VII. OS VALORES FUNDAMENTAIS DA VIDA SOCIAL

VII. OS VALORES FUNDAMENTAIS DA VIDA SOCIAL

a) Relação entre princípios e valores

 

197 A doutrina social da Igreja, ademais dos princípios que devem presidir à edificação de uma sociedade digna do homem, indica também valores fundamentais. A relação entre princípios e valores é indubitavelmente de reciprocidade, na medida em que os valores sociais expressam o apreço que se deve atribuir àqueles determinados aspectos do bem moral que os princípios se propõem conseguir, oferecendo-se como pontos de referência para a oportuna estruturação e a condução ordenada da vida social. Os valores requerem, portanto, quer a prática dos princípios fundamentais da vida social, quer o exercício pessoal das virtudes, e, portanto, das atitudes morais correspondentes aos valores mesmos [426] .

Todos os valores sociais são inerentes à dignidade da pessoa humana, da qual favorecem o autêntico desenvolvimento e são, essencialmente: a verdade, a liberdade, a justiça, o amor [427] . A sua prática constitui a via segura e necessária para alcançar um aperfeiçoamento pessoal e uma convivência social mais humana; eles constituem a referência imprescindível para os responsáveis pela coisa pública, chamados a realizar «as reformas substanciais das estruturas econômicas, políticas, culturais e tecnológicas e as mudanças necessárias nas instituições» [428] . O respeito pela legítima autonomia das realidades terrestres faz com que a Igreja não se reserve competências específicas de ordem técnica o temporal [429] , mas não a impede de se pronunciar para mostrar como, nas diferentes opções do homem, tais valores são afirmados ou, vice-versa, negados [430] .

 

b) A verdade

 

198 Os homens estão obrigados de modo particular a tender continuamente à verdade, a respeitá-la e a testemunhá-la responsavelmente [431] Viver na verdadetem um significado especial nas relações sociais: a convivência entre os seres humanos em uma comunidade é efetivamente ordenada, fecunda e condizente com a sua dignidade de pessoas quando se funda na verdade [432] . Quanto mais as pessoas e os grupos sociais se esforçam por resolver os problemas sociais segundo a verdade, tanto mais se afastam do arbítrio e se conformam às exigências objetivas da moralidade.

O nosso tempo exige uma intensa atividade educativa [433] e um correspondente empenho por parte de todos, para que a investigação da verdade, não redutível ao conjunto ou a alguma das diversas opiniões, seja promovida em todos os âmbitos, e prevaleça sobre toda tentativa de relativizar-lhe as exigências ou de causar-lhe qualquer tipo de ofensa [434] . É uma questão que incumbe especialmente ao mundo da comunicação pública e ao da economia. Neles, o uso descomedido do dinheiro faz com que surjam questões cada vez mais urgentes, que necessariamente reclamam uma necessidade de transparência e honestidade no agir pessoal e social.

 

c) A liberdade

 

199 A liberdade é no homem sinal altíssimo da imagem divina e, conseqüentemente, sinal da sublime dignidade de toda pessoa humana [435] : «A liberdade se exerce no relacionamento entre os seres humanos. Toda pessoa humana, criada à imagem de Deus, tem o direito natural de ser reconhecida como ser livre e responsável. Todos devem a cada um esta obrigação de respeito. O direito ao exercício da liberdade é uma exigência inseparável da dignidade da pessoa humana» [436] . Não se deve restringir o significado da liberdade, considerando-a numa perspectiva puramente individualista e reduzindo-a ao exercício arbitrário e incontrolado da própria autonomia pessoal: «Longe de realizar-se na total autonomia do eu e na ausência de relações, a liberdade só existe verdadeiramente quando laços recíprocos, regidos pela verdade e pela justiça, unem as pessoas» [437] . A compreensão da liberdade torna-se profunda e ampla na medida em que é tutelada, também no âmbito social, na totalidade das suas dimensões.

 

200 O valor da liberdade, enquanto expressão da singularidade de cada pessoa humana, é respeitado e honrado na medida em que se consente a cada membro da sociedade realizar a própria vocação pessoal; buscar a verdade e professar as próprias idéias religiosas, culturais e políticas; manifestar as próprias opiniões; decidir o próprio estado de vida e, na medida do possível, o próprio trabalho; assumir iniciativas de caráter econômico, social e político. Isto deve acontecer dentro de um «sólido contexto jurídico» [438] , nos limites do bem comum e da ordem pública e, em todo caso, sob o signo da responsabilidade.

A liberdade deve desdobrar-se, por outro lado, também como capacidade de recusa de tudo o que é moralmente negativo, seja qual for a forma em que se apresente [439] , como capacidade de efetivo desapego de tudo o que possa obstar o crescimento pessoal, familiar e social. A plenitude da liberdade consiste na capacidade de dispor de si em vista do autêntico bem, no horizonte do bem comum universal [440] .

 

d) A justiça

 

201 A justiça é um valor, que acompanha o exercício da correspondente virtude moral cardeal [441] . Segundo a sua formulação mais clássica, «ela consiste na constante e firme vontade de dar a Deus e ao próximo o que lhes é devido» [442] . Do ponto de vista subjetivo a justiça se traduz na atitude determinada pela vontade de reconhecer o outro como pessoa, ao passo que, do ponto de vista objetivo, essa constitui o critério determinante da moralidade no âmbito inter-subjetivo e social [443] .

O Magistério social evoca a respeito das formas clássicas da justiça: comutativa, distributiva, legal [444] . Um relevo cada vez maior no Magistério tem adquirido a justiça social [445] , que representa um verdadeiro e próprio desenvolvimento da justiça geral, reguladora dos relações sociais com base no critério da observância da lei. A justiça social, exigência conexa com a questão social, que hoje se manifesta em uma dimensão mundial, diz respeito aos aspectos sociais, políticos e econômicos e, sobretudo, à dimensão estrutural dos problemas e das respectivas soluções [446] .

 

202 A justiça mostra-se particularmente importante no contexto atual, em que o valor da pessoa, da sua dignidade e dos seus direitos, a despeito das proclamações de intentos, é seriamente ameaçado pela generalizada tendência a recorrer exclusivamente aos critérios da utilidade e do ter. Também a justiça, com base nestes critérios, é considerada de modo redutivo, ao passo que adquire um significado mais pleno e autêntico na antropologia cristã. A justiça, com efeito, não é uma simples convenção humana, porque o que é «justo» não é originariamente determinado pela lei, mas pela identidade profunda do ser humano [447] .

 

203 A plena verdade sobre o homem permite superar a visão contratualista da justiça, que é visão limitada, e abrir também para a justiça o horizonte da solidariedade e do amor: «A justiça sozinha não basta; e pode mesmo chegar a negar-se a si própria, se não se abrir àquela força mais profunda que é o amor» [448] . Ao valor da justiça a doutrina social da Igreja acosta o da solidariedade, enquanto via privilegiada da paz. Se a paz é fruto da justiça, «hoje poder-se-ia dizer, com a mesma justeza e com a mesma força de inspiração bíblica (cf. Is 32, 17; Tg 3, 18), Opus solidarietatis pax: a paz é o fruto da solidariedade» [449] . A meta da paz, com efeito, «será certamente alcançada com a realização da justiça social e internacional; mas contar-se-á também com a prática das virtudes que favorecem a convivência e nos ensinam a viver unidos, a fim de, unidos, construirmos dando e recebendo, uma sociedade nova e um mundo melhor» [450] .