquência, não pareceu muito impressionado com as minhas razões. Em vez delas, uma palavra do Sr. P. Superior ter-me-ia sido mais útil. Infelizmente, não a tinha, e a oposição dele não advoga de modo algum a meu favor...
O Senhor Bispo perguntou-me se havia muito tempo que eu desejava entrar para o Camelo. -« Oh! sim, Excelência, há muito tempo!...» -«Vejamos, replicou a rir o Sr. P. Révérony, pelo menos não pode dizer que há 15 anos que tem esse desejo!» - «É verdade, retorqui sorrindo também, mas não há muitos anos a subtrair, pois desejei ser religiosa desde o despertar da razão, e desejei o Carmelo logo que o conheci bem, porque achava que nesta Ordem seriam satisfeitas todas as aspirações da minha alma». [55 rº] Não sei, minha Madre, se foram estas exactamente as minhas palavras. 
[54 vº, continuação] Creio que me exprimi ainda pior; mas, enfim, é este o sentido. 
O Senhor Bispo, julgando ser agradável ao Papá, tentou convencer-me a permanecer mais alguns anos ao pé dele; por isso, não ficou pouco surpreendido e edificado ao vê-lo tomar o meu partido, intercedendo para que eu obtivesse a permissão de voar aos 15 anos. No entanto, tudo foi inútil. Disse que antes de se decidir era indespensável uma conversa com com o Superior do Carmelo. Não podia ouvir nada que me causasse tanto desgosto, pois conhecia a oposição formal do nosso Padre, e por isso, sem fazer caso da recomendação  do Sr. P. Révérony, fiz mais do que mostrar diamantes ao Senhor Bispo: dei-lhos!... Vi bem que estava impressionado. Cingindo-me pelo pescoço, apoiava a minha cabeça no seu ombro e fazia-me carícias como creio que nunca ninguém [55 rº] recebera dele. Disse-me que não estava tudo perdido, que estava muito contente por eu ir a Roma para fortalecer  a minha vocação, e que em vez de chorar me devia alegrar. Acrescentou que, tendo de ir a Lisieux na semana seguinte, falaria de mim ao pároco de Saint Jacques, e que certamente receberia a resposta em Itália. Compreendi que seria inútil fazer novas instâncias. Aliás não tinha mais nada a dizer, pois tinha esgotado todos os recursos da minha eloquência. 
O Senhor Bispo acompanhou-nos até ao jardim. O Papá divertiu-o muito ao dizer-lhe que, para parecer mais velha, eu mandara puxar o cabelo para cima. (Este pormenor não o esqueceu o Senhor Bispo, porque não fala da «sua filhinha» sem contar a história do cabelo...). 
O Sr. P. Révérony quis acompanhar-nos até à saída do jardim do Paço episcopal. Disse ao Papá que nunca se tinha visto coisa semelhante: - «Um pai tão ansioso por dar a filha a Deus como esta filha por se oferecer a si mesma»!
O Papá pediu-lhe várias explicações sobre a peregrinação; entre outras coisas, perguntou-lhe como seria preciso vestir-se para comparecer diante do Santo Padre. Estou ainda a vê-lo voltar-se diante do Sr. P. Révérony e perguntar: - «Estou bem assim?...». Dissera também ao Senhor Bispo que, se ele não me permitisse entrar para o Carmelo, eu pediria essa graça ao Soberano Pontífice. 
Era muito simples nas suas palavras e nas suas maneiras o meu querido Rei; mas era tão bonito..., e tinha uma distinção absolutamente natural, que deve ter agradado muito ao Senhor Bispo, habituado a ver-se rodeado de personagens  que conhecem  todas as regras de etiqueta dos salões, mas não o Rei de França e de Navarra em pessoa, com a sua rainhazinha...
Quando cheguei à rua, as lágrimas começaram de novo a correr, mas não tanto por causa do meu desgosto, mas por ver que o meu paizinho acabava de fazer uma viagem inútil... Ele que imaginava a festa de enviar um telegrama para o Carmelo, a anunciar a feliz resposta do Senhor Bispo, era obrigado a [55 vº] regressar sem trazer nenhuma...
Ah! que desgosto eu tinha!... Parecia-me que o meu futuro estava destroçado para sempre. Quanto mais me aproximava do termo, mais via complicarem-se as minhas pretensões. A minha alma estava mergulhada na amargura, mas também na paz, porque não procurava senão a vontade de Deus. 
Logo que cheguei a Liseux, fui procurar consolação ao Carmelo, e encontrei-me junto de vós, minha querida Madre. Oh, não! nunca esquecerei tudo o que sofrestes por minha causa. Se não temesse profaná-las servindo-me delas, poderia dizer as palavras que Jesus dirigiu aos seus apóstolos na noite da sua Paixão: «Fostes vós que estivestes sempre comigo em todas as minhas tribulações»... Também as minhas queridíssimas irmãs me ofereceram dulcíssimas consolações...
 
 
 
Se o Céu me comulava de graças, não era por eu as merecer. Era ainda muito imperfeita. Tinha, isso sim, um grande desejo de praticar [44 vº] a virtude, mas fazia-o duma maneira esquisita. Eis um exemplo: Sendo a mais nova, não estava habituada a bastar-me a mim mesma. A Celina arrumava o quarto onde dormíamos juntas, e eu não fazia nenhum trabalho doméstico. Depois da Maria entrar para o Carmelo, algumas vezes, para agradar a Deus, tentava fazer a cama, ou, na ausência da Celina, guardar, à noite, os seus vasos de flores. Como disse, era só por Deus que fazia estas coisas; portanto, não deveria estar à espera do obrigado das criaturas. Ai de mim! sucedia exactamente o contrário! Se a Celina, por infelicidade, não se mostrava contente e surpreendida com os meus pequenos serviços, eu não ficava satisfeita, e mostrava-lho com as minhas lágrimas...
 
Eu era verdadeiramente insuportável, pela minha excessiva sensibilidade. Assim, se me acontecia causar involuntariamente algum pequeno desgosto a alguém de quem gostava, em vez de levantar a cabeça e de não chorar, chorava como uma Madalena, o que aumentava a minha falta, em vez de a diminuir; e quando começava a consolar-me pelo facto em si mesmo, chorava por ter chorado... Todos os argumentos eram inúteis, e não conseguia corrigir-me desse reles defeito. 
 
Não sei como acalentava o doce pensamento de entrar para o Carmelo, estando ainda nas fraldas da infância!... Foi preciso Deus fazer um pequeno milagre para me fazer crescer num instante, e esse milagre fê-lo no dia inesquecível de Natal.  Nessa noite luminosa que esclarece as delícias da Santíssima Trindade, Jesus, o doce pequeno Menino de uma hora, mudou a noite da minha alma em torrentes de luz...
Nessa noite em que Ele se fez fraco e sofredor por meu amor, tornou-me forte e corajosa; revestiu-me com as suas armas; e desde essa noite bendita, não fui vencida em nenhum combate; antes, pelo contrário, caminhei de vitória em vitória e comecei, por assim dizer, «uma corrida de gigante!...».
 
[45 rº] A fonte das minhas lágrimas estancou, e desde então não se abriu senão raras vezes e com dificuldade, o que justificou esta frase que me tinha sido dita: - «Tu choras tanto na tua infância, que mais tarde já não terás lágrimas para derramar!...».
Foi no dia 25  de Dezembro de 1886 que recebi a graça da minha completa conversão. 
Regressávamos da missa da meia-noite, em que eu tivera a felicidade de receber o Deus forte e poderoso. Ao chegar aos Buissonnets, regozijava-me por ir buscar os meus sapatos à chaminé. Aquele antigo costume causara-nos tanta alegria na nossa infância, que a Celina queria continuar a tratar-me como um bebé, já que eu era a mais nova da familia... O Papá gostava de ver a minha felicidade, de ouvir os meus gritos de alegria, ao tirar cada surpresa dos sapatos encantados, e a satisfação do meu Rei aumentava muito a minha felicidade. 
Mas Jesus, querendo mostrar-me que me devia desfazer dos defeitos da infância, tirou-me também as alegrias inocentes. Permitiu que o Papá, fatigado da missa da meia-noite, ficasse aborrecido ao ver os meus sapatos na chaminé e dissesse estas palavras que me cortaram o coração: - «Enfim, ainda bem que é o último ano!...». Nesse momento eu subia as escadas para ir tirar o chapéu. A Celina, conhecendo a minha sensibilidade e vendo as lágrimas a brilharem-me nos olhos, teve também vontade de chorar, pois amava-me muito e compreendia o meu desgosto: - «Ó Teresa!, disse-me ela, não desças já; sofrerias imenso se fosses agora ver os teus sapatos». Mas a Teresa já não era a mesma; Jesus tinha-lhe mudado o coração!
 
Retendo as lágrimas, desci rapidamente as escadas e, reprimindo as palpitações do coração, peguei nos sapatos e, colocando-os diante do Papá, tirei alegremente todos os objectos, mostrando-me feliz como uma rainha. O Papá, tinha recuperado também o bom humor, ria-se: A Celina julgava estar a sonhar!... Felizmente era uma doce realidade: a Teresinha tinha encontrado a força da alma, que perdera aos quatro anos e meio, e havia de conservá-la para sempre!... [45 vº]  Nessa noite de luz começou o terceiro período da minha vida, o mais belo de todos, o mais repleto das graças do Céu... A obra que eu não tinha podido fazer em dez anos, Jesus consumou-a num instante, contentando-se com a minha boa vontade, que nunca me faltou. Como os apóstolos, eu podia dizer-lhe: - «Senhor, pesquei toda a noite, sem nada apanhar». 
Mais misericordioso ainda para comigo do que para com os seus discípulos, Jesus pegou Ele mesmo na rede, lançou-a e retirou-a cheia de peixes... Fez de mim um pescador de almas. Senti um grande desejo de trabalhar pela conversão dos pecadores, desejo que não tinha sentido tão vivamente... Senti, numa palavra, entrar a caridade no meu coração, senti a necessidade de me esquecer de mim para dar alegria. E desde então fui feliz!...
 
Um Domingo, contemplando uma estampa de Nosso Senhor na Cruz, fiquei impressionada com o sangue que caía de uma das suas mãos divinas. Senti uma enorme pena, ao pensar que esse sangue caía na terra, sem que ninguém se apressasse a recolhê-lo, e resolvi manter-me em espírito ao pé da cruz para receber o Divino orvalho que dela escorria, compreendendo que seria necessário espalhá-lo sobre as almas...
O grito de Jesus na cruz: -«Tenho sede!» ressoava também continuamente no meu coração. Estas palavras acendiam em mim um ardor desconhecido e muito vivo... Queria dar de beber ao meu Bem-Amado, e sentia-me eu mesma devorada pela sede de almas... Não eram ainda as almas dos sacerdotes que me atraíam, mas as dos grandes pecadores; ardia no desejo de as arrancar às chamas eternas... A fim de estimular o meu zelo, Deus mostrou-me que os meus desejos Lhe agradavam. 
 
Ouvi falar de um grande criminoso que acabava de ser condenado à morte, por crimes horríveis. Tudo leva a crer que morreria impenitente. 
Quis a todo o custo impedi-lo de cair no Inferno e, para o conseguir, empreguei todos meis imagináveis. Sabendo que por mim mesma nada podia, ofereci [46 rº] a Deus todos os méritos infinitos de Nosso Senhor, os tesouros da Santa Igreja. Além disso, pedi à Celina que mandasse celebrar uma missa pelas minhas intenções, não ousando encomendá-la eu mesma, com receio de ser obrigada a confessar que era por Pranzini, o grande criminoso. Nem sequer queria dizer à Celina; mas ela fez-me perguntas com tanta delicadeza e insistência, que lhe confiei o meu segredo. Muito longe de fazer troça de mim, pediu-me para a deixar ajudar-me a converter o meu pecador. Aceitei com reconhecimento, pois quereria que todas as criaturas se unissem a mim para implorar a graça para o culpado. 
 
Sentia no fundo do coração, a certeza de que os nossos desejos seriam satisfeitos. Disse a Deus que estava bem certa de que Ele perdoaria ao pobre infeliz Pranzini, e que o acreditaria mesmo que ele não se confessasse e não mostrasse nenhum sinal de arrependimento - tanta confiança eu tinha na misericórdia infinita de Jesus! -, mas que Lhe pedia apenas «um sinal» de arrependimento, a fim de obter coragem para continuar a rezar pelos pecadores, e para minha consolação... A minha oração foi atendida à letra!
Apesar do Papá nos ter proibido de ler os jornais, não julgava desobedecer ao ler as passagens que falavam de Pranzini. No dia seguinte à sua execução, encontro à mão o jornal "La Croix". Abro-o à pressa, e, que vejo?... Ah! as lágrimas traíram-me a emoção, e fui obrigada a esconder-me... Pranzini não se tinha confessado. Subira ao cadafalso, e preparava-se para meter a cabeça no macabro buraco, quando de repente, levado por uma súbita inspiração, volta-se, agarra o Crucifixo que o sacerdote lhe apresentava, e beija por três vezes as suas sagradas chagas!... Depois a sua alma foi receber a sentença misericordiosa d´Aquele que declara que no Céu haverá mais alegria por um só pecador que faz penitência do que por noventa e nove justos que não têm necessidade de penitência!...
 
Obtivera «o sinal» pedido; e esse sinal era a reprodução fiel da [46 vº] graça que Jesus me concedera para me afeiçoar a rezar pelos pecadores. Acaso não foi perante as chagas [de] Jesus, ao ver correr o seu sangue divino, que a sede das almas penetrou no meu coração? Queria dar-lhes a beber esse sangue imaculado que as purificaria das suas manchas; e eis que os lábios do «meu primeiro filho» foram colar-se sobre as sagradas chagas!!... Que resposta inefavelmente doce!
 
Ah! a partir dessa graça única, o meu desejo de salvar as almas cresceu de dia para dia; parecia-me ouvir Jesus dizer-me como à Samaritana: - «Dá-me de beber!». Era uma verdadeira permuta de amor: às almas eu dava o sangue de Jesus; a Jesus oferecia essas mesmas almas, refrescadas pelo seu orvalho Divino; parecia-me assim dessedentá-lo, e quanto mais Lhe dava de beber, mais aumentava a sede da minha pobre alminha; e era esta sede ardente que Ele me dava como a mais deliciosa bebida do seu amor...
Em pouco tempo, Deus tirou-me do círculo estreito em que eu girava, sem saber como de lá sair. Ao ver o caminho que Ele me fez percorrer, a minha gratidão é grande, mas, devo reconhecê-lo, se o maior passo estava dado, tinha ainda de deixar muitas coisas. Liberto dos seus escrúpulos, da sua sensibilidade excessiva, o meu espírito desenvolveu-se.
 
Sempre amara o majestoso, o belo; mas nesta altura apoderou-se de mim um desejo imenso de saber. Não me contentando com as lições e com os deveres que me dava a minha mestra, aplicava-me sozinha a estudos especiais de História e de Ciência. Os outros estudos deixavam-me indiferente; mas estas duas disciplinas atraíam toda a minha atenção. Assim, em poucos meses adquiri mais conhecimentos que durante os meus anos de estudo.
 
Ah! isso não passava de vaidade e aflição de espírito! Vinha-me muitas vezes ao pensamento o capítulo da Imitação de Cristo em que se fala das ciências; não obstante, arranjava maneira de continuar, dizendo a mim mesma que estava em idade de estudar, que não havia [47 rº] mal em o fazer. Não creio ter ofendido a Deus (apesar de reconhecer ter gasto assim inutilmente o tempo), pois não ocupava nisso senão um certo número de horas, que não queria exceder, a fim de mortificar o meu desejo, demasiado vivo, de saber. 
 
Estava na idade mais perigosa para as raparigas. Mas Deus fez por mim o que o profeta Ezequiel refere nas suas profecias: «Passando a meu lado, Jesus viu que tinha chegado para mim o tempo de ser amada; Ele fez aliança comigo, e tornei-me sua...; estendeu sobre mim o seu manto, lavou-me em perfumes preciosos, revestiu-me com vestes bordadas, dando-me colares e adornos sem preço...; alimentou-me com a mais pura farinha, com mel e azeite em abundância... Com isto, tornei-me bela a seus olhos, e fez de mim uma poderosa rainha!...». Sim, Jesus fez tudo isso por mim. Eu poderia retomar cada palavra que acabo de escrever e provar que ela se realizou em mim; mas as graças que contei mais acima são disso uma prova suficiente. Vou falar apenas do alimento que me prodigalizou «em abundância». Desde há muito tempo que eu me alimentava com «a pura farinha» contida na Imitação de Cristo. Foi o único livro que me fez bem, pois não tinha ainda encontrado os tesouros escondidos no Evangelho. 
 
Sabia de cor quase todos os capítulos da minha querida Imitação; esse livrinho acompanhava-me sempre. No Verão trazia-o no meu bolso, e no Inverno no manguito; assim, converteu-se num costume. Em casa da minha tia divertiam-se muito abrindo-o ao acaso, e fazendo-me recitar o capítulo que calhasse. 
 
Aos 14 anos, com o meu desejo de ciência, Deus achou que era necessário juntar «à pura farinha, mel e azeite em abundância».
Esse mel e azeite fez-mos encontrar nas conferências do senhor Padre Arminjon sobre: «O fim do mundo presente e os mistérios da vida futura». Esse livro fora emprestado ao Papá pelas minhas queridas Carmelitas; por isso, contrariamente ao meu [47 vº] costume (pois não lia os livros do Papá), pedi para o ler. 
 
Essa leitura foi também uma das maiores graças da minha vida. Li-o à janela do meu quarto de estudo, e a impressão que me causou é demasiado íntima e doce para a poder transmitir...
Todas as grandes verdades da religião, os mistérios da eternidade, mergulhavam a minha alma numa felicidade que, não era da terra... Pressentia já (não com os olhos da carne, mas com os do coração) o que Deus reserva aos que o amam. E vendo que as recompensas eternas não tinham nenhuma proporção com os suaves sacrifícios da vida, queria amar, amar a Jesus com paixão, dar-lhe mil provas de amor enquanto ainda pudesse... Copiei várias páginas sobre o perfeito amor e sobre a recepção que Deus há-de fazer aos seus eleitos no momento em que Ele próprio se tornará a sua grande e eterna recompensa, e repetia sem cessar as palavras de amor que tinham abrasado o meu coração...
A Celina tornara-se a confidente íntima dos meus pensamentos. Desde o Natal já nos podíamos compreender; a distância da idade já não existia, porque eu tinha crescido em estatura e, sobretudo em graça... Antes dessa altura queixava-me muitas vezes por nada saber dos segredos da Celina. Ela dizia-me que eu era muito pequena, que era preciso eu crescer «a altura de um banquinho» para ela ter confiança em mim... Gostava de subir para cima desse precioso banquinho quando estava ao lado dela, e dizia-lhe que me falasse intimamente. Mas a minha astúcia não surtia efeito; uma distância nos separava ainda!...
 
Jesus, que nos queria fazer avançar juntas, criou nos nossos corações laços mais fortes que os do sangue. Fez com que nos tornássemos irmãs de alma. Realizaram-se em nós estas palavras do Cântico Espiritual de S. João da Cruz. Falando ao Esposo, a Esposa diz: «Apressam-se as donzelas, sobre as tuas pegadas no caminho; ao toque das [48 rº] centelhas, e ao temperado vinho, dão-te aromas de bálsamo divino».
Sim, era mesmo apressadamente que seguíamos as pegadas de Jesus. As centelhas de amor que Ele semeava às mãos cheias nas nossas almas, o vinho delicioso e forte que nos dava a beber, faziam desaparecer aos nosso olhos as coisas passageiras, e dos nosso lábios brotavam aspirações de amor inspiradas por Ele. 
 
Como eram deliciosas as conversas que tínhamos todas as noites no belveder! Com o olhar fixo no horizonte, contemplávamos a branca lua elevando-se lentamente por detrás das árvores altas..., os reflexos prateados que espalhava pela natureza adormecida..., as estrelas brilhantes cintilando no azul profundo..., o sopro suave da brisa da noite fazendo flutuar as níveas nuvens..., tudo elevava as nossas almas para o Céu, o belo Céu, do qual contemplávamos ainda «apenas o límpido reverso». 
Não sei se me engano, mas parece-me que a expansão das nossas almas era semelhante à de Santa Mónica com o seu filho, quando no porto de Ostia ficavam perdidos em êxtase, à vista das maravilhas do Criador!... Parece-me que recebíamos graças de ordem tão elevada como as concedidas aos grandes santos. 
 
Como diz a Imitação, Deus comunica-se umas vezes no meio de um vivo esplendor, outras «suavemente velado sob sombras e figuras». Era desta maneira que se dignava manifestar-se às nossas almas; mas, como era transparente e ténue o véu que escondia Jesus aos nossos olhares!... A dúvida não era possível; a fé e a esperança já não eram necessárias; o amor fazia-nos encontrar na terra Aquele que procurávamos. «Tendo-o encontrado só, dera-nos o seu beijo, para que no futuro ninguém nos pudesse desprezar».
Graças tão grandes não deviam ficar sem frutos, e estes foram abundantes. A prática da virtude tornou-se-nos agradável e natural. Ao princípio o meu rosto denunciava muitas vezes o combate, mas pouco a pouco essa impressão desapareceu, e a renúncia tornou-se-me fácil, mesmo no primeiro instante. 
 
Jesus disse: «Ao [48 vº] que tem dar-se-á mais, e ficará na abundância». Por uma graça fielmente recebida, concedia-me uma multidão de novas graças... Dava-se-me Ele próprio na sagrada comunhão mais vezes do que eu teria ousado esperar. Adoptara como regra de conduta comungar todas as vezes que o meu confessor me deixasse, sem falhar nenhuma, mas deixando-o determinar o número sem nunca lhe pedir. Nessa altura não tinha a audácia que agora tenho, senão teria procedido de outra maneira, pois vejo claramente que uma alma deve dizer ao confessor a atracção que sente por receber o seu Deus. Não é para ficar no cibório de ouro que Jesus desce todos os dias do Céu, mas para encontrar outro Céu que Lhe é infinitamente mais caro que o primeiro: o Céu da nossa alma, feita à sua imagem, o templo vivo da adorável Trindade!...
 
Jesus, que via o meu desejo e a rectidão do meu coração, permitiu que durante o mês de Maio o meu confessor me dissesse para receber a sagrada comunhão quatro vezes  por semana; e passado esse belo mês, ele acrescentou uma quinta vez sempre que houvesse alguma festa. Ao retirar-me do confessionário, corriam dos meus olhos doces lágrimas; parecia-me que era o próprio Jesus que se queria dar a mim, pois eu demorava muito pouco a confessar-me, e nunca dizia uma só palavra dos meus sentimentos interiores. 
O caminho por onde seguia era tão direito, tão luminoso, que não precisava de outro guia a não ser Jesus... Comparava os directores espirituais a espelhos fiéis que reflectiam Jesus nas almas, e pensava que para comigo Deus não se servia de intermediário, mas que agia directamente!...
Quando um agricultor rodeia de cuidados um fruto que quer fazer amadurecer antes da estação, nunca é para o deixar pendurado na árvore, mas para o apresentar numa mesa esplendorosamente servida. Era com uma intenção semelhante [49 rº] que Jesus prodigalizava as suas graças à sua pequena Florzinha... Ele que nos dias da sua vida mortal, num ímpeto de amor, exclamou: «Eu Vos bendigo, ó Pai, porque escondestes  estas coisas aos sábios e aos prudentes e as revelastes aos mais pequeninos», queria fazer brilhar em mim a sua misericórdia. Porque eu era pequena e fraca, Ele abaixava-se para mim e instruía-me em segredo sobre as coisas do seu amor. Ah! se sábios que passaram a sua vida a estudar me tivessem vindo interrogar, sem dúvida teriam ficado admirados ao ver uma criança de catorze anos compreender os segredos da perfeição, segredos que toda a sua ciência lhes não pode descobrir, pois para os possuir é preciso ser pobre de espírito.
Como diz S. João da Cruz: «Sem outra luz nem guia excepto a que no coração ardia. Mas esta me guiava, mais certeira que a luz do meio-dia, aonde me esperava quem bem me conhecia». 
 
Esse lugar era o Carmelo. Antes de «descansar á sombra d´Aquele que eu desejava», tinha de passar por bastantes provações. Mas a chamada divina era tão insistente, que mesmo que tivesse de atravessar as chamas, tê-lo-ia feito para ser fiel a Jesus... 
Para me encorajar na minha vocação, não encontrei senão uma única alma: foi a da minha querida Madre... O meu coração encontrou no seu um eco fiel; sem a sua ajuda não teria, certamente, chegado à margem bendita que há cinco anos a tinha recebido no seu solo impregnado do orvalho celeste. 
 
Sim, havia cinco anos que estava afastada de vós, minha querida Madre. Julgava ter-vos perdido; mas no momento da provação foi a vossa mão que me indicou o caminho que devia seguir... Tinha necessidade dessa ajuda, pois as minhas visitas ao Carmelo tinham-se tornado cada vez mais penosas para mim; não podia falar do meu desejo de entrar, sem me sentir repelida. 
A Maria, achando-me muito nova, fazia tudo o que podia para impedir a minha entrada. Vós mesma, minha Madre, para me experimentar, tentáveis às vezes moderar o meu ardor. [49 vº] Enfim, se não tivesse tido verdadeira  vocação, teria desistido logo no princípio, pois encontrei obstáculos logo que comecei a responder ao chamamento de Jesus. 
Não quis comunicar à Celina o meu desejo de entrar tão nova para o Carmelo, o que me fez sofrer ainda mais, pois era-me bem difícil esconder-lhe qualquer coisa... Este sofrimento não durou muito tempo; depressa a minha querida irmãzinha soube da minha determinação e, longe de tentar dissuadir-me, aceitou com coragem admirável o sacrifício que Deus lhe pedia. 
Para compreender quão grande foi esse sacrifício, seria preciso saber até que ponto nós estávamos unidas... Era, por assim dizer, a mesma alma que nos fazia viver; desde há poucos meses, gozávamos juntas da vida mais deliciosa que duas raparigas podiam sonhar; tudo à nossa volta correspondia aos nossos gostos; era-nos dada a maior liberdade; enfim, eu dizia que a nossa vida era o Ideal da felicidade na terra... Mal tínhamos tido tempo para saborear esse ideal da felicidade, já era preciso renunciar livremente a ele.
 
A minha querida Celina não se revoltou um instante sequer. Não era a ela, no entanto, que Jesus chamava em primeiro lugar, por isso, teria podido queixar-se...; tendo a mesma vocação que eu, tocava-lhe a ela partir!... Mas assim como no tempo dos mártires, os que ficavam na prisão davam alegremente o beijo da paz aos seus irmãos que partiam em primeiro lugar para combaterem na arena e consolavam-se com o pensamento de que eles estavam talvez reservados para combates ainda maiores, assim a Celina deixou a sua Teresa afastar-se e ficou sozinha para o glorioso e sangrento combate para o qual Jesus a destinava como a priviligiada do seu amor!... 
A Celina tornou-se, portanto,a confidente das minhas lutas e dos meus sofrimentos; participou neles tal como se tratasse da sua própria vocação. Não tinha que temer nenhuma oposição da sua parte. Mas não sabia que meio utilizar para o comunicar ao Papá... Como lhe falar em ter que separar-se da sua rainha, a ele que acabava de fazer o sacrifício das suas três filhas mais velhas?... Ah! quantas lutas íntimas não sofri antes [50 rº] de sentir a coragem para lhe falar!...
 
No entanto, era preciso decidir-me, pois ia fazer catorze anos e meio; apenas seis meses nos separavam ainda da bela noite de Natal em que eu tinha resolvido entrar, à mesma hora em que, no ano anterior, tinha recebido «a minha graça». Para fazer a minha grande confidência escolhi o dia de Pentecostes. Durante todo o dia supliquei aos santos apóstolos que rezassem por mim e que me inspirassem as palavras que eu havia de dizer... Não eram eles, com efeito que deviam ajudar a menina tímida que Deus destinava a tornar-se o apóstolo dos apóstolos, pela oração e pelo sacrifício? 
 
Foi só de tarde, ao voltar de vésperas, que encontrei ocasião para falar ao meu querido paizinho. Tinha-se ido sentar no bordo da cisterna, e ali, com as mãos juntas, contemplava as maravilhas da natureza. O sol, cujos raios tinham perdido o seu ardor, dourava a copa das árvores altas, nas quais os passarinhos cantavam alegremente a sua oração da tarde. O belo rosto do Papá tinha uma expressão celestial. Senti que a paz lhe inundava o coração.
 
Sem dizer uma única palavra, fui-me sentar ao lado dele, com os olhos já cheios de lágrimas. Ele olhou-me com ternura, e pegando-me na cabeça, encostou-a contra o seu coração, dizendo-me: - «Que tens, minha rainhazinha?... Conta-me lá...». Depois, levantando-se como para dissimular a sus própria emoção, caminhou lentamente, mantendo a minha cabeça encostada ao seu coração. No meio de lágrimas, confiei-lhe o meu desejo de entrar para o Carmelo. Então as lágrimas dele vieram misturar-se com as minhas; mas não disse uma palavra para me dissuadir da minha vocação, contentando-se simplesmente com fazer-me notar que eu era ainda muito nova para tomar uma decisão tão séria. Mas eu defendi tão bem a minha causa que o Papá, com a sua maneira de ser simples e recta, ficou logo convencido de que o meu desejo era o do próprio Deus. Na sua fé profunda, exclamou que Deus lhe fazia uma grande honra ao pedir-lhe assim as suas filhas. 
Continuámos durante muito tempo o nosso passeio. O meu coração, aliviado pela bondade com que o meu incomparável pai tinha acolhido as suas confidências, [50 vº] transbordava afectuosamente no seu. O Papá parecia gozar daquela alegria tranquila que advém do sacrifício consumado. Falou-me como um santo. Gostaria de me lembrar das suas palavras para as escrever aqui, mas só conservei delas uma recordação demasiado perfumada para o poder traduzir. 
 
Do que me lembro perfeitamente é da acção simbólica que o meu querido Rei realizou sem o saber. Aproximando-se de um muro pouco elevado, mostrou-me florzinhas brancas parecidas com lírios em miniatura, e, pegando numa dessas flores, deu-ma, explicando-me com que cuidado Deus a tinha feito nascer e a tinha conservado até àquele dia. Ouvindo-o falar, julgava escutar a minha história, tal era a semelhança entre o que Jesus fizera pela florzinha e pela Teresinha...
 
Recebi essa florzita como uma relíquia. Notei que, ao colhê-la, o Papá tinha arrancado todas as suas raízes sem as partir; parecia destinada a continuar a viver noutra terra mais fértil que o musgo delicado em que tinham decorrido as suas primeiras manhãs... Era exactamente a mesma acção que o Papá acabava de fazer comigo alguns instantes antes, permitindo-me escalar a Montanha do Carmelo e deixar o ameno vale, testemunha dos meus primeiros passos na vida. 
 
Coloquei a minha florzinha branca no meu livro da Imitação, no capítulo intitulado: «Da necessidade de amar a Jesus sobre todas as coisas». É lá que ainda está; só que a haste se quebrou muito perto da raíz, e Deus parece dizer-me com isso que quebrará dentro em breve os laços da sua Florzinha e não a deixará murchar na terra!
Depois de ter obtido o consentimento do Papá, julgava poder voar sem temor para o Carmelo; mas, bem dolorosas provações haviam ainda de provar a minha vocação. 
Foi a tremer que confiei ao nosso tio a resolução que tinha tomado. Prodigalizou-me todos os sinais de ternura possíveis, mas não me deu autorização para partir;  pelo contrário, proibiu-me de lhe [51 rº] falar da minha vocação antes dos 17 anos de idade. Era contrário à prudência humana, dizia ele, deixar entrar para o Carmelo uma criança de 15 anos. Sendo esta vida de Carmelita, aos olhos do mundo, uma vida de filósofo, seria causar grande prejuízo à religião deixar que a abraçasse uma criança sem experiência... Toda a gente iria comentar isso, etc..., etc... Chegou mesmo a dizer que, para o decidir a deixar-me partir, seria preciso preciso um milagre. Compreendi que todas as razões seriam inúteis; por isso, retirei-me com o coração mergulhado na mais profunda amargura. A minha única consolação era a oração. Suplicava a Jesus que fizesse o milagre pedido, visto que só a esse preço poderia responder ao seu chamamento. 
 
Passou-se bastante tempo antes de ousar falar novamente ao nosso tio. Custava-me extremamente ir a casa dele. Da sua parte, ele parecia não mais pensar na minha vocação; mas soube mais tarde que a minha grande tristeza o influenciou muito a meu favor. Antes de fazer luzir na minha alma um raio de esperança, Deus quis enviar-me um martírio bem doloroso que demorou três dias. Oh! nunca como durante esta provação compreendi tão bem a dor da Santíssima Virgem e de S. José procurando o divino Menino Jesus...
Estava num triste deserto, ou antes, a minha alma era semelhante ao frágil batel sem piloto, entregue à mercê das ondas tempestuosas... Eu sei, Jesus estava lá a dormir na minha barquinha; mas a noite era tão negra, que me era impossível vê-lo. Nada me iluminava; nem sequer um relâmpago vinha rasgar as nuvens sombrias... Sem dúvida que o clarão dos relâmpagos é bem triste; mas se a tempestade tivesse chegado a rebentar abertamente, teria podido vislumbrar Jesus ao menos por um instante...
Era a noite, a noite profunda da alma... Como Jesus no jardim da agonia, sentia-me só, não encontrando consolação nem na terra nem no Céu. Deus parecia ter-me abandonado!!!...
 
A natureza parecia tomar parte na minha amarga tristeza. Durante esses três dias o sol não fez aparecer um único dos [51 vº] seus raios, e a chuva caiu torrencialmente. (Notei que em todas as circunstâncias graves da minha vida, a natureza era a imagem da minha alma. Nos dias de lágrimas, o Céu chorava comigo; nos dias de alegria, o sol enviava com profusão os seus alegres raios, e o azul não ficava obscurecido com nenhuma nuvem...). 
Finalmente, no quarto dia, que era um sábado, dia consagrado à doce Rainha do Céu, fui visitar o nosso tio. Qual não foi a minha surpresa, ao vê-lo olhar para mim e mandar-me entrar para o seu gabinete sem que lhe tivesse  manifestado tal desejo!... Começou por me repreender delicadamente por parecer ter medo dele, e depois disse-me que não era necessário pedir um milagre, que tinha apenas pedido a Deus que lhe desse «uma simples inclinação do coração», e que fora atendido... Ah! não tive a tentação de implorar um milagre, pois para mim o milagre estava concedido: o nosso tio já não era o mesmo!
Sem fazer nenhuma alusão à «prudência humana», disse-me que eu era uma Florzinha que Deus queria colher, e que não se oporia mais a isso!... Esta resposta definitiva era bem digna dele. Pela terceira vez este cristão de outra época permitia que uma das filhas adoptivas do seu coração se fosse sepultar longe do mundo. A nossa tia foi também admirável em ternura e prudência. Não me lembro que, durante a minha provação, me tenha dito uma única palavra que pudesse aumentá-la; via que ela tinha uma grande compaixão pela sua pobre Teresinha; por isso, quando obtive o consentimento do nosso querido tio, deu-me também o seu, mas não sem me provar de mil maneiras que a minha partida lhe causaria desgosto...
 
Ah! os nossos queridos parentes estavam bem longe de imaginar [52 rº] então que haviam de renovar ainda mais duas vezes o mesmo sacrifício... Mas, ao estender a mão sempre para pedir, Deus não a apresentou vazia: os seus amigos mais queridos puderam obter dela abundantemente a força e a coragem  que tão necessárias lhes eram. 
Mas o meu coração leva-me para bem longe do meu assunto. É quase com pena que volto a ele. 
Depois da resposta do nosso tio, podeis compreender, minha Madre, [51 vº continuação] com que alegria retomei o caminho dos Buissonnets, sob «o lindo céu, cujas nuvens se tinham dissipado completamente»!... Na minha alma também a noite cessara. Jesus, ao acordar, tinha-me restituído a alegria; o fragor das vagas acalmara-se; em vez do vento da provação, uma brisa ligeira enfunava a minha vela, e eu pensava chegar dentro em pouco à margem bendita que avistava pertinho de mim. Ele estava realmente muito perto da minha barquinha; mas mais que uma tempestade havia ainda de surgir, e, roubando-lhe a vista do farol luminoso, fazer-lhe temer ter-se afastado para sempre da margem tão ardentemente desejada...
 
Poucos dias depois de ter obtido o consentimento do nosso tio, fui visitar-vos, minha querida Madre, e contei-vos a minha alegria por terem passado todas as minhas provações. Mas, qual não foi a minha surpresa e o meu desgosto, ao ouvir-vos dizer que o Senhor [52 rº] P. Superior não consentia na minha entrada antes dos 21 anos de idade... Ninguém tinha pensado nessa oposição, a mais invencível de todas. 
Apesar disso, sem perder a coragem, fui eu própria, com o Papá e a Celina, a casa do nosso Padre, para tentar movê-lo, mostrando-lhe que tinha verdadeira vocação para o Carmelo. Recebeu-nos muito friamente. O meu incomparável paizinho em vão juntou às minhas as suas solicitações. Nada conseguiu mudar a sua oposição. Disse-me que não havia perigo em esperar, que podia levar em casa uma vida de Carmelita; que se não tomasse a disciplina nem tudo estava perdido..., etc..., etc... Por último, acrescentou que não era senão o delegado do senhor Bispo, que se este me quisesse autorizar a entrar para o Carmelo, nada mais teria a dizer...
Saí da residência paroquial banhada em lágrimas. Felizmente ia escondida pelo guarda-chuva, pois a chuva caía torrencialmente. 
 
O Papá não sabia como me consolar... Prometeu levar-me a Bayeux, logo que lhe manifestei  tal desejo, porque eu estava resolvida a conseguir os meus fins. Cheguei mesmo a dizer que recorria ao Santo Padre, se o senhor Bispo não me quisesse permitir entrar para o Carmelo aos 15 anos...
Muitas coisas aconteceram antes da minha viagem a Bayeux. Exteriormente a minha vida parecia a mesma. 
Estudava e recebia da Celina lições de desenho, e a minha hábil mestra encontrava em mim grandes disposições para a sua arte.
Crescia sobretudo no amor de Deus. Sentia no meu coração ímpetos até então desconhecidos; às vezes tinha verdadeiros transportes de amor. Uma noite, não sabendo como dizer a Jesus que O amava e quanto desejava que Ele fosse amado e glorificado em toda a parte, pensei com dor que Ele nunca poderia receber do Inferno um único acto de amor. Então disse a Deus que, para Lhe agradar eu consentiria em ver-me lá mergulhada, para que Ele fosse amado eternamente nesse lugar de blasfémia... Sabia que isso não O poderia glorificar, porque Ele não deseja senão a nossa felicidade; mas, quando se [52 vº] ama, sente-se necessidade de dizer mil loucuras. Se falava desta maneira, não era porque o Céu não excitasse o meu desejo, mas porque então o meu Céu não era senão o Amor, e estava convencida, como S. Paulo, de que nada poderia separar-me do objecto divino que me tinha seduzido!... 
 
Antes de deixar o mundo, Deus deu-me a consolação de contemplar de perto almas de crianças. Sendo a mais pequena da família, nunca tivera essa felicidade. Eis as tristes circunstâncias que ma ocasionaram: Uma pobre mulher, parente da nossa criada, morreu na flor da idade, deixando três crianças pequeninas. Durante a doença dela, recebemos em casa as duas meninas, das quais a mais velha não tinha ainda seis anos. Ocupava-me delas durante todo o dia, e era para mim um grande prazer ver com que candura acreditavam em tudo quanto lhes dizia. 
O santo baptismo deve depositar nas almas um germe bem profundo das virtudes teologais, pois se revelam logo na infância, e basta a esperança dos bens futuros para fazer aceitar sacrifícios. Quando queria ver as minhas duas meninas bem dispostas uma com a outra, em vez de prometer brinquedos e rebuçados à que cedesse à irmã, falava-lhes das recompensas eternas que o Menino Jesus daria no Céu às criancinhas bem comportadas. 
 
A mais velha, cuja razão começava a desenvolver-se, fitava-me com os olhos a brilhar de alegria. Fazia-me mil perguntas encantadoras sobre o Menino Jesus e o seu belo Céu, e prometia-me com entusiasmo ceder sempre à irmã. Dizia que nunca na sua vida esqueceria o que lhe tinha ensinado «a menina grande», pois era assim que me chamava...
Vendo de perto estas almas inocentes, compreendi que grande infelicidade era não as formar bem desde o seu despertar, quando se parecem com a cera mole sobre a qual se pode imprimir o cunho das virtudes mas também o do mal... Compreendi o que Jesus disse no Evangelho: «Era preferível ser lançado ao mar que escandalizar uma só destas criancinhas». [53 rº] Ah! quantas almas chegariam à santidade, se fossem bem orientadas!...
Bem sei que Deus não precisa de ninguém para realizar a sua obra. Mas assim como deixa que um agricultor hábil cultive plantas raras e delicadas, dando-lhe para isso o saber necessário, e reservando para si próprio o cuidado de as fecundar, assim Jesus quer ser ajudado no seu divino cultivo das almas.
Que aconteceria se um agricultor pouco habilidoso não enxertasse bem as suas árvores, se não soubesse reconhecer a natureza de cada uma e quisesse fazer desabrochar rosas num pessegueiro? Fazia morrer a árvore que, no entanto, era boa e capaz de produzir frutos. 
Do mesmo modo, é preciso saber reconhecer o que Deus pede às almas desde a infância, a secundar a acção da sua graça, sem nunca a antecipar nem a retardar.
 
Como os passarinhos aprendem a cantar ouvindo os pais, assim as crianças aprendem a ciência das virtudes, o canto sublime do Amor divino, junto das almas encarregadas de as formar para a vida. 
Lembro-me de que entre os meus pássaros tinha um canário que cantava maravilhosamente; tinha também um pequeno pintarroxo, ao qual prodigalizava os meus cuidados «maternais», por tê-lo adoptado antes de ele ter podido gozar da felicidade da liberdade. Esse pobre pequeno prisioneiro não tinha pais que o ensinassem a cantar; mas ouvindo de manhã à noite o canário, seu companheiro, entoar alegres trinados, quis imitá-lo... Esta empresa era difícil para um pintarroxo, e por isso a sua débil voz teve muita dificuldade em se harmonizar com a voz vibrante do seu professor de música. Era encantador ver os esforços do pobre pequeno; mas foram por fim coroados de êxito, pois o cantar dele, embora muito fraco, tornou-se absolutamente idêntico ao do canário.
 
[53 vº] Ó minha querida Madre! fostes vós quem me ensinou a cantar! Foi a vossa voz que me encantou desde a infância; e agora tenho a consolação de ouvir dizer que me pareço convosco!!! Sei quanto ainda estou longe disso, mas espero, apesar da minha debilidade, repetir eternamente o mesmo cântico que vós!...
Antes da minha entrada para o Carmelo, tive ainda muitas experiências da vida e das misérias do mundo. Mas estes pormenores levar-me-iam demasiado longe. Vou retomar o relato da minha vocação. 
O dia 31 de Outubro foi o dia marcado para a minha viagem a Bayeux, Fui sozinha com o Papá, com o coração cheio de esperança, mas também muito comovida ao pensar em me apresentar no Paço episcopal. Pela primeira vez na minha vida, tinha de ir fazer uma visita sem ser acompanhada pelas minhas irmãs, e essa visita era a um Bispo! Eu, que nunca precisava de falar senão para responder às perguntas que me faziam, tinha de explicar eu mesma a finalidade  da minha visita e explanar as razões que me levavam a solicitar a minha entrada para o Carmelo. Numa palavra, tinha de mostrar a solidez da minha vocação. 
 
Ah! quanto me custou fazer esta viagem! Foi preciso que Deus me concedesse uma graça muito especial para eu poder ultrapassar a minha grande timidez... É bem verdade que «o Amor nunca encontra impossíveis, porque tudo crê possível e permitido». 
Verdadeiramente, só o amor de Jesus me podia fazer ultrapassar estas dificuldades e as que se seguiram, pois aprouve-lhe fazer-me comprar a minha vocação com provações bem grandes...
Hoje, que gozo da solidão do Carmelo (repousando à sombra d´Aquele que tão ardentemente desejei), acho que comprei a minha felicidade por baixo preço, e estaria disposta a suportar muito maiores penas para a adquirir, se não a tivesse ainda!
Chovia a cântaros quando chegamos a Bayeux. O Papá que não queria ver a sua rainhazinha entrar no Paço episcopal com o lindo vestido todo ensopado, fê-la subir para um ónibus e conduzir  à catedral. Ali começaram os meus infortúnios. O senhor Bispo e todo o clero assistiam a um solene funeral. A igreja estava repleta de senhoras de luto, e toda a gente olhava para mim com o meu [54 rº] vestido claro e o meu chapéu branco. Quereria sair da igreja, mas, nem pensar nisso, por causa da chuva. E para me humilhar ainda mais, Deus permitiu que o Papá, com a sua simplicidade patriarcal, me fizesse avançar até ao cimo da catedral. Não o querendo desgostar, fi-lo de boa vontade, e proporcionei esta distracção aos bons habitantes de Bayeux, que desejaria nunca ter conhecido... Enfim, pude respirar à vontade numa capela que ficava por detrás por altar-mor, e fiquei lá muito tempo, rezando com fervor, à espera de que a chuva passasse e nos deixasse sair. Ao descer o Papá fez-me admirar a beleza do edifício, que parecia muito maior estando deserto. Mas, um único pensamento me dominava. Não podia sentir gosto com coisa nenhuma. 
 
Fomos directamente à secretaria do Sr. P.  Révérony, que estava avisado da nossa chegada, tendo ele próprio fixado o dia da viagem; mas estava ausente. Tivemos, portanto de vaguear pelas ruas de Bayeux, que me pareceram muito tristes. 
Finalmente voltámos para junto do Paço episcopal, e o Papá fez-me entrar num belo hotel, onde não fiz as honras ao bom cozinheiro. O pobre paizinho era de uma ternura quase incrível para comigo. Dizia-me que não me preocupasse; que com certeza o senhor Bispo atenderia o meu pedido. Depois de termos descansado, voltámos à secretaria do Sr. P. Révérony. Chegou ao mesmo tempo um cavalheiro, mas o Vigário Geral pediu-lhe educadamente que esperasse, e fez-nos entrar em primeiro lugar no seu gabinete. (O pobre cavalheiro teve tempo para se aborrecer, pois a visita foi longa). O Sr. P. Révérony mostrou-se muito amável, mas penso que o motivo da nossa viagem o surpreendeu muito. Depois de ter olhado para mim a sorrir, e de me ter dirigido algumas perguntas, disse-nos: - «Vou apresentá-los ao Senhor Bispo. Tenham a bondade de me acompanhar». 
 
Vendo lágrimas a brilharem nos meus olhos, acrescentou: - «Ah! estou a ver diamantes!... Não é preciso mostrá-los ao Senhor Bispo!...». Fez-nos atravessar várias salas enormes, ornadas [54 vº]  com retratos de bispos. Ao ver-me nesses enormes salões, parecia-me ser uma pobre formiguita, e perguntava a mim própria o que ousaria dizer ao Senhor Bispo. 
Ele andava a passear entre dois sacerdotes, numa galeria. Vi o Sr. P. Révérony dizer-lhe algumas palavras e voltar com ele. Nós esperávamo-lo no seu gabinete, onde havia três grandes poltronas diante da lareira onde crepitava um fogo vivo. Ao ver entrar Sua Excelência, o Papá ajoelhou-se ao pé de mim para recebermos a bênção. Depois o Sr. Bispo mandou ao Papá sentar-se numa das poltronas; sentou-se em frente dele, e o Sr. P. Révérony quis que eu me instalasse na do meio; recusei delicadamente, mas ele insistiu, dizendo-me que mostrasse se eu era capaz de obedecer. Logo me sentei, sem dizer mais nada, e fiquei confundida, ao vê-lo servir-se de uma cadeira, estando eu enterrada numa poltrona onde quatro como eu caberiam à vontade (mais à vontade do que eu, pois estava longe de o estar!...). 
 
Esperava que o Papá falasse, mas disse-me que explicasse eu mesma ao Senhor Bispo a finalidade da nossa visita. Fi-lo o mais eloquentemente que pude. Sua Excelência, habituado à eloquência, não pareceu muito impressionado com as minhas razões. Em vez delas, uma palavra do Sr. P. Superior ter-me-ia sido mais útil. Infelizmente, não a tinha, e a oposição dele não advoga de modo algum a meu favor...
O Senhor Bispo perguntou-me se havia muito tempo que eu desejava entrar para o Camelo. -« Oh! sim, Excelência, há muito tempo!...» -«Vejamos, replicou a rir o Sr. P. Révérony, pelo menos não pode dizer que há 15 anos que tem esse desejo!» - «É verdade, retorqui sorrindo também, mas não há muitos anos a subtrair, pois desejei ser religiosa desde o despertar da razão, e desejei o Carmelo logo que o conheci bem, porque achava que nesta Ordem seriam satisfeitas todas as aspirações da minha alma». [55 rº] Não sei, minha Madre, se foram estas exactamente as minhas palavras. 
 
[54 vº, continuação] Creio que me exprimi ainda pior; mas, enfim, é este o sentido. 
O Senhor Bispo, julgando ser agradável ao Papá, tentou convencer-me a permanecer mais alguns anos ao pé dele; por isso, não ficou pouco surpreendido e edificado ao vê-lo tomar o meu partido, intercedendo para que eu obtivesse a permissão de voar aos 15 anos. No entanto, tudo foi inútil. Disse que antes de se decidir era indespensável uma conversa com com o Superior do Carmelo. Não podia ouvir nada que me causasse tanto desgosto, pois conhecia a oposição formal do nosso Padre, e por isso, sem fazer caso da recomendação  do Sr. P. Révérony, fiz mais do que mostrar diamantes ao Senhor Bispo: dei-lhos!... Vi bem que estava impressionado. Cingindo-me pelo pescoço, apoiava a minha cabeça no seu ombro e fazia-me carícias como creio que nunca ninguém [55 rº] recebera dele. Disse-me que não estava tudo perdido, que estava muito contente por eu ir a Roma para fortalecer  a minha vocação, e que em vez de chorar me devia alegrar. Acrescentou que, tendo de ir a Lisieux na semana seguinte, falaria de mim ao pároco de Saint Jacques, e que certamente receberia a resposta em Itália. Compreendi que seria inútil fazer novas instâncias. Aliás não tinha mais nada a dizer, pois tinha esgotado todos os recursos da minha eloquência. 
O Senhor Bispo acompanhou-nos até ao jardim. O Papá divertiu-o muito ao dizer-lhe que, para parecer mais velha, eu mandara puxar o cabelo para cima. (Este pormenor não o esqueceu o Senhor Bispo, porque não fala da «sua filhinha» sem contar a história do cabelo...). 
O Sr. P. Révérony quis acompanhar-nos até à saída do jardim do Paço episcopal. Disse ao Papá que nunca se tinha visto coisa semelhante: - «Um pai tão ansioso por dar a filha a Deus como esta filha por se oferecer a si mesma»!
 
O Papá pediu-lhe várias explicações sobre a peregrinação; entre outras coisas, perguntou-lhe como seria preciso vestir-se para comparecer diante do Santo Padre. Estou ainda a vê-lo voltar-se diante do Sr. P. Révérony e perguntar: - «Estou bem assim?...». Dissera também ao Senhor Bispo que, se ele não me permitisse entrar para o Carmelo, eu pediria essa graça ao Soberano Pontífice. 
Era muito simples nas suas palavras e nas suas maneiras o meu querido Rei; mas era tão bonito..., e tinha uma distinção absolutamente natural, que deve ter agradado muito ao Senhor Bispo, habituado a ver-se rodeado de personagens  que conhecem  todas as regras de etiqueta dos salões, mas não o Rei de França e de Navarra em pessoa, com a sua rainhazinha...
Quando cheguei à rua, as lágrimas começaram de novo a correr, mas não tanto por causa do meu desgosto, mas por ver que o meu paizinho acabava de fazer uma viagem inútil... Ele que imaginava a festa de enviar um telegrama para o Carmelo, a anunciar a feliz resposta do Senhor Bispo, era obrigado a [55 vº] regressar sem trazer nenhuma...
 
Ah! que desgosto eu tinha!... Parecia-me que o meu futuro estava destroçado para sempre. Quanto mais me aproximava do termo, mais via complicarem-se as minhas pretensões. A minha alma estava mergulhada na amargura, mas também na paz, porque não procurava senão a vontade de Deus. 
 
Logo que cheguei a Liseux, fui procurar consolação ao Carmelo, e encontrei-me junto de vós, minha querida Madre. Oh, não! nunca esquecerei tudo o que sofrestes por minha causa. Se não temesse profaná-las servindo-me delas, poderia dizer as palavras que Jesus dirigiu aos seus apóstolos na noite da sua Paixão: «Fostes vós que estivestes sempre comigo em todas as minhas tribulações»... Também as minhas queridíssimas irmãs me ofereceram dulcíssimas consolações...